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DESCRIÇÃO A ética e os direitos humanos universais como fundamentos do Código de Ética e da prática do profissional de Psicologia. PROPÓSITO A Psicologia como profissão e como prática tem na ética e nos direitos humanos universais os valores que fundamentam o Código de Ética Profissional do Psicólogo e que estabelecem os princípios reguladores das relações dos psicólogos com a profissão e a sociedade. OBJETIVOS MÓDULO 1 Identificar os preceitos básicos do conceito de ética MÓDULO 2 Distinguir a relevância da ética como fundamento da Psicologia MÓDULO 3 Descrever os fundamentos, princípios e normas do Código de Ética Profissional do Psicólogo MÓDULO 4 Reconhecer os direitos humanos universais como diretrizes que orientam as práticas psicológicas INTRODUÇÃO A ética é um conceito muito difundido por toda a sociedade, mas somente em algumas situações prestamos atenção à sua importância e abrangência e em como se manifesta em todos os aspectos da vida comunitária. Neste conteúdo, abordaremos a ética como conceito que se faz presente em todas as áreas de atuação da Psicologia. Os direitos humanos universais não estão dissociados da ética. Traduzidos por “direitos fundamentais de todas as pessoas”, constituem os ideais a serem promovidos pelos psicólogos em sua prática profissional. POLÍTICA E “BONS COSTUMES” Começaremos pela origem dos conceitos de moral e de ética, a etimologia, as semelhanças e as diferenças. ÉTICA MÓDULO 1 Identificar os preceitos básicos do conceito de ética Ética vem de ethos (ética), como caráter, um modo de ser que dá forma às diferentes maneiras de compreender a si e ao mundo e que estrutura os atos humanos. MORAL Moral vem de mos (moral), como costumes, regras e normas de convivência que surgem com base nos hábitos, orientam a vida em grupo e estabelecem regras compartilhadas sobre “o certo e o errado”. Quando comparamos esses dois termos, podemos observar neles certa sinonímia, pois os dois nos levam a refletir sobre como os indivíduos concebem as regras e normas de conduta social e os costumes (hábitos que, com o tempo, tornaram-se comuns a determinado grupo social) que organizam a convivência entre pessoas de uma determinada cultura e sociedade. SINONÍMIA Qualidade das palavras sinônimas; relação de sentido entre dois vocábulos que têm significação muito próximo. É importante lembrar que a cultura grega (da qual o Ocidente herdou a ideia de ética) tem na política sua maior característica. Na “arte de governar” a cidade (pólis), de conciliar interesses em prol de um objetivo maior – fazer o bem —, a política (politikós) grega era indissociada da ética, pois as duas tinham a mesma finalidade: a busca da felicidade. javascript:void(0) Os autores gregos clássicos convergem para um mesmo objetivo: fazer o bem comparece ora como meio, ora como fim para se atingir a felicidade. Uma característica do conceito formulado por esses autores diz respeito ao caráter coletivo da ética. Se na atualidade são comuns os conflitos entre a ética “individual” e a “coletividade”, para os pensadores gregos essa seria uma falsa questão, pois o objetivo da ética era a felicidade coletiva e um bem maior. Se as ações pessoais promovem a felicidade individual, mas causam tristeza e descontentamento coletivo, a felicidade nunca será plena e perderia sua finalidade. O bem e a felicidade, nesse sentido, sempre convergiriam para a felicidade coletiva, o supremo bem, um contentamento só atingido quando as necessidades coletivas e o bem comum se tornam mais importantes do que os interesses individuais. Mais tarde, aos assimilarem a cultura grega, os romanos fazem outra interpretação do conceito de ética, traduzindo-o como uma forma de regular os costumes, como uma maneira de criar regras e normas de convivência para a Civita, a cidade romana. Tal entendimento deu origem ao que hoje chamamos de moral e às expressões a ela associadas, os “bons costumes”, as “regras de bem viver”. NA MORAL! VAMOS FALAR UM POUCO MAIS DE MORAL Quando falamos de “moral e bons costumes”, não estamos tratando de uma aliança casual. De forma resumida, podemos traduzir moral da seguinte forma: a convivência entre as pessoas de uma localidade leva à criação de hábitos; os hábitos, uma vez naturalizados, organizam as relações ao criar valores que, transformados em regras, passarão a reger a organização comunitária, ou seja, os costumes. Com o passar do tempo, essas normas são introjetadas, ensinadas a todos desde o nascimento. Elas acabam por definir as regras de convivência entre as pessoas e, por conseguinte, refletir as características de uma determinada cultura. Por “transcenderem” os sujeitos e se apresentarem como normas universais que expressam a cultura de uma determinada comunidade, elas deveriam ser obedecidas. Não cabendo, portanto, nenhuma forma de questionamento. Eis a forma esquemática daquilo que chamamos de moral. Conforme nos aponta Oliveira (2007), apesar dos interesses difusos que residem na constituição dos códigos morais (sejam políticos, religiosos, econômicos ou científicos), eles sempre se apresentam como “lei universal”, como “verdade” que se situa para além do homem, mas que só se realiza no singular, por meio do homem. Segundo La Taille (2006), a moralidade como negatividade, tal como se encontra difundida atualmente, pode ser definida como um código de regras que impedem, oprimem e barram a liberdade individual. COMENTÁRIO Decerto, por definição, a moral se apresenta sob um viés conservador de costumes, sempre referidos a um passado que busca se perpetuar no tempo e que, constantemente, se choca com os desejos individuais de busca por autodeterminação, resultando intensos debates e questionamentos do presente. Desses processos contraditórios, marcados pela tensão da permanência e pela vontade social de construção de novas possiblidades, temos como exemplo os questionamentos das diferentes instituições durante o século XX, movimentos que, de muitas maneiras, colocaram em xeque formas de se conceber os valores familiares, o casamento, o feminino, a sexualidade, entre outras formas de expressão das regras morais. De fato, não se pode negar que a moral, em suas diferentes manifestações, tenha que ser frequentemente revisitada e revista em função da necessidade de cada tempo (em especial em relação às questões éticas, como veremos adiante). Talvez por isso a moral se apresente hoje como algo negativo, mas, por vezes, nos esquecemos da positividade que permite recolocar a questão: “Como viver?”. Mesmo que possamos (e devamos) questionar as “regras morais”, forçar os limites de sua interpretação do mundo, a fim de criar novos costumes e formas de relação, ainda assim não se pode negar: a moral nos fornece os parâmetros que orientam a forma de compreender e viver em sociedade, não podendo ser ignorada ou mesmo negligenciada em nossas análises. Contudo, a moral deveria ser definida, portanto, como uma característica humana e não como uma verdade perseguida. Eis porque a Psicologia não pode ser uma moral, pois, se assim fosse, ela estaria desqualificando as contradições e os dilemas individuais em nome de um ideal “universal”, não se distinguindo, por exemplo, da religião ou de um movimento ideológico. CAMINHOS DA ÉTICA E DESCAMINHOS DA MORAL A moral implica uma pergunta: “Como viver?”. A ética, em contrapartida, reformularia esta pergunta: “Que vida eu quero viver?”. Para o filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.), a ética está associada ao bem e à felicidade. Para que uma ação possa ser considerada ética, ela deve ser racionalmente equilibrada, evitando as paixões e os excessos que representam os vícios. E os vícios não são capazes de levar o homem à felicidade. Uma atitude ética, portanto, deve representar a justa medida das coisas, o equilíbrio entre a falta de ação (omissão) e o excesso. EXEMPLO Tomemos como exemplo uma situação de violência contra uma pessoa incapaz de se defender. Aopresenciar a cena, como devemos agir? Se nos omitimos, poderemos ser considerados covardes; se formos tomados pela paixão, nossas ações poderão ser consideradas temerárias, prejudicando aquele que deveríamos proteger — e possivelmente a nós mesmos. A coragem para intervir seria a justa medida entre a falta e o excesso de força, justa medida que os gregos chamavam de “virtude”. É importante salientar que a virtude grega não se assemelha ao conceito da tradição judaico-cristã. Mesmo revogado em 2005, o Código de Ética Profissional do Psicólogo de 1987 (versão anterior à atual) traz em sua Apresentação uma definição teórica que sintetiza o que comentamos anteriormente. “ÉTHOS, SEGUNDO ARISTÓTELES, EXPRESSA UM MODO DE SER, UMA ATITUDE PSÍQUICA, AQUILO QUE O HOMEM TRAZ DENTRO DE SI NA SUA RELAÇÃO CONSIGO MESMO, COM O OUTRO E COM O MUNDO. INDICA AS DISPOSIÇÕES DO SER HUMANO PERANTE A VIDA. SER ÉTICO É MUITO MAIS DO QUE UM PROBLEMA DE COSTUMES, DE NORMAS PRÁTICAS.” (CFP, 1987, p. 3) A ética como um modo de ser diz respeito, portanto, a uma atitude psíquica em relação a si, ao outro e ao mundo. Por não expressar uma norma prática, mas uma disposição em relação ao mundo, a ética não afirma como se deve ser, nem como agir, mas sim “um” modo de expressar entre tantos outros possíveis, uma forma de agir e pensar que varia e se reconfigura continuamente a partir dos elementos postos em relação e da necessidade. Quando tomamos a ética com base em seu caráter eminentemente questionador, o “modo de ser” se apresenta como uma possibilidade singular de existência que se configura a partir da análise crítica e reflexiva de si, dos outros e do mundo, em especial quando nos relacionamos aos códigos morais. Ilustremos essa situação com uma história inspirada em fatos reais. Uma mulher solteira, mãe de três filhos, mora sozinha com as crianças em uma localidade perigosa e sem acesso a serviços públicos. Para trabalhar em três empregos e ganhar o suficiente para sustentar os filhos, ela os tranca em casa durante o dia para que não se coloquem em risco fora de casa, sem supervisão. Como não tem com quem contar, sem apoio das políticas públicas e precisando trabalhar para cuidar da família, essa foi a solução possível e escolhida para lidar com as contingências e a singularidade da situação. Moralmente, podemos apontar o absurdo da situação de uma mãe manter seus filhos em “cárcere privado”. Para justificar nosso posicionamento, podemos tecer inúmeras justificativas e explicações dos motivos pelos quais consideramos suas ações como morais ou imorais. No campo ético, poderíamos dizer a mesma coisa? Poderíamos julgar suas ações e escolhas como antiéticas? Suas ações foram omissas, temerosas ou representariam a justa medida do amor de uma mãe que visa proteger, cuidar e sustentar seus filhos? ÉTICA COMO REFLEXÃO SOBRE A MORAL Apesar de já termos discutido as semelhanças e diferenças entre os conceitos de moral e ética, ainda resta uma questão por elaborar, pois tanto a moral e seus códigos de conduta quanto a ética, com sua reflexão e crítica, estão intimamente relacionadas ao cotidiano. Como devemos lidar com “essa dupla tão singular”? Pedro (2014) demonstra como esses conceitos podem ser pensados de forma separada, antagônica ou similar. Para a autora, moral e ética formam um conjunto indissociável. Se, conforme vimos, a moral estabelece as regras e condutas que, introjetadas, passam a delimitar as formas de compreender e lidar com o social; por outro lado, as demandas do social são sempre marcadas por mudanças, dinamismo e forças de seu tempo. Relação entre moral e ética. A figura anterior nos permite traduzir, de forma esquemática, a relação dinâmica entre a moral e a ética. Podemos perceber que, em alguns momentos, elas se entrecruzam e interagem de forma dinâmica, dialogando e evitando que o “dogmatismo moral” prevaleça. Estes movimentos dialógicos permitem (...) O DESENVOLVIMENTO DE UMA CAPACIDADE DE INTERROGAÇÃO, REFLEXÃO E PONDERAÇÃO DE CADA SISTEMA DE MORALIDADE EXISTENTE QUANTO À NATUREZA E PERTINÊNCIA DAS SUAS NORMAS E REGRAS MORAIS SECULARMENTE INSTITUÍDAS, MAS NEM SEMPRE REPENSADAS À LUZ DO SENTIDO DOS PRINCÍPIOS QUE AS FUNDAMENTAM (EX.: PRÁTICAS DE EXCISÃO FEMININA; INFANTICÍDIO FEMININO); QUER, AINDA, O CONHECIMENTO RACIONAL SUBJACENTE A UMA PRÁXIS MORAL INFORMADA. (PEDRO, 2014, p.4) Por fim, é importante assinalar que os estudos sobre a ética são amplos, tomando a forma do utilitarismo (ético é tudo aquilo que é útil) como uma deontologia. Limitamos essa discussão a suas definições mais básicas, mas, em face da complexidade e relevância do tema, ele não deve se encerrar nessa abordagem inicial, pode ser sempre objeto de interesse e estudo. Não são poucos os autores, as teorias javascript:void(0) e as interpretações sobre o conceito de ética, nem são poucas as dúvidas que a temática suscita ou ainda há de suscitar. DEONTOLOGIA Conjunto de deveres profissionais de qualquer categoria profissional minuciados em códigos específicos. O DOGMATISMO MORAL E A REFLEXÃO ÉTICA Neste vídeo, o especialista Mauro Carvalho reflete sobre a relação dinâmica entre moral e ética e seus desdobramentos. VEM QUE EU TE EXPLICO! A moral e bons costumes O caráter questionador da ética VERIFICANDO O APRENDIZADO Até agora, vimos como os conceitos de moral e ética se apresentam de inúmeras maneiras. Neste módulo, vamos observar como a Psicologia, um campo de saber científico, reflete sobre suas práticas e como a ética, em seu caráter reflexivo, fornece o norte para essas análises e para a construção de uma “identidade” profissional. PSICOLOGIA COMO PROFISSÃO DO “AJUSTAMENTO” MÓDULO 2 Distinguir a relevância da ética como fundamento da Psicologia Diante dessa situação, cabe perguntar: a postura do(a) profissional foi ética ou moral? Não é difícil imaginar que parte dos estudantes de Psicologia afirme intuitivamente que o(a) profissional foi moralista e que tais práticas não estariam de acordo os princípios éticos que regem a profissão. As questões envolvidas aqui são complexas, exigindo que nos detenhamos de forma mais rigorosa nos vários aspectos da situação descrita. A lei que regulamenta a profissão de psicólogo (Lei n º 4119 de 27 de agosto de 1962. 13º, § 1) define que uma das “funções privativas” do(a) psicólogo(a) é a “solução de problemas de ajustamento”. Assim, que parâmetro utilizaremos para julgar determinada situação como normal ou anormal, como “desajustada” ou patológica? Dito de outra forma: ao definirmos que um determinado modo de agir, pensar ou sentir é “normal”, tudo aquilo que é diferente, que destoa, pode ser considerado patológico, devendo, por isso mesmo, ser motivo de tratamento? COMENTÁRIO Ao nos restringirmos somente à razão como parâmetro, dificilmente poderíamos achar normal uma pessoa jogar na loteria acreditando que vai ganhar, ou alguém se definir por um signo astrológico e não pelas características observáveis de sua personalidade, ou mesmo que você organize seu cotidiano utilizando o horóscopo ou o mapa astral. Esses modos de pensar e agir podem ser considerados normais ou patológicos? Racionalmente, não restaria dúvida de estarmos diante de uma patologia que poderia ser associada à desrealização ou fuga da realidade! Os exemplos dados anteriormente, apesar de “estranhos” à razão, podem ser considerados como “normais”. Canguilhem (2011) afirma que o normal não é algo universal, mas uma construção histórica, regida por interesses difusos (religiosos, políticos, ideológicos etc.) que reflete num determinado contexto social em que aspectos racionais, místicos, religiosos, históricos, entre outros, articulam-se, mesclam-se, contrapõe-se e dão forma a diferentes maneiras de conceber a normalidade. Esse caráter contingencial, que surge da mescla de diferentes formas de conceber a realidade, reflete os valores sociais, o recorte de um determinado contexto social, de maneira que aquilo que é consideradonormal sob uma ótica não o será em outra, não podendo ser traduzido como um conjunto de regras e práticas universais. Em outras palavras, o normal, entendido conforme uma regra universal, só seria possível como ilusão ou mentira, nunca como a verdade que abrangeria toda a humanidade. Mas se a normalidade é apenas uma ilusão, uma contingência, e a Psicologia é um campo de saber que visa compreender o homem com base em sua diversidade e complexidade, sob que critérios poderíamos considerar uma prática humana como normal ou patológica? O que os psicólogos “ajustariam”? Voltemos à situação apresentada no início deste módulo. Consideremos que o(a) terapeuta seja uma pessoa religiosa e oriente sua prática profissional pelos princípios e valores de sua crença. Sob essa ótica, ao sugerir uma religião, o(a) profissional estaria buscando o bem. Ao tentar “ajustar” seu paciente a uma determinada “normalidade”, ele possibilitaria um caminho para a “felicidade”. COMENTÁRIO Não se pode negar suas “boas intenções”, mas é importante ressaltar que o conceito de normal é uma visão particular do mundo e não uma forma universal. Nisso reside o desafio de classificar as ações como éticas ou morais. Psicologia e ditadura: a construção de uma ética profissional Entre os princípios fundamentais que orientam o Código de Ética Profissional do Psicólogo (COEPP), temos, no item III, a seguinte proposição: “O PSICÓLOGO ATUARÁ COM RESPONSABILIDADE SOCIAL, ANALISANDO CRÍTICA E HISTORICAMENTE A REALIDADE POLÍTICA, ECONÔMICA, SOCIAL E CULTURAL” (CFP, 2005, p. 7). Ao não dissociar a responsabilidade social da análise da sociedade em que se insere, o COEPP expressa a necessidade de uma reflexão sobre a história das práticas psicológicas e sua relação com a sociedade. Regulamentada em 1962, foi nas décadas de 1970 e 1980 (período em que vivíamos uma ditadura civil- militar) que a Psicologia desenvolveu os fundamentos que iriam servir de base para definir o “papel” da profissão, ao estabelecer os princípios da relação do saber psicológico com a sociedade e com o mundo em que vive e se relaciona. Nesse período, a Psicologia conviveu com o cerceamento da liberdade (de pensamento, política etc.) e a violação dos direitos humanos, quando foram comuns as práticas de tortura, prisões ilegais e mortes, conforme sabemos. A crítica à realidade social e os questionamentos a uma realidade opressora não eram validados nos consultórios, transformando o descontentamento em questão individual passível de tratamento (ajuste). Ante a imagem que a Psicologia construiu para si no período da ditadura, surgiam questionamentos: para que serve, afinal, a Psicologia? Qual é o alcance de suas práticas e a quem serviria? Qual seria o “papel” da Psicologia diante dos desafios presentes numa sociedade tão complexa, marcada por profundos contrastes e contradições? Já na década de 1980, o Brasil passava por um período de efervescência cultural e intelectual. O enfraquecimento e posterior fim da ditadura propiciara um cotidiano de questionamentos de valores e princípios que se transformaram nas bases da sociedade democrática que temos hoje. Em sintonia com as discussões de seu tempo, a Psicologia coloca em xeque uma série de posturas e posicionamentos que marcou a sua breve existência até aquele momento: a ideia de neutralidade e de seu “DNA” (ajustamento). Isso por entender que essas práticas eram incompatíveis com os valores democráticos de uma sociedade que se pretendia construir. Ao ampliar e compreender a importância de suas práticas, a Psicologia estabelecerá, para si, um compromisso ético baseado no respeito ao “sujeito humano” e aos princípios universais expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos; o compromisso de promover, no uso de suas práticas e saberes, a liberdade, a dignidade, a igualdade e a integridade para todos. ÉTICA DA PSICOLOGIA Entendendo o Código de Ética como um documento que reflete a visão dos psicólogos sobre sua prática, temos o seguinte Artigo: “[É VEDADO AO PSICÓLOGO]... INDUZIR CONVICÇÕES POLÍTICAS, FILOSÓFICAS, MORAIS, IDEOLÓGICAS, RELIGIOSAS, DE ORIENTAÇÃO SEXUAL OU A QUALQUER TIPO DE PRECONCEITO, QUANDO DO EXERCÍCIO DE SUAS FUNÇÕES PROFISSIONAIS” (CFP, 2005, Art. 2º, alínea D). Conforme vimos anteriormente, se a moral se apresenta como um sistema de conceitos universais que se realiza de modo individual, mas exclui as diferenças, os dilemas e os questionamentos individuais; se a ética é definida pela construção de um “modo de ser” que se orienta pela reflexão e pelos questionamentos individuais sobre os dilemas cotidianos, não se pode duvidar que a religiosidade e a obediência política se apresentam como uma moral, não podendo, portanto, orientar as práticas da Psicologia. Vejamos o seguinte trecho do COEPP: CÓDIGOS DE ÉTICA EXPRESSAM SEMPRE UMA CONCEPÇÃO DE HOMEM E DE SOCIEDADE QUE DETERMINA A DIREÇÃO DAS RELAÇÕES ENTRE OS INDIVÍDUOS. TRADUZEM-SE EM PRINCÍPIOS E NORMAS QUE DEVEM SE PAUTAR PELO RESPEITO AO SUJEITO HUMANO E SEUS DIREITOS FUNDAMENTAIS. (CFP, 2005, p. 5) Fruto de análises, reflexões baseadas em discussões de toda a categoria, a atual versão do Código de Ética (2005) não visa normatizar a natureza técnica do trabalho dos(as) psicólogos(as), nem prescrever normas rígidas que limitariam o exercício da profissão. Seu objetivo é servir como documento que estimule a autorreflexão sobre as práticas e a percepção de como estas se relacionam com a concepção de homem(mulher) da sociedade que se almeja alcançar. Isso posto, ainda ficam perguntas no ar: afinal, quais valores e princípios orientam as práticas e fazeres da Psicologia? Quais seriam os direitos fundamentais aos quais se refere o Código de Ética? A esse respeito, a Introdução do Código não pode ser mais clara. O texto reflete, de forma objetiva, a definição de direitos fundamentais e os conceitos expressos no Art. 5º da Constituição Brasileira de 1988 (“a constituição cidadã”), a primeira depois do período da redemocratização. Considerados “cláusulas pétreas”, ou seja, que não podem ser modificadas por lei ou decreto, por serem universais (inspirados na Declaração Universal dos Direitos Humanos), os valores expressos nessa sessão da Constituição são aqueles que regem e organizam as relações sociais e as obrigações do Estado para com o povo. Lá, encontramos o direito à liberdade de culto e de crença, de pensamento — seja político, filosófico ou intelectual —, o direito à vida, à igualdade de gênero, a não ser descriminado por qualquer motivo, enfim, uma longa lista de direitos. Decerto, o direito de divergir, de ter uma opinião, encontra-se aí garantido, sendo um dos pilares de uma sociedade democrática de direito. A própria Psicologia — com sua diversidade de teorias, seus objetos e objetivos — reflete esses valores. É comum, por exemplo, observarmos psicólogos(as) de diferentes “linhas” divergirem em relação a determinadas concepções teóricas e seus encaminhamentos, mas a liberdade de defender suas convicções não significa que psicólogos(as) não tenham que se responsabilizar por possíveis excessos cometidos na defesa de pontos de vista individuais. ATENÇÃO Ter direitos significa, também, ter deveres que se traduzem, no campo da ética, em responsabilidades para com as pessoas e a coletividade, ou seja, a liberdade individual ou coletiva de pensamento e opinião não pode se opor aos regulamentos e resoluções, fruto de intensos debates e reflexões coletivamente construídos, que, uma vez instituídos, definem os valores que orientam a forma como a Psicologia concebe sua prática e os ideais de homem e sociedade que almejamos. Uma atitude ética não implica a imposição ou a aceitação inconteste de regras, visto que estas caracterizam a moral. Uma atitude ética implica a compreensão de que a despeito das convicções pessoais do(a) psicólogo(a), a Psicologia é um campo do saber construído coletivamente, não cabendo — seja por vaidade, arrogância ou ignorância— utilizar suas técnicas, teorias e práticas para satisfazer posturas e ideais que representem somente a si ou submetê-la a uma moral coletiva, alheia à profissão. VALORES E PRINCÍPIOS QUE ORIENTAM AS PRÁTICAS DA PSICOLOGIA O especialista Mauro Carvalho reflete sobre o papel do código de ética do psicólogo, destacando a natureza técnica do trabalho dos psicólogos. VEM QUE EU TE EXPLICO! A lei 4119 que regulamenta a profissão de psicólogo Valores e princípios que orientam as práticas e fazeres da psicologia VERIFICANDO O APRENDIZADO DEONTOLOGIA E ÉTICA: DILEMAS DE UM CÓDIGO DE ÉTICA O Código de Ética Profissional do Psicólogo (COEPP) de 2005 foi fruto de longas discussões e debates, e envolveu grande parte dos(as) psicólogos(as), além da contribuição de professores, pesquisadores, MÓDULO 3 Descrever os fundamentos, princípios e normas do Código de Ética Profissional do Psicólogo estudantes e sociedades científicas. Vamos entender isso melhor. Fruto de intensas discussões de toda a categoria, o atual Código de 2005 (terceiro, desde a regulamentação da profissão em 1962) acumula uma série de sentimentos conflitantes, críticas e divergências sobre o seu sentido e significado. À diferença dos códigos anteriores, a principal característica do Código de 2005, nos aponta Amendola (2014, p. 676), foi “deixar de ser um instrumento fundamentalmente prescritivo para ser um Código que permite o exercício do pensamento, possibilitando que a ética se faça presente, enquanto associada à prática profissional”. COMENTÁRIO Se por um lado, conforme veremos, essa afirmativa encontra correlato na COEPP, por outro, encontramos nela uma contradição intrínseca, pois todo Código profissional é, por definição, uma deontologia, um estudo da moral que estabelece os limites da prática profissional na sua relação com a sociedade. Como pode um estudo sobre a moral ser a expressão de uma ética? Afinal, a que se destina um código de ética? A ética, por definição, não ignora a existência de regras e normas morais que organizam as relações numa sociedade. Ao contrário, reconhece a sua existência, ao mesmo tempo em que a analisa criticamente, buscando formas de agir e pensar marcadas pela inclusão das diferentes formas de conceber a si e ao mundo. Ser ético, nesse sentido, implica a reflexão constante, um fazer que se difira da moral por reconhecer a complexidade do outro e da realidade na busca por soluções para os dilemas e conflitos da vida em sociedade. A missão primordial de um código de ética profissional não é normatizar a natureza técnica do trabalho, mas assegurar, com valores relevantes para a sociedade e para as práticas desenvolvidas, um padrão de conduta que fortaleça o reconhecimento social daquela categoria (CFP, 2005. p. 5). Para que o processo reflexivo e dinâmico da ética seja possível, a atuação profissional do psicólogo não pode ficar restrita à normatização das técnicas ou basear-se em valores relevantes a determinados grupos, mas deve defender uma “concepção de homem e de sociedade” que se traduza em princípios e normas pautadas pelo “respeito ao sujeito humano e seus direitos fundamentais” (CFP, 2005, p. 5). A atuação dos(as) psicólogos(as), segundo essa lógica, deve manter um padrão técnico que assegure o respeito aos valores considerados relevantes para a sociedade. Ao eleger como ideal os valores expressos na Declaração Universal de Direitos Humanos, o Código de Ética da Psicologia estabelece, como norte, a construção de uma sociedade igualitária e justa, ideais que traduzem, de maneira clara e objetiva, o conceito de “responsabilidade social” adotado pela profissão. Ao estabelecer para si a concepção de sociedade que almeja atingir e os limites que devem ser respeitados pela Psicologia, o COEPP cumpre seu destino moral e se estabelece como uma deontologia. Ao delimitar fronteiras tão extensas, o COEPP inova em relação aos códigos anteriores, traçando para a profissão um território vasto e amplo, no qual o fazer ético da Psicologia encontra espaço para desenvolver toda sua potencialidade, desfazendo as possíveis contradições conceituais que ainda poderiam subsistir. PRINCIPAIS ASPECTOS ÉTICOS DO CÓDIGO DE ÉTICA Ponto de debates acalorados, o Artigo 9º do COEPP anuncia o ideal de ética que o orienta ao afirmar que “É dever do psicólogo respeitar o sigilo profissional, a fim de proteger, por meio da confidencialidade, a intimidade das pessoas, grupos ou organizações a que tenha acesso no exercício profissional” (CFP, 2005, p. 13, grifo nosso). Ensinado e discutido em praticamente todas as teorias e presente em quase todas as áreas de atuação profissional, o sigilo pode ser considerado uma das principais marcas da atuação dos(as) psicólogos(as). E, quanto a isso, é provável que exista uma concordância significativa sobre o tema. As polêmicas começam no parágrafo seguinte: “ART. 10º. NAS SITUAÇÕES EM QUE SE CONFIGURE CONFLITO ENTRE AS EXIGÊNCIAS DECORRENTES DO DISPOSTO NO ART. 9º E AS AFIRMAÇÕES DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DESTE CÓDIGO, EXCETUANDO-SE OS CASOS PREVISTOS EM LEI, O PSICÓLOGO PODERÁ DECIDIR PELA QUEBRA DE SIGILO, BASEANDO SUA DECISÃO NA BUSCA DO MENOR PREJUÍZO. (CFP, 2005, p.13, grifo nosso) Vejamos. É dever do(a) psicólogo(a) respeitar o sigilo profissional, mas poderá decidir pela quebra de sigilo quando decidir que essa decisão causará um prejuízo menor do que mantê-lo? Confuso? Nem tanto. Imaginemos o seguinte caso Uma terapeuta psicóloga atende um paciente por muitos anos. Durante uma das sessões, ele relata que decidiu matar sua esposa e filhos e se matará em seguida. Diferente das outras vezes, nesse dia, a terapeuta acredita que ele vá cumprir sua “promessa” e partir para a ação, ou seja, cometer um assassinato e, logo depois, se suicidar. Cria-se, então, um dilema para a psicóloga: manter o sigilo sabendo que pode ser cúmplice de um crime anunciado ou alertar as pessoas que podem intervir na situação, evitando assim um “mal maior”? Não se pode negar que o direito à vida é um direito fundamental que devemos garantir, logo, a quebra de sigilo profissional seria, nesse caso, uma necessidade que se justificaria por si só. Mas o caso continua... A psicóloga resolve, então, comunicar aos responsáveis a situação do paciente e as suas conclusões. O evento trágico é evitado. Meses depois, a terapeuta é chamada à Comissão de Orientação e Ética (COE, instância que avalia e delibera sobre as possíveis infrações éticas) do Conselho Regional de Psicologia (CRP) para responder por uma denúncia de quebra de sigilo. Ante ao desfecho pouco favorável para a psicóloga, poderíamos conjecturar: se a quebra de sigilo foi a reposta “errada” e gerou problemas profissionais, manter o sigilo seria a única resposta possível? Voltemos ao caso mais uma vez. Imaginemos que a terapeuta resolva respeitar o sigilo, mas, tragicamente, o paciente cumpre sua promessa. A terapeuta pode entender que, independentemente da quebra ou não da confidencialidade, o desfecho do caso seria, ainda assim, imprevisível. Segundo a decisão da psicóloga, o mais importante é que ela se manteve fiel aos princípios mais tradicionais da profissão, o sigilo profissional. Bem, tempos depois, para sua surpresa, a terapeuta é chamada à Comissão de Orientação e Ética (COE): parentes alegam que a morte dos seus familiares poderia ser evitada, se a psicóloga... quebrasse o sigilo! Ante uma aparente contradição e a ausência de respostas corretas diante de certas situações que envolvem ética profissional, cabe-nos revisitar alguns conceitos. Conforme vimos, a moral aponta a obrigação para com as regras e normas que regulam as relações entre as pessoas numa sociedade. A ética, por sua vez, nos conclama à reflexão, como devo agir ante a complexidade, o dinamismo e a peculiaridade de uma determinada situação. Liberdade individual ou limitação da liberdade em nome da segurança da vida comunitária, eis o dilema! Para Bauman (2011), o individualismo contemporâneotem como característica uma liberdade nunca antes desfrutada (liberdade de escolha, de identidade etc.). Sem ser constrangido a “obedecer” nenhuma regra ou ter alguém que lhe diga o que fazer, restaria um estado de incerteza aguda que, transformada em angústia, levaria os sujeitos a desejarem controles que limitem sua liberdade em nome da tranquilidade das escolhas obrigatórias, desresponsabilizando-se do resultado de suas ações. SAIBA MAIS Esse estado de incerteza aguda gera enorme ansiedade também entre os psicólogos (claro!), não raro, muitos deles questionam a “liberalidade” exagerada do Código de Ética, conclamando uma revisão, para que as normas sejam mais claras e os limites profissionais mais explícitos. Eis o dilema mais concreto da ética, que se realiza numa prática que conclama à reflexão permanente, exigindo posicionamento que não implica, necessariamente, em uma boa escolha ou na certeza de saber que fez o bem. A ética exige uma busca constante de elementos que justifiquem uma escolha fundamentada (para atingir o “menor prejuízo”), com a avaliação dos riscos e das possibilidades enquanto se responsabiliza por seus desdobramentos. O SIGILO PROFISSIONAL NA PRÁTICA DO PSICÓLOGO Assista a reflexão do especialista Mauro Carvalho sobre a importância do sigilo profissional e apresenta diversos exemplos de situações polêmicas na prática do psicólogo, abordando as limitações deste princípio. ÉTICA SOB OS HOLOFOTES TELEVISIVOS Durante um reality show, um artista é chamado para contar a sua história. Instado a falar, não economiza nos detalhes. Ao longo de 15 minutos, a plateia do estúdio e os espectadores assistem ao vivo, escutam e observam atentamente enquanto o homem conta sobre angústias, medos, conflitos e desafios pessoais. Atrás das câmeras, uma psicóloga ouve atentamente o relato, faz suas anotações e elabora perguntas que fará logo depois, a fim de esclarecer algum ponto que, porventura, o artista considere importante. Corta para o comercial. Quando o programa retorna, a psicóloga está a postos, com seu diagnóstico completo, pronto para ser lido perante as câmeras para cativar a multidão de espectadores que esperam ansiosos a interpretação técnica daquela história. Durante a exposição da psicóloga, nada escapa ao seu olhar atento e minucioso. Sua fala desfila complexos, neuroses, personalidades mal estruturadas e traumas psíquicos que se sucedem numa sequência de teorias e autores. Tudo organizado numa ordem previamente concebida para cativar o público e demonstrar seu domínio da técnica. Ao final do quadro: o choro do artista, o abraço da psicóloga e os aplausos efusivos denunciam o sucesso da atração. Corta a cena. Os personagens são retirados do palco enquanto o apresentador continua a entreter a pequena plateia com uma nova atração. Após alguns episódios, o programa sai do ar e é remodelado. A psicóloga sai do quadro de participantes após questionamentos de seus colegas de profissão e dos órgãos representativos da Psicologia. Em sua defesa, ela considera não ver nada de errado no formato do reality show, aliás, considera que sua participação divulga a profissão. Seus comentários não são vulgares, mas tecnicamente corretos. E mais: tomara o cuidado de alertar ao participante do programa que aquilo seria apenas uma “prévia”, um exemplo da prática da Psicologia, uma atração inocente, conclui a psicóloga. NOS BASTIDORES DA ÉTICA Vamos refletir um pouco sobre o caso relatado anteriormente. No Artigo 19º do COEPP, lemos o seguinte: “O PSICÓLOGO, AO PARTICIPAR DE ATIVIDADE EM VEÍCULOS DE COMUNICAÇÃO, ZELARÁ PARA QUE AS INFORMAÇÕES PRESTADAS DISSEMINEM O CONHECIMENTO A RESPEITO DAS ATRIBUIÇÕES, DA BASE CIENTÍFICA E DO PAPEL SOCIAL DA PROFISSÃO” (CFP, 2005, p. 15) Por mais que se possa debater as questões da técnica e a forma como as teorias foram utilizadas pela psicóloga no reality show, o Código é claro. Não há o que discutir, afinal, ela alega que, inclusive, divulgava as práticas da Psicologia, utilizando de forma fundamentada, técnica e teoricamente — e com o consentimento da pessoa (conforme Art. 16º). Caso encerrado. Será? Veremos. Ao tratar da publicidade dos serviços da Psicologia, o Artigo 20º, alínea H, adverte que “não se fará divulgação sensacionalista das atividades profissionais”. Numa visão geral da cena apresentada, não se pode negar que a situação poderia ser considerada um caso de sensacionalismo — para mais ou para menos, a depender de quem irá interpretá-la —, ao demonstrar, de maneira tendenciosa e pouco usual, como determinadas análises psicológicas são construídas com o objetivo restrito de cativar a audiência. Essa interpretação recairia numa “infração disciplinar”. Ao revisar as cenas que comprovariam a existência do “crime”, talvez se percebesse que o possível “infrator”, na verdade, não fez qualquer predição ou diagnóstico. A psicóloga apresentou suas conclusões como “hipóteses”, algo a ser explorado, caso a pessoa desejasse, num contexto mais “adequado”, ou seja, no consultório clínico. Dessa forma, a psicóloga não poderia ser culpada por “previsões taxativas” de possíveis resultados. Logo, a psicóloga seria inocente. COMENTÁRIO Caso fosse um debate real, poderíamos, ainda, apresentar muitos outros argumentos contra ou a favor do caso. As questões técnicas da clínica, a utilidade ou a inutilidade de divulgar o trabalho da Psicologia pelos meios de comunicação, a espetacularização e a banalização do saber psicológico, enfim, poderíamos, como juízes e advogados, buscar argumentos contra ou a favor da permanência ou não das práticas profissionais da Psicologia em programas nas diferentes mídias. VEM QUE EU TE EXPLICO! O COEP é uma deontologia? Nos bastidores da ética VERIFICANDO O APRENDIZADO “TODAS AS PESSOAS, MULHERES E HOMENS NASCEM LIVRES E IGUAIS EM DIGNIDADE E MÓDULO 4 Reconhecer os direitos humanos universais como diretrizes que orientam as práticas psicológicas DIREITOS.” Neste quarto e último módulo, trataremos dos direitos humanos universais que inspiram os ideais expressos pelo Código de Ética Profissional do Psicólogo e que vão estabelecer os parâmetros éticos que orientam a forma da Psicologia conceber suas práticas, a relação entre os psicólogos com outras profissões e com a sociedade em geral. Elaborada em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) surge a partir da necessidade de estabelecer uma legislação que, uma vez pactuada por todas as nações, servisse como guia para se evitar as atrocidades vivenciadas em duas guerras mundiais. Podemos perceber a tradução de seu “espírito” quando a Declaração formula que os direitos humanos são inalienáveis (direitos que não podem ser retirados ou modificados) e abrangem todas as pessoas por elas serem, simplesmente, humanas. Nada mais simples. SAIBA MAIS Em seus 30 artigos, a Declaração estabelece, por exemplo, que todas as pessoas devem ser tratadas de maneira igualitária, não podendo ser discriminadas por sua cor, sexo, religião, idioma, nacionalidade ou condição econômica e cultural. Isso significa que todos, sem exceção, têm direito à vida, à liberdade de expressão, à educação e à saúde, entre outros. Como um dos signatários da Declaração, o Brasil se comprometeu a cumprir e fazer cumprir esses princípios. Conforme vimos, no entanto, esses direitos não se fizeram presentes de imediato no Brasil, pois nos 21 anos de ditadura civil-militar (1964-1985) vivemos o oposto, um período marcado pela violência e violação dos direitos. Somente após a redemocratização, com a promulgação da Constituição de 1988 (chamada de “constituição cidadã”), os direitos universais passaram a figurar como fundamentais, marcando, de forma indelével, os direitos pessoais e as obrigações do Estado brasileiro na garantia de sua execução. É importante salientar um detalhe: para que não houvesse dúvidas ou possíveis interpretações que desvirtuassem as intenções dos constituintes eda sociedade naquele momento, o Art 5º da Constituição de 1988, na parte dos “Direitos e Garantias Fundamentais”, expressa: TODOS SÃO IGUAIS PERANTE A LEI, SEM DISTINÇÃO DE QUALQUER NATUREZA, GARANTINDO-SE AOS BRASILEIROS E AOS ESTRANGEIROS RESIDENTES NO PAÍS A INVIOLABILIDADE DO DIREITO À VIDA, À LIBERDADE, À IGUALDADE, À SEGURANÇA E À PROPRIEDADE. (BRASIL, 1988) É importante lembrar que este Artigo e seus incisos (78 no total), dada sua importância, configuram “causas pétreas”, ou seja, não podem ser alterados, modificados ou retirados pelos governantes de momento ou para atender interesses de qualquer espécie. DIREITOS HUMANOS PARA HUMANOS DIREITOS? É possível que, em algum momento, você tenha ouvido a frase que serve de título para este tópico. Normalmente, ela vem seguida de frases polêmicas: “Direitos humanos é para proteger bandido! Cadê os direitos humanos das vítimas?”, “Bandido bom é bandido morto!”. Muitas vezes nos deparamos com essas frases. Mobilizadas pelos afetos e sentimentos, as pessoas passam a desejar o sofrimento (e mesmo a morte!) daquele que, por algum motivo, é identificado como causa de desassossego e sofrimento. Historicamente, essa forma de perceber o mundo tem motivado todo tipo de violência, guerras e genocídios; ódio a uma determinada etnia, a uma religião, aos emigrantes, a um pensamento político. Pela via moral, o ódio e a vingança são sempre afetos indesejados, o que nos leva a querer nos livrar deles e de seus efeitos. Na impossibilidade dessa tarefa, porque os afetos são imanentes, ou seja, indissociáveis da existência humana, resta outro caminho: eliminar as causas pelo extermínio daquele que, com sua diferença, tornou-se a causa do sofrimento — se, por um momento, você chegou a pensar na violência racial, sexista ou homofóbica, você está no caminho certo! VOCÊ SABIA Os direitos humanos são, por definição, um princípio que só pode ser perseguido por meio de uma atitude ética, pois é ela que conclama a existência de modos de ser marcados pela convivência entre as diferenças, conclamando à construção de formas de coletividade inclusivas, marcadas pela liberdade, pelo fim da segregação, da intolerância ou do preconceito. Para que os direitos humanos se estabeleçam, precisamos, num exercício constante, pessoal ou profissional, refletir sobre nossa moralidade, em especial quando ela busca impor ao outro “normalidades” pretensamente universais, mas que refletem somente uma visão restrita de si e do mundo. EXEMPLO Num contexto restrito, teríamos, por exemplo, não uma liberdade plural, mas a imposição de uma sexualidade, uma religiosidade, uma crença, uma ideologia, um posicionamento político, surgidos da definição estreita do que é bom/mal, certo/errado, normal/patológico etc. Em outras palavras, essa ideia poderia ser traduzida assim: “Tudo que é bom é aquilo que me é familiar; mau é aquilo que desconheço, que é diferente. O que é “estranho” aos meus valores e ideais não me servem, por isso odeio e quero sua eliminação”. Nesse sentido, as formulações da Declaração Universal dos Direitos Humanos surgem como um ideal a ser permanentemente perseguido. Pregar a igualdade e a convivência, sem distinção, permite-nos interrogar nossas próprias limitações, nossa incapacidade e a necessidade de promover, pela via da ética, a reflexão, construindo formas de conviver com as diferenças e a capacidade de refletir a diversidade humana. Para isso servem os ideais: eles nos apontam o caminho a seguir e o que devemos alcançar. Por fim, voltemos ao começo: direitos humanos para humanos direitos? Com certeza, essa frase está equivocada. Humanos direitos são aqueles que pregam a eliminação das diferenças? Reformulemos, então, a frase sob a ótica do que discutimos até agora: “Direitos humanos inclusive para humanos (supostamente) direitos”. Direitos para todos, independentemente da forma de pensar, da cor da pele, da etnia, da sexualidade, da religiosidade etc. Direitos humanos para aqueles que, sob a ótica moral, imaginem-se como “humanos direitos”. LEGISLAÇÃO, CÓDIGO E DIREITOS HUMANOS Nos módulos anteriores, discutimos como os direitos universais/fundamentais influenciaram a construção de uma “identidade” para a Psicologia e como eles inspiraram a elaboração do Código de Ética Profissional do Psicólogo. Para compreendermos a dimensão desses princípios norteadores, devemos ir além, buscando nas resoluções do Conselho Federal de Psicologia (CFP) sua tradução mais fidedigna. “O PSICÓLOGO BASEARÁ O SEU TRABALHO NO RESPEITO E NA PROMOÇÃO DA LIBERDADE, DA DIGNIDADE, DA IGUALDADE E DA INTEGRIDADE DO SER HUMANO, APOIADO NOS VALORES QUE EMBASAM A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS.” (CFP, Princípios Fundamentais, p. 7) Imagine a seguinte cena Um paciente transexual procura terapia porque se sente descriminado e oprimido por seus familiares e pela sociedade em geral. Durante os atendimentos, ele narra cenas de agressão, violência e, não raro, desprezo, indiferença e até mesmo “nojo” por parte de algumas pessoas que repudiam sua identidade de gênero e opção sexual. Mesmo estranhando o comportamento do(a) terapeuta quando este(a) pergunta sobre um suposto desejo de “voltar a ser hetero-cis”, as sessões se sucedem até que um dia o(a) terapeuta torna-se mais explícito e afirma que “ele deveria se reconverter, adequar-se a seu gênero biológico, pois só assim conseguiria uma solução para suas demandas”. Quando adentramos no campo das questões de gênero e sexualidade, não são poucas as controvérsias e os debates que se revelam sobre o tema. Para compreendermos o histórico recente dessa questão, sua relação com o tema deste módulo e as repercussões para a Psicologia, começaremos com a Resolução 01/99, que proíbe aos(às) profissionais da Psicologia de exercer ou promover práticas que favoreçam a patologização de comportamentos ou de práticas homoeróticas. Fruto, ainda que tardio, de um consenso internacional construído ao longo de décadas, a Resolução 01/99 expressa as conclusões de uma série de lutas, debates e reflexões desenvolvidos pela categoria. Seus Artigos, nesse sentido, regulamentam o entendimento de que a homossexualidade não é uma patologia e sim uma possibilidade de viver o sexo e a sexualidade de seu corpo, livre de preconceitos sociais. As consequências dessa Resolução são imediatas: “não se poderia mais tratar aquilo que não é doença”, ou seja, o psicólogo não teria mais liberdade de adotar tratamentos não solicitados ou de promover terapias de cunho “reconversivo” (homo/hétero), práticas que, anos depois, receberam o nome de “cura gay”. SAIBA MAIS Ainda hoje, décadas depois, essa regulamentação continua a repercutir, pois ainda existem psicólogos(a) que defendem a “eficácia de suas técnicas reconversivas”, mesmo sem evidências técnicas ou teóricas que as fundamentem. Reivindicam o direito de exercer as técnicas reconversivas e consideram que as limitações impostas pela Resolução seriam uma restrição à “liberdade de pensamento e crença”, a despeito das evidências de que essas práticas profissionais representem o “dogmatismo moral” em sua mais clara expressão. Num tempo mais recente, a Resolução CFP 01/2018 reforça os princípios expressos na Resolução 01/99, ampliando sua interpretação ao estabelecer “normas de atuação para as psicólogas e os psicólogos em relação às pessoas transexuais e travestis”. Em seu Art. 4º, a Resolução CFP 01/2018 vai além ao afirmar que: “AS PSICÓLOGAS E OS PSICÓLOGOS, EM SUA PRÁTICA PROFISSIONAL, NÃO SE UTILIZARÃO DE INSTRUMENTOS OU TÉCNICAS PSICOLÓGICAS PARA CRIAR, MANTER OU REFORÇAR PRECONCEITOS, ESTIGMAS, ESTEREÓTIPOS OU DISCRIMINAÇÕES EM RELAÇÃO ÀS PESSOAS TRANSEXUAIS E TRAVESTIS.” (CFP, Resolução 01/2018) Nas considerações que introduzem o texto dessa Resolução, temos uma explicação que expõe a necessidade de afirmação deste artigo: “CISNORMATIVIDADE [CORRESPONDÊNCIA ENTRE O SEXO E O BIOLÓGICO] REFERE-SE AO REGRAMENTO SOCIAL [MORAL] QUE REDUZA DIVISÃO DAS PESSOAS APENAS A HOMENS E MULHERES, COM PAPÉIS SOCIAIS ESTABELECIDOS COMO NATURAIS, POSTULA A HETEROSSEXUALIDADE COMO ÚNICA ORIENTAÇÃO SEXUAL E CONSIDERA A CONJUGALIDADE APENAS ENTRE HOMENS E MULHERES CISGÊNEROS.” (CFP, Resolução 01/2018) O debate, no entanto, não se restringe às questões de gênero, pois dada a insistência de alguns(mas) psicólogos(as) em promoverem o preconceito, desta feita étnico-racial, houve na Resolução 18/2002 (Artigos 2º, 3º e 4º) a necessidade de reafirmar que, aos psicólogos, é vedado exercer ações que favoreçam o preconceito de raça ou etnia, que não podem ser omissos ante ao crime de racismo e, por fim, que não devem utilizar os instrumentos ou as técnicas da Psicologia para manter ou reforçar preconceitos, estigmas, estereótipos ou discriminação racial. Ao pregar a igualdade de direitos e a fraternidade, a Declaração Universal dos Direitos Humanos espelhada no Código de Ética nos oferece, como já discutimos anteriormente, uma visão da sociedade que desejamos como profissionais de Psicologia. Ao promover a discriminação e a opressão, seja ela direcionada às questões de gênero, étnico-raciais ou sexistas, certos(as) psicólogos(as) da área não refletem os avanços e as conquistas de uma profissão que tem como ideal a promoção da “liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano”. Eles externam apenas deficiência técnica, limitação pessoal e profissional, características incompatíveis com a responsabilidade social que assumimos quando escolhemos a Psicologia. DIREITOS HUMANOS INCLUSIVE PARA HUMANOS (SUPOSTAMENTE) DIREITOS Neste vídeo, a partir do uso de exemplos, o especialista Mauro Carvalho reflete sobre os sentimentos de desconforto associados a grupos e práticas que socialmente tentamos eliminar ou excluir e a forma como o psicólogo precisa se posicionar. VEM QUE EU TE EXPLICO! O que são os Direitos Humanos? A polêmica envolvida na “cura gay”. VERIFICANDO O APRENDIZADO CONSIDERAÇÕES FINAIS CONCLUSÃO Como vimos, a ética e os direitos humanos universais inspiraram a elaboração do Código de Ética Profissional do Psicólogo, documento que revela uma visão abrangente sobre como a Psicologia concebe seu campo de saber, marcado pela necessidade de aprimoramento técnico e teórico permanente e pelo estabelecimento de parâmetros para a atuação profissional. Vimos ainda que o Código de Ética da Psicologia é fruto de um processo histórico de amadurecimento. Ao se propor como um documento orientador e não uma prescrição de práticas, procurou, em suas atualizações, renovar a reflexão sobre os diferentes aspectos do exercício profissional. Em síntese, o Código de 2005, o mais recente, busca estabelecer os parâmetros e as diretrizes para o trabalho de psicólogos(as) e servir de base para os ideais de sociedade que a Psicologia adota para si e que busca promover por meio de suas práticas. Durante todo o trajeto escolhido para discutir esse conteúdo, os encontros (e desencontros) entre a ética, a prática dos(as) psicólogos(as), o código de ética e os direitos humanos forneceram muitas possibilidades de análises, embates, dúvidas e questionamentos sobre como esses temas se articulam nos espaços onde os(as) psicólogos(as) se fazem presentes. PODCAST Agora, o especialista Mauro Carvalho finaliza demonstrando a relação entre o COEP, os direitos humanos universais e a prática do psicólogo. AVALIAÇÃO DO TEMA: REFERÊNCIAS AMENDOLA, M. F. História da construção do Código de Ética Profissional do Psicólogo. In: Estudos e Pesquisa em Psicologia. Rio de Janeiro, ago. 2014, v. 14, nº 2. ARISTÓTELES. Ética a Nicômano. São Paulo: Edipro, 2002. Bauman, Z. A ética é possível num mundo de consumidores? Rio de Janeiro: Zahar, 2011. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. São Paulo: Forense Universitária, 2011. COIMBRA, C. M. B. Guardiães da ordem: uma viagem pelas práticas psi no Brasil do “Milagre”. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1995. CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). Código de Ética Profissional do Psicólogo, 2005. CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). Resolução Nº 2, de 15 de agosto de 1987. Código de ética profissional do psicólogo. Consultado na Internet em: 15 set. 2021 ESPINOSA, B. Ética. Coleção “Os Pensadores”. Rio de Janeiro: Abril, 1980. FREUD, S Totem e tabu: contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos. 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EXPLORE+ Para saber mais sobre os assuntos tratados neste conteúdo, assista no Youtube: À live A Psicologia em defesa da despatologização das identidades de gênero e sexualidade, realizada pelo Conselho Federal de Psicologia em comemoração aos 22 anos da Resolução 01/99, que estabelece as normas de atuação para psicólogos e psicólogas em relação à orientação sexual. À live Pensando o lugar da religiosidade e da laicidade na Psicologia, realizada pelo Conselho Regional de Psicologia 05 (Rio de Janeiro), com a participação de Héder Lemos Bello e Tatiana Lionço, na qual discutem as questões relacionadas à religiosidade e à laicidade na Psicologia. À aula aberta Psicanálise brasileira nos tempos da ditadura: os casos de Amílcar Lobo e Hélio Pellegrino, realizada no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. À entrevista Entre nós: ética, direitos humanos e Psicologia, com Vera Paiva, membro da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia. CONTEUDISTA Mauro Carvalho
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