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o EVANGELHO DE SÃO MARCOS CHED MYERS GRANDE COMENTÁRIO BÍBLICO e p Este é o primeiro comentário sobre o Evangelho de Marcos que aplica sistematicamente um a abordagem multidisciplinar, chamada “método socio- literário”. Myers integra a crítica literária, a exegese sócio-histórica e a hermenêutica política em sua investigação sobre Marcos, como “manifesto do discipulado radical”. Insistindo na fidelidade ao texto e ao contexto, Myers lê a narrativa de Marcos sobre a vida de Jesus e a prática messiânica encarando-as primeiro dentro das circunstâncias históricas da Palestina do primeiro século e, depois, dentro do quadro de opressão e de violência contemporâneas. Myers argu menta que o Jesus de Marcos apresenta um modelo estimulante de uma prática cristã de resistência não-violenta à dominação social, econômica e política. Organizador e ativista da paz, escritor, educador, conferencista e pregador, Ched Myers trabalha com o Comitê de Serviço Regional dos Amigos Americanos na Califórnia. Ele é formado em Estucfos do Novo Testamento na União Teológica de Gradução, Berkeley, Califórnia. coleção _ iGrande , Comentário Bíblico [SBN 85 -0 5- 01 29 2- 5 coteçâo Bíblico Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Myers, Ched. O Evangelho de São Marcos / Ched Myers ; [tradução I.F.L. Ferreira; revisão H. Dalbosco], — São Paulo : Edições Paulinas, 1992. — (Coleção Grande Comentário Bíblico) Bibliografia. ISBN 85-05-01292-5 1. Bíblia N.T. Marcos — Crítica e interpretação I. Titulo. II. Série. 91-1713 CDD-226.306 índices para catálogo sistemático: 1. Evangelho de Marcos : Crítica e interpretação 226.306 2. Marcos : Evangelho : Crítica e interpretação 226.306 GRANDE' c o m e n t á r io bíblico • OApooalipse da São João, E. Corsini • Êxodo, Ç. .V, Rixlqy • Profetas I, L. A. Schõkel e J. L. Sicre Diaz • O Evangelho de São João, J. Mateos e J. Barreto • Profetas II, L. A. Schõkel e J. L. Sicre Diaz • Carta aos Romanos, C. E. B. Cranfield • O Evangelho de São Marcos, Ched Myers • Os Salmos, Arthur Weiser 7 15 20 22 25 26 26 28 30 31 31 34 36 38 38 41 44 46 47 49 52 54 57 58 61 63 ÍNDICE Apresentação Prefácio Agradecimentos Abreviaturas PRIMEIRA PARTE: TEXTO E CONTEXTO Capítulo 1: UMA POSIÇÃO E UMA ESTRATÉGIA DE LEITURA PARA MARCOS A. POR QUE UMA LEITURA POLÍTICA? I. O círculo hermenêutico II. Locus Imperium III. Discipulado radical B. POR QUE MARCOS? I. “Luta pela Bíblia” II. Marcos como manifesto III. Novas estratégias de leitura C. DISCURSO POLÍTICO E A “GUERRA DE MITOS” I. Simbólica e prática social II. Estratégias ideológicas de legitimação e subversão III. Teologia como literatura ideológica D. O EVANGELHO COMO NARRATIVA IDEOLÓGICA I. “Janelas”: crítica histórica e exegese sociológica II. “Espelhos”: formalismo e crítica literária III. Toda narrativa é política: sociologia literária IV. Ficção, história e narração ideológica E. UMA ESTRATÉGIA DE LEITURA SOCIOLITERÁRIA I. Análise narrativa: estrutura e estória II. Análise social: discurso e significado III. Algumas condições 66 Capítulo 2: A POSIÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DA NARRATIVA DE MARCOS SOBRE JESUS 67 A. O EVANGELHO NO TEMPO E NO ESPAÇO POLÍTICOS: PALES TINA ROMANA DO SÉCULO I 67 I. O mundo de Jesus e de Marcos 70 II. "Mapeando” um mundo social: filtros e modelos 72 III. História como exercício transcultural 75 B. TENSÕES SOCIOECONÔMICAS 75 I. Economia política 79 II. Relações de classe 82 III. Conflitos geopolíticos 83 C. TENSÕES SOCIOPOLÍTICAS E A GUERRA JUDAICA 84 I. A Palestina ocupada 87 II. Resistência popular 91 III. Movimentos proféticos 93 IV. Ideologias da realeza popular 95 D. O MOVIMENTO HISTÓRICO DE MARCOS: A REVOLTA DE 66-70 d.C. 96 I. Os primeiros dois anos: os governos provisórios 98 II. Os dois segundos anos: a coalizão zelota 101 E. TENSÕES SOCIOCULTURAIS: A ORDEM SIMBÓLICA 101 I. O que é uma ordem simbólica? 105 II. A ordem simbólica do judaísmo antigo: um modelo de matriz 106 III. Pureza e débito 110 IV. A Torá e o Templo 113 F. ESTRATÉGIAS IDEOLÓGICAS E SOCIAIS 113 I. Colonialismo e colaboração 115 II. Movimentos de renovação: reforma e retirada 117 III. Radicalismo de lealdade: a quarta filosofia 118 IV. Alienada, de confronto, não-alinhada: uma hipótese SEGUNDA PARTE: LEITURA DA PRIMEIRA METADE DE MARCOS 125 Capítulo 3: INTRODUÇÃO AO ESTILO LITERÁRIO E À ESTRATÉGIA DE MARCOS: O “PRIMEIRO” PRÓLOGO E O CHAMADO AO DISCIPULADO (Mc 1,1-20) 126 126 129 131 134 134 136 140 142 145 146 148 152 154 154 156 158 159 160 162 165 167 167 170 171 173 177 177 177 179 181 181 184 187 190 A. “COMO ESTÁ ESCRITO”: A IDEOLOGIA DA TEXTUALIDADE E DA INTERTEXTUALIDADE I. Marcos e a tradição oral: as palavras não-domesticadas de Jesus II. O campo semântico de Marcos: a política da língua III. Marcos e a tradição escrita: o “script” do radicalismo bíblico B. “BOA NOVA”: A IDEOLOGIA DO GÊNERO I. Ditos de sabedoria ou narrativa dramática? II. A estratégia narrativa da apocalíptica III. Narrativa realista IV. “Sobre” quem é o Evangelho? Tempo narrativo e histórico C. NARRATIVA ABSTRATA: A ESTRUTURA DE MARCOS I. Estrutura e função II. Simetria nos dois “Livros” de Marcos: modelo sincrônico III. O discurso da estrutura D. COMPÊNDIO NARRATIVO: O RELATO DE MARCOS I. Em tomo da Galiléia: Livro I II. Rumo a Jerusalém: Livro II III. Os três principais fios da trama E. UMA NARRATIVA SUBVERSIVA DE COMO O MUNDO FOI CRIADO (1,1-8) I. O título: subverter o código cultural romano II. “Isaías”: subverter o código cultural judaico III. O começo do fim: João Batista como Elias F. UMA MISSÃO SUBVERSIVA INAUGURADA (1,9-20) I. Jesus batizado: primeiro momento apocalíptico II. O Kairos realizado: o poder do tempo conjurado III. Chamado ao discipulado: interrompendo a atividade comum IV. O Evangelho como novum ideológico: estratégia socioliterária de Marcos através de 1,20 Capítulo 4: PRIMEIRA CAMPANHA DE AÇÃO DIRETA: O ASSALTO DE JESUS À ORDEM SOCIAL JUDAICA EM CAFARNAUM (Mc 1,21-3,35) A. CARÁTER NARRATIVO DA CAMPANHA DE CAFARNAUM I. Estrutura II. Narrativa B. A MISSÃO MESSIÂNICA E O SENTIDO DA “AÇÃO SIMBÓLI CA” DE JESUS I. Desafiando a autoridade: Jesus, o exorcista II. Bem-estar e ordem simbólica: Jesus como aquele que cura III. Ação simbólica IV. Espaço simbólico: posição narrativa e esfera social 194 194 196 198 200 200 202 204 205 206 208 208 211 213 213 213 215 218 218 221 223 223 224 227 227 230 232 C. DESAFIANDO A HEGEMONIA IDEOLÓGICA DO SACERDO TE E DO ESCRIBA (1,40-2,15) I. Ataque contra o código de pureza: cura de leproso II. Ataque contra o sistema de débito: cura de paralítico III. A “multidão”: Jesus entre os pecadores e os pobres D. DESAFIANDO O PRIVILÉGIO E O PODER FARISAICOS (2,16-28) I. Santidade: convívio à mesa e jejum II. Sábado: desobediência civil em campo de trigo E. REJEIÇÃO E CONSOLIDAÇÃO: A PRIMEIRA “COSTURA GE RADORA” (3,1-19) I. Desobediência civil como mestre: ultimatum deuteronômico de Jesus II. Novo Sinai: Jesus forma uma “confederação” F. O CLÍMAX DA CAMPANHA: JESUS DECLARA GUERRA IDEO LÓGICA (3,20-35) I. Polarização: Jesus versus o “homem forte” II. Cisão: repúdio do sistema de parentesco Capítulo 5: “ESCUTAI!” O PRIMEIRO SERMÃO SOBRE A PACIÊNCIA REVO LUCIONÁRIA (Mc 4,1-36) A. DISCURSO EM PARÁBOLAS I. Estrutura do primeiro sermão II. “Ouvidos para ouvir”: o reino como mistério? B. O SEMEADOR: REFLEXÃO SOBRE A MISSÃO DO REINO (4,1-23) I. A semente remanescente em solo hostil II. Â colheita escatológica: ideologia da terra C. O MISTÉRIO DOS FINS E DOS MEIOS, I (4,24-34) I. Realismo cínico ou semente de esperança? II. A despeito das aparências, o reino prevalecerá D. SUBVERSÃO DO MUNDO: ESTRATÉGIA SÓCIOLITERÁRIA DE MARCOS EM 4,36 I. Discurso II. Significado Capítulo 6: A CONSTRUÇÃO QUE JESUS FAZ DE NOVA ORDEM SOCIAL, I: O CICLO DO MILAGRE (Mc 4,36-8,9) 233 233 235 237 237 239 241 241 243 245 245 248 252 254 255 256 258260 260 260 262 264 264 266 267 268 271 A. O CARÁTER NARRATIVO DO CICLO DA HISTÓRIA DO DU PLO MILAGRE I. Estrutura II. Narrativa B. O SEGUNDO EXORCISMO INAUGURAL (5,1-21) I. O endemoninhado geraseno II. Exorcismo como rejeição política C. O REINO COMO RECONCILIAÇÃO RACIAL: DUAS TRAVES SIAS PERIGOSAS (4,35-41; 6,45-53) I. Um discurso sobre viagens pelo mar II. O drama da passagem difícil D. O REINO ANTES DA REJEIÇÃO: AS DUAS DUPLAS DE CURAS (5,21-43; 7,24-37) I. Dinâmica sociocultural da honra e da vergonha II. Relações judaicas de classe: cura de duas "filhas” III. Uma comunidade ecumênica: cura de dois gentios E. O REINO COMO SATISFAÇÃO ECONÔMICA: DUAS DISTRI BUIÇÕES DE ALIMENTO NO DESERTO (6,33-44; 8,1-9) I. Distribuir alimento às massas judaicas: a economia da partilha II. Rebanho sem pastor: polêmica política? III. Alimentar as massas pagãs: sustento para o caminho Capítulo 7: EXECUÇÃO DE JOÃO E O “PRIMEIRO” EPÍLOGO (Mc 6,1-32; 7,1 23; 8,10-21) A. UM PROFETA SEM HONRA, I: A SEGUNDA “COSTURA GERA DORA”^ , 1-13.30-32) I. Rejeição em Nazaré: estranho em casa II. Missão e hospitalidade: em casa entre estranhos B. UM PROFETA SEM HONRA, II: O “FERMENTO” DE HERODES (6,14-29) I. Assassínio em locais importantes: a morte de João como paródia política II. Jesus como sucessor de João: o destino político da missão do reino C. AS ESTRUTURAS DE SEGREGAÇÃO: O “FERMENTO” DOS FARISEUS (6,53-7,23) I. Atacar o convívio exclusivo à mesa: prática farisaica II. Atacar a tradição oral: a ideologia farisaica 274 D. DECIFRADA A SIMBÓLICA DE JESUS: O PRIMEIRO EPÍLOGO (8 , 10-21) 274 I. Nada de sinal do céu e mau fermento: comentário político 276 II. Apenas um pão: comentário social 278 E. A CONSTRUÇÃO DO MUNDO: ESTRATÉGIA SOCIOLITERÁRIA AO LONGO DA PRIMEIRA METADE DA NARRATIVA 278 I. Discurso 281 II. Significado TERCEIRA PARTE: LENDO A SEGUNDA METADE DE MARCOS 287 Capítulo 8: O PONTO QUE FICA NO MEIO DA HISTÓRIA: O “SEGUNDO” PRÓLOGO E O CHAMADO AO DISCIPULADO (Mc 8,22-9,30) 288 A. O CARÁTER DA NARRATIVA SOBRE O CATECISMO DO DISCIPULADO 288 I. Estrutura 290 II. Narrativa 291 B. NOVO DISCURSO SIMBÓLICO: JESUS CURA O SURDO E CEGO (8,22-26) 291 I. As curas como contradiscurso de esperança 292 II. Olhos que vêem; primeira etapa: Betsaida 294 C. CRISE CONFESSIONAL (8,27-33) 294 I. “Quem dizeis que eu sou?” 295 II. A primeira predição 297 III. A tríplice repreensão e a “contraconfissão” de Jesus 298 D. A VERDADEIRA SEDE DA CONFISSÃO: O TRIBUNAL E A CRUZ(8,34-9,1) 298 I. Segundo chamado ao discipulado: “Vida/Morte” 301 II. O Humano: defensor ou perseguidor? 303 E. A CRUZ CONFIRMADA: DUAS CONCLUSÕES SIMBÓLICAS (9,2-29) 303 I. Jesus transfigurado: segundo momento apocalíptico 306 II. Visão escatológica ou escrito confirmado? 308 III. O menino surdo-mudo: a luta pela fé 312 Capítulo 9: A CONSTRUÇÃO QUE JESUS FAZ DE UMA NOVA ORDEM SOCI AL, II: O CICLO DO ENSINAMENTO (Mc 9,30-10,52) 313 313 315 316 318 320 320 323 325 328 328 332 333 335 335 336 338 340 342 342 344 349 349 349 352 353 353 355 A. SEGUNDO CICLO: UM CATECISMO SOBRE A NÃO-VIOLÊN- CIA (9,30-50) I. Retórica e estrutura no segundo ciclo II. Segunda predição: primeiro/último III. Fronteiras sociais: o "bom que está do lado de fora” IV. Solidariedade comunitária: os "maus de dentro” B. O PODER SOCIAL E A FAMÍLIA: AS RAÍZES DA VIOLÊNCIA (10,1-16) I. Matrimônio e divórcio: uma crítica do patriarcado II. "Como criança”: a solidariedade de Jesus com o "menor dos menores” III. A criança, o sistema de família e as raízes da violência C. O PODER ECONÔMICO E A PRÁTICA DA COMUNIDADE (10,17-31) I. O homem rico na qualidade de não-discípulo: questão de classe II. O buraco da agulha: humor camponês III. A comunidade de bens: sobre a propriedade D. PODER POLÍTICO E LIDERANÇA NA COMUNIDADE: O TER CEIRO CICLO (10,32-52) I. Rumo a Jerusalém: terceira predição II. Crítica da dominação política: grande/servo III. Patriarcado e dominação: mulheres como verdadeiras líderes IV. Olhos para ver; segunda etapa: Bartimeu E. A REVOLUÇÃO VINDA DE BAIXO: A ESTRATÉGIA SOCIOLITERÁRIA DE MARCOS EM 10,52 I. Discurso II. Significado Capítulo 10: SEGUNDA CAMPANHA DE AÇÃO DIRETA: O CONFRONTO DE JESUS COM OS PODERES EM JERUSALÉM (Mc 11,1-13,3) A. O CARÁTER NARRATIVO DO CICLO DE CONFLITO EM JERU SALÉM I. Estrutura II. Narrativa B. DENTRO DA CIDADE SANTA: PROCISSÃO SIMBÓLICA (11, 1-10) I. Libertador montado em jumento? Teatro de rua de cunho político II. O reino de Davi? Aclamação messiânica 357 357 359 362 364 367 367 369 371 374 376 376 379 381 381 382 385 387 387 387 390 393 393 394 395 395 397 399 401 402 403 406 408 408 C. DENTRO DO LUGAR SAGRADO: AÇÃO DIRETA SIMBÓLICA (11,11-26) I. Uma figueira estéril: “Eles não darão fruto” II. O Templo exorcizado: “Eu os expulsarei da minha casa” III. Covil de ladrões: “Todos os seus chefes são desobedientes” IV. Montanha removida: a fé como imaginação política D. ENFRENTAR A AUTORIDADE POLÍTICA DO CONDOMÍNIO COLONIAL (11,27-12,17) I. Batismo de quem? O poder do Estado judaico II. Os chefes como servos: a parábola política central III. De quem é a moeda? O poder do Estado romano IV. Não-alinhamento e “cilada” política marcanos E. EM CONFRONTO COM A AUTORIDADE IDEOLÓGICA DA CLASSE ESCRIBA (12,18-34) I. A casuística dos saduceus: escatologia versus patriarcado II. Piedade escriba: a ortodoxia não basta F. CLÍMAX DA CAMPANHA: JESUS FAZ O JULGAMENTO SOBRE O TEMPLO (12,35-13,3a) I. Contra-ofensiva de Jesus: contra o messianismo davídico II. Polarização: escribas ricos versus viúvas pobres III. Cisão ou racha: rejeição do templo Capítulo 11: SEGUNDO SERMÃO SOBRE A PACIÊNCIA REVOLUCIONÁRIA (Mc 13,4-37) A. O SERMÃO COMO DISCURSO PARENÉTICO I. Intertextualidade apocalíptica no segundo sermão II. A narrativa e o “momento” histórico: Marcos e a revolta B. UM PEDIDO DE ORIENTAÇÃO (13,3s) I. Dupla pergunta II. Estrutura narrativa do segundo sermão C. A REVOLTA NÃO É O REINO (13,4-23) I. “Quando ouvirdes”: Marcos versus os recrutadores rebeldes II. “Vós sereis perseguidos”: o destino político dos discípulos III. “Quando virdes”: chamado ao abandono da defesa de Jerusalém IV. “Não acrediteis nisto”: os rebeldes e a realeza messiânica D. O SERMÃO COMO DISCURSO MÍTICO I. O “fim do mundo”: revolução II. “Guerra no céu”: resistência E. O MISTÉRIO DOS FINS E DOS MEIOS, II (13,24-37) I. O advento do Humano e a queda dos poderes 409 412 414 414 417 421 422 422 424 426 426 427 429 432 433 434 436 437 438 438 441 445 445 448 449 449 451 454 455 455 457 II. Parábola da figueira: clímax da simbólica política de Marcos III. “Ficai acordados!”: o mundo como Getsêmani F. PORVENTURA OBEDECEMOS ÀS “REGRAS DA CASA” OU AO “SENHOR DA CASA”?: A ESTRATÉGIA SOCIOLITERÁRIA DE MARCOS ATRAVÉS DE 13,37 I. Discurso II. Significado Capítulo 12: PRISÃO D JESUS E SEU JULGAMENTO PELOS PODERES (Mc 14,1-15,20) A. O CARÁTER NARRATIVO DO RELATO DA PAIXÃO I. Estrutura II. Narrativa B. INTIMIDADE E TRAIÇÃO: ÚLTIMOS DIAS DA COMUNIDADE (14,1-25) I. “Unção” messiânica: “meu corpo para ser sepultado” II. Jesus fugitivo: as autoridades agem secretamente; a comunidade subterrânea III. “Banquete” messiânico: “Meu sangue a ser derramado” C. “CHEGOU A HORA ”: O COLAPSO DA NARRATIVA DO DISCIPULADO (14,26-52) I. Última predição de Jesus: dispersão e reunião II. Getsêmani: os discípulos adormecem III. A prisão: os discípulos se dispersam IV. O “jovem”: indício de re-união D. DUPLO JULGAMNTO DE JESUS: HISTÓRIA E PARÓDIA I. Julgamentos paralelos: apologia marcana? II. Plausibilidade histórica na narrativa do julgamento E. DIANTE DOS PODERES JUDAICOS: “ÉS TU O MESSIAS?” (14,53-15,1) I. Acusação diante do Sinédrio II. A negação de Pedro: a narrativa da traição termina F. DIANTE DOS PODERES ROMANOS: “ÉS TU REI?” (15,2-20) I. Processo diante de Pilatos II. Quem é o revolucionário real? Jesus e Barrabás Capítulo 13: EXECUÇÃO DE JESUS E “SEGUNDO” EPÍLOGO(Mc 15,21-16,8) A. O CAMINHO DA CRUZ (15,21-32) I. O olhar triunfal de Roma II. O escárnio dos judeus 460 460 462 464 465 466 469 470 470 471 473 473 475 478 478 481 487 488 489 491 493 496 498 498 501 504 506 508 508 509 B. JESUS CRUCIFICADO: TERCEIRO MOMENTO APOCALÍPTICO (15,33-38) I. O fim do mundo II. O advento do Humano C. O “DEPOIS”: TRÊS RESPOSTAS PARA A MORTE DE JESUS (15,39-47) I. O centurião: Roma derrotou Jesus II. José: o Sinédrio derrotou Jesus III. As mulheres: discípulas verdadeiras D. RESUMO DA NARRATIVA DO DISCIPULADO (16,1-7) I. As mulheres e o jovem II. Terceiro chamado ao discipulado: a narrativa recomeça E. “QUAL É O SENTIDO DA RESSURREIÇÃO?” (16,8) I. Silêncio e medo: como responderemos? II. Finais apócrifos: reflexão sobre as “reedições imperiais” F. PERDENDO A VIDA PARA SALVÁ-LA: A ESTRATÉGIA SOCIOLITERÁRIA DE MARCOS POR MEIO DE 16,8 I. Discurso II. Significado QUARTA PARTE: MARCOS E O DISCIPULADO RADICAL Capítulo 14: SUMÁRIO: A IDEOLOGIA E A ESTRATÉGIA SOCIAL DA COMU NIDADE DE MARCOS A. SITUAÇÃO HISTÓRICA DA PRODUÇÃO DE MARCOS I. O discurso apocalíptico e a tendência da sociologia de seita II. Será o Evangelho de Marcos apologia da destruição do Templo? III. “O irmão entregará o irmão”: Marcos e a guerra IV. Teria a comunidade de Marcos sua base perto de Cafarnaum? B. O EVANGELHO COMO CRÍTICA SOCIOPOLÍTICA I. “Fim para os administradores”: a classe dirigente judaica II. “Meu nome é Legião”: o imperialismo romano III. “Negando os mandamentos de Deus”: os movimentos de reforma IV. Crucificado entre dois bandidos: os rebeldes C. O EVANGELHO COMO CRÍTICA SOCIOECONÔMICA I. “Contra a lei fazer o bem?”: a ordem simbólica II. “Devorando a propriedade das viúvas”: economia política 511 511 513 515 517 517 520 523 523 525 527 527 529 531 535 539 539 544 546 548 550 555 D. NOVA PRÁTICA POLÍTICA I. “Não seja assim entre vós”: política construtiva II. “Senhor do sábado e da casa”: política subversiva III. “Tomai vossa cruz”: a não-violência revolucionária E. NOVA PRÁTICA SOCIOECONÔMICA I. “Um pão”: solidariedade com os pobres e com os gentios II. “Todos comeram e ficaram satisfeitos”: a comunidade e a nova ordem econômica e simbólica F. QUEM ERA JESUS DE NAZARÉ? OBSERVAÇÕES PARA UMA CRISTOLOGIA POLÍTICA I. Profeta, sacerdote e rei na tradição do radicalismo bíblico II. O Humano: o caminho para novo céu e nova terra POSFÁCIO: SOBRE A CONTINUAÇÃO DA NARRATIVA DO RADICALISMO BÍBLICO A. TÚMULO VAZIO, NARRATIVA QUE JAMAIS TERMINA B. ARREPENDIMENTO C. RESISTÊNCIA D. DISCIPULADO E FRACASSO: “TODOS VÓS ME ABANDONAREIS” APÊNDICE: FAZENDO O EVANGELHO DESCER À TERRA: REVISÃO DAS LEITURAS SOCIOPOLÍTICAS DA NARRATIVA DE JESUS A. HERMENÊUTICA POLÍTICA TEMÁTICA B. HERMENÊUTICA DA LIBERTAÇÃO C. EXEGESE SOCIOLÓGICA D. A CRÍTICA MATERIALISTA E. AVALIAÇÃO: PORVENTURA A CRUZ É UMA PEDRA DE TRO PEÇO PARA A HERMENÊUTICA POLÍTICA? BIBLIOGRAFIA CHED MYERS O EVANGELHO DE SÃO MARCOS li EDIÇÕES PAULINAS Título original Binding the strong man A Political Reading o f Mark’s Story o f Jesus © Orbis Books, Maryknoll, Nova Iorque, 1988 Tradução I.F.L. Ferreira Revisão H. Dalbosco ep EDIÇOES PAULINASTELEX (11) 39464 (PSSP BR) FAX (011) 575-7403 Rua Dr. Pinto Ferraz, 183 04117-040 São Paulo - SP End. Telegr.: PAULINOS © EDIÇÕES PAULINAS — SÃO PAULO, 1992 ISBN 85-05-01292-5 ISBN 0-88344-621-9 (ed. original) A Phil, Liz e Ladon Para cada 10.000 palavras há um fato voando por algum lugar de cabeça para baixo, não nascido. As palavras não podem fazê-lo acontecer. Podem somente empurrá-lo para longe como indesejado. Ainda Criança, e Criança necessária . . a não ser que você volte para minhas mãos E por que m inhas mãos afinal dé contas? Sua época, seus gritos são a pele que as revestem, são a razão de elas existirem. Daniel Berrigan APRESENTAÇÃO Bem antes de sua publicação, este trabalho de Ched Myers começou a acumular os dados de uma história interessante. Da costa ocidental à oriental, seção por seção, revisto repetidas vezes, o manuscrito foi percorrendo o seu caminho. Aqui de fato, rapidamente concordamos, estava um estudo escriturístico que merecia ser examinado. Ele requeria (e em breve conseguiu receber) uma análise séria: leitura, meditação, discussão apaixonada. Por meio de Myers, Marcos falou, como dizem os Quakers, à nossa condição. Falou de maneira mais forte àqueles cuja condição parecia extrema mente parecida com a das comunidades primitivas: aqueles para os quais, segundo nos disseram, o Evangelho de Marcos foi escrito primeiro. Os que entre nós tiveram a felicidade de chegar ao manuscrito de Myers, aí viram nossas vidas sendo ao mesmo tempo honradas e mencionadas. Durante algum tempo nós (como o Marcos de Myers; na verdade, como o Jesus de Marcos) estivemos fazendo nossas experiências em terreno firme. Muitos de nós, que nos reuníamos para retiros e estudo com uma versão corrente de Amarrar o homem forte* na mão, estávamos atraindo a ira dos deuses titulares: os demônios que guardam os limites impassíveis do império, os pastos de multicorporações e os santuários nucleares. Tais cristãos, que se reúnem para tomar fôlego, rezar e reconfortar-se, tendem a encarar-nos como uma espécie de ‘pessoas ocupadas’, que lutam para libertar-se do jugo e do lastro da cultura. E é então que, por meio de Myers, encontramos os cristãos primitivos que formam a comunidade de Marcos. Pode-se ver isto em suas faces, nas faces desses filhos de um Deus máximo, o Deus dos rejeitados, dos renegados e dos resistentes. O olhar deles se voltava para um campo emocional amplo, que ia desde algo próximo do desespero até a determinação, até — de vez em quando — algo próximo ao êxtase. * Este é o título original deste livro (nota do Editor). Sua determinação era uma “maneira” diferente. Diferente em relação ao trabalho e à sua natureza e retribuições, em relação aos filhos e às mulheres, em relação aos direitos dos seres humanos— e ao desprezo em nada universal e oficial de tais direitos. Uma visão muitíssimo diferente da lei; especialmente das leis cujo objetivo evidente era o de manter as pessoas na ignorância, no temor ou na indiferença. O evangelho de são Marcos 8 Os instrumentos e as armas do “Homem Forte” eram uma espécie de ladainha demoníaca da cultura. Os cristãos conheciam-na de cor; concupis cência e violência sancionada, o orgulho, a força, o ataque, a luta, que constituem, todos eles, formas da raiva (em vários sentidos). E os cristãos se recusavam a entoar a ladainha. Não faziam seu gênero as agressões, as arrogâncias, as coações; nem o fascismo brando ou duro do principal método empregado pela Igreja e pelo Estado, tal como era geralmen te praticado. Para eles tinha pouca importância o fato de que a cultura, na realidade, se havia posicionado em seu favor. (Ou, pelo menos, era o que lhes assegu ravam freqüentemente o sacerdote e os pais.) Você tentava escapar, mas não adiantava; a coisa estava presente. E qualquer demônio (ou um abrigo municipal, ou um arquivo de documentos, ou um hospital de doentes mentais, ou um instituto médico legal) se apropriava dos que ocupavam os últimos lugares. Eram um “estilo” oriundo da selva, que atingia direto a jugular. Ele agia de frente, de cabeça erguida; era a clássica “maneira” americana usada no mundo. Bem, por que não correr com ele? Você tinha “classe”, nasceu para ter posses, para trabalhar num mercado por vezes fascinante, para ser dono de rebanho numerosíssimo. Nasceu para o empreendimento livre, para a “segu rança” nuclear e o nocivo mito político. Nasceu, se é que falavam a verdade, para viver e morrer, predestinado a seu lugar na sepultura; como metrônomos, computadores, parasitas bem- educados e impecáveis. Chamavam a isso destino. E em grande escala, a escala imperial, destino evidente. Mas algo mais — Alguém — se intrometeu. Vocação. Alguns dos incômodos marcanos, prosseguiram, “desclassificados”no sentido marxista. Eles não podiam participar das idiotices sociais, sexuais ou econômicas vigentes, incompatíveis com a paixão, a imaginação, a fé, o trabalho com as próprias mãos. 9 Apresentação Começando nos dias dos direitos civis dos últimos anos de 50, os cristãos interromperam o modelo vigente. Romperam com as leis iníquas e injustas. Compareceram ao tribunal, foram para a cadeia. E muitos foram embora com seus próprios pés intemperantemente buscando algo mais. Se havia falta a ser encontrada neles (eles encontravam uma porção de faltas em si mesmos), ela vinha à tona inevitavelmente quando o tempo mostrava a verdadeira face das coisas, assim como ficou evidente que a América, tendo aprendido pouco ou nada de Selma a Hanói, continuava inclinada sobre suas perenes obsessões: ambição e violência. De fato, estas em breve estariam inseridas na política; alto crime em altos lugares. Ele chegou em casa. A resistência deveria ser o teor e o ritmo difíceis da própria vida. Será que estávamos preparados para isso? Não estávamos. Nossas disposições eram sérias. Quanto deveria durar a resistência, para mostrar-se perseverante e consistente nesta terra de Nid e Nod, de Maybe e M ananal Parecíamos deficientes decididos a participar de uma difícil competição atlética. O prêmio era grande; os meios para chegar a ele eram seriamente questionáveis. Como continuar o árduo compromisso, o longo trajeto rumo ao reino de Deus? Nossas necessidades poderiam ser imaginadas sob dupla imagem. Um mapa que nos indicaria, qual seta certeira, a direção das fontes. Mais importante do que as palavras é a necessidade de sabermos, viva e concreta- mente, de onde viemos, que símbolos, palavras, eventos, comunidades viveram o evangelho, em bons e maus tempos, desde o começo. E então vem a outra imagem. Precisávamos de um manual que tratasse com coragem: histórias, instrução, disciplina, reprovação, ironia, esperança, valentia no ramo; precisávamos da mão segura— vinda de outro tempo e lugar (mas não realmente outra) — de Alguém em quem pudéssemos confiar. Alguém que indicasse o caminho a ser percorrido. O manuscrito de Myers, meticuloso em conhecimentos e ousado em objetivo, surgiu entre nós. E as coisas nunca mais foram as mesmas. Que dádiva ele foi e é! Myers desempenha o papel de mediador de Marcos, mais ou menos como Marcos serviu de mediador de Jesus. Avaliar o manuscrito era como que entrar em clássico cenário de reconhecimento, pesado com ironia e esperança, ponderando a imaginação, iluminando lugares escuros, desafiando suposições. Encontramos nossos verdadeiros antepassados, aprendemos com eles e os escutamos. Respiramos o ar vigoroso de novos começos, fomos introduzidos no Caminho de Jesus, anunciado e vivido no meio de ideologias e frenesis conflitantes, do prurido que incita à colaboração e à violência. O que Jesus verificou nos primeiros discípulos, Marcos verificou com desconcertante exatidão em sua comunidade, cuja posição em relação à sociedade mostrou ser bem semelhante à dos primeiros discípulos. Como as nossas também. Isso equivale a dizer: uma comunidade debaixo do fogo. O evangelho de são Marcos 10 Sob o fogo nós certamente estávamos e estamos; mas quem pode descrever o fogo, quem consegue opor-se a ele, quem o controla? O fogo é a imagem mais próxima de nossa situação; ele arde, destrói e modifica à medida que destrói. A isca é mais profunda e mais sutil do que a decadência e as ruínas, do que a camada letal que fumega e murmura debaixo da fina crosta de cultura, sob a bonomia criminosa, sob as instalações nucleares, nas fronteiras cruel mente vigiadas, nos tribunais e nas prisões de lacaios. Para andarmos pela paisagem ígnea, tínhamos de ambas saber se nossa resistência era mera curiosidade ou perversidade (freqüentemente ela era estigmatizada como sendo ambas as coisas). Ou, então, tínhamos que saber se, desajeitados como muitas vezes éramos e bastante inclinados a olhar para trás, temendo e tremendo, ainda deveríamos ser qualificados como discípu los, em virtude de um resumo mais do que um relato. A cultura desceu pesada sobre tais aspirações. Durante as décadas anteriores, uma espécie de arranjo procusteano, às vezes sutil, às vezes brutalmente direto, foi posto em prática. Os cristãos que resistiam ao racismo e à guerra eram persuadidos a se “adaptarem”. O secularismo era extrema mente popular. As declarações de fé, quaisquer fossem as suas formas, eram encaradas como inoportunas, como impróprias. Uma “esquerda religiosa” e uma “esquerda católica”? Se isso fosse tu do, se os indícios correspondessem aos fatos, estaríamos realmente em dificuldades. Procusto e seu leito demonstraram ser um ardil, por sinal que um ardil tormentoso. Adequar-se à medida cultural significava morrer. As regras do jogo eram rigorosas e rígidas, de fato; havia poucas opções. Alguns que falavam ou agiam abertamente eram julgados extremamente, inspirados demais. Deviam levar um corte; somente assim, eles se adaptariam à situação de pigmeus da época. A cadeia ajudaria isso; também o exílio serviria. • Outros, segundo achavam, estavam infectados por uma modéstia incon veniente; precisavam ser persuadidos a assumir o disfarce do super-homem tecnológico. E assim se fez; eles foram destinados a se “adaptarem”, a aderirem à cultura; boa, sensível, sólida, pronta a pagar impostos, em suma: “desapareceram”. Eventualmente (éramos aprendizes lentos nessa escola sem compaixão), os cristãos chegaram ao ponto de compreender. Alguém desejava ser humano em uma época desumana? Se desejasse, jamais bastaria (se é que algum dia já bastou) descrever-se ou identificar-se como simplesmente americano, esconder ou deixar em segundo plano a própria fé (o adjetivo “cristão” era usado como apêndice, idéia posterior, questão de devoção pessoal; uma espécie de gramática do velhaco, palavra pronunciada com ar de vaga apologia difusa). A lição foi aprendida a duras penas. Precisamos ter à nossa disposição outros recursos bem diferentes do que a uniformidade torturante do cavalete. Os recursos deveriam ser mais antigos, menos questionáveis, mais solidamen te testados do que os tempos permitiam, ou iriam possivelmente permitir. Em época assim, o Evangelho de Marcos e os pontos de vista espantosos de Myers formaram, em feliz conjunção, um roteiro de vida. Muitos de nós hesitaríamos em designar o evento como provincial. E não vacilaríamos em captá-lo e assimilá-lo com todas as nossas forças. 11 Apresentação Ocorre-nos uma frase: o trabalho de Myers é marcado por “nova autoridade”. Da autoridade escriturística mais antiga havíamos aprendido algo nas universidades e nos seminários; ela mostrou ser de pouco auxílio no mundo em que devíamos viver, com fogo debaixo dos pés. Demasiado abstrata, demasiado especializada, cautelosa com os tempos e seus problemas, um jogo de astuciosos cheios de artifícios e deisolacionistas acadêmicos. O método despedaçava o texto, lidava com ele como se se tratasse de espécimem morto, virava-o de um lado para outro como se estivesse usando instrumento de dissecar. Palavras, palavras, palavras. A dedução era clara; na mão tinha-se um texto determinado, estrangeiro e indubitavelmente venerável. E havia outros textos, igualmente veneráveis, de origens pagãs. E será que havia uma diferença digna de nota — ainda que isto fosse percebido de modo apaixonado — entre o texto de Marcos e o texto de Cícero ou de Sófocles? E, se havia, para uma mente pormenorista, qual deveria ser a diferença? Poderia ser questão de fé, de estilo inconfundível (por vezes eloqüente) no mundo de então, daquele “caminho” que não devia ser confundido com nenhum outro, quer na direção, quer na fonte ou no fim? Causaria porventura horror esse assunto desagradável da cruz? Tais perguntas muitas vezes eram deixadas de lado.' O texto evangélico era cuidadosamente percorrido, honrado pela serenidade. Suas palavras deviam penetrar na vida,despertando este ou aquele estudante. Mas todos esses problemas ou eventos estavam fora do objetivo e do alcance da aula, do estudo, do método, do campo de trabalho e... do inevitável dia da avaliação — o exame. Como sofríamos com tais professores! Alguns considerariam uma expressão de fé ou de compromisso ardoroso ou de penetração do texto na vida como um ramo de polidez acadêmica, que devia ser levado em conta, apesar de ignorado, de acordo com o código dos funcionários do clube ou do colégio universitário. Os copistas não tinham oportunidades, ou encontravam muito poucas, as oportunidades que quem ditava a verdade tirara, e que sofria por ter tirado. Mas a verdade mesmo, nunca aparecia. O evangelho de são Marcos 12 Myers soube aproveitar as oportunidades, teve a ousadia de se mostrar ardoroso, indignado, irônico ou amável. Renovou o sabor do texto, o gosto, retomou os pontos arriscados e a esperança de terminar. Introduziu o texto na vida, nas nossas vidas, onde de fato se supunha que o texto não encontraria guarida, sentir-se bem, ser valorizado. Seu método fez do Evangelho de Marcos verdadeiro marco no tempo. Marcos anunciava a “nova autoridade” de Jesus: profundo sentido de tradição e respeito igualmente vivo pela experiência. Tradição: uma comunidade voltada para sua fé— um drama e uma crise. Isto, segundo Marcos, era a vontade de Cristo, como tinha sido a vontade dos profetas antes dele. Como material inflamável seco, o anúncio colocou seu povo, cerceado como se achava, ocupado por poder inclemente, humilhado e destituído de poder, em situação e atitude eivadas de esperança. E a experiência — a vida com seus fatos — salienta as vítimas desconhe cidas, ignorada, anônimas. Quais delas? Quem fala pelos sem voz? Hoje o evangelho deve falar! Deve discernir as realidades e os subterfúgios políticos, deve proclamar a verdade desprezada, defender as vítimas, julgar os execu tores, responsabilizá-los. Ou fazemos isso, ou o evangelho é livro fechado e nós somos os traidores da esperança de Cristo. E então? Os principados, as armas, as mentiras, os ídolos e seus devotos, a força espúria do Homem Forte dizem tudo o que querem com suas próprias palavras. 13 Apresentação Em suas primeiras páginas Myers refere-se à suposição absurda de que os exegetas (ou qualquer outra pessoa) possam chegar ao Evangelho de Marcos como se se tratasse de tábula rasa, de mero conhecimento aplicado ao texto, como se não houvesse nenhum interesse, ardor, sensibilidade, econo mia ou gênero interferindo ou precisando ser levado em conta. A suposição não é de todo inútil; de fato, ela dita o método. Os exegetas se tomam uma espécie de “repórteres objetivos”. Estamos apenas começando a ver, principalmente por intermédio de teólogos e de estudiosos do Terceiro Mundo, não só o absurdo, mas ainda a arrogância que está por baixo da suposição de “objetividade”. Enquanto isso, pesadas sugestões e fatos mais pesados ainda, realidades tais como machismo, capitalismo, racismo, pressionaram a exegese, de um modo aqui, de outro modo acolá, em todo caso imprimindo-lhe colorido e tendência. Em compensação, como Myers salienta, a exegese bíblica, corretamente entendida, deve muito e com razão à vida: à sua fúria e injustiça, às suas divisões e à sua política, às suas loucuras e aos seus crimes. Evidentemente, Myers imprime ao texto sua própria tendência; o autor mostra-se intensamente interessado pelo texto. A “tendência”, no seu caso, resume-se em uma análise atenta da política de Jesus; esse Caminho de desafio, amor, coragem, em face dos poderes terrenos que no seu tempo e no nosso arruinam o mundo e legalizam o alto crime. A autoridade iníqua, sem lei e espúria, deve ser deposta do seu trono ilegítimo; a justiça deve ser entronizada. Esta é a obra de Jesus. Ela se realiza na comunidade de Jesus. Amor, desafio. Afeição instintiva às pessoas, mesmo aos poderes terrenos; desafio diante do poder que exercem, de seu mau funcionamento e de seus malefícios. Sentimos na obra de Myers um Jesus que seria considerado estranho por muitos biblistas do mundo ocidental. Mas dificilmente seria um Jesus novo para os que resistem em nos sos tempos, para as comunidades de base, para os cristãos obrigados a comparecer diante de tribunais e entrar em prisões aqui e em outros lugares, para esse nobre “terceiro mundo” que invadiu o nosso próprio mundo com seu sublime evangelho da libertação. Um Jesus representado na arte, na música, na poesia e na dança, nobres testemunhos e testamentos dos torturados e desaparecidos. Que olhar tem esse Jesus de Marcos! Olhar que ele lança sobre o mundo, em nossa direção também. Um olhar que leva muita coisa em consideração, que é a um tempo misericordioso e corajoso, que se dirige para onde ele quer, para o explorado, a mulher, a criança, o destituído de energia ou de entusiasmo e o herói; para a colheita, a moeda, o esconderijo, o escriba, os orgulhosos, os parasitas e traidores, os soldados e seus superiores cheios de vanglória. Um olhar que pousa com tranqüilidade sobre os poderes que o destruirão. O olhar pousa sobre os discípulos — até alimentando seu orgulho —; esses discípulos que compreendem as coisas pela metade, só sabem querer parcialmente, são corajosos nos bons momentos e medrosos e infantis nos difíceis. E Jesus sabe olhar também levando tudo isso em consideração. E depois o fim, ou o fim intencional, o declínio. Mas no terceiro dia... O evangelho de são Marcos 14 E que dizer do intervalo, do nosso tempo, esse longo e grande hiato entre o Agora e o Depois? É necessário e. justo dizermos que, por meio de Myers, conhecemos melhor nossa tarefa e talvez nos coloquemos diante dela com maior deter minação. Entrar na casa da morte amarra o Homem Forte em nome do Mais Forte! E retomar os bens roubados, emitindo o grito sufocado. Reclamar nosso mundo em nome de Mestre bem diferente. Porque a esperança renovou este mundo na gratidão, para “a beleza, a coragem e a ação”. Daniel Berrigan PREFÁCIO Este livro situa-se dentro de uma tradição norte-americana ainda jovem, que surgiu em fins dos anos 70 sob a inspiração e a orientação de Norman Gottwald, estudioso da Bíblia hebraica. Esta nova forma de estudar a Bíblia tem sido designada de maneira variada como “hermenêutica política”, “soci ologia da Bíblia”, “leitura da libertação na escritura”. Gottwald resumiu a questão assim: Esforço fundamental para conectar entre si aspectos do estudo da Bíblia que foram deixados de lado e tratados como não relacionados entre si, até como antagônicos, na academia e nas igrejas. [...] Muitas cisões gritantes que atualmente separam os diversos aspectos integrais da hermenêutica política e social podem e devem ser solidamente ligados entre si pela reflexão crítica e pela prática [1983: 2]. Amarrar o homem forte* esforça-se por prosseguir essa tradição, levando avante a tarefa de “estabelecer pontes” na leitura do Evangelho de Marcos. Gottwald identificou as maiores cisões ou “abismos” como sendo os existentes entre (1) pensamento e prática; (2) estudo bíblico acadêmico e estudo popular da Bíblia; (3) religião e o resto da vida; (4) o passado como “história morta” e o presente como “vida real”. Quanto ao primeiro abismo, este livro se mantém à distância dos comentários acadêmicos em seu compro misso fundamental com prática contemporânea de disciplina radical, e do lugar do Evangelho de Marcos em face dessa prática. Aceito o axioma da teologia da libertação de que a prática deve colocar-se de ambos os lados da reflexão. Ao adotar o modelo do “círculo hermenêutico” (abaixo, 1,A), explicitei a minha posição com referência a graves questões de nosso tempo. Esses recursos constituem as “lentes” através das quais o texto de Marcos é lido; o texto, por seu turno, responde ao nosso esforço com perguntas extraídas dele próprio e que perturbam. Desejo encarar seriamente, como diz Karl Barth, fidelidade à Bíblia e ao jornal, àPalavra e ao mundo. Compensar o segundo abismo pareceu-me tarefa mais difícil. Este livro situa-se na metade do caminho entre campos profundamente alienados da exegese bíblica profissional e o estudo “leigo” da Bíblia. Procedi com plena * O Autor está comentando o título do texto original (nota do Editor). consciência de que muitos no último setor acharão este livro demasiado difícil, ao passo que alguns do primeiro setor deixá-lo-ão de lado, julgando- o insuficientemente sereno, matizado ou sofisticado. Mas o campo da interpretação bíblica passou a ser tão técnico que o leitor médio, não familiarizado com a literatura em curso, rapidamente pode sentir-se desani mado. A colaboração, por sua vez, renunciou à sua responsabilidade de tomar a Bíblia mais inteligível e não menos. E verdade que esses textos antigos são artefatos culturais, que não podem ser interpretados cuidadosa e atentamente sem instrumentos históricos e críticos. No entanto, como escritura, eles não são meramente artefatos, porque continuam a moldar o mundo como documentos de ideologia e de prática vivas. Além do mais, a Bíblia se considera pertencente ao povo de Deus, e não aos exegetas; o próprio Marcos reserva sua crítica mais acerba para as classes dos escribas. Isso, porém, não nos autoriza simplesmente a buscar novos caminhos para extrair do texto a “importância” imediata. Nós, norte-americanos, somos particularmente suscetíveis à propensão de nos sa cultura, saturada dos elementos transmitidos pelos meios de comuni cação, para a gratificação imediata. As pessoas deveriam ser estimuladas a trabalhar mais com os difíceis problemas de interpretação bíblica de textos (abaixo, 1,B). Por outro lado, um trabalho exegético mais sério deveria dirigir-se mais a uma audiência popular do que ao mundo auto-referencial de estudos. Como ativista treinado na academia bíblica, tenho consciência da enorme riqueza de perspectivas que ali se acha encerrada, riqueza que os ativistas muitíssimas vezes se sentem contentes de desprezar. Isso apenas empobrece nossos esforços em favor da reflexão crítica, com a qual estamos firmemente comprometidos. Considero mal menor arriscarmo-nos a supersímplificar conceitos complexos mais importantes do que deixarmos o estudo popular por conta de lugares-comuns e de futilidades. Saber se fui bem sucedido nessa tentativa de arrombar a casa dos exegetas em benefício do povo é algo que certamente compete ao julgamento de ambas as partes, mas principalmente à última. Para superar a terceira dicotomia, recusei-me a adotar a distinção típica entre formas “religiosa” e “política” de discurso. A razão que me levou a isso foi dupla. Primeiro, a distinção é simplesmente inadequada ao estudo da antiguidade bíblica, como também da maioria das culturas pré-modemas (abaixo, 2, A, III). Segundo, em nossos tempos a relação estabelecida entre teologia e política teve como resultado apenas a domesticação da primeira e a sacralização da segunda. No contexto da América do Norte isso foi claramente articulado nos escritos de William Stringfellow. Meu livro se esforça por levar adiante sua grande obra de descoberta tanto do caráter político do discurso teológico, quanto do caráter teológico do discurso político. Com essa finalidade empreguei o conceito unificado de “ideologia”, O evangelho de são Marcos 16 criticamente examinado no sentido de manter suas funções sociais libertadoras e opressoras (abaixo, 1,C). A terceira cisão é a mais perigosa para estudantes da Bíblia. Um bom exemplo de como os sentidos históricos e presentes são rigorosamente separados entre si pode ser visto na maioria das interpretações da literatura bíblica apocalíptica. Desde que E. Kãsemann redescobriu que “o apocalipticismo é a mãe da teologia cristã”, sempre houve algo que pudesse assemelhar-se a renascimento no estudo histórico-crítico desse gênero antigo. Poucos exegetas, porém, arriscaram-se a fazer uma “tradução” da ideologia apocalíptica para a nossa própria época: “não resta a menor dúvida de que os velhos elementos apocalípticos foram negociados pelas várias versões da teologia moderna a taxas de câmbio bem altas” (Braaten, 1971:482). Os que se esforçam por ler a Bíblia politicamente (isto é, teólogos da libertação e intérpretes marxistas) também tenderam a evitar o discurso apocalíptico. Parece que os últimos que realmente tentam descobrir a importância da simbólica apocalíptica são os “aproveitadores” do destino, que espalham suas gratuitas previsões do futuro. Acredito que a ideologia da apocalíptica fornece a chave para cuidadosa leitura política de Marcos, como também da maior parte do Novo Testamento. A fim de traduzir essa ideologia em termos significativos para os leitores modernos, uso as noções gandhianas de ahimsa (não-violência), swaraj (libertação) e satyagraha (força-da-verdade) como chave hermenêutica “heurística” (explicada adiante, 2, A, III). Não se trata de uma abordagem inteiramente nova, pois já houve tentativas propostas tanto por exegetas bíblicos (ver as obras citadas por J. e A. Y. Collins) como por teólogos (ver as obras citadas por }. Douglass), embora ela vá bem além das tentativas anteriores de representar }esus como um revolucionário não-violento (por exemplo, Yoder, 1972; Trocmé, 1962; abaixo, Apêndice, A). Explicação completa dessa tese referente à ideologia apocalíptica e à não-violência, porém, bem como outras conexões hermenêuticas, a que aludo daqui para a frente, estão muito além do objetivo deste livro. Embora minha leitura de Marcos procure manter a visão sinótica do que o Evangelho significava em seu contexto sócio-histórico e do que ele significa no nosso, essas duas tarefas necessárias de interpretação não são idênticas, nem podem ser realizadas simultaneamente. Desejo que o leitor saiba que este comentário é apenas a primeira de um projeto em duas partes sobre Marcos e o discipulado radical. Ele se concentra na primeira tarefa, embora sem nunca afastar-se da perspectiva da seguinte. Minhas reflexões sobre a forma do chamado de Marcos ao discipulado radical em nosso contexto deve manter- se aqui geral e breve, por causa da extensão atemorizadora deste livro. Elas serão exploradas em profundidade no próximo volume, complementar deste, a segunda parte de minha leitura política de Marcos. Algumas palavras sobre o modo como os elementos deste comentário são distribuídos. Bem ou mal, se desejamos não só evitar, mas reverter o tipo 17 Prefácio de leituras simplistas da Bíblia, usadas por toda parte para justificar ideologias cristãs aberrantes, desde a Casa Branca até a Catedral de Cristal, precisamos saber lidar com as numerosas dificuldades decorrentes do emprego da metodologia. Os “simples crentes da Bíblia”, que descartam a necessidade da hermenêutica, são os intérpretes mais suspeitos de todos. Por outro lado, os estudos sociopolíticos da Bíblia hoje são notórios pela sua tendência de perturbar o leitor com o aparato metodológico (por exemplo, “teoria semiótica”, “modos de produção”, etc.), a ponto de impedir que ele vá além dos preliminares! Todavia, deixar de lado a metodologia também só serve para fazer o leitor ficar dependente do uso da palavra do autor para sua interpre tação, o que apenas perpetua uma hermenêutica de “dependência”. Evidentemente, o meu estudo não está isento desse problema. No capítulo 1 defino, de maneira popular, os termos e as características salientes da minha “estratégia de leitura socioliterária”. Um tratado pormenorizado das questões metodológicas existentes tomaria a leitura um tanto densa, especi almente para os que não se acham familiarizados com os campos da sociologia e da crítica literária. Acredito que minhas generalizações referentes ao “texto como discurso ideológico” serão suficientes para os objetivos da leitura de Marcos, onde estou ansioso por conquistar o leitor o mais rápido possível. Refiro-me a outras obras exegéticas, onde as questões foram tratadaslongamente, deixando os leitores livres para posteriores aprofundamentos se o desejarem. Espero que isso elimine um obstáculo psicológico a este comentário para os que se sentem menos interessados pela metodologia do que pelos seus frutos. Os leitores que acharem que a primeira parte caminha devagar poderão começar logo pelo comentário, que tem início na metade do capítulo 3, e depois voltar a recorrer ao material introdutório se e quando as questões referentes ao método o exigirem. A estratégia de leitura que proponho situa-se no limiar entre os erros em dupla da crítica bíblica contemporânea. No porto fica a Cila do despojamento que a crítica histórica realiza nos textos narrativos; a bordo está a Caribde da nova crítica literária, que separa o significado narrativo do mundo histórico (abaixo, 1, D). Insisto na necessidade de conservarmos tanto a integridade literária quanto a integridade sócio-histórica do texto inteiro. Chamo minha abordagem “socioliterária” para distingui-la de três escolas de crítica vigentes, cada uma das quais utilizo em parte, sem, porém, endossar plenamente nenhuma delas: a exegese sociológica, a narratologia e a crítica materialista (abaixo, 1, E, III). A extensão deste comentário é deidda às exigências de profundidade e de amplitude. Um método socioliterário estipula que a narrativa evangélica deve ser interpretada toda, não em partes isoladas. Como no caso da política hermenêutica, ela tendeu a situar-se nas generalizações exegéticas ou a limitar suas investigações a textos selecionados. Se a longa tarefa, porém, consiste em recuperar a Bíblia libertadora, precisamos apresentar comentário sistemático O evangelho de são Marcos 18 sobre os textos na sua inteireza, e não apenas sobre os que parecem à primeira vista favorecer uma leitura política! Este não é tanto um comentário versículo por versículo, mas antes uma exposição “episódio por episódio”, estudando o sentido de cada unidade literária e sua relação com as outras unidades e com a estratégia ideológica global de Marcos. Fiz todos os esforços possíveis para evitar ficar atolado em pormenores de exegese ou de estrutura narrativa— como é tão fácil acontecer — e fazer apologia antecipada dos lugares que o leitor pode achar inadequa damente esclerosados. Também tentei preservar estilo narrativo na minha redação própria, em vez dé usar a prosa usual desprovida de comentários. E mais: este é livro para estudo da Bíblia, destinado a ser trabalho que sirva de instrumento e de referência. É inútil dizer que ele deve ser lido com o texto de Marcos na mão, pois não o transcrevi aqui. Em minhas citações bíblicas mantenho-me muito próximo do texto da Revised Standard Version (RSV), exceto onde há indicação diferente; a RSV continua sendo o melhor texto para estudo em inglês. Incluí o grego transliterado quando necessário para clareza. Como há muitas obras valiosas sobre Marcos, procurei manter distância dos pontos de vista solidamente estabelecidos e concentrar-me, ao invés, em textos, temas ou características literárias que acredito serem subvalorizadas. Minha tese sobre o Evangelho como um todo é tão importante quanto o meu tratado de qualquer das partes específicas, e o leitor é convidado a debater o assunto em ambos os níveis. Por ser meu método eclético e interdisciplinar, ele tem toda a seqüência positiva ou negativa decorrente do seu tipo. Embora muitas das minhas conclusões sejam originais, extraí com liberdade muita coisa de vasta gama da literatura exegética tradicional, bem como dos campos sociológico e literário mais novos e recentes. Na verdade, uma das minhas intenções foi a de expor o leitor a algo da exegese excitante apresentada em estudos contemporâneos sobre Marcos. Para evitar encher as páginas com referências secundárias, decidi usar apenas muito poucas notas de rodapé. Preferi orientar os leitores para fontes que achei particularmente úteis, quan do se virem diante de assunto que desejem pesquisar mais profundamente. Tenho a esperança de que este comentário possa incentivar trabalhos posteriores seguindo linhas similares, sobre Marcos ou outros textos bíblicos. Mas, acima de tudo, ele é oferecido, como o próprio Evangelho o é, às comunidades de discípulos — ainda que desanimadas e cansadas — como parte de nossa pesquisa constante em busca de orientação e de esperança renovadas em nossa luta para seguir o caminho de Jesus em épocas difíceis. Uma verdadeira leitura de Marcos nos compele a chegarmos a uma conclusão sobre a nossa fé e, com maior certeza, sobre a nossa falta de fé (Mc 9,24). Rezo para que este estudo possa colaborar para que Marcos fale e o leitor tenha “ouvidos para ouvir” a Boa Nova que promete inverter as estruturas de dominação de nosso mundo. 19 Prefácio AGRADECIMENTOS O Evangelho de Marcos foi escrito para e em benefício de um círculo de comunidades de discípulos. O mesmo se pode dizer deste livro. Ele é reflexão sobre a praxe real (não imaginada), que crescia durante uma década, organizando-se e agindo com irmãs e irmãos no meio do país e no meio do mundo, que lutava para discernir e encarnar um modo diferente de ser humano e cristão. O primeiro solo em que germinou o trabalho foi constituído de oito anos passados em uma comunidade em Berkeley, Califórnia, que recebeu o nome de Bartimeu, por causa do discípulo mendigo e cego de Marcos. O material, que eventualmente se transformou em Amarrar o homem forte, foi primeiro testado ali por meio do magistério e da pregação e, posteriormente, em outras comunidades. Esses lugares permanecem como o crisol mais importante. O método e grande parte da exegese utilizada para este estudo foram originalmente preparados para uma tese de mestrado na Graduate Theo logical Union. Desejo expressar a minha gratidão a diversos dos meus professores pela sua força e estímulo: a James Mclendon, que me ensinou teologia; William Herzog, que me introduziu na crítica literária da Bíblia; a Athol Gill, que fielmente tem ensinado Marcos a várias gerações de discípulos radicais; e, especialmente, a Norman Gottwald, que, além de ser pioneiro no campo da hermenêutica sócio-política, é modelo do “exegeta do povo” e a chave que sustentou este projeto. Evidentemente, esses amigos não têm responsabilidade por alguns erros de julgamento ou de exegese que possam ser encontrados aqui. Este manuscrito tomou forma dentro do espaço de três anos e de dois continentes depois que deixei Berkeley. Para mim fói tempo de itinerância, de reflexão, de autoconfronto, de cura. Como dizia Jung, “o caminho para a plenitude é feito de retornos momentâneos e de voltas erradas”. Diversas comunidades me ajudaram ao longo do caminho com sua hospitalidade e apoio. Na costa oriental dos Estados Unidos, Sojourners em Washington, D.C.; Jonah House em Baltimore; e a Convenant Peace Community em New Haven. Na costa oriental australiana, House o f the Gentle Bunyip em Melboume; Avalon Baptist Peace Memorial Church em Sydney; e a House ofFreedom em Brisbane. Parte considerável da redação foi feita na Califórnia meridional (na realidadé o seu tecido estrutural e ainda as suas raízes), onde recebi apoio emocional e financeiro profundamente apreciado de meus pais e da família Spurgin. Muitos habitantes das ilhas do Pacífico entraram neste livro sem o conhecer: Juliano, Darlene, Romano, Hilda, o Revdo. Welepane e, princi palmente, o velho homem Kabokal, que nunca o lerá, mas cujas palavras que embalaram a noite da Semana Santa de 1985 permanecem profundamente dentro de mim. Inúmeros outros que lutaram pela justiça e pela paz no mundo e pela fidelidade ao evangelho contribuíram para o que há de valioso neste livro. Como Siddhartha à margem do rio, vejo as faces de muitas pessoas queridas passando: John e Carol, Sandy, Jeanette, Libby, George e Jocelyn, Chris, Skip e Margaret, Katy e Dean, Dan, Bill e Jeanie, Jim e Joyce, Danny, Gene e Faith, Richard, Neil e Denise, Scott, Bob e Janet, Giff,Jim e Shelly, todos os bons amigos das comunidades de vida do Atlântico e do Pacífico... e sobretudo Maggi, minha companhia na estrada percorrida durante todos esse anos. Embora seus lábios não possam repetir agora todas as alegrias e todos os sofrimentos [...] continuem sonhando, suaves sonhadores. [...] Peter Campbell As palavras não são o caminho para a libertação. Se este estudo pode oferecer algum esclarecimento ou inspiração, ele quer fazê-lo em benefício dos resistentes não-violentos atualmente na prisão por causa do seu testemunho contra o Golias imperial. “Tomemo-nos o vento que desvia a tempestade iminente!” (Bemard Narakobi). Amarrar o homem forte é dedicado a três pessoas que estiveram comigo durante uma manhã fria no Pentágono, no Dia de Ação de Graças de 1976, um momento para o qual eu me volto encarando-o como meu segundo chamado ao discipulado. Elas me ajudaram, e continuam ajudando-me, com esse longo e permanente catecismo da realidade, em que a verdade da América imperialista, com sua vasta desigualdade entre ricos e pobres, sua permanente economia de guerra e seu racismo institucionalizado, é posta às claras. A Phil Berrigan e a Liz McCallister agradeço o fato de haverem com suas vidas analisado criticamente o sentido do radicalismo apocalíptico em nossos dias. E quanto a Ladon Sheats, que delicadamente me chamou (como chamou muitos outros) para seguir Jesus, eu, como Pedro, me arrependi e chorei por causa da minha traição e da de meus companheiros. Bem, amigos, pelo seu discipulado continuo a avaliar o meu próprio. 21 Agradecimentos ABREVIATURAS A. M. Assunção de Moisés Ant. Flávio Josefo, Antiguidades judaicas BibTheoBul Biblical Theology Bulletin BJRL Bulletin o f the John Rylands Library CBQ Catholic Biblical Quarterly HTR Harvard Theological Review JAAR Journal o f the American Academy o f Religion JBL Journal o f Biblical Literature JSNT Journal for the Study o f the New Testament JSOT Journal for the Study o f the Old Testament JSSR Journal for the Scientific Study o f Religion LXX Setenta (tradução grega da Bíblia Hebraica) NedTheoTijd Nederlands Theologisch Tijdschrift NovTest Novum Testamentum NTS New Testament Studies SBL Society o f Biblical Literature TDNT Theological Dictionary o f the New Testament (10 volumes. G. Kittel e G. Friedrich, editores; Grand Rapids: Eerdmans) TheoZeit Theologische Zeitschrift Guerra Flávio Josefo, Guerra judaica ZAW Zeitschrift für die Alttestamentliche Wissenschaft ZDPV Zeitschrift des Deutschen Palästina-Vereins ZeitNTWiss Zeitschrift für die Neutestamentliche Wissenschaft PRIMEIRA PARTE TEXTO E CONTEXTO CAPÍTULO 1 UMA POSIÇÃO E UMA ESTRATÉGIA DE LEITURA PARA MARCOS Parece-me que a hermenêutica é animada por esta dupla motivação: disposição para suspeitar, disposição para escutar; propósito de rigor, propósito de obediência. Em nossos tempos ainda não conseguimos afastar de todo os ídolos e simplesmente começamos a escutar os sím bolos. Paul Ricoeur (1970: 27) Durante a campanha presidencial de 1984 nos Estados Unidos, Ronald Reagan repetia freqüentemente sua singular interpretação do momento histórico: “A América está mal”, afirmava ele, “e vem recuperando-se”. A estratégia da administração adotada era simples: alimentar o povo e a imprensa igualmente crédula com uma dieta firme de “festivas” garantias sobre a unção divina da América para a dominação do mundo e, desdenho samente, afastar toda evidência social e política em contrário. Ficava claro (mais uma vez) que Reagan havia identificado e estava explorando com sucesso o sentimento dessa parte significativa do eleitorado ansiosa por suprimir as contradições crescentes do império. Havia evidentemente alguns que constituíam raras exceções às deter minações do presidente. Durante as duas últimas semanas da campanha, alguns deles se reuniam diariamente fora da Casa Branca para registrar sua discordância e dissidência. Eles, como o sr. Reagan, escolhiam a linguagem da metáfora e do símbolo, só que a deles contrastava grandemente com a do candidato à presidência. Alguns instalaram um acampamento no Lafayette Park, ao longo da rua desde a Casa Branca, para dramatizar a realidade das classes burguesas dos pobres sem teto. Outros jejuavam, como recordação pública dos milhões de pessoas que morrem de fome como resultado direto ou indireto da preferência ardorosa da administração por “bombas em detrimento de pão”. E ainda outros entravam todo dia nos- jardins da Casa Branca, derramando sangue no pórtico e, em seguida, ajoelhando-se e rezando. Citando as escrituras judaicas, insistiam em dizer que o sangue dos inocentes, vítimas dos policiais de Reagan desde a América Central até a África do Sul e a Coréia do Sul, estava clamando por meio dessas pilastras brancas e limpas. O evangelho de são Marcos 26 Mas as palavras suaves pronunciadas pelo presidente com cuidado abrandavam as imagens do orgulho imperial e a piedade prevalecia: ele foi reconduzido ao cargo para segundo período. Os que protestavam, por causa das perturbações causadas, foram jogados na prisão. Mas o contexto de metáforas arrancadas e espalhadas pelo chão dos jardins da Casa Branca na tarde do dia da eleição em 1984 representa fenômeno que ocupará o lugar central deste livro: era uma “guerra de mitos”. O evangelista Marcos também se alistou na guerra de mitos em seus dias; ele o faz escrevendo seu Evangelho, recontando a história de Jesus de Nazaré e de sua luta com os “poderes” da Palestina Romana. Hoje em dia, a maneira como interpretamos esse Evangelho depende de nossa leitura e de nosso compromisso em face da guerra de mitos que ainda prossegue. 1. A. POR QUE UMA LEITURA POLÍTICA? I. O círculo hermenêutico Qualquer estudo sério de texto bíblico deve começar com discussão de “hermêneutica”. Este termo, como a maioria do vocabulário técnico dos teólogos e filósofos profissionais, intimida os leitores leigos. Ele se refere à arte (ou “ciência”) da interpretação, principalmente de textos escritos. Nenhum texto “fala por si mesmo”, argumenta Ricoeur; ele é vulnerável, dependente de intérprete para reconstituir a sua voz: O discurso escrito não pode ser “resgatado” por todos os processos mediante os quais o discurso falado se sustenta para ser compreendido: entonação, pronúncia, mímica, gestos. [...] Por conseguinte, somente o sentido “resgata” o sentido, sem a contribuição da presença física e psicológica do autor. Mas dizer que o sentido resgata o sentido equivale a dizer que somente a interpretação é o “remédio” [1977: 320]. Obviamente, um texto elaborado em uma época, local e cultura muito distante do tempo, lugar e cultura do intérprete— como é o caso do Evangelho de Marcos — é muito mais vulnerável. Suposto isso, a etimologia de “hermenêutica” é germânica. Hermes era o “mensageiro dos deuses” no panteão grego; é fácil percebermos por que do nome dele proveio a palavra “intérprete”. No entanto, Hermes também era o deus protetor da invenção, da astúcia e do furto (Kealy, 1982: 236). A lição para os possíveis exegetas é evidente: a tarefa crítica de restauração muito facilmente pode transformar-se em roubaria\ É com bastante razão, pois que a hermenêutica contemporânea está preocupada com a “suspeita”, com a “desconfiança”. Na crítica histórica, a suspeita hermenêutica significou a tarefa de criar distância crítica entre o texto e o intérprete. Os leitores tentam suspender suas suposições, de modo que o mundo e a voz do texto possam ser compreendidos o mais possível dentro de seus próprios termos lingüísticos, culturais e históricos. O problema aí é que essa distância crítica era entendida como desapego, tendo como meta a exposição do texto que se alega ser “objetiva”. Aí surge segunda suspeita, reconhecendo o fato de que não é possível nem desejável que o intérprete suspenda todos os preconceitos. Assim sendo, devemos também “interpretar o intérprete”, levando em consideração as tendências e pré-compreensõesque inevitavelmente modelam o “sentido” que ele ou ela tira do texto. Esta suspeita pode ser aplicada não só às idéias do intérprete, como igualmente à sua classe social e aos seus compromissos políticos no mundo real em que vive. Esse labirinto mais complicado de suspeita constitui o domínio da hermenêutica moderna. Afirmar que o sentido do texto é “óbvio” e que não exige qualquer interpretação, ou de que há quem o interprete em seguir tendências próprias são coisas que não merecem mais crédito. A hermenêutica assume seriamente o peso e a responsabilidade de reconhecer o intérprete como “tradutor”, tentando estabelecer ligação entre dois mundos muitíssimo diferentes. Além do mais, a interpretação é conversa entre o texto e o leitor, sem requerer desapego, mas incluindo envolvimento. Essa conversa muitas vezes é chamada “círculo hermenêutico”. Nossa situação de vida necessari amente determinará as perguntas que faremos sobre o texto e, portanto, influenciará fortemente o que ele diz e significa para nós. Ao mesmo tempo, o texto mantém sua integridade própria e nós devemos respeitá-la para nós e para o texto em si, tentando entrar no seu mundo o mais possível. Então, se estivermos escutando autenticamente o texto, permitiremos que ele influencie o modo como o entendemos e o que ele opera em nossa situação (ele nos “interpreta”). Enquanto o círculo partindo do contexto para o texto e voltando para o contexto não se completar, não podemos dizer que conseguimos interpretar verdadeiramente o texto. Recomendo a clara discussão de W. Wink sobre esse processo para posterior consideração (1973: 19ss). A teologia hermenêutica, como tantos outros aspectos do discurso teológico tradicional, foi desafiada pela teologia da libertação. O axioma de que a prática deve pregar a reflexão teológica, quando aplicada à interpretação bíblica, resulta numa versão um pouco diferente do círculo hermenêutico. De acordo com Juan Luis Segundo, o círculo começa quando nossas experiências de “prática cristã empenhada” nos levam à percepção crítica das ideologias dominantes e das estruturas sociais que moldam o mundo em que vivemos. Isso conduz à suspeita sobre as formas de exegese bíblica que prevalecem e suscita “perguntas profundas e enriquecedoras” que fazemos ao texto. Dessa interação emergimos com a interpretação mais viva da Bíblia (1986: 66). O resto deste capítulo traçará brevemente meus próprios passos em 27 Posição e estratégia tomo do círculo hermenêutico de Segundo, começando por reconhecer meu contexto histórico e meus compromissos, ou os dados a que me referirei como sendo a minha “posição de leitura” (abaixo, II, III). Elementos-chave que emergem dessa posição não são tratados na interpretação bíblica tradicional; o que é exigido é uma “estratégia de leitura” mais expressamente política (abaixo, B). Em seguida, discutirei brevemente a base para uma estratégia de leitura (abaixo, C, D), e enfatizarei meu método “socioliterário” alternativo (abaixo, E). O Capítulo 2 volta a investigar a “posição” sócio-histórica de Marcos, que nos prepara para a leitura do seu texto. Na vida real, naturalmente, este círculo é dinâmico: nossa prática nos conduz ao texto, nossa leitura nos orienta para a prática, etc. Este comentário está empenhado em estimular tal processo em todas as suas partes. II. Locus Imperium Os cristãos norte-americanos brancos, principalmente aqueles entrenós que pertencem às camadas privilegiadas da sociedade, precisam reconhecer o fato de que nossa posição de leitura diante do Evangelho de Marcos é o império, locus imperium. Pode ser verdade, como afirma o historiador W. A. Williams, que “as palavras império e imperialismo não gozam de boa acei tação nas mentes e nos corações da maioria dos americanos contemporâneos” (1981: VIII). Mas isso serve apenas para confirmar sua asserção de que “estamos somente começando nosso confronto com nossa história imperial, com nossa ética imperial e com nossa psicologia imperial” (ibidem: xi). Encarar essa verdade é tremendamente difícil para aqueles entre nós que, por questão de raça, sexo ou classe, são os “herdeiros de direito” do projeto imperial, ou a quem pelo menos foi prometida existência metropolitana confortável em troca de nossa conformidade política. Acima de tudo: Os americanos do século XX gostam do império pelas mesmas razões que levaram seus antepassados a favorecê-lo nos séculos XVIII e XIX. Ele lhes propicia oportunidades renováveis, riqueza e outros benefícios e satisfações, inclusive o sentimento psicológico de bem-estar e de poder [ibidem: 13]. No entanto, deixar de reconhecer o império significa ter que se agarrar cada vez mais desesperadamente a ilusões sobre nossa cultura (o que equivale a dizer: sobre nós mesmos). Somos, evidentemente, bem capazes de autodecepção, como ficou demonstrado pela vigorosa reabilitação de fanta sias imperiais na era Reagan. O custo humano de nossa desilusão, porém, oscila, pois restitui os mecanismos que mantêm a supremacia americana por toda parte e o “fascismo amistoso” no seu canto por mais criminoso seja (Gross, 1980). . O evangelho de são Marcos 28 / Não é minha intenção questionar o fato do império, mas, sim, afirmá-lo claramente como suposição. Concordo com W. A. Williams em que o “sentido irredutível” do império é o controle geopolítico das periferias pelo centro: Adam Smith disse uma vez por todas: a cidade aproveita e explora a vantagem estrutural sobre o campo. [...] A essência do imperialismo reside na dominação metropolitana da economia mais fraca (e de sua superestrutura política e social) para assegurar a extração de retribui ções econômicas [W. A. Williams, 1980: 7s]. A “metrópole” é, na realidade, uma imagem apropriada para a tecnocracia moderna que existe nos Estados Unidos hoje. Evidentemente, jamais devemos esquecer que a linha entre o centro e a periferia nunca é linha rigorosamente geográfica: há muitos dentro dos limites da metrópole que ainda estão nas periferias e uma minoria dos que se acham fora dela que goza do privilégio e do poder imperiais. Há uma coisa importante a propósito desta posição de leitura que o leitor do presente comentário precisa conservar em mente. O modelo “centro- periferia” é sob muitos aspectos apropriado também para o mundo, e por conseguinte para a posição, do próprio Marcos. O mundo mediterrâneo antigo era dominado pela lei de Roma imperial. No entanto, se eu leio situando-me no centro, Marcos escreveu da periferia palestina (ver abaixo, 2, A, I). Seu principal auditório era constituído por aqueles cujas vidas diárias suportavam o peso explorador do colonialismo, ao passo que os meus ouvintes são os que se acham em posição que lhes possibilita usufruir os privilégios do colonizador. Neste sentido, os teólogos da libertação do Terceiro Mundo, que hoje também escrevem partindo da perspectiva da periferia colonizada, têm a vantagem de certa “afinidade de posição” em sua leitura dos Evangelhos. Como Jon Sobrino escreve: Existe nitidamente notável semelhança entre a situação aqui na América Latina e a em que Jesus viveu [...] [entretanto, ela] não reside apenas nas condições objetivas de pobreza e exploração [...] [mas também] na experiência que se extrai da situação [1978: 12]. Embora muita coisa possa ser feita com esta afinidade— o imperialismo da antiguidade romana era bem diferente do imperialismo dos tempos modernos americanos (ver abaixo, 2, A, III) —, o fato é que os que se acham na periferia têm “olhos para ver” muitas coisas que nós, que estamos no centro, não vemos. Isto, no entanto, não nos exime da responsabilidade de ler o Evangelho e corresponder a ele. Com efeito, escutarmos a perspectiva da periferia (tanto de Marcos quanto de hoje) é fundamental para nosso despertar em face do chamado ao discipulado no locus imperium. 29 Posição e estratégia O evangelho de são Marcos III. D iscipulado radical 30 Os que fizeram a reflexão teológicade ponto vantajoso da periferia focalizaram adequadamente temas de libertação na história do êxodo (Gutiérrez, 1973:153ss). Nós que nos achamos no centro, porém, não temos outra opção senão a de “fazer teologia na casa do faraó” (Sõlle, 1979), ou seja, ficar do lado dos hebreus mesmo sendo cidadãos do Egito. Há significativa minoria de cristãos nos Estados Unidos e em outros países do Primeiro Mundo lutando para encontrar um estilo de vida e uma política que faça exatamente isso. Tal movimento também constitui a posição de onde leio Marcos. Os chamados cristãos de esquerda, como muitos outros dissidentes exagerados, surgiram em meio à crise de credibilidade da cultura imperial durante o movimento pelos direitos civis e a guerra na Indochina. Esse período trouxe decepção também com as igrejas — liberal e conservadora, católica e protestante — que, pelo seu silêncio em relação à guerra, sugeriam que talvez o evangelho fosse irrelevante para a história. Sentindo-se traídas, muitas pessoas sensíveis deixaram sua igreja, buscando novos e poderosos mitos oferecidos pela secularização e pela Nova Esquerda. Outras, apesar de igualmente desgostosas, preferiram procurar a fonte da traição examinando suas raízes (radix latino, daí “radical”). Para muitas havia a redescoberta de herança não-imperial dentro de suas próprias tradições: os luteranos en contraram Bonhoeffer, os batistas se lembraram dos anabatistas, os metodistas releram Wesley e os abolicionistas, os católicos descobriram Francisco e uma quantidade de mártires e santos, etc. (Gish, 1973). Houve muitos afluentes desse rio. Um dos mais importantes foi o testemunho da igreja no Terceiro Mundo e a teologia da libertação, que começou a ser percebida de maneira mais ampla na América do Norte em meados dos anos 70. Desafios às ideologias da igreja dominante também partiram de teologias feministas, negra, hispânica, pacífico-asiática e ameríndia. A década de 80 viu o começo da solidariedade real entre igrejas do centro e da periferia através de esforços populares como movimento de santuários, a campanha de libertação da África do Sul e movimentos contra a política dos Estados Unidos na América Central, na Coréia e nas Filipinas. Enquanto isso, •a participação cristã na paz doméstica e nos movimentos antinucleares fòriemèntê 'sê ampliava, bem como a prática da resistência não-violenta se âpTòfühdâva gradualmente. Acima de tijdo, porém, a fonte da renovação era a redescoberta da históriq flq evangelho sobre o Jesus eminentemente não-metropolitano, cuja voz ainda é ouvida ao longo dos tempos no chamado ao discipulado. É como Sobrino afirma: “O Acesso ao Cristo da fé só se dá mediante o nosso seguimento do Jesus histórico” (1978 : 305). Por isso, em meu livro e no volume que o acompanha refiro-me a esse movimento usando a rubrica “discipulado radical”. É rótulo que alguns no movimento adotaram e outros evitaram, principalmente agora que o termo “radical” está fora de moda na cultura popular. Mas esta' parece ser mais uma razão para adotá-lo, pois ele não está em voga, porém enraizado no evangelho não-imperial que sustentará o movimento. Não é minha intenção aqui apresentar um retrato do discipulado radical contemporâneo; isso pode ser encontrado alhures (por exemplo, Wallis, 1976; D. Brown, 1971)e eu explorá-lo-ei com certa profundidade em volume próximo que prossegue a segunda parte deste projeto. Aqui introduzirei simplesmente dois temas-chave que, acredito, caracterizariam nossa reflexão teológica e orientariam nossa prática no locus imperium. O primeiro é o ar rependimento, que para nós implica não só conversão do coração, mas ainda processo concreto de afastamento do império, de suas distrações e seduções, de sua maldade e iniqüidade. O segundo é a resistência, que supõe libertar- se da poderosa sedação de uma sociedade que recompensa a ignorância e vulgariza tudo o que é político, a fim de discernirmos e assumirmos posições concretas em nosso momento histórico, e de encontrarmos caminhos plenos de sentido para “impedir o progresso imperial”. Ambos os temas requerem compromisso com a não-violência, como forma pessoal e interpessoal de vida e como militância e prática política revolucionária. Esses temas servirão de pano de fundo para esta leitura de Marcos e voltarei a eles outra vez, ainda que brevemente, no meu Posfácio (ver também abaixo, 2, A, III). Por entendermos que a presente crise de império tem muito a ver com a organização do poder, com a distribuição de riqueza e com a praga global de militarismo, o discipulado radical necessariamente estuda a Bíblia con servando em mente questões sociais, políticas e econômicas. Que tem Marcos a dizer com referência às nossas lutas para superar o racismo? Ou no sentido de encontrarmos formas mais próximas de solidariedade com os pobres enquanto trabalhamos pela justiça? Ou para aprofundarmos nosso uso da ação não-violenta direta? Estas perguntas explicam por que podemos intitular este comentário de “leitura política”, apesar de saber que tal linguagem suscitará a suspeita da maioria dos norte-americanos. Há mais uma razão, porém: eu a uso com a finalidade de me distanciar dos tratados predominantes da interpretação bíblica nos círculos do Atlântico Norte. 1. B. POR QUE MARCOS? I. “Luta pela Bíblia” Propor uma leitura política é, de imediato, entrar em choque com todo um aspecto de escolas exegéticas. Há, por exemplo, os que ainda acreditam que os problemas cruciais da interpretação bíblica são os definidos pelas velhas discussões fundamentalistas-modemistas do fim do século XIX e do 31 Posição e estratégia início do século XX; eles ainda tentam defender uma doutrina da “autoridade bíblica” contra adversários seculares e liberais reais e imaginários. De qualquer maneira, muitos da direita e da esquerda teológicas divergiriam apenas filosoficamente, já que suas respectivas práticas políticas têm mais semelhanças do que diferenças com relação ao império. Da perspectiva do discipulado radical, a “autoridade bíblica” só tem sentido quando nos leva ao arrependimento e à resistência! Um rival bem-estabelecido é a tradição da hermenêutica teológica, tanto escolástica quanto pietista. Esta tradição expôs os Evangelhos de maneira análoga à busca de metais preciosos: o “ouro” do princípio teológico perene e universal ou dogma eclesial é cuidadosamente extraído do “minério” das peculiaridades históricas ou sociais, que são eliminadas. Distanciado da história e da prática, o kerygma transforma-se, assim, no domínio do pen samento abstrato ou da reflexão “espiritual”, isto é, no domínio dos teólogos\ Esta “ideologia teológica, que sempre está em ação na exegese burguesa” lê o texto tomando a “posição idealista de interioridade”, de preferência à “posição encarnada de exterioridade” (Belo, 1981 : 259). Com tal supressão do homem completo, concretamente o caráter sócio-histórico do Evangelho passa a ser nada menos do que a perpetuação da heresia docetista. Mais inseridas no cristianismo popular são as hermenêuticas do privatismo. Fundamentalistas e existencialistas modernos podem ser filoso ficamente antagônicos, mas compartilham de compromisso essencial com a discussão do texto sobre a busca, respectivamente, de “santidade” e de “existência autêntica” pelo indivíduo. A conversão é problema fundamen talmente individual. O “Salvador pessoal” do evangelismo americano é domesticado, não é mais o Senhor do mundo, mas é o Senhor dos nossos corações, para os quais o convidamos. A preocupação da teologia contem porânea com os estragos da Angst e com a busca de integridade pessoal é, de modo semelhante, captada pelo “labirinto da intersubjetividade” (Hunter, 1982: 40). Ambos refletem a tendência moderna a fugir de uma história crescentemente incerta e dirigida pelo conflito, para refugiar-se na auto- absorção ou no que Christopher Lasch chamou a “cultura do narcisismo” (1979). E inútil dizermos que os poderes políticos
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