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Capítulo XII Crédito Tributário e Lançamento Sumário: 1. Enunciados e objetos da experiência — “fato” como enunciado protocolar — a constituição jurídica do “fato”. 2. O evento previsto em norma e a chamada “relação jurídica efectual”. 3. O fato jurídico tributário e seu efeito peculiar: instaurar o vínculo obrigacional. 4. A natureza do crédito tributário — crédito e obrigação. 5. O crédito tributário no Código Tributário Nacional. 6. Sobre a norma individual e concreta que documenta a incidência. 7. Os sujeitos credenciados a emitir a norma individual e concreta relativa à percussão tributária. 8. Lançamento tributário — o problema semântico. 9. Demarcação conceptual do vocábulo “lançamento”. 10. Lançamento tributário: norma, procedimento e ato. 11. Lançamento e a teoria dos atos administrativos. 12. Definição de lançamento tributário. 13. As cláusulas da definição satisfazendo a estrutura do ato. 14. A norma jurídica do ato de lançamento e a norma que figura como seu conteúdo. 15. O velho problema da natureza declaratória ou constitutiva do lançamento tributário. 16. Sobre o conteúdo do ato de lançamento. 17. Os atributos do ato jurídico administrativo de lançamento. 18. Lançamento provisório e definitivo. 19. Lançamento e auto de infração. 20. Do erro de fato e do erro de direito no lançamento tributário. 21. Alterabilidade do lançamento no direito positivo brasileiro. 22. Modalidades de lançamento — crítica. 23. Aspectos do lançamento no Código Tributário Nacional. 24. A norma jurídico-tributária, individual e concreta produzida pelo sujeito passivo. 25. A linguagem produtora da norma individual e concreta e o momento em que ingressa no sistema positivo. 1. Enunciados e objetos da experiência — “fato” como enunciado protocolar — a constituição jurídica do “fato” Jurgen Habermas129 trabalha com a distinção entre fatos e objetos da experiência. Os fatos seriam os enunciados linguísticos sobre as coisas e os acontecimentos, sobre as pessoas e suas manifestações. Os objetos da experiência são aquilo acerca do que fazemos afirmações, aquilo sobre que emitimos enunciados. Deriva dessas observações que o status dos fatos é diferente do status dos objetos a que se referem. Con los objetos hago experiencias, los hechos los afirmo; no puedo experimentar hechos ni afirmar objetos (o experiencias con los objetos). E Robert Alexy130, expondo a crítica de Habermas à teoria da verdade como correspondência, para afirmar a adoção da “verdade consensual”, esclarece que a condição para a verdade das proposições é o acordo potencial de todos os demais, querendo significar que alguém poderá atribuir um predicado a um objeto se qualquer outro, que com esse alguém estabeleça diálogo, viesse a atribuir o mesmo predicado ao mesmo objeto. Essa também é a perspectiva de Tércio Sampaio Ferraz Jr.131 com relação ao conceito de fato: “É preciso distinguir entre fato e evento. A travessia do Rubicão por Cesar é um evento. Mas ‘Cesar atravessou o Rubicão’ é um fato. Quando, pois, dizemos que ‘é um fato que Cesar atravessou o Rubicão’ conferimos realidade ao evento. ‘Fato’ não é pois algo concreto, sensível, mas um elemento linguístico capaz de organizar uma situação existencial como realidade”. Ao mesmo tempo, é importante acrescentar, como faz este autor, que o elemento de linguagem “é fato que”, constituindo em realidade o evento que ele atesta ter ocorrido, há de assumir as proporções de um enunciado verdadeiro, assim entendido aquele que expressa o uso competente da linguagem. Se o discurso de quem expede a oração manifestar-se de tal modo que alguém que domine o idioma também o faça, então o enunciado será considerado verdadeiro. Daí a conclusão de que a realidade constituída por um enunciado é função da verdade ou do uso competente do idioma. Tenhamos presente que a realidade, o mundo real, para Tércio, não é um dado, mas uma articulação linguística mais ou menos uniforme num contexto existencial132. Não é qualquer função pragmática da linguagem que propicia a composição de um enunciado factual. Além da linguagem descritiva, indicativa ou declarativa, muito usada na comunicação diária e no discurso científico, torna-se possível emitir enunciados fácticos também em linguagem prescritiva e em linguagem operativa ou performativa. Obviamente que os valores lógicos de tais enunciados serão os inerentes ao uso empregado: verdadeiro e falso, para o descritivo; válido e não válido para o prescritivo; e eficaz e ineficaz para o performativo. A despeito da função, porém, em todos eles haverá, necessariamente, um quantum de referencialidade, uma vez que são formações linguísticas voltadas para o mundo fenomênico das coisas, projetando-se no domínio dos objetos da experiência. Na composição de tais enunciados, sobre as regras que orientam a boa formação sintática, hão de observar-se os usos do idioma, sem o que o sentido daquelas estruturas não será apto para fins denotativos. E esses fins reclamam a identificação da ocorrência num intervalo de tempo e num ponto do espaço. Serão, portanto, necessariamente, determinativos. Por isso, o verbo há de estar no presente ou no passado, excluindo-se o futuro. Como salienta Tércio Sampaio Ferraz Jr.133, não teria cabimento afirmar-se como fato acontecimento futuro. Por outro lado, tal afirmação não significa a impossibilidade de construir conjuntos que possam receber, um a um, as ocorrências factuais que venham a suceder. É bom lembrar que se constrói uma classe ou conjunto enumerando os indivíduos que a compõem, ou indicando as notas ou nota que o indivíduo precisa ter para pertencer à classe ou conjunto. A primeira é a forma tabular; a segunda, forma de construção. A modalidade em que, quase sempre, se manifesta a proposição normativa geral e abstrata não é a forma tabular, mas a forma de construção. Nela se estatuem as notas (conotação) que os sujeitos ou as ações devem ter para pertencerem ao conjunto. A relação de pertinencialidade é determinada conotacionalmente. Este o modo mais frequente no direito positivo. Seria infindável formar classes pela enumeração dos indivíduos ou ações, já que o real é irrepetível e a experiência é infinita e inesgotável. São assim as previsões hipotéticas: “dado que alguém realize operações relativas à circulação de mercadorias, no território do Estado de São Paulo, reputando-se acontecido o fato no momento em que as mercadorias deixarem o estabelecimento do contribuinte, então...”. Cada enunciado que venha a ser formado, contendo os caracteres selecionados na composição típica da hipótese, subsumir-se-á naquele conjunto que, dessa maneira, poderá receber um número infinito de ocorrências fácticas. É bom ter presente que a formação desses segmentos linguísticos com sentido completo pressupõe um processo seletivo, com a eleição dos traços julgados mais relevantes para a identificação do objeto da experiência, refletindo, não o real, mas um ponto de vista sobre o real, como salienta Samira Chalhub134. A esta altura, já podemos dizer que o enunciado factual é protocolar, surpreendendo uma alteração devidamente individualizada do mundo fenomênico, com a clara determinação das condições de espaço e de tempo em que se deu a ocorrência. Articulação de linguagem organizada assim, com esse teor de denotatividade, chamaremos de fato, fato político, econômico, biológico, psicológico, histórico, jurídico etc. No direito positivo, correspondem ao antecedente das normasindividuais e concretas. Nos enunciados que se projetem para o futuro, selecionando marcas, aspectos, pontos de vista, linhas, traços, caracteres, que não se refiram a um acontecimento isolado, mas que se prestem a um número indeterminado de situações, reconheceremos as previsões típicas que aparecem nos antecedentes normativos, de feição predominantemente conotativa. Chamá-los-emos “enunciados conotativos” e diremos que frequentam as normas jurídicas gerais e abstratas. Vamos ter, então, enunciados denotativos ou fatos e enunciados conotativos ou classes formadas com os predicados que os enunciados factuais deverão conter. Convém advertir, portanto, que essas orações conotativas não abrigam propriamente fatos, mas elementos caracterizadores de eventuais ocorrências fácticas, pelo que, em termos rigorosos, não devemos dizer que o fato jurídico esteja contido na hipótese. Os enunciados das normas gerais e abstratas, por isso que lidam com uma acentuada carga de indeterminação (vaguidade), necessitam dos enunciados denotativos das normas individuais para atingirem a concretude da experiência social. Pois bem. Tais reflexões, de fora parte as implicações que certamente provocam no âmbito da teoria geral do conhecimento, adquirem uma importância enorme para fundamentar o ponto de vista deste trabalho, porquanto nossa proposta epistemológica descansa precisamente na circunstância de que há uma linguagem, que nominamos de social, constituidora da realidade que nos cerca. Sobre essa camada, a “linguagem do direito positivo”, como discurso prescritivo de condutas, vai suscitar aquele plano que tratamos como sendo da “facticidade jurídica”: fatos jurídicos não são simplesmente os fatos do mundo social, constituídos pela linguagem de que nos servimos no dia a dia. Antes, são os enunciados proferidos na linguagem competente do direito positivo, articulados em consonância com a teoria das provas. Quem quiser relatar com precisão os fatos jurídicos, nomeando-lhes os efeitos, que use a teoria das provas, responsável pelo estilo competente para referência aos acontecimentos do mundo do direito. Com efeito, se as mutações que se derem entre os objetos da experiência vierem a ser contadas em linguagem social, teremos os fatos, no seu sentido mais largo e abrangente. Aquelas mutações, além de meros “eventos”, assumem a condição de “fatos”. Da mesma forma, para o ponto de vista do direito, os fatos da chamada realidade social serão simples eventos, enquanto não forem constituídos em linguagem jurídica própria. Pensemos num exemplo singelo: nasce uma criança. Isto é um evento. Os pais, entretanto, contam aos vizinhos, relatam os pormenores aos amigos e escrevem aos parentes de fora para dar-lhes a notícia. Aquele evento, por força dessas manifestações de linguagem, adquiriu também as proporções de um fato, num de seus aspectos, fato social. Mas não houve o fato jurídico correspondente. A ordem jurídica, até agora ao menos, não registrou o aparecimento de uma nova pessoa, centro de imputação de direitos e de deveres. A constituição jurídica desse fato vai ocorrer quando os pais ou responsáveis comparecerem ao cartório de registro civil e prestarem declarações. O oficial do cartório expedirá norma jurídica, em que o antecedente é o fato jurídico do nascimento, na conformidade das declarações prestadas, e o consequente é a prescrição de relações jurídicas em que o recém-nascido aparece como titular dos direitos subjetivos fundamentais (ao nome, à integridade física, à liberdade etc.), oponíveis a todos os demais da sociedade. Eis uma relação jurídica em que o sujeito ativo está determinado, e o passivo, em estado de indeterminação. É que, muitas vezes, o direito posto não se satisfaz com a linguagem ordinária que utilizamos em nossas comunicações corriqueiras: exige uma forma especial, fazendo adicionar declarações perante autoridades determinadas, requerendo a presença de testemunhas e outros requisitos mais. Justamente o que sucede no caso do nascimento. A linguagem do direito não aceita as comunicações que os pais fazem aos vizinhos, amigos e parentes. Impõe, para que o fato se dê por ocorrido juridicamente, um procedimento específico. Eis a linguagem do direito positivo (Ldp) incidindo sobre a linguagem da realidade social (Lrs) para produzir uma unidade na linguagem da facticidade jurídica (Lfj). Um trecho da obra de San Tiago Dantas cai como uma luva para ilustrar o que acaba de ser dito: Se o Registro Civil diz que alguém já morreu, nem mesmo exibindo a pessoa, é possível provar que esse alguém está vivo. O registro cria, por conseguinte, uma presunção a respeito do estado civil das pessoas, não podendo ser atacada por nenhuma outra prova. Como, porém, é claro que pode estar errado, tem-se que admitir a retificação dos assentos de registro civil e até mesmo a anulação dos assentos quando eles forem integralmente falsos. De sorte que, se quiser-se provar a respeito do estado civil de uma pessoa algo diverso do que diz o registro civil, preliminarmente, há voltar-se contra o próprio assento de registro civil e, depois de anulado, ou retificado, é que se poderá trazer a sua prova a juízo. Aliás, nesse momento, não haverá nenhuma outra, senão aquela, porque a anterior estará destruída pelo processo que se moveu. Portanto, vê-se que o registro civil é algo de extraordinário alcance135. Esta é a linguagem competente para dizer do estado das pessoas, delimitando o universo do direito positivo e construindo a realidade jurídica. 2. O evento previsto em norma e a chamada “relação jurídica efectual” Predomina a concepção segundo a qual a situação verificada no mundo físico- social, ocorrida em estrita conformidade com a previsão da lei, faria surgir, inapelavelmente, a relação jurídica, por força da imputação normativa. No campo dos tributos, teríamos o “fato gerador” provocando o nascimento da obrigação tributária, independentemente de qualquer ato específico de reconhecimento de seus destinatários. Daí a tradicional distinção entre o fenômeno da incidência, fulminante e infalível, e o posterior ato de aplicação, confiado à competência dos vários agentes do poder público ou privado e mediante o qual os comandos prescritivos adquiririam eficácia social, cumprindo os objetivos últimos do direito positivo. No âmbito do sistema de referência com que operamos, nem o evento, isto é, a singela ocorrência que envolve a presença direta ou indireta de sujeitos de direito, mas que, por qualquer motivo, não foi ainda relatada em linguagem competente, nem a chamada “relação efectual”, propagada por efeito daquele acontecimento, teriam significação jurídica, como entidades a serem estudadas pela Dogmática. Poder-se-á objetar que o “fato”, vale dizer, o enunciado de linguagem produzido segundo os rigores da lei, reporta-se à data e às condições do evento, proposição que em parte é verdadeira, mas que não é suficiente para elevar aquela transformação do mundo social à condição de “fato jurídico”. Realizadas as provas (que são também enunciados de linguagem) exigidas pelo ordenamento jurídico, dá-se o fato por existente, pronto para desencadear direitos e deveres correlatos, pouco importando se o evento ocorreu ou não ocorreu. É sabido que o juiz há de julgar pelas provas dos autos, desvinculando- se das ocorrências que, conquanto verificadas nos domínios da experiência social, não lograram ingressar na linguagem integrante do processo. É preciso dizer que não se está predicando o abandono do “evento” e da correspondente“relação efectual”. Tão só advertindo para a circunstância de que o fato jurídico e a relação jurídica, na configuração plena de suas integridades constitutivas, como entidades do universo normativo, inserindo-se no processo de positivação do direito para alterar as condutas intersubjetivas, vão comparecer como objetos de nossa indagação apenas quando revestirem a forma de linguagem, e linguagem competente, significa referir aquela que o sistema prescritivo estabelecer como adequada ao relato do evento e do correlativo vínculo entre sujeitos. Pouco importa, desse modo, se o acontecimento se verificou efetivamente ou não. Havendo construção de linguagem própria, como o direito preceitua, dar-se-á por juridicamente ocorrido. Por outro lado, não sendo possível relatá-lo, seja por não ter-se realizado concretamente, seja por inexistirem provas que a ordem positiva admite como válidas, nada aconteceu. Para a metodologia de nossa análise faz-se necessário relegar o evento e sua relação efectual ao território dos meros objetos da experiência, ao menos até o momento em que, ingressando no grande processo de comunicação que é o direito, tenham assumido a simbologia própria do jurídico. A partir desse marco falaremos, então, em fato jurídico e relação jurídica; “fato gerador” e obrigação tributária. 3. O fato jurídico tributário e seu efeito peculiar: instaurar o vínculo obrigacional Concretizando-se o fato previsto no descritor da regra de incidência, inaugura-se, como vimos, uma relação jurídica de conteúdo patrimonial, que conhecemos por “obrigação tributária”. Tudo, evidentemente, nos termos dos instrumentos comunicacionais que o direito estipula. Na verdade, tanto é fato o enunciado protocolar que satisfaz as condições de pertinencialidade à classe do descritor da norma geral e abstrata, como é fato a relação jurídica que se compõe em decorrência (lógica, não cronológica) daquele acontecimento relatado em linguagem. Apenas, um é fato predicativo (o que está no tópico de antecedente da norma individual e concreta), ao passo que outro é fato relacional (o que se encontra na posição sintática de prescritor). Ambos, porém, são construídos a partir dos critérios da hipótese e da consequência da regra-matriz de incidência, que é norma geral e abstrata. A composição interna do liame obrigacional já foi estudada, mas não custa recordar que é integrada pela presença de três elementos — sujeito ativo, sujeito passivo e objeto — que se entrelaçam num vínculo abstrato. Renovemos a representação. O gráfico expõe a obrigação tributária na sua completude sintática. Todos os componentes que nele consignamos são elementos ínsitos, necessários e, portanto, imprescindíveis à existência da relação jurídica obrigacional. O objeto é o centro de convergência, para onde afluem as atenções e preocupações dos sujeitos. Diz-se que o sujeito ativo tem o direito subjetivo de exigir a prestação pecuniária. Em contranota, o sujeito passivo tem o dever jurídico de cumpri-la. Reproduzimos essa contraposição de interesses mediante dois vetores, de mesma intensidade, com a mesma direção, porém de sentidos contrários, justamente para mostrar que, satisfeito o dever jurídico, desaparece o direito subjetivo e vice-versa. Ao se anularem mutuamente, extingue-se a relação jurídica, que não pode subsistir, repetimos, à míngua de qualquer dessas entidades integrantes de sua estrutura. Pois bem. Ao direito subjetivo de que está investido o sujeito ativo de exigir o objeto, denominamos crédito. E ao dever jurídico (ou também dever subjetivo) que a ele se contrapõe, de prestar o objeto, designamos débito. Revela, por isso, inominável absurdo imaginar-se obrigação sem crédito. No domínio dos desatinos, equipara-se à concepção do vínculo obrigacional sem sujeito ativo, ou sem sujeito passivo, ou sem objeto. Todos, conjugados e coalescentes, mantendo, entre si, os nexos que salientamos, outorgam ao liame o porte e a dignidade categorial de obrigação. Definimos crédito tributário como o direito subjetivo de que é portador o sujeito ativo de uma obrigação tributária e que lhe permite exigir o objeto prestacional, representado por uma importância em dinheiro. É oportuno expressar, com o propósito de amarrar melhor os conceitos, que uma coisa é o objeto da obrigação: no caso, a conduta prestacional de entregar uma porção de moeda; outra, o objeto da prestação, representado aqui pelo valor pecuniário pago ao credor ou por ele exigido. 4. A natureza do crédito tributário — crédito e obrigação Nasce o crédito tributário no exato instante em que irrompe o laço obrigacional, isto é, ao acontecer, no espaço físico exterior em que se dão as condutas inter-humanas, aquele evento hipoteticamente descrito no suposto da regra-matriz de incidência tributária, mas desde que relatado em linguagem competente para identificá-lo. O direito positivo brasileiro, atrelado ao preconceito da chamada “verdade por correspondência”, e crendo que o sistema normativo operasse por conta própria, detendo mecanismos que o fizessem incidir em situações concretas, independentemente da ação humana de aplicá-lo, utiliza signos diferentes, fazendo acreditar que a obrigação surgiria com a ocorrência do simples evento, mas que o crédito seria constituído pelo ato de lançamento, prerrogativa dos funcionários da Administração. Por esse modo, distingue o momento da incidência, na realização do evento, daquele da aplicação, em que o agente administrativo, tomando conhecimento da ocorrência, firmasse em linguagem específica os termos que presidiram o acontecimento, bem como os traços que identificam o laço obrigacional. Talvez, por ter trilhado esse caminho, teve de incorrer em outra impropriedade, qual seja a de separar o crédito da obrigação, como se pudesse haver esse desnexo. Passou por alto pela indissociabilidade dessas figuras básicas do fenômeno jurídico, tratando-as isoladamente, como se fora isso possível. Sim, porque o crédito nada mais é que o direito subjetivo de que o sujeito ativo se vê investido de exigir a prestação, enquanto débito, seu contraponto, é o dever jurídico de cumprir aquela conduta. E não pode haver vínculo jurídico de cunho obrigacional se inexistir um sujeito de direito, na condição de credor, em face de outro sujeito de direito, na qualidade de devedor, de tal forma que subtrair o crédito da estrutura obrigacional significa pulverizá- la, fazê-la desaparecer, desmanchando a organização interna que toda relação jurídica há de exibir, como instrumento de direitos e deveres correlatos. O crédito é elemento integrante da estrutura lógica da obrigação, de tal sorte que ostenta a relação de parte para com o todo. A natureza de ambas as entidades é, portanto, rigorosamente a mesma. Agora, assunto de outra índole, pouco importando para a compreensão dessa matéria é a circunstância de o titular do crédito vir a exigir aquilo a que tem direito, bem como a situação do devedor que se nega a cumprir a prestação devida. São problemas inerentes à eficácia social do direito, que muito interessam à Sociologia Jurídica, mas que não se incluem nos domínios da “Ciência do Direito em sentido estrito”. 5. O crédito tributário no Código Tributário Nacional A Lei n. 5.172/66 contempla o crédito tributário no Título III, consagrando- lhe seis capítulos. Cuidaremos aqui das Disposições Gerais (Cap. I), onde vêm firmados os conceitos que o legislador emprega no desenvolvimento disciplinar da matéria. O crédito tributário decorre da obrigação principal e tem a mesma naturezadesta. Eis a redação do art. 139. O dispositivo demonstra reconhecer a inerência de que falamos e imprime à dualidade crédito/obrigação um tom explicativo que pode até espertar alguma dúvida, pois, se o crédito decorre da obrigação, é possível supor que haja obrigação sem crédito, o que a Teoria Geral do Direito não concebe. Seja como for, a segunda afirmação prescritiva (e tem a mesma natureza desta) ratifica a identidade essencial, conduzindo à ilação de que devem ser considerados numa relação de todo (obrigação) para parte (crédito). O preceito não merece, em si, uma crítica mais acesa, se bem que nele já se note a inclinação reprovável de separar-se a obrigação do crédito, cristalizada em vários preceptivos que, a seu tempo, iremos examinando. O art. 140 introduz a ideia, correta a nosso ver, de que as mutações porventura experimentadas pelo crédito tributário, do seu nascimento à extinção, não afetam o vínculo que lhe deu origem. E, de fato, as circunstâncias modificadoras do crédito, no que toca à sua extensão, a seus efeitos, ou às garantias e privilégios a ele atribuídos, não chegam a abalar o laço obrigacional. Há um limite, contudo, que não poderia ser ultrapassado: a exclusão de sua exigibilidade, que equivale, ontologicamente, à extinção. Pecou nisso a proposição normativa que comentamos, porque a exclusão do crédito implica mutilar a obrigação tributária num ponto fundamental à sua existência como figura jurídica. De que modo imaginaríamos um liame em que o sujeito passivo é cometido do dever jurídico de cumprir a prestação, mas o sujeito ativo não detém a titularidade do direito subjetivo de postular aquele mesmo comportamento? E a bilateralidade ingênita à relação jurídica obrigacional, que é, antes de tudo, um vínculo entre sujeitos — o pretensor e o devedor? Excedeu-se a autoridade legislativa ao consignar que a exclusão da exigibilidade do crédito não mexe com a estrutura da obrigação. Mexe a ponto de desarmá-la, de destruí-la. Excluir o crédito quer dizer excluir o débito, com existências simultâneas, numa correlação antagônica. E modificação de tal vulto extingue a obrigação tributária. Mais para a frente, retomaremos o fio desse raciocínio, uma vez que o Código Tributário Nacional, deploravelmente, enveredou por esse caminho que criticamos, erigindo a exclusão do crédito como instituto jurídico. Vamos ao art. 141: O crédito tributário regularmente constituído somente se modifica ou extingue, ou tem sua exigibilidade suspensa ou excluída, nos casos previstos nesta Lei, fora dos quais não podem ser dispensadas, sob pena de responsabilidade funcional na forma da lei, a sua efetivação ou as respectivas garantias. Ao referir-se a crédito regularmente constituído, o comando do art. 141 quis aludir ao crédito líquido, já devidamente determinado no seu quantum, estando, portanto, em condições de ser reclamado do devedor. Sempre que o legislador do Código menciona constituir o crédito reporta-se ao ato jurídico administrativo do lançamento, em que o agente público, aplicando a lei ao caso concreto, formaliza a obrigação tributária. Desse modo, fica patente que as modificações verificadas no crédito já formalizado (única maneira que nos parece possível cogitar de sua existência) hão de ser promovidas, exclusivamente, sob o manto da Lei n. 5.172/66. O funcionário da Administração Tributária está impedido de dispensar a efetivação do crédito ou as respectivas garantias, sob pena de responsabilidade funcional, na forma da lei. Na implicitude dessa mensagem prescritiva, vemos o magno princípio da indisponibilidade dos interesses públicos, um dos fundamentos do direito administrativo. É bom enfatizar que a dispensa de créditos ou de suas garantias e privilégios não se inscreve apenas àqueles que tiverem sido formalizados pela via do ato de lançamento, como veremos mais adiante. Todavia, aquilo que o legislador pretendeu exprimir, nessa parte do dispositivo, é que à margem das autorizações expressas na legislação tributária, o funcionário, em qualquer hipótese, não está autorizado a abrir mão da exigência. Por defeito de estilo, a porção final do mandamento ficou obscura. A cláusula intercalada — sob pena de responsabilidade funcional na forma da lei — devia ter sido deixada para o fim, ganhando o período maior clareza e precisão. Além disso, foi esquecida a partícula reflexiva se, anteposta ao verbo extingue. Mantendo as palavras que o preceptivo contém, ficaria melhor desta maneira: O crédito tributário regularmente constituído somente se modifica ou se extingue, ou tem sua exigibilidade suspensa ou excluída, nos casos previstos nesta Lei, fora dos quais não podem ser dispensadas a sua efetivação ou as respectivas garantias, sob pena de responsabilidade funcional, na forma da lei. 6. Sobre a norma individual e concreta que documenta a incidência A mensagem deôntica, emitida em linguagem prescritiva de condutas, não chega a atingir, diretamente, os comportamentos interpessoais, já que partimos da premissa de que não se transita livremente do mundo do “dever-ser” ao do “ser”. Interpõe-se entre esses dois universos a vontade livre da pessoa do destinatário, influindo decisivamente na orientação de sua conduta perante a regra do direito. Além do mais, qualquer que seja a forma, a função e o tipo da linguagem utilizada no fenômeno comunicacional, nunca chega ela a tocar os objetos a que se refere, por força do princípio da autorreferencialidade da linguagem, que se retroalimenta, prescindindo dos dados exteriores da
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