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O Criminalista: Análises e Pensamentos Aleatórios

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Evinis Talon
O CRIMINALISTA
Vol. III
Gramado/RS
Evinis Talon
Fundador e Presidente do International Center for Criminal Studies (ICCS)
Mestre em Direito pela UNISC/RS.
Especialista em Processo Penal pela Universidade de Coimbra (Portugal).
Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela UGF/RJ.
Especialista em Direito Constitucional pela UGF/RJ.
Especialista em Filosofia pela UGF/RJ.
Especialista em Sociologia pela UGF/RJ.
Professor de cursos de Pós-Graduação em Direito Penal.
Secretário-adjunto da ACRIERGS.
Ex-Defensor Público do Estado do Rio Grande do Sul.
Advogado Criminalista, consultor jurídico e parecerista em Direito Penal e Processual Penal.
Palestrante e escritor.
contato@evinistalon.com
TALON, Evinis. O Criminalista. Gramado, RS: International Center for Criminal Studies, 2018. v. 3.
1. Direito Penal. 2. Direito Processual Penal. 3. Defesa (Processo Penal). 4. Advocacia Criminal. 5. Advogados. I. Título.
copyright © Evinis da Silveira Talon
Dedico este livro ao grande Eugenio Raúl Zaffaroni, um dos penalistas que mais admiro e autor de algumas das melhores obras de Direito Penal de todos os tempos.
Para minha querida Jaiane e meus filhos caninos Piu e Apolo.
Aos meus pais, Denize e José Inacio.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
1 ABORDAGENS DOUTRINÁRIAS E JURISPRUDENCIAIS: TESES DEFENSIVAS E DEBATES....…………………………………………....13
1.1 Todos podem cometer crimes. Muitos já cometeram!….…………………………………………..13
1.2 Afinal, quem é o “cidadão de bem”?.………...17
1.3 Overcriminalization, Overpunishment e o Big Bang legislativo penal…………………………………..20
1.4 O que punir ou como punir?………………….26
1.5 Corrupção das pessoas ou das leis?…………..29
1.6 A incoerência e a falta de opinião dos juristas…………………………………………………..32
1.7 O colapso da (des)organização prisional……..36
1.8 O fracasso da prisão: a privação da liberdade como o mínimo………………………………………....41
1.9 Extorsão com a ameaça de “continuar como está”?……………………………………………………46
1.10 Casa, WhatsApp e a privacidade no processo penal…………………………………………………….52
1.11 Defender-se, silenciar ou confessar o crime?…………………………………………………………..59
1.12 As novas provas e o desarquivamento do inquérito policial………………………………………..62
1.13 Deixar de declarar o imposto de renda é crime?…………………………………………………………..65
1.14 Paridade de armas?………………………….69
1.15 Devido processo x indevido processo………72
1.16 Há “presunção de autoria” nos crimes patrimoniais?……………………………………………77
1.17 Júri: o Ministério Público e os pedidos estratégicos de absolvição……………………………....82
2 A ADVOCACIA CRIMINAL………………………...88
2.1 A Advocacia Criminal em 2017……………....88
2.2 Técnica para júris, processos criminais e debates em geral…………………………………………………90
2.3 Todos precisamos ser doutrinadores………….93
2.4 Os Advogados Criminalistas não querem a impunidade!…………………………………………….97
2.5 Como não ser só mais um na Advocacia?…..101
3 LEIS E PROJETOS: UMA ANÁLISE CRÍTICA…..106
3.1 Crime de omissão de socorro a cães e gatos…………………………………………………...106
3.2 O crime de estupro será imprescritível?…...109
4 ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA DO STJ……….113
4.1 Execução penal: 11 teses do STJ sobre remição (com comentários)……………………………………..113
4.2 STJ: o cálculo das agravantes/atenuantes…...123
4.3 A atipicidade penal da conduta do “flanelinha”…………………………………………....127
4.4 O STJ e o princípio da consunção…………..131
5 AOS ESTUDANTES DE DIREITO E PESQUISADORES…………………………………...136
5.1 9 coisas que não te ensina(ra)m na faculdade de Direito…………………………………………………136
5.2 A pesquisa científica do Direito Penal………142
5.3 Execução Penal: 10 temas para artigos e TCC……………………………………………………145
APRESENTAÇÃO
A ideia da coleção de livros O Criminalista surgiu da necessidade de reunir todos os artigos que publico diariamente em apenas um lugar. São textos escritos por um Criminalista apaixonado para outros Criminalistas apaixonados e para todos aqueles que, de alguma forma, apreciam o Direito Penal e o Direito Processual Penal.
Não se trata de um manual de Direito Penal ou Processual Penal, tampouco de um conjunto de artigos voltados a um único tema. São apenas análises e pensamentos aleatórios, cujo único ponto de encontro é o que nos move: o amor incondicional pela área criminal.
O meu objetivo com esses livros é ajudar a desenvolver a Advocacia Criminal, tão maltratada com padronizações de peças, condutas passivas e "falsos artesãos", que invocam indevidamente a expressão "Advocacia Criminal artesanal".
O livro destina-se a todos os amantes da área criminal: Advogados, estudantes de Direito, Juízes, Promotores de Justiça, Procuradores da República, Defensores Públicos, Delegados de Polícia, servidores públicos, candidatos de concursos públicos, Professores Universitários, pesquisadores etc. Em suma, destina-se a qualquer pessoa que, em algum momento, queira respirar os ares da instigante área penal.
Alguns sentirão maior identificação com os artigos mais teóricos, outros com os jurisprudenciais. Isso dependerá muito do estágio atual da vida de cada leitor. Há aqueles que estão na faculdade e possuem dúvidas sobre a carreira, outros estão iniciando os estudos para algum exame ou concurso. Por fim, há quem esteja exercendo a Advocacia ou alguma carreira pública em sua plenitude.
Serão publicados novos volumes periodicamente. Os textos do volume 3 foram escritos em janeiro de 2017. Além dos textos já publicados em outros meios, há um escrito inédito.
Aproveite a leitura, pois este livro foi elaborado pensando em você.
Evinis Talon,
Março de 2018.
1 ABORDAGENS DOUTRINÁRIAS E JURISPRUDENCIAIS: TESES DEFENSIVAS E DEBATES
1.1 Todos podem cometer crimes. Muitos já cometeram!
Uma das maiores celeumas em relação ao exercício da Advocacia Criminal é a pergunta popular: “você defende bandido?”. Há um entendimento popular de que o papel do Advogado Criminalista é apenas o de defender pessoas denunciadas por crimes violentos (homicídio, roubo, lesões corporais etc.) ou indivíduos acusados por corrupção, lavagem de dinheiro ou crimes semelhantes, popularmente denominados genericamente de “corruptos”.
A crença popular de que a Advocacia Criminal exerce esse papel de buscar a “impunidade” desses indivíduos citados desvanece quando o próprio popular, antes questionador, encontra-se em uma situação de criminoso concreto ou potencial.
De forma simples, pode-se dizer que todos estão sujeitos à prática de um crime. Todos podem ser vítimas ou autores de crimes. E muitos já praticaram infrações penais, com a “pequena” peculiaridade de que não foram processados e condenados por isso.
Lembro-me de ter visto um catador de lixo analfabeto que estava sendo processado porque, num dia normal de trabalho, achou um boné no lixo e o colocou para trabalhar. O boné era da Brigada Militar, mas ele não sabia, pois não entendia o que estava escrito. Foi lavrado termo circunstanciado pelo tipo penal do art. 46 da Lei de Contravenções Penais. Contudo, foi absolvido durante a audiência.
Também vi uma mulher que estava sendo processada por denunciação caluniosa depois de ter registrado ocorrência contra seu marido (policial) que havia tentado matá-la alguns dias antes. A investigação da tentativa de homicídio foi feita de forma “corporativista” e, ao final, só havia depoimentos dizendo que ela havia mentido. No processo da denunciação caluniosa, ficou provado que a tentativa de homicídio realmente ocorreu. Ela se livrou de uma pena de 2 a 8 anos de reclusão, e o inquérito pela tentativa de homicídio praticada pelo marido dela foi desarquivado.
Esses dois exemplos representam casos em que poderiam ter ocorrido condenações injustas. Seriam condenados um indivíduo humilde que apenas usou um boné sem saber o que estava escrito nele e uma mulher que realmente sofreu uma tentativa de homicídio e, ao buscar seus direitos, foi processada por um crime cuja pena é altíssima. Em outras palavras, seriam “criminosos”, nos termos populares, sem terem praticado crimes.
Há, ainda, os casos em que as pessoas praticam crimes, mas, por algum motivo, não são processadas e condenadas. E muitas pessoas já praticaram esses crimes, inclusive aquelasque defendem a pena de morte para “criminosos” violentos e “corruptos”.
Muitas pessoas já xingaram alguém e, por essa razão, praticaram o crime de injúria (art. 140 do CP). Há muitos que também já “fofocaram” sobre alguém, dizendo que outra pessoa traiu o(a) namorado(a), está em péssima situação financeira ou ficou embriagado na noite anterior. Praticaram, portanto, o crime de difamação (art. 139 do CP).
Também há quem tenha brigado durante uma partida de futebol, cometendo vias de fato (art. 21 da Lei de Contravenções Penais) ou lesão corporal (art. 129 do CP).
Não são poucas as pessoas que atualmente respondem por crime de ameaça (art. 147 do CP) por terem, em uma discussão, dito para alguém uma frase vazia, como “você vai ver!”.
E os crimes culposos? Qualquer pessoa que tenha um descuido em algum momento da vida pode cometer lesão corporal culposa ou homicídio culposo, ainda que leve uma vida honesta.
Há quem tenha conduzido veículo depois de ter ingerido bebida alcoólica, por considerar que estava em perfeitas condições. Praticou o crime do art. 306 do CTB.
Muitos pais já deixaram os filhos desabilitados dirigirem veículos, principalmente quando estavam em fase de aprendizado. Nesse caso, praticaram o crime do art. 310 do CTB.
Também há inúmeras pessoas que já solicitaram ou receberam alguma vantagem em troca do voto, cometendo o crime previsto no art. 299 do Código Eleitoral.
Quem já praticou alguma dessas condutas cometeu um crime e, portanto, também seria popularmente – mas não tecnicamente – considerado “criminoso”. Agiu de forma contrária à legislação penal e, se tivesse sido processado e condenado por essa conduta que sabidamente praticou, estaria na mesma situação jurídica daquelas pessoas que ele tanto ofende, critica ou até mesmo pede a pena de morte, pregando a conhecida e teratológica frase “bandido bom é bandido morto”. Aliás, quem elogia publicamente os recentes massacres ocorridos em presídios brasileiros pratica o crime de apologia de crime (art. 287 do CP) e, se instiga publicamente a continuidade dessas mortes, pratica o crime de incitação ao crime (art. 286 do CP). Seriam, em outras palavras, “criminosos”, assim como aqueles que desejam ver mortos.
Portanto, todos podem praticar crimes. Não é uma figura específica de pessoas extremamente pobres ou ricas, como muitos querem acreditar. Também não são condutas praticadas apenas por pessoas violentas ou que se dedicam de forma reiterada e contínua a espalhar o medo na sociedade. Qualquer um pode praticar crimes. Muitos já praticaram! E a Advocacia sempre atuará na defesa de todos, indistintamente, pois o Estado Democrático de Direito depende disso.
1.2 Afinal, quem é o “cidadão de bem”?
Os discursos de ódio, inflamados por questionamentos em torno da legislação penal e de clamores públicos sobre o aumento do poder punitivo estatal, deram origem a um conceito subjetivo e autopersonificado de “cidadão de bem”.
Nas redes sociais e nos noticiários que se investem da função persecutória, tem-se falado que os direitos humanos seriam apenas para os “cidadãos de bem” e que o aumento da criminalidade prejudica a rotina do “cidadão de bem”, além de outras frases de efeito.
Esse conceito é apropriado e apreendido por aqueles que dele se utilizam como uma forma de negar a possibilidade própria de praticar crimes, quando é sabido que todos podem praticar condutas penalmente tipificadas. Aliás, muitos já praticaram, com a pífia diferença de que não foram acusados e condenados criminalmente. Basta ver os crimes de injúria (xingamento) e difamação (“fofoca”), rotineiramente cometidos por aqueles que dialogam maliciosamente sobre terceiros.
Normalmente, aqueles que se apropriam do conceito de “cidadão de bem” valem-se de argumentações sem fundo teórico ou empírico. Preferem a utilização de frases clichês (“você quer soltar todos os bandidos?”) a ter de fundamentar minimamente a sua opinião.
É curioso o fato de que nunca observamos alguém defender o conceito de “cidadão de bem” e, simultaneamente, afirmar que se encontra fora desse grupo celestial de seres encantados.
De certa forma, há poucas diferenças entre a utilização, no século XXI, da expressão “cidadão de bem” e a forma como era utilizado, durante parte do século passado, o termo “raça ariana”. Ambos objetivam separar as pessoas e conceder determinadas benesses àquele grupo que se autointitula superior.
Afinal, quem seriam os cidadãos de bem?
Seriam aqueles que acreditam que nunca praticariam um crime, nem mesmo culposo?
Haveria diferença entre o cidadão de bem e o homem médio?
Ou seriam aqueles que comemoram a prisão preventiva fora das hipóteses legais, como verdadeiro ritual de sacrifício humano? Ou talvez eles considerem inumano quem está fora do conceito de cidadão de bem?
Talvez sejam aqueles que não se importam – e às vezes comemoram – com o fato de termos uma Lei de Execução Penal cujo valor é idêntico ao da Tabela FIPE: nunca igual ou mais; apenas menos, muito menos que o previsto!
Nas ruas, nos presídios, nas faculdades, nos noticiários… em todos os lugares, sem exceção, defende ser cidadão de bem quem se vale desse conceito, em que pese a autoconsciência das imperfeições de sua condição humana. O mesmo argumento utilizado pelos autointitulados “cidadãos de bem”, no sentido de que ninguém nos presídios diz que é culpado, também vale para eles: ninguém se utiliza do conceito de “cidadão de bem” e diz que não está abrangido por esse conceito.
1.3 Overcriminalization, Overpunishment e o Big Bang legislativo penal
Segundo os cientistas, o Universo esteve quente e denso por algum tempo. Houve, então, uma grande explosão (Big Bang), fazendo com que ele se expandisse. E ele continua se expandindo até hoje.
Assim como o Universo, a legislação penal tem se expandido continuamente, sem, contudo, perder sua densidade. A ampliação do Direito Penal por meio da criação de novos tipos penais não resulta no seu enfraquecimento jurídico, pois tudo que permanece em seu âmbito continua tendo a mesma aplicação. Contudo, há o enfraquecimento no que concerne à confiança nas leis penais. A expansão com o mero desiderato simbólico torna o Direito Penal socialmente fraco e desacreditado, em que pese sua aparência jurídica permaneça intacta.
Nesse diapasão, Husak (2008, p. 3) fala sobre a “Overcriminalization”, um excesso no/do Direito Penal, referindo que ela abrange dois fenômenos. De um lado, há o “Overpunishment”, que consiste no aumento de penas de crimes que fazem parte do núcleo do Direito Penal. Por outro lado, há a “Overcriminalization” em sentido estrito, que se trata da extensão do Direito Penal a fatos que não deveriam ser por ele abrangidos.
Atualmente, observamos esses dois fenômenos no Direito Penal brasileiro, o que configura um “Big Bang” legislativo penal, isto é, uma explosão e contínua extensão das normais penais, sobretudo as mais rigorosas e as que tipificam novas condutas.
Não se discute a necessidade de permanente revisão da legislação, especialmente a Penal, que sempre é – infelizmente – muito mais maleável e suscetível a clamores públicos do que deveria ser. Entrementes, observa-se que há vários anos a revisão da legislação penal no Brasil limita-se ao critério punitivista: aumento do número de crimes e aumento do rigor na punição de cada crime.
Fala-se muito sobre esse período punitivista pelo qual passa o Brasil. Contudo, pouco se analisa, de forma detalhada, o que vem ocorrendo no plano legislativo.
A título de exemplo, a última “abolitio criminis” (descriminalização) operada no Código Penal (CP) ocorreu em 2005, quando foram revogados os crimes de sedução (anterior art. 217 do CP), rapto violento ou mediante fraude (anterior art. 219 do CP), rapto consensual (anterior art. 220 do CP) e adultério (anterior art. 240 do CP). Eram crimes que, segundo o legislador, deveriam ser revogados por não estarem de acordo com uma sociedade do Século XXI, pois traziam em sua tipificação elementos considerados tradicionais. O rapto consensual, por exemplo, punia a conduta de raptar mulherhonesta maior de catorze anos e menor de vinte e um, com o consentimento dela, para fim libidinoso.
Nesse período, também tivemos a revogação de alguns tipos penais, mas que não resultaram em descriminalização, considerando que foram substituídos por tipos penais semelhantes, como no caso do tráfico de pessoas (Lei nº 13.344/16).
No mesmo período, contudo, tivemos a criminalização ou a tipificação específica de inúmeras condutas. São exemplos o feminicídio (art. 121, VI, do CP) e o homicídio contra agente de segurança pública (art. 121, VII, do CP) em 2015, o condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial (135-A do CP), a invasão de dispositivo informático alheio (art. 154-A do CP), a constituição de milícia privada (art. 288-A do CP) e a falsificação de cartão de crédito ou débito (art. 298, parágrafo único, do CP) em 2012, as fraudes em certames públicos (art. 311-A do CP) em 2011, o assédio sexual (art. 216-A do CP) e o ingresso com aparelho celular em estabelecimento prisional (art. 349-A do CP) em 2009, a prevaricação específica do diretor da Penitenciária que deixa o preso ingressar com aparelho telefônico (art. 319-A do CP) em 2007 e muitos outros.
Nesse período, também tivemos o aumento de pena nos crimes de furto (art. 155, §6º, do Código Penal) e receptação (art. 180-A do CP) de semoventes em 2016, do estelionato cometido contra idoso (art. 171, §4º, do CP) em 2015, do falso testemunho (art. 342 do CP) em 2013, do estupro (art. 213 do CP) e outros crimes sexuais em 2009 e vários outros crimes nos anos anteriores, além da criação de inúmeras causas de aumento e qualificadoras.
Além desse aumento de rigor no Código Penal, surgiram, da mesma forma, inúmeras leis penais aumentando penas ou criando novos tipos penais, como, por exemplo, a Lei de Crimes de Discriminação Contra Portadores do HIV (Lei nº 12.984/2014), a Lei de Organização Criminosa (Lei nº 12.850/2013), a Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006), a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) e muitas outras. Todas essas leis mais prejudiciais foram publicadas desde a última descriminalização operada no Código Penal.
O Decreto do Indulto de 2016, por sua vez, foi o mais restritivo das últimas décadas. Os requisitos para a obtenção do indulto se tornaram de difícil implementação, com o aumento das hipóteses de vedação. Além disso, pela primeira vez desde 1974, deixou-se de prever o direito à comutação.
Em 2016, foram propostos inúmeros projetos aumentando o rigor do Direito Penal. Assim, foram apresentados projetos de lei que pretendem tipificar como crime a interrupção total das vias públicas (PL 5373/16), a corrupção privada (PL 6122/16), a prostituição (PL 6127/16), a evasão do preso sem violência (PL 6318/16), algumas condutas relacionadas à prestação de serviços públicos (PL 6495/16), a “pornografia de revanche (PL 6668/16) etc.
Também foram apresentados projetos para aumentar a pena dos crimes de furto, roubo e extorsão quando o objeto material do crime for animal doméstico (PL 5899/16), a fuga de preso (PL 6569/16), o furto em estabelecimento portuário (PL 6686/16) etc.
Por outro lado, em 2016, não houve a apresentação de projeto de lei para descriminalizar ou reduzir a pena de algum crime.
Uma das últimas flexibilizações operadas no Código Penal ocorreu em 2013, no parágrafo único do art. 288 do CP. O aumento da pena para a quadrilha ou bando armado era pelo dobro da pena. Com a alteração legislativa, o aumento passou a ocorrer até a metade da pena. Entretanto, essa “diminuição” da fração de aumento de pena veio acompanhada da maior facilidade de tipificação pelo crime do art. 288 do CP. Para a configuração da quadrilha ou do bando, era necessária a presença de mais de 3 pessoas (4 ou mais, portanto). Com a mudança legislativa em 2013, passou-se a exigir a presença de no mínimo 3 pessoas para a configuração do crime de associação criminosa. Em outras palavras, ficou mais simples a subsunção da conduta a esse tipo penal. Uma melhora quanto à pena acompanhada de uma piora no que concerne à tipificação. De fato, não existe almoço grátis.
Não se discute a necessidade da eventual tipificação de algumas das condutas anteriormente mencionadas. Contudo, é preocupante que o legislador não contemple a necessidade de supressão ou reformas quanto a tipos penais obsoletos, como o crime de desacato, recentemente considerado atípico em um caso concreto pelo STJ.
Em suma, o que se observa é o paulatino aumento do rigor punitivo do Direito Penal brasileiro. O Direito Penal não está parado. Ele está lentamente – ou nem tanto – se tornando mais rigoroso e simbólico. O Brasil passa por um período de “Overcriminalization” e “Overpunishment”.
REFERÊNCIA:
HUSAK, Douglas. Overcriminalization: the limits of the Criminal Law. New York: Oxford University Press, 2008.
1.4 O que punir ou como punir? 
Devemos observar a forma como o Direito Penal brasileiro está se expandindo, objetivando punir novos crimes – condutas até então fora do âmbito penal – e aumentando o rigor das punições por meio da majoração das penas e da criação de novas causas de aumento.
Esse é um fenômeno muito evidente e ostensivo, diante do caráter simbólico que se pretende atribuir a essas mudanças. Há uma sensação de que a solução dos problemas sociais depende da extensão ou da intensificação da tutela penal, sem que se questione devidamente quanto aos meios adotados.
Em um sistema que pune corretamente, questionar-se-ia o que deve ser punido. Se as sanções penais estão sendo aplicadas corretamente e efetivamente ocorre a ressocialização, o certo a se questionar seria quanto à necessidade de ampliação ou redução da intervenção do Direito Penal. Contudo, havendo um desacerto entre as finalidades abstratas da pena e o efetivo resultado da sua aplicação, deve-se questionar sobre o modo como se pune, e não se o erro deve ser intensificado ou expandido a outras situações.
No Brasil, caso se questione sobre o que merece prioridade no Direito Penal – o que punir ou como punir? –, creio que a resposta deva ser “como punir?”, ou melhor, “como estamos punindo?”.
Se a punição penal no Direito brasileiro não está sendo suficiente, por que se preocupar com o aumento dos casos de punição? Se estamos errando quanto à punição dos crimes atuais, por que ampliar esse erro para abranger novos crimes?
Carnelutti (2002, p. 43) afirma que “a lei penal é um dos meios, não o único meio de luta contra o delito: nem o único, nem o mais eficaz; muito mais servem para isso as medidas que, trabalhando sobre a formação do caráter e do ambiente, atacam diretamente os seus fatores”.
Essa lição de Carnelutti é um ponto de partida para a reavaliação e a readequação da forma como punimos no Brasil. Em que pese Carnelutti estivesse se referindo ao momento anterior à prática de um crime, esse ensinamento também é aplicável ao momento posterior, isto é, à fase da execução penal. Nesse diapasão, a mera retribuição por intermédio da pena, resultando unicamente no cerceamento da liberdade, mostra-se inócua se não houver a incidência de instrumentos que contribuam para a ressocialização do apenado, como o incentivo ao trabalho e ao estudo, a ampliação do convívio familiar e a paulatina reinserção na sociedade.
Isto posto, no atual momento, em que a execução penal passa por um colapso em razão de inúmeros e sucessivos erros na condução da situação carcerária, é vital que se discuta a forma como punimos antes de qualquer debate sobre o que punimos.
1.5 Corrupção das pessoas ou das leis?
Um dos consensos básicos populares é sobre a corrupção. Perguntar a alguém se é contra ou a favor da corrupção gera uma resposta uníssona, assim como perguntar se é contra ou a favor da saúde ou do combate ao estupro. Quando perguntados dessa forma, são temas sobre os quais ninguém ousa discordar.
De fato, esse foi um dos motivos determinantes da alta quantidade de assinaturas no projeto denominado “10 medidas contra a corrupção”. Ocorre que várias medidas possuíam pouca relação com a corrupção em si. Abrangiam, por outro lado, inúmerasflexibilizações de direitos e garantias fundamentais que atingiriam acusados de crimes totalmente distintos da corrupção. As mudanças relativas a nulidades, prescrição e recursos mudariam o sistema como um todo. Entretanto, a inserção da palavra “corrupção” na campanha de divulgação permitiria a indagação: você é a favor ou contra a corrupção?.
O sentimento de necessidade de combate à corrupção tem aumentado exponencialmente ao redor do mundo. Em interessantíssimo artigo, Glynn e Naím (2002, p. 28-29) afirmam:
A explosão contra a corrupção possui diversas causas. Houve aumento tanto de fato quanto de percepção da prática da corrupção em vários países. Em determinadas áreas as mudanças políticas sistêmicas enfraqueceram ou destruíram as instituições sociais, políticas e jurídicas, e deram margem a novos abusos. Em outros lugares a liberalização política e econômica simplesmente revelou a corrupção antes oculta. Em praticamente todos os lugares, porém, observamos um claro declínio na disposição da população em tolerar práticas corruptas por parte dos líderes políticos e das elites econômicas.
Obviamente, há uma necessidade generalizada de punição penal, administrativa e civil dos atos corruptivos. Contudo, parece haver um confronto bilateral entre o “combate” à corrupção e o respeito à Constituição e às leis, como se a coexistência fosse impossível.
Parece haver uma opinião pública difundida no sentido de que o posicionamento pela Constituição e pela legislação penal e processual penal é um subterfúgio ou um mero instrumento de chicana processual em busca da impunidade dos acusados pela prática de atos corruptivos.
Em outras palavras, parece que vivemos uma dualidade conflitante entre a punição por atos de corrupção e o respeito aos dispositivos constitucionais e legais, isto é, uma aparente incompatibilidade na coexistência das duas necessidades.
Se assim realmente fosse, teríamos que optar entre punir a corrupção ou manter o respeito ao ordenamento jurídico. Voltaríamos à pergunta de resposta uníssona: você é a favor ou contra a corrupção? E a resposta eliminaria vários direitos conquistados ao longo de séculos.
Assim, surgem várias perguntas a respeito desse confronto. Vale a pena sacrificar a Constituição e as leis pelo combate à corrupção? Não é possível combater a corrupção por meio das leis existentes, sem que o Judiciário precise ofender a Constituição ou criar meios não previstos, como as conduções coercitivas? As leis atuais são insuficientes? Se é assim, não deveria ser aberto um debate democrático em relação a elas, e não mascarar medidas atrás do mantra “combata a corrupção”? Precisamos criar leis inconstitucionais para punir a corrupção? A efetividade da tutela penal depende do sacrifício das leis?
Tudo nos leva a crer que, se continuarmos nessa dualidade entre combater a corrupção ou manter o respeito ao ordenamento jurídico, teremos um incessante pugilato entre a corrupção das pessoas e a corrupção das leis. Teríamos que corromper as leis para punir a corrupção das pessoas? Como exigir a observância geral das leis se, em casos concretos, elas forem corrompidas?
Entre a corrupção das pessoas e a corrupção das leis, entendo que o melhor seja fugir dessa dualidade, utilizando-se das medidas atualmente previstas, da forma constitucionalmente permitida. Destarte, teríamos uma forma de reduzir a corrupção das pessoas sem nos tornarmos corruptores das leis.
REFERÊNCIA:
GLYNN, P.; KOBRIN, S. J.; NAÍM, M. A globalização da corrupção. In: ELLIOTT, Kimberly Ann (Org.). A corrupção e a economia global. Trad. Marsel Nascimento Gonçalves de Souza. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002. pp. 27-57.
1.6 A incoerência e a falta de opinião dos juristas
No Brasil, as matrizes teóricas, correntes e Escolas possuem pouca importância para alguns aplicadores do Direito Penal e do Direito Processual Penal.
Falam sobre ônus da prova e exigem a presença do prejuízo para a declaração da nulidade relativa no processo penal como se adotassem a Teoria Geral do Processo, mas em seguida, sem nenhuma explicação, utilizam expressões próprias de uma teoria exclusiva do Processo Penal, como “fumus comissi delicti”. Há um déficit de coerência que, em alguns momentos, também se exterioriza como ausência de coesão (inclusive textual).
Abordam as leis e a moral como se não existissem correntes filosóficas que tratam desses temas, cada uma com as suas peculiaridades. Valem-se do Utilitarismo no processo penal desconhecendo o seu significado e, especialmente, os seus problemas. Apenas acreditam, de forma incoente, que tudo que tenha utilidade – inclusive o processo penal como meio de dar exemplo ou como política de controle social – é útil. E nada mais!
Discutem sobre a interpretação de algum conceito penal desconsiderando a relevante divergência entre Habermas e Gadamer. Em alguns momentos, conceituam de forma essencialista; em outros, de modo solipsista. Oscilam de forma desordenada entre as várias hermenêuticas e os inúmeros “métodos”, inclusive mencionando o “método” utilizado na pesquisa quando analisam e defendem autores que são contra o próprio “método”.
Se de um lado temos a falta de coerência, tratando assuntos interligados como se fossem células individualizadas de algo que não deve ser contemplado de forma holística, do outro lado temos juristas que se comportam como jornalistas aparentemente imparciais que demonstram receio em opinar.
De fato, o medo de manifestar a sua opinião é um problema que os juristas enfrentam. Isto ocorre em virtude de inúmeros motivos, como o desconhecimento sobre o tema, o medo de se filiar a um entendimento que posteriormente seja oposto a sua posição profissional e o receio de ser criticado.
A um, opinar sobre algo juridicamente relevante pressupõe conhecer minimamente o assunto e ter elementos suficientes para compreender o que se pretende. Em outras palavras, pressupõe preconceitos linguisticamente adquiridos pela tradição que, no momento da compreensão, são reconhecidos como uma fusão de horizontes (GADAMER, 2013, p. 514).
A dois, a exteriorização da opinião sobre um tema jurídico deve sempre ser apartada da atuação profissional, isto é, quem compreende e comunica o Direito não pode ter receio de que o seu posicionamento (leia-se compreensão) vá de encontro à sua atuação profissional. Destarte, um Promotor de Justiça não pode ter receio de, após o processo hermenêutico, compreender algo de forma garantista, assim como um Advogado Criminalista não pode ter a pusilanimidade de compreender algo que afaste as suas alegações defensivas. A honestidade intelectual não pode depender da atuação profissional.
Não se nega que o Direito apenas se aperfeiçoa por força da produtividade de cada caso concreto (GADAMER, 2013, p. 79). Isso não é incompatível com minhas afirmações anteriores. Quando digo que a compreensão e o processo hermenêutico não devem ser feitos sob a perspectiva da atuação profissional, não digo que essa compreensão deve ser realizada “in abstracto”. Apenas refiro que disfarçar a compreensão sob o manto corporativista da posição processual que ocupa é tentar subverter o resultado de sua compreensão, em nítida desonestidade intelectual.
Portanto, considero que o Direito Penal e o Direito Processual Penal precisam de autores que sejam coerentes com as Escolas, correntes e teorias que adotam e, concomitantemente, tenham a valentia de opinar, ainda que contrariando a posição profissional que ocupam. Felizmente, temos excelentes nomes no Brasil, mas deixo de mencioná-los, haja vista que qualquer lista com pretensão de ser exaustiva sempre será prejudicada por esquecimentos inoportunos.
Conforme analisarei num artigo futuro, uma crítica à jurisprudência deve necessariamente ser doutrinária. Criticar um entendimento jurisprudencial com a mera citação de uma ementa contrária não é uma crítica, mas sim uma escolha casuística de um entendimento para benefício próprio.
Nesse diapasão, precisamos de mais coerência e opinião dos juristas, principalmente dos AdvogadosCriminalistas, porque este é o primeiro passo para abandonarmos a jurisprudencialização que assola a esfera penal.
REFERÊNCIA:
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 13. ed. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
1.7 O colapso da (des)organização prisional
O lamentável episódio ocorrido no Amazonas (em 1o de janeiro de 2017), em que foram mortas 60 pessoas durante rebeliões em dois presídios da capital, demonstra o total descrédito do sistema prisional.
Tragédias anunciadas, que sempre ocorrem, mas apenas agora são midiatizadas, diante do maior número de pessoas presas vitimadas. Sim, são pessoas! Apenas dizer que foram mortos vários “presos” é tentar elevar um discurso legitimador da tragédia, como se tivessem sido eliminados ou inocuizados inimigos da sociedade, omitindo-se conscientemente o que, em sua essência, esses presos são: pessoas!
Deu-se ao Estado a legitimidade para cometer um ato de violência contra aqueles que fossem condenados pela prática de infrações penais. A pena é uma violência estatal legitimada, quando executada nos termos constitucionais e legais. Com a violência estatal (pena), busca-se a superação da violência privada (criminalidade).
Não alicerçarei teses abolicionistas, propondo o fim do Direito Penal. A pena continua sendo necessária. Se o âmbito de intervenção do Direito Penal deve ser menor, respeitando o princípio da intervenção mínima, esse é outro assunto, que deve ser debatido previamente ao que sustento neste artigo.
Defendo, portanto, a necessidade do Direito Penal e, mais especificamente, da pena. Todavia, a legitimidade da pena deve ser aferida à luz do ordenamento jurídico e da decisão penal condenatória.
Temos um Estado forte na persecução penal, mas fraco na execução da pena. O próprio Estado se deslegitima quando prioriza a obtenção do título penal condenatório, mas manifesta letargia e desdém em relação ao cumprimento desse título. Obtém-se algo (condenação) pelo qual há pouco interesse em se fazer cumprir da forma como foi obtido.
Fala-se muito sobre a correlação entre a peça exordial do processo (denúncia) e a sentença. Há muitos livros em que autores questionam sobre esse paralelismo e concluem pela impossibilidade de que o Magistrado julgue de forma alheia aos limites da imputação ministerial.
Todavia, não observamos pronunciamentos quanto à correlação entre a sentença ou o acórdão e a execução da pena em si. O título judicial penal (sentença condenatória) é executado tal como confeccionado? Não há despropósito e uma imoderação na execução da pena?
No estado atual das coisas, o próprio Estado se deslegitima perante os jurisdicionados, porque descumpre a legislação que ele mesmo elaborou. Quem ingressa no sistema prisional brasileiro tem um pouco mais de esperança de sair vivo e com sua integridade física e psíquica respeitada do que tinham os presos de Auschwitz. E esse conjunto de atrocidades ocorre porque o Estado se abdicou de cumprir seus deveres no âmbito prisional.
A ausência do Estado no cumprimento das disposições legais relativas à execução penal também fortifica a sua ausência na própria organização do expediente prisional. Há uma silenciosa privatização dos presídios, cada vez mais entregues aos próprios apenados. E isso é ensurdecedor!
Na ADPF 347, julgada no dia 9 de setembro de 2015, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que o sistema penitenciário nacional vive um Estado de Coisas Inconstitucional, isto é, uma violação massiva e persistente de direitos fundamentais como decorrência de falhas estruturais e da falência de políticas públicas.
Ocorre que há tempos vivemos um contexto de deslegitimidade da violência estatal punitiva. Raras são as disposições da Lei de Execução Penal que, de fato, são cumpridas, com exceção da exigência de requisitos para o implemento de direitos. De forma temerária, o princípio da dignidade da pessoa humana parece não ter aplicação em relação a presos, que, como mencionei antes, parecem sofrer um alheamento progressivo da condição de pessoa.
Com o Decreto do Indulto de 2016, a situação tende a piorar. A ausência de previsão da comutação da pena e o aumento do rigor na concessão do indulto, além de outros retrocessos, serão decisivos para o aumento do número de presos. Com poucos apenados obtendo a extinção da punibilidade mediante o indulto, intensificar-se-á a falta de vagas no sistema prisional e o descaso em relação à situação legal no plano individual e coletivo.
Deve-se, urgentemente, questionar o que foi e continua sendo feito no âmbito da execução penal. Necessita-se de uma análise legislativa, gerencial e interdisciplinar. É imperioso indagar sobre o grau de cumprimento da Lei de Execução Penal.
À guisa de exemplo em relação aos questionamentos necessários, quantos Juízes que atuam na execução penal quedam-se inertes quanto ao envio do atestado anual de pena a cumprir aos apenados? Os que não o fazem são devidamente responsabilizados, como determina o art. 41, XVI, da Lei de Execução Penal?
Qual é o percentual de apenados que cumpre suas penas em celas individuais de no mínimo 6m² e em ambientes salubres, conforme o art. 88 da Lei de Execução Penal? Quantos apenados estão em situação contrária aos ditames legais? O que foi feito até o momento para tentar trazer à legalidade a situação desses apenados? Quais políticas poderiam ser adotadas de forma imediata, independentemente de recursos orçamentários?
A crítica é inerente aos Advogados Criminalistas e estudiosos do Direito Penal e Processual Penal que não permanecem calados diante das arbitrariedades. Somos insatisfeitos, porquanto perscrutadores. Contudo, quanto à (des)organização prisional brasileira, a crítica se faz com uma mera narrativa dos fatos. Descaso estatal e menoscabo legal: eis o colapso!
1.8 O fracasso da prisão: a privação da liberdade como o mínimo
A prisão, em qualquer uma das suas modalidades (provisória ou definitiva), pressupõe a sua necessidade. No caso da prisão provisória, uma necessidade analisada pelo Judiciário. Quanto à prisão decorrente da imposição de uma pena, deveria pressupor uma necessidade filtrada pelo Poder Legislativo, ou seja, sua imposição decorreria apenas de casos realmente necessários, cabendo aos outros a imposição de medidas alternativas legalmente previstas.
A prisão é a não liberdade. E, negativamente, deveria ser apenas isso. Nada mais do que isso.
Em qualquer uma das suas finalidades, a prisão deveria atingir o preso apenas na esfera do seu direito de ir e vir.
Para a função ressocializadora, seria uma forma de preparar a sua reinserção na sociedade, por meio de políticas carcerárias de trabalho e educação. A privação da liberdade com o desiderato de ressocializar o apenado teria como objetivo mantê-lo em um ambiente que desenvolva as suas aptidões sociais.
No que concerne à função retributiva, haveria a racionalização da retribuição àquele que comete uma infração penal. Em outras palavras, evitar-se-ia a barbárie da Lei de Talião, impondo que a consequência da lesão a bens jurídicos penalmente tutelados se desse apenas por meio da ofensa à liberdade (prisão).
Há algum tempo, a privação da liberdade era o mínimo que ocorria por meio da prisão. Além da impossibilidade de ir e vir, poderiam surgir durante a execução da pena outras relativizações de direitos. Noutros termos, a ofensa a liberdade era o mínimo previsível da prisão, havendo possibilidade de serem atingidos outros direitos.
Ocorre que, atualmente, a perda temporária da liberdade se junta a inúmeras outras consequências não legalmente previstas, porém previsíveis. A prisão tem como consequência legal a privação da liberdade e como consequências ilegais todo o resto. Assim como a liberdade, perde-se a dignidade, a integridade física e psicológica e a certeza sobre a continuidade do exercício do direito à vida.
Há uma espetacularização da prisão, como se nome, honra e dignidade perdessem a proteção jurídica em algumas hipóteses que despertam a curiosidade pública. Comemorama prisão de um rico como uma tentativa de demonstrar que ninguém é inalcançável pelo Direito Penal e que a impunidade está sendo curada. Simultaneamente, comemoram mentalmente a prisão de um pobre por considerarem que alguém perigoso – do ponto de vista social – foi retirado do convívio em sociedade, mas não exteriorizam esse sentimento asqueroso para que não demonstrem como seus pensamentos são repugnantes.
Perde-se o cabelo em um ritual inconstitucional e ilegal que anuncia ao apenado que está iniciando uma jornada de perdas. Perder o cabelo sem o seu consentimento é apenas o início.
Perde-se o contato com familiares ou, no mínimo, esse contato é extremamente dificultado pelos horários inflexíveis, filas quilométricas e ausência de pessoal nos presídios para dar celeridade aos procedimentos de identificação e visita.
Não raramente, perde-se a possibilidade de estar em juízo acompanhando os depoimentos das pessoas que o acusam, apenas porque quem presta os serviços penitenciários não possui efetivo para realizar deslocamentos. Lamentavelmente, nem todos os Juízes adiam as audiências nesses casos.
Perde-se a integridade física, porquanto a violência é institucionalizada no interior do cárcere. Aliás, as violências física, psicológica e sexual são consideradas decorrências automáticas da maioria dos estabelecimentos prisionais brasileiros.
Perde-se a possibilidade de procurar um Advogado. Perde-se, inclusive, a possibilidade de fiscalizar a atuação do seu Advogado. O preso tem apenas três possibilidades: contar com a Defensoria Pública – sempre qualificadamente atuante –, contratar Advogados desesperados que, de forma antiética, fazem mutirão no sistema prisional, ou esperar que seus familiares encontrem um Advogado que possa defendê-lo no processo criminal ou na execução penal. Caso não tenha familiares ou o crime tenha causado o afastamento deles, a terceira opção é prontamente descartada.
No contexto atual do sistema prisional brasileiro, perde-se, da mesma forma, a dignidade da pessoa humana. O preso passa a ser apenas um objeto de exteriorização das nossas frustrações sociais e morais e da incapacidade governamental de gerir políticas públicas e recursos financeiros.
Perde-se, inclusive, a possibilidade de cumprir a pena de modo a possibilitar a harmônica integração social do condenado (art. 1º da Lei de Execução Penal), pois, em presídios faticamente administrados por facções e milícias, a prática de crimes em favor desses “administradores” é “conditio sine qua non” para permanecer vivo.
Com exceção da perda temporária da liberdade, todas as outras perdas ocorrem em flagrante inconstitucionalidade e ilegalidade. No Brasil, os preceitos secundários dos tipos penais, em sua maioria, preveem apenas “reclusão/detenção, de x meses/anos a x meses/anos”. Não há previsão de perda da dignidade, insegurança quanto à continuidade da vida, violência física, psicológica e sexual etc.
Se não exigirmos o cumprimento das normas constitucionais e legais relativas à execução penal, podemos comemorar ou estar satisfeitos com a prisão de alguém? Podemos comemorar a punição de uma ação ou omissão ilícita (crime) por meio de uma situação ilícita (cumprimento de pena no sistema prisional brasileiro)?
Se punirmos de forma ilícita, quem nos punirá?
1.9 Extorsão com a ameaça de “continuar como está”?
O crime de extorsão está previsto no art. 158 do Código Penal brasileiro (CP) da seguinte forma:
Art. 158 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa:
Pena – reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
Inicialmente, constata-se que no Brasil o crime de extorsão tem uma das maiores penas do mundo para esse tipo de conduta, variando entre 4 e 10 anos de reclusão. Devia-se debater melhor sobre o princípio da proporcionalidade quanto ao preceito secundário desse tipo penal.
Apenas para se estabelecer um parâmetro, na Espanha, o art. 243 do Código Penal estabelece a pena de prisão de 1 a 5 anos. Em outras palavras, a pena mínima espanhola é 1/4 da pena mínima brasileira, enquanto a pena máxima é exatamente a metade da nossa pena máxima. De modo semelhante à Espanha, mas sem a cominação de uma pena mínima, o art. 223 do Código Penal de Portugal, ao disciplinar o crime de extorsão, prevê a pena de até 5 anos de prisão.
Portanto, é imperioso que se discuta o princípio da proporcionalidade no que concerne à pena do crime de extorsão.
De qualquer forma, um debate precedente à questão da pena é, evidentemente, a análise da tipicidade. Ausente a tipicidade (formal ou material), o fato é atípico, não havendo crime e, por conseguinte, não sendo aplicável a sanção penal.
Assim, imagine a seguinte situação:
Alguém furta ou rouba a moto da vítima. Dias depois, a vítima recebe uma ligação de Tício, que solicita um valor para devolver a moto. Em outras palavras, Tício diz à vítima que, não sendo pago o valor, a moto não será devolvida, permanecendo tudo como está. Independentemente de quem furtou ou roubou a moto, a conduta de Tício se subsume ao tipo penal do crime de extorsão?
A questão a ser analisada é se a promessa de não devolver a moto caso não seja pago o valor é ou não uma grave ameaça. Noutros termos, há tipicidade do crime de extorsão quando a “grave ameaça” consiste na afirmação de que, se não for paga a vantagem indevida, a vítima continuará sem o bem furtado ou roubado? Há tipicidade quando se diz que tudo permanecerá como está?
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem entendimento no sentido de que o fato é típico, ou seja, a promessa de não devolução do bem em caso de ausência do pagamento do “resgate” constitui grave ameaça.
A título de exemplo, o seguinte julgado:
PENAL. HC SUBSTITUTIVO DE RECURSO ESPECIAL. EXTORSÃO. GRAVE AMEAÇA DE DANO A BEM DA VÍTIMA. POSSIBILIDADE. ABSOLVIÇÃO. MAIORES INCURSÕES QUE DEMANDARIAM REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-COMPROBATÓRIO DOS AUTOS. IMPROPRIEDADE DO WRIT. ORDEM NÃO CONHECIDA.
[…]
2. Nos termos da jurisprudência desta Corte, configura a grave ameaça necessária para a tipificação do crime de extorsão a exigência de vantagem indevida sob ameaça de destruição e não devolução de veículo da vítima, que havia sido dela subtraído.
Precedentes.
[…]
4. Habeas corpus não conhecido.
(HC 343.825/SC, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 15/09/2016, DJe 21/09/2016)
Em sentido contrário, entendendo pela atipicidade, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul possui algumas decisões relevantes. Cito, por todas, a seguinte:
EMBARGOS INFRINGENTES. CRIME CONTRA O PATRIMÔNIO. EXTORSÃO. ATIPICIDADE DA CONDUTA. POSSIBILIDADE. A simples exigência de valores para que o veículo objeto de subtração anterior fosse recuperado, sob pena de não ocorrer a devolução, embora seja eticamente reprovável, não se mostra suficiente à configuração da elementar do art. 158 do CP. Embargos infringentes acolhidos. Por maioria. (Embargos Infringentes e de Nulidade Nº 70068815141, Quarto Grupo de Câmaras Criminais, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jucelana Lurdes Pereira dos Santos, Julgado em 23/09/2016)
Com outro enfoque, entendo que não seria típica a extorsão quando a violência ou grave ameaça é dirigida ao patrimônio, outra decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
APELAÇÃO. CRIMES CONTRA O PATRIMÔNIO. EXTORSÃO. INSURGÊNCIA MINISTERIAL. ELEMENTAR GRAVE AMEAÇA NÃO DEMONSTRADA. ABSOLVIÇÃO MANTIDA. ATIPICIDADE. ART. 386, INC. III, DO CPP. A denúncia narra a prática de crime de extorsão praticado mediante a exigência de entrega pela vítima de quantia em dinheiro, “sob a ameaça de não devolução de sua motocicleta”. Ocorre que, para a configuração do crime em tela – em que pese a divergência doutrinária, o que não se desconhece -, necessária se faz a comprovação do emprego de violência ou grave ameaça dirigida à vida, integridade física, moral ou psíquica da vítima, o que não se verifica, na hipótese. A conduta narrada na exordial,no que diz com a classificação jurídica imputada aos réus – extorsão -, é atípica, muito embora pudessem os atos anteriores caracterizar, em tese, o delito de furto ou receptação, o que não se cogitou na origem. Absolvição mantida, com fulcro no art. 386, inc. III, do CPP. APELO IMPROVIDO. POR MAIORIA. (Apelação Crime Nº 70064116197, Oitava Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Isabel de Borba Lucas, Julgado em 27/07/2016)
Portanto, duas questões merecem ser analisadas:
– há crime de extorsão quando a ameaça se refere à destruição de patrimônio?
– há crime de extorsão quando a ameaça é de que tudo permaneça como está (o bem não seja devolvido)?
Sobre a primeira questão, há enorme divergência doutrinária.
O fato de o crime de extorsão se encontrar previsto no Título II (Dos crimes contra o patrimônio) não tem qualquer relevância para o deslinde dessa divergência sobre a devolução do objeto da vítima. Refere-se unicamente à vantagem econômica e ao eventual prejuízo que possa resultar para a vítima.
Se a previsão do crime de extorsão na posição topográfica dos crimes contra o patrimônio solucionasse a questão acima, teríamos um problema quando a ameaça se direcionasse à vida ou à integridade física ou psicológica da vítima, pois, pelo mesmo critério, não haveria crime de extorsão.
Portanto, a classificação da extorsão como crime contra o patrimônio não significa que caiba ameaça direcionada à destruição ou ao ocultamento do objeto da vítima.
De qualquer modo, entendo que a questão deve ser analisada a partir da segunda questão, ou seja, se há ou não extorsão quando a ameaça consiste na mera afirmação de que tudo permanecerá como está e que o objeto não será devolvido.
No que tange a essa indagação, há de se considerar que a ameaça é o risco de algo acontecer futuramente. Não se ameaça propondo a continuidade ou a permanência de uma situação prejudicial que o indivíduo não tenha o dever de amenizar, tampouco tenha dado origem a essa situação.
Da mesma forma, não há ameaça quando se solicita uma vantagem para que a situação da vítima seja melhorada, afirmando que, caso essa vantagem não seja paga, a vítima continuará na situação prejudicial em que se encontra.
Nesse prisma, afirmar que fará alguém ser despedido tem gravidade muito mais cristalina do que afirmar que nada fará para que alguém deixe de estar desempregado.
Caso a “ameaça” de não devolução do bem seja proveniente daquele sujeito que o furtou/roubou/recebeu, deverá ser analisada individualmente a eventual prática de furto, roubo ou receptação. Entretanto, o fato será atípico no que tange ao crime de extorsão, pois a intimidação consistiria no mero risco de que a situação permaneça como está.
À vista disso, conclui-se pelo acerto da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que considera formalmente atípica a conduta de exigir vantagem indevida sob pena de que algo não seja devolvido.
1.10 Casa, WhatsApp e a privacidade no processo penal 
Em 1999, o Código de Processo Penal Alemão (“Strafprozessordnung” – StPO) passou a permitir a aplicação de alguns meios de gravação no âmbito da intimidade e da privacidade das pessoas, o que era chamado de “Großen Lauschangriff”. Essa previsão, principalmente no §100 c I, n. 3, da StPo, autorizava a autoridade a escutar e fazer gravações de conversas em moradias, desde que houvesse suspeita da prática de algumas infrações (ALEMANHA, Strafprozessordnung, 1950).
Com precisão, o Tribunal Constitucional Federal Alemão (“Bundesverfassungsgerich”), no dia 3 de março de 2004, declarou inconstitucionais os referidos dispositivos legais, fundamentando sua decisão nos princípios da legalidade e da proporcionalidade (ALEMANHA, Bundesverfassungsgerich, 2004).
Recentemente, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu, no caso Riley v. California, que quase sempre haverá necessidade de um mandado judicial antes que a autoridade policial vasculhe o telefone celular de uma pessoa presa.
No Brasil, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no RHC 51.531, decidiu em 2016 que necessita de autorização judicial o acesso ao conteúdo de conversas do WhatsApp que estejam em celular apreendido pela polícia no momento do flagrante. Caso contrário, o conteúdo dessas conversas não poderá ser considerado como prova no processo criminal.
Como se observa nesses três casos acima, a privacidade do domicílio (Alemanha) e das conversas de telefone celular (Estados Unidos e Brasil) está recebendo proteção judicial de acordo com a evolução tecnológica. De fato, é da essência do processo penal que a obtenção de provas afete a privacidade somente na medida necessária para a consecução dos seus fins. Acima disso, há excesso, e a privacidade restará violada.
Contudo, analisando os casos acima, questiono se a privacidade do domicílio e das conversas de redes sociais e outros aplicativos de celular estariam no mesmo patamar. Em outras palavras, devem ser idênticos os procedimentos para violar, por necessidade de um processo criminal, a privacidade domiciliar e a de conversas em redes sociais e aplicativos?
Em ambos os casos, exige-se, como já mencionado, a prévia autorização judicial. Até esse ponto, acredito não haver divergência. Entrementes, defendo que o acesso a dispositivos telefônicos, mensagens privadas de redes sociais, WhatsApp e qualquer outro ambiente tecnológico em que a privacidade é uma característica relevante, deve ter uma proteção posterior maior.
Não se pode conceber que os critérios para acessar uma casa sejam idênticos aos de acesso de mensagens privadas. O acesso às informações que fazem parte de mensagens privadas, normalmente digitadas ao longo de muitos meses ou anos, deveria ter exigências mais rígidas do que o acesso ao domicílio.
Defendo essa necessidade maior de tutela da privacidade de conversas privadas a partir de vários motivos.
Inicialmente, constata-se que a casa de alguém abriga informações e objetos apenas dos moradores e das poucas pessoas que a frequentam. Por outro lado, as redes sociais e os aplicativos de conversa instantânea reúnem, para cada indivíduo, falas de dezenas ou centenas de interlocutores. Cada pessoa potencialmente sujeita a um processo criminal dialoga com inúmeras outras, que respondem acreditando que a conversa não será de conhecimento de terceiros.
Além disso, os dispositivos tecnológicos guardam informações passadas, de muitos meses ou anos, ao contrário das casas, que refletem apenas a situação atual das coisas.
Assim, seja pela tutela da privacidade do investigado/réu, seja pela proteção da privacidade dos terceiros que com ele conversaram, deve-se buscar um critério mais protetivo para a aferição do conteúdo que se encontra em dispositivos tecnológicos. Na tentativa de separar o que é relativo ao crime e o que tem relevância apenas pessoal ou profissional, a autoridade policial que examina um dispositivo tecnológico tomaria conhecimento de conteúdos desonrosos oriundos do investigado ou dos seus interlocutores. Como evitar essa exposição desnecessária? Como “invadir” a privacidade alheia apenas de modo a descobrir eventuais infrações penais praticadas?
Acredito que, além da prévia autorização judicial, deveria haver uma análise “cega” pela autoridade policial, ou seja, dever-se-ia ocultar o nome dos interlocutores antes da análise do conteúdo, fazendo a reidentificação apenas depois de extraídas as partes relativas a eventual crime.
Noutros termos, um perito, sem analisar o conteúdo, copiaria todas as conversas e, por meio de um procedimento de exclusão (algo um pouco mais evoluído que o “localizar e substituir” dos editores de texto), retiraria o nome do investigado, substituindo por algum código identificador ou por números. Outro perito analisaria as mensagens, já com a supressão do nome, e identificaria quais seriam relevantes para o crime apurado, descartando o conteúdo de caráter pessoal, profissional ou íntimo que não tivesse relação com o processo criminal. Em seguida, haveria a reidentificação dos interlocutores.
Dessa forma, o primeiroperito saberia quem são os interlocutores, mas não analisaria o conteúdo bruto. Somente ao final do procedimento, após o descarte do conteúdo irrelevante (informações de caráter pessoal e profissional que não tenham relação com os crimes), analisaria as conversas relacionadas com as condutas criminosas. O segundo perito, por sua vez, teria acesso à integralidade das conversas, mas não saberia quem são os interlocutores.
Um inconveniente é que isso deveria ser feito em relação a todos os interlocutores, ou seja, todos que, em algum momento, conversaram com o titular do aparelho apreendido. Caso contrário, pessoas que não tiveram contra si expedido um mandado de busca e apreensão teriam menos privacidade do que aquele cujo celular foi apreendido pela investigação.
No âmbito das interceptações telefônicas, também deveria haver esse critério de ocultação dos interlocutores quando da aferição da relevância das conversas. Entretanto, como a conversa é gravada em áudio, sendo impossível prever quando serão ditos os nomes dos interlocutores, não seria possível, com a tecnologia atualmente existente, realizar essa ocultação dos interlocutores. Assim, continuará havendo a interceptação e a oitiva por autoridades policiais de conversas de conteúdo pessoal ou profissional que não possuem relação com os crimes investigados.
Por fim, quanto à busca e apreensão em domicílio, não é possível essa prévia separação entre objetos, documentos e informações relativas aos crimes apurados e aqueles que possuem caráter unicamente pessoal. A análise da sua (ir)relevância para o processo criminal se dá no momento da busca, de modo que, inevitavelmente, a autoridade policial tomará conhecimento de questões pessoais de modo desnecessário.
Em suma, acredito que, havendo a possibilidade de evitar desnecessárias violações à privacidade e à intimidade, como no caso de conversas privadas em dispositivos tecnológicos, deve-se buscar a medida que preserve tais direitos, gerando aos envolvidos o menor prejuízo moral, social e psicológico possível.
REFERÊNCIAS:
ALEMANHA. Bundesverfassungsgerich. BvR 2378/98 und 1 BvR 1084/99. Berlim, 3 mar. de 2004. Disponível em: <https://www.bundesverfassungsgericht.de/SharedDocs/Entscheidungen/DE/2004/03/rs20040303_1bvr237898.html>. Acesso em: 10 jan. 2017.
______. Strafprozessordnung. Bundesministerium der Justiz. Berlim, 12 mai. 1950. Disponível em: <http://www.gesetze-im-internet.de/stpo/BJNR006290950.html>. Acesso em: 10 jan. 2017.
1.11 Defender-se, silenciar ou confessar o crime?
Talvez esse seja o trilema mais preocupante dos réus e Advogados Criminalistas quanto ao interrogatório (policial e judicial). A adoção equivocada de uma dessas estratégias pode produzir inúmeras consequências gravosas, entre as quais:
– Silenciar e deixar de produzir provas favoráveis, perdendo a chance de ser absolvido ou ter a acusação desclassificada para outro tipo penal.
– Silenciar e deixar de confessar, perdendo a oportunidade de reduzir eventual pena por meio da atenuante da confissão espontânea.
– Defender-se e, por temor ou equívoco, fazer afirmações contrárias aos interesses defensivos, fundamentando a versão acusatória.
– Tentar se defender e correr o risco de embasar a acusação, principalmente quando, após todos os depoimentos das testemunhas, há prova cabal para a absolvição, independentemente da realização do interrogatório do acusado.
– Confessar quando as provas são totalmente favoráveis à defesa, apenas por acreditar que é possível a absolvição por arrependimento.
– Confessar para evitar que a acusação atinja terceiro, normalmente um familiar.
Não são poucas as pessoas que imaginam que uma confissão pode gerar a absolvição. Acreditam na lógica religiosa de que o arrependimento redime o pecado e produz o perdão.
Há ainda os acusados que acreditam que, por meio da confissão, inviabilizariam qualquer chance de serem presos preventivamente.
De início, é impossível criar uma regra sobre qual deve ser o procedimento adotado durante os interrogatórios nas fases policial e judicial. Cada caso concreto exige uma postura, de acordo com a análise das provas colhidas até o momento imediatamente anterior ao interrogatório. Qualquer tentativa de generalizar condutas e desconsiderar as peculiaridades do caso concreto é se entregar a uma indevida padronização na atuação processual.
Por ser um meio de prova, o interrogatório ocorre após o depoimento de todas as testemunhas (art. 400 do Código de Processo Penal – CPP), sendo possível e imprescindível a entrevista prévia e reservada com o seu defensor, momento em que o Advogado poderá orientar sobre qual é a melhor atitude possível.
Na análise desse trilema (defender-se, silenciar ou confessar), deve-se considerar o entendimento jurisprudencial acerca da atenuante da confissão, evitando-se orientações estratégias equivocadas.
O enunciado da Súmula nº 545 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) prevê que “quando a confissão for utilizada para a formação do convencimento do julgador, o réu fará jus à atenuante prevista no art. 65, III, d, do Código Penal.”
Urge destacar que, atualmente, as duas Turmas do STJ com competência penal entendem que as confissões parciais e as qualificadas determinam a aplicação da atenuante da confissão.
Assim, seja no caso de confissão de apenas parte da conduta criminosa (confissão parcial), seja no caso de confissão dos fatos conjugada com a alegação de ter atuado sob o manto de uma excludente de ilicitude (confissão qualificada), a jurisprudência do STJ admite a aplicação da atenuante. Nesse sentido, a Quinta (HC 362375/RS) e a Sexta Turma (HC 141701/RJ) reafirmaram a sua jurisprudência recentemente, em dezembro de 2016.
Destarte, entendo que a análise do trilema do interrogatório deve ser feita considerando todas as provas obtidas até o momento desse ato, ponderando, da mesma forma, as possíveis consequências de cada opção, de acordo com o entendimento jurisprudencial majoritário e a doutrina especializada.
1.12 As novas provas e o desarquivamento do inquérito policial
É descabido o desarquivamento do inquérito policial sem novas provas.
O art. 18 do Código de Processo Penal (CPP) dispõe que “depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia.” Em uma interpretação “a contrario sensu”, não são possíveis novas pesquisas se não houver notícia de outras provas, ou seja, não cabe à autoridade policial continuar investigando, após o arquivamento do inquérito policial, com o desiderato de subsidiar o desarquivamento, se não surgirem indicativos de outras provas.
Na mesma linha do art. 18 do CPP, a Súmula nº 524 do STF esclarece que, “arquivado o inquérito policial, por despacho do juiz, a requerimento do promotor de justiça, não pode a ação penal ser iniciada sem novas provas”.
Mas o que seriam as novas provas que fundamentariam o desarquivamento do inquérito policial e eventual oferecimento da denúncia?
Sobre essa questão, o Superior Tribunal de Justiça (STJ):
HABEAS CORPUS. AÇÃO PENAL. CONTINUIDADE DA PERSECUÇÃO PENAL. ARQUIVAMENTO PROMOVIDO A PEDIDO DO MINISTÉRIO PÚBLICO, EM RAZÃO DA AUSÊNCIA DE PROVA DA MATERIALIDADE DELITIVA. DESARQUIVAMENTO. OFERECIMENTO DE DENÚNCIA. NECESSIDADE DE NOVAS PROVAS. INEXISTÊNCIA. ENUNCIADO 524 DA SÚMULA DO STF. ORDEM CONCEDIDA.
1. Arquivado o inquérito por falta de indicativos da materialidade delitiva, a persecução penal somente pode ter seu curso retomado com o surgimento de novas provas. Enunciado 524 da Súmula do STF.
Precedentes do STJ.
2. Por novas provas, há de se entender aquelas já existentes, mas não trazidas à investigação ao tempo em que realizada, ou aquelas franqueadas ao investigador ou ao Ministério Público após o desfecho do inquérito policial.
[…]
4. Recurso provido. Extinção da ação penal.
(RHC 27.449/SP, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Quinta Turma, julgado em 28/02/2012, DJe 16/03/2012)
Apesar desse importante precedente, o STJ, no finalde 2016, considerou como novas provas a realização de interceptações telefônicas e busca e apreensão de armas de fogo (EDcl no HC 364.823/SP, Rel. Min. Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 17/11/2016, DJe 29/11/2016). Considero este entendimento claramente distinto da tese adotada em 2012, pois as interceptações e a busca e apreensão não existiam durante a investigação inicialmente arquivada.
Também em 2016, o STJ entendeu que “por novas provas entendem-se aquelas que produzem alteração no panorama probatório da época do requerimento do arquivamento, não se tratando de um mero reexame de provas antigas” (RHC 63.510/RS, Rel. Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 20/09/2016, DJe 28/09/2016).
Assim, é inconcebível o desarquivamento do inquérito policial com base em mero reexame de provas que já integravam a investigação preliminar. Os elementos devem ser novos, e não apenas uma nova interpretação sobre documentos ou depoimentos anteriores.
Por outro lado, o STJ tem o entendimento de que a existência de novas provas é requisito somente para o desarquivamento do inquérito policial arquivado a pedido do Ministério Público ao Juízo, não sendo necessárias novas provas para que o órgão acusador, a qualquer tempo antes da sentença, ofereça aditamento à denúncia (HC 197.886/RS, Rel. Ministro Sebastião Regis Junior, Sexta Turma, julgado em 10/04/2012, DJe 25/04/2012).
Como se percebe, o tema das “novas provas” para fins de desarquivamento do inquérito policial ainda não é pacífico – tampouco acertado – na jurisprudência brasileira. Ora se admite uma prova ainda não existente, ora se afirma que é exigida uma prova já existente, mas não trazida à investigação.
Trata-se de tema que merece uma adequada e profunda análise, sob pena de que o arquivamento do inquérito policial não diminua o temor dos investigados em relação a uma futura persecução penal. Caso se conceda uma abertura interpretativa maior do que as expressões “novas provas” (Súmula nº 524 do STF) e “outras provas” (art. 18 do CPP) mereçam, teríamos uma indevida supressão dos limites que esses termos pretendem garantir.
1.13 Deixar de declarar o imposto de renda é crime?
Em 2012, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região decidiu o seguinte:
PENAL. PROCESSO PENAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. ARTIGO 1º, INCISO I, DA LEI Nº 8.137/90. NÃO APRESENTAÇÃO DA DECLARAÇÃO DE IMPOSTO DE RENDA DA PESSOA FÍSICA. ATIPICIDADE. O crime contra a ordem tributária (art. 1º, inciso I, da Lei nº 8.137/90) pressupõe uma conduta ativa ou omissiva dolosa, com o intuito de suprimir ou reduzir a tributação. A não apresentação de declaração anual do Imposto de Renda não constitui infração penal, mas mera infração tributária. Absolvição do réu pela atipicidade da conduta (artigo 386, III, do Código de Processo Penal). (TRF4, ACR nº 5005382-31.2010.404.7002, Sétima Turma, Relator Luiz Carlos Canalli, juntado aos autos em 14/12/2012)
Em outras palavras, o TRF4 considerou atípica a conduta de quem deixa de apresentar a declaração anual do imposto de renda. Contra essa decisão, o Ministério Público Federal interpôs Recurso Especial (REsp nº 1390125/PR), ainda pendente de julgamento.
Anteriormente, em 2011, a Sétima Turma do TRF4 já havia decidido de forma unânime pela atipicidade dessa conduta, argumentando que o crime de sonegação tributária exige conduta ativa ou relevante omissão para a consciente supressão, ainda que parcial, de tributos, como ocorre na declaração parcial de rendimentos, com supressão de rendas. Fundamentou no sentido de que a mera ausência de declaração seria atípica (TRF4, ACR nº 0032172-06.2002.404.7201, Sétima Turma, Des. Federal Néfi Cordeiro, D.E. 02/09/2011).
A questão central do debate consiste na análise da natureza dessa infração. Em outras palavras, a mera ausência de apresentação da declaração anual do imposto de renda é apenas uma infração tributária ou também se caracteriza como infração penal?
Evidentemente, neste artigo, afasta-se qualquer debate sobre a omissão de receitas na declaração, a utilização de documentos falsos para obter restituição ou qualquer outra conduta cujo caráter penal não tenha objeções na jurisprudência. Cinge-se, portanto, à ausência de apresentação da declaração.
No caso julgado pelo TRF4, imputava-se a prática do crime previsto no art. 1º, I, da Lei nº 8.137/90, “in verbis”:
Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:
I – omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;
Por meio de uma análise literal desse tipo penal, observa-se que o legislador descreveu como típicas as condutas consistentes em omitir informação e prestar declaração falsa. Obviamente, a ausência de declaração anual do imposto de renda não se amolda como declaração falsa, restando apenas eventual subsunção à omissão de informação.
Entendo que não há tipicidade formal em relação ao tipo penal do art. 1º, I, da Lei nº 8.137/90 na conduta daquele que apenas deixa de realizar a declaração anual do imposto de renda. A omissão de informação, expressão prevista no tipo penal, não pode ser confundida com a omissão de declaração anual.
Talvez por equívoco do legislador, o termo “omitir informação” abrange somente a conduta daquele que declara parcialmente os rendimentos (“omitir informação”), não abrangendo a conduta de quem deixa de realizar a declaração anual do imposto de renda.
Portanto, considero formalmente atípica a conduta analisada.
Ademais, o supracitado tipo penal é um crime material, diante da exigência de um resultado naturalístico (“suprimir ou reduzir tributo”). Nesse diapasão, exige-se o elemento subjetivo doloso, havendo alguma divergência se seria o dolo genérico ou o específico.
De qualquer sorte, conquanto tenha considerado a exigência do dolo genérico de suprimir ou reduzir a tributação, o TRF4, na decisão de 2012, entendeu pela atipicidade.
Eventual desconsideração da tese da atipicidade ainda poderia dar ensejo ao acolhimento da alegação de inexigibilidade de conduta diversa, por péssima situação financeira do agente, excluindo a culpabilidade e, por conseguinte, corroborando uma decisão absolutória.
1.14 Paridade de armas?
No processo penal, fala-se muito sobre a necessidade de respeito à paridade de armas como decorrência dos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, além, evidentemente, do direito à igualdade. Argumenta-se pela necessidade de que a acusação e a defesa tenham acesso a meios processuais equivalentes para influenciar o julgador, evitando o beneficiamento legislativo e fático de alguma das partes.
Contudo, o ordenamento jurídico brasileiro não apenas desconsidera a paridade de armas, como também coloca a defesa em nítida desvantagem, atribuindo ao acusador poderes exclusivos e benefícios simbólicos.
Cada um desses temas merece – e futuramente será objeto de – um artigo próprio. Por ora, abordarei sucintamente alguns desses problemas, sem pretender elaborar uma lista exaustiva de situações e previsões legais que ofendem a paridade de armas.
De início, constata-se a ausência de investigação preliminar defensiva. Enquanto o Ministério Público tem a seu dispor o inquérito policial, com enorme ingerência na atividade policial (art. 13, II, do Código de Processo Penal – CPP), o indiciado tem pouquíssimas possibilidades de requerer diligências, haja vista que depende do “juízo da autoridade” (art. 14 do CPP). Ademais, a prática forense tem evidenciado a dificuldade da defesa até mesmo para acessar os inquéritos, em que pese o enunciado da Súmula Vinculante nº 14 do Supremo Tribunal Federal (STF).
O art. 13 do Projeto de Lei nº 8.045/10 (Novo CPP) pretende mudar essa lógica, disciplinando uma investigação exclusiva da defesa, que ocorreria de forma paralela ao inquérito policial.
Também há uma violação à paridade no art. 409 do CPP, que indevidamente institui uma “réplica” do Ministério Público nos procedimentos relativos aos processos de competênciado tribunal do júri.
Há de se destacar, da mesma forma, a quantidade elevada de órgãos e instituições que se encontram do lado acusatório no inquérito policial e na fase processual, enquanto a defesa permanece isolada. Explico: considerando que o réu é presumidamente inocente, qualquer iniciativa na produção de provas tem a finalidade principal de desconstituir essa presunção, obtendo, por consequência, um édito condenatório.
Assim, o polo acusatório abrange a Polícia Militar, a Polícia Civil, o Ministério Público, a assistência à acusação, os Juízes que insistem em produzir prova de ofício. Não raramente, a assistência à acusação é realizada pela Defensoria Pública, formando, assim, um polo acusatório integralmente de órgãos e instituições públicas. Por outro lado, o polo defensivo tem apenas o investigado/réu, cujas manifestações são juridicamente formalizadas por um Advogado ou pela Defensoria Pública.
Nos júris, ainda há o benefício simbólico da acusação no que concerne à composição do plenário. Ao lado do Juiz e próximo aos jurados, o Ministério Público; do outro lado do plenário, afastada de tudo e de todos, a defesa. Conquanto tenhamos juízos e decisões de Tribunais de Justiça determinando uma reorganização do plenário, de modo a colocar a acusação e a defesa no mesmo patamar, ainda há uma resistência quanto a essas mudanças, fruto de um simbolismo que invariavelmente contribui para influenciar os jurados.
Poder-se-ia elencar uma quantidade absurda de situações e previsões legais que violam a paridade de armas. Esses são apenas alguns exemplos, que não necessariamente refletem as hipóteses mais graves.
1.15 Devido processo x indevido processo
Vamos imaginar a tramitação de dois processos diferentes.
O primeiro processo, que chamo de indevido processo legal, teve a sua fase pré-processual (inquérito policial) tão secreta que se tornou inacessível até mesmo para o Advogado que representava o investigado. O Advogado foi impedido de ter acesso aos documentos que já integravam o inquérito e não sabia como orientaria seu cliente durante o interrogatório na fase policial.
Aliás, ao chegar à delegacia para o interrogatório, o Advogado foi orientado a permanecer do lado de fora enquanto o seu cliente – investigado – dava o depoimento sozinho e sem orientação prévia. Em seguida, as portas se abriram e o Advogado foi convidado para assinar o termo. Tentou ler o termo antes de assiná-lo, mas um policial disse que estavam com pressa.
Também na fase policial, a vítima foi chamada para fazer o reconhecimento. Um policial abriu uma foto no computador e apenas perguntou: “é esse?”. A vítima disse que o tipo físico era parecido. Assim, constou no termo: “reconhecido”.
A investigação se concluiu de forma duvidosa. Ainda assim, o Ministério Público decidiu denunciar, justificando mentalmente a sua atitude na ideia de que tentaria obter provas durante o processo.
O Juiz, que convive diariamente com o Promotor denunciante, recebeu a denúncia, acreditando que não seria possível que seu colega de audiências erraria ao denunciar.
Em seguida, a defesa tentou, de todas as formas, demonstrar que não havia justa causa e que a denúncia houvera sido recebida com base em indícios duvidosos. A alegação defensiva restou infrutífera.
Na audiência, o Juiz começou a fazer todas as perguntas. Antes de passar a palavra ao Ministério Público, o Magistrado indagou às testemunhas sobre materialidade, qualificadoras etc. Perguntou se havia sido feito o reconhecimento na fase policial, tendo a vítima respondido que lhe foi apresentada uma fotografia.
Ainda na audiência, o Promotor fez inúmeras perguntas, que aparentemente eram desnecessárias, haja vista que o Magistrado já havia feito indagações sobre todos os aspectos que poderiam desconstituir a presunção de inocência. Quando o Advogado começou a perguntar, o Magistrado quis saber qual seria a pertinência da pergunta. Ouviu um “não preciso justificar” e, em seguida, respondeu “indefiro a pergunta”.
Após o interrogatório, o Juiz perguntou se as partes pretendiam requerer alguma diligência. A defesa requereu algo que considerava relevante, mas novamente foi indeferido, pois considerado impertinente pelo Magistrado. Audiência encerrada.
O Ministério Público apresentou memoriais. Em seguida, o Advogado também apresentou memoriais e, no mesmo dia, o Juiz proferiu a sentença, mesmo sendo um processo volumoso e com inúmeros detalhes. Pelo pouquíssimo tempo entre a devolução do processo pelo Advogado e a publicação da sentença condenatória, seria impossível o Juiz ter lido integralmente o processo após a apresentação dos memoriais defensivos. Na verdade, seria impossível ter lido os memoriais defensivos naquele curto período de alguns minutos. Evidentemente, a sentença havia sido elaborada durante a audiência, sem considerar as alegações defensivas apresentadas dias depois nos memoriais.
Imaginemos agora um outro processo, que denomino devido processo legal.
No devido processo legal, o Advogado teve acesso ao inquérito policial sem dificuldades, como determina a Súmula Vinculante nº 14 do Supremo Tribunal Federal.
O Advogado analisou os documentos que se encontravam no inquérito policial e, antes do interrogatório, orientou devidamente o investigado (art. 185, §5º, do Código de Processo Penal). Em seguida, permaneceu ao lado dele durante o interrogatório e fez perguntas relacionadas ao fato apurado.
Foi realizado o reconhecimento seguindo detalhadamente o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal.
A investigação apurava a prática de dois crimes. Contudo, surgiram indícios de que o investigado havia praticado apenas um crime. Sendo assim, o Promotor de Justiça denunciou apenas pelo fato cuja investigação apresentava indícios suficientes, requerendo – e obtendo – o arquivamento no que concerne ao crime cujos indícios eram extremamente frágeis.
Durante a audiência, o Juiz deixou as partes perguntarem primeiro. Não indagou sobre a pertinência das perguntas defensivas. Em seguida, apenas esclareceu alguns pontos complementares, a partir das perguntas anteriormente realizadas, nos termos do art. 212 do Código de Processo Penal.
Após o interrogatório judicial, a defesa requereu uma diligência, devidamente acolhida pelo Juiz, com base no art. 402 do Código de Processo Penal. Depois de cumprida a diligência, o Ministério Público apresentou memoriais e, em seguida, a defesa entregou os autos em cartório com as suas alegações.
Os autos foram conclusos ao Juiz, que leu atentamente as alegações da acusação e da defesa, examinando integralmente os autos com base nas afirmações/teses das partes. Por fim, proferiu sentença (condenatória ou absolutória, não importa).
Assim, sabendo que os Advogados Criminalistas querem apenas que tudo ocorra conforme o devido processo legal – respeitando a legislação – e rechaçam o indevido processo legal, como sustentar que os Criminalistas desejam a impunidade? Não estariam apenas tentando fazer cumprir a lei?
Em outras palavras, o problema está nos Criminalistas, que querem apenas o cumprimento das leis, ou na própria legislação?
Caso você perceba que o Advogado Criminalista deseja apenas o cumprimento da legislação, mas considere que o devido processo legal gera a impunidade, pergunto: como se opor a leis feitas por representantes democraticamente eleitos?
Em outras palavras, se você acredita que a legislação é branda, apesar de ter sido produzida por representantes eleitos pelo povo – e que representam a ideologia dos seus eleitores –, quem está errado: o povo ou você?
1.16 Há “presunção de autoria” nos crimes patrimoniais?
Precisamos falar sobre a “presunção de autoria”, que há tempos tem sido aceita, de forma equivocada, por parte da jurisprudência.
Em alguns crimes patrimoniais, especialmente furto (art. 155 do Código Penal – CP), roubo (art. 157 do CP) e receptação (art. 180 do CP), há inúmeras decisões judiciais pelo país afirmando que há uma presunção de autoria, ocorrendo, consequentemente, a inversão do ônus da prova em prejuízo da defesa.

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