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TEXTO COMENTADO DE PSICANÁLISE “Em defesa de uma certa anormalidade” — Joyce McDougall (1978) www.rafaelpsi.com.br TEXTO Capítulo “Em defesa de uma certa anormalidade” (1978) de Joyce McDougall, com livro homônimo publicado no Brasil. CONTEXTO Em 1978, Joyce McDougall publica o livro “Em defesa de uma certa anormalidade”. Em 1983, o livro foi traduzido no Brasil pela ArtMed. Nesse texto, daremos ênfase a um capítulo homônimo. Na obra, a autora aborda o distanciamento de si que alguns sujeitos estabelecem, mantendo ainda um vínculo de identificação com as regras e ideais sociais convencionais. Examinaremos aqui um dos conteúdos que abordam essa temática, a partir das considerações da psicanalista neozelandesa que se radicou na França. De acordo com biografia da FEBRAPSI: “Seu reconhecimento ultrapassou os círculos psicanalíticos e em 1992 foi convidada por Dalai Lama para participar em Dharmasala, na Índia, do seminário Sleeping, dreaming and dying: an exploration of consciousness with the Dalai Lama, que reuniu outros seis conferencistas internacionais”. A desafetação é uma importante questão que atravessa a obra dessa psicanalista. De acordo com Ana Paula Machado, em artigo, sua experiência no teatro teria contribuído para algumas de suas metáforas teóricas. No campo da psicossomática em psicanálise, forneceu contribuições fundamentais, principalmente através da noção de um afeto que é “ejetado” do psiquismo, produzindo descargas no corpo. COMENTÁRIOS SOBRE O TEXTO https://www.febrapsi.org/wp-content/uploads/2016/10/joyce-mcdougall.pdf http://sbpdepa.org.br/site/wp-content/uploads/2017/03/Joyce-McDougall-uma-analista-da-contemporaneidade.pdf Joyce McDougall escreve que foi convidada, uma vez, para participar de evento psicanalítico cujo tema eram os aspectos patológicos da normalidade. Demonstra, desde o início, que o objetivo do texto será desenvolver o que se entende por normal e anormal no contexto da psicanálise. Além disso, questiona se haveriam normais normais e os normais anormais. A reflexão leva ainda para pensar se é possível “realmente saber o que é um ser normal”. Trata-se de uma discussão fundamental no campo da saúde coletiva e ainda para o raciocínio clínico. O conceito de normalidade parece completamente estranho à psicanálise ou como um planeta que “não nos pertence”. Entretanto, Joyce McDougall lança o desafio de explorar esse terreno estranho e desconhecido, no que chama de ir em direção à “face oculta da Lua”. Acrescenta ainda que os que se consideram normais, muitas vezes, não buscam a psicanálise ou mesmo a enxergam com desconfiança. McDougall aponta para um conflito, no cerne da psicanálise, entre uma suposta noção de normalidade. A autora problematiza ainda a noção de que “ser normal é ser neurótico”, indo em direção à discussão entre normalidade estatística e a normalidade normativa. A ideia de que ser normal é ser neurótico apontaria para a normalidade estatística, enquanto que a oposição entre normal e neurótico aponta para a normalidade normativa, em que há uma dimensão que seria ideal. Sugere que a normalidade normativa é a que interessa à psicanálise, sendo um terreno pantanoso para discussão sobre o que é um ser normal. Quando se afirma que o normal é ser neurótico estamos implicados em um cálculo estatístico, de que a maioria das pessoas seriam neuróticas. McDougall propõe uma reflexão a partir de questões mais complexas do que o cálculo do que é comum. A psicanalista aponta para uma ambivalência que existe no adjetivo normal: “aprovação e condenação ao mesmo tempo”. A condenação se dá no âmbito do ser alguém “comum”. Desse modo, “se, por um lado, nos recusamos a ser ‘comuns’, não desejamos tampouco ser anormais’”. Na fonte da discussão há essa ambivalência entre o conflito de querer se adaptar, mas também de não sucumbir a um padrão comum. 1 A normalidade normativa atravessa, então, a referência qualitativa, no sentido de referência a uma norma, um conjunto de referências e de relações. Essas questões também foram trabalhadas com fecundidade pelo médico e filósofo francês Georges Canguilhem. Além disso, está no núcleo da reforma psquiátrica e da luta antimanicomial, apesar da autora não fazer um link direto com esses temas. Para McDougall, “o primeiro esboço de todas as eventuais normas posteriores é fornecido pela família”. O primeiro referencial de normal seria o que é feito em casa, conforme expressão da psicanalista. Aqui, a autora faz referência ao conceito de Freud de Unheimliche ou de estranho familiar. Um estranho com um fundo familiar. Dentro desse referencial a ambivalência aparece tanto pela via da transgressão e da não conformação, mas também pelo ser normal para “obter o amor dos pais, respeitando suas interdições e abraçando seus ideais”. Um normal, assim, relacionado à “identificação com os desejos dos pais”. Acrescenta que a situação edipiana seria a estrutura normalizante por excelência, sendo a solução neurótica, psicótica, perversa ou psicossomática, saídas de difícil distribuição em ordem de “escala normativa”. Aqui a autora problematiza a ideia de que o neurótico é mais normal do que um perverso ou um paciente predominantemente psicótico, por exemplo. McDougall compreende a estrutura edipiana como aquela que seria normalizante por excelência por regular relações intra e intersubjetivas. Fica implícito no texto que a normalidade também gera sofrimento ao sujeito. Na normalidade-sintoma, as manifestações ficam mascaradas, disfarçando casos de psicossomáticos graves ou neuroses de caráter: “[…] uma fratura psíquica escondida sob uma aparência assintomática”. Exemplifica com o que chama de analisando-robô, solução sintomática do sujeito para manter um certo equilíbrio interno, através de uma dinamismo que rejeita a espontaneidade. A situação analítica pode provocar nesses sujeitos uma ameaça de desequilíbrio. Traz um exemplo clínico de uma analisanda que chama de Sra. Normal. No primeiro 2 encontro, a paciente traz desavenças matrimoniais e informa que foi até à análise aconselhada pelo médico. Apenas duas entrevistas ocorreram com essa paciente, na qual a frase “Me sinto muito bem na minha pele” tornou-se marcante. Esse caso trouxe uma inquietação de Joyce McDougall em relação às possibilidades analíticas: “Enquanto analistas, não podemos evitar a sensação de que falta alguma coisa aos assim chamados ‘normais’”. Aqui a autora entra em um ponto importante, que é uma certa desconfiança da psicanálise em relação à normalidade. No próprio campo da psicanálise, um analista normal é visto com algum tipo de desconfiança. Em seguida, a psicanalista questiona em relação a uma suposta ideia de “sexualidade normal”. Lembra que Freud apontava que tratava-se de uma fronteira sutil no campo da sexualidade. Complementa que, em cada época, existem padrões de comportamento sexual que são diferentes, mas que também são distorcidos por um componente nostálgico. Traz duas vinhetas clínicas para abordar as posições diante do objeto no que diz respeito à sexualidade. O interesse de Joyce McDougall é discutir os limites e potencialidades da análise: “Neste caso, o objetivo da análise seria unicamente o de evidenciar um sofrimento até então ignorado, ou seja, tornar o outro apto a sofrer. Será que é nosso intuito espalhar a peste por todo o planeta?”. Ou seja, a psicanálise deve provocar aqueles que se colocam em um moldura de normalidade? E, além disso, é possível trabalhar a normalidade enquanto sintoma? Ao longo do texto essas inquietações ficam como música de fundo. Complementa afirmando que o psicanalista não tem o direito de “decidir o que o analisando deve fazer da sua vida, de seus filhos ou de sua sexualidade”. O projeto de uma psicanálise, portanto, não deve ser de instaurar um novo normal psicanalítico. No campo da sexualidade, as normas são cambiáveis, entretanto, salienta que as angústias de castração possuem diversos disfarces. A psicanalista ligaessa suposta normalidade, muitas vezes, a uma ausência de questionamento de si. Porém, problematiza que: “O fato de alguém querer acreditar em sua normalidade, mesmo que nos pareça patológico, não nos dá o direito de querer a todo custo abrir-lhe os olhos às máscaras e mentiras que existem em todos nós”. Ela assume que o desafio colocado por uma experiência analítica não é nenhum pouco simples e fácil, tratando-se de uma aventura profunda ao próprio sujeito, com seus desejos 3 proibidos, agressividades assassinas, narcisismos, avarezas e os vários Eus ou mesmo nos colocarmos diante do fato de que o Eu também é capaz de se dissolver, deixando no lugar uma angústia sem nome. Faz parte da função da psicanálise, portanto, esse questionamento das normas convencionais. Apesar de não apontado diretamente, a normalidade aparece no texto como uma possível defesa, mas também como uma pobreza subjetiva, um distanciamento de si mesmo. Ao representar as regras e ideais convencionais, o normal faz renúncias: “Sua normalidade é uma carência que atinge a vida fantasmática, afastando o sujeito de si mesmo”. Em contraponto a essa normalidade, Joyce McDougall aborda a curiosidade infantil pelo mundo, antes de serem atingidos pela “ducha de água fria da normalização”. Contrapõe ainda a imaginação e a capacidade de sonhar com a conformação do normal. Ao ter a realidade externa como imperiosa, o normal também pode acabar vivendo sua própria experiência sem afetação, criando obstáculos para a função simbólica e, assim, abrindo “a porta para a explosão do imaginário no corpo do sujeito”. Nesse ponto, Joyce McDougall faz uma ligação entre a desafetação psíquica, a desestrutura das cadeias simbólicas e as manifestações no terreno da psicossomática, um dos seus principais temas de estudo. Em um ponto do texto, a psicanalista faz referência interessante a uma expressão que cunha como “ego social”. Outro questionamento interessante presente no texto é se alguns sujeitos talvez tenham resolvido “bem demais” a problemática edipiana: “À dificuldade de ser, há sempre a possibilidade de responder através de uma superadaptação ao mundo real”. O que será encontrado se tentarmos raspar as carapaças da normalidade? McDougall não deixa de fornecer algumas hipóteses: “Uma psicose em potencial? Todos sabemos que a normalidade elevada ao plano de um ideal é uma psicose bem compensada”. Para a autora, a psicanálise tem potenciais em relação à normalidade, desde que se saiba escutar o seu pedido. E a normalidade não é um problema apenas para os analisandos, mas também para os analistas, que muitas vezes se atribuem ao direito de estabelecer normas de vida. 4 OUTROS TEXTOS Site: www.rafaelpsi.com.br 5 http://www.rafaelpsi.com.br