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autor EMERSON SENA DA SILVEIRA 1ª edição SESES rio de janeiro 2018 CIÊNCIAS DA RELIGIÃO Sumário Prefácio 7 1. As Ciências da Religião 9 As Ciências da Religião 11 A origem do pensamento racional-crítico 20 Antecedentes das Ciências da Religião 26 Contexto sócio-histórico-científico das Ciências da Religião 28 O caráter científico das Ciências da Religião 31 2. Ciências da Religião e as definições de religião 41 Ciências da Religião 44 As definições substancialistas 55 As controvérsias sobre o termo religião (religio) 55 A substância ou essência da religião 58 As definições funcionalistas 61 As definições compreensivas 63 3. As Ciências da Religião e suas perspectivas/ subdisciplinas 67 As Ciências da Religião e suas perspectivas/subdisciplinas 69 Da crítica da religião à crítica das Ciências da Religião 74 As Ciências da Religião e o olhar fenomenológico (fenomenologia da religião) 79 O olhar histórico sobre a religião 80 História comparada das religiões/história das religiões 81 Sociologia e antropologia da religião 86 Psicologia da religião 89 Geografia da religião 91 4. As Ciências da Religião e suas principais escolas teóricas 97 Escolas fenomenológicas 98 Fenomenologia da religião compreensiva: a escola holandesa 100 A escola de Marburgo 101 Escolas históricas: entre a fenomenologia e a história 102 Escolas históricas no sentido estrito 103 A escola histórico-cultural de Viena 104 A escola Italiana de história das religiões 106 Escolas sociológicas 108 A escola sociológica francesa 109 A escola sociológica alemã 110 Escolas sociológicas contemporâneas 112 Escolas antropológicas 114 As primeiras escolas 115 O funcionalismo 115 O estruturalismo 116 O interpretativismo 118 O pós-modernismo 119 Escolas psicológicas 120 O início da psicologia científica 121 Escola norte-americana 122 A contribuição germânico-sueca 125 A psicologia da religião contemporânea 128 5. As Ciências da Religião e as linguagens da religião 133 A distinção entre gêneros de linguagens: religião, história e ciência 136 A religião como organização 139 Religião como linguagem do sagrado e como linguagem sagrada 141 Religião como linguagem geográfico-espacial 141 Religião como linguagem política: laicidade e secularização 142 A religião como linguagem artística: literatura e arte 146 Um pouco de literaturas sagradas 149 Conflitos entre religião e arte 152 Cinema e religião 154 A religião e as linguagens mercadológica, da mídia, do consumo e da política 156 Espiritualidade e pós-modernidade 157 7 Prefácio Prezados(as) alunos(as), A religião é um fenômeno fundamental no mundo de homens e mulheres. É uma presença poderosa, com profundos impactos em diversas áreas da vida social e individual. Estudar a religião é uma tarefa vital que compete a várias ciências e saberes, como a teologia, a sociologia, a história, a psicologia e a antropologia. Este livro, no entanto, destina-se a apresentar, de forma introdutória, as Ciências da Religião e sua tarefa acadêmica e científica: compreender as dinâmicas e estruturas da religião e suas relações com a sociedade e a cultura. Neste livro, você identifi- cará o processo de construção das Ciências da Religião como área ou campo de pesquisas sobre a religião ou religiões. Existem outras formas pelas quais esta área acadêmico-científica também é denominada, por exemplo, Estudos de Religião ou Religious Studies, Ciência da Religião, Ciências das Religiões ou Ciência das Religiões. Você irá apreciar a es- trutura disciplinar das Ciências da Religião e suas características. Por isso, você aprenderá um pouco sobre as principais escolas teóricas, os conceitos e as temá- ticas das Ciências da Religião e sua importância para a teologia e para as ciências sociais e humanas. Você verá, de forma introdutória, o quanto o estudo acadêmico e científico da religião é importante para superar preconceitos e intolerâncias que costumam estar enraizados e, assim, abrirá novos horizontes de compreensão sobre os fenô- menos religiosos. Você constatará que, em sua tarefa científica, as Ciências da Religião estudam a religião sem defender qualquer fé religiosa, pois esta escolha cabe a cada indi- víduo de forma privada. A postura das Ciências da Religião é a da “indiferença” diante de seu objeto de estudo (USARSKI, 2007). Você perceberá que essa postu- ra é uma técnica de observação científico-acadêmica que pode ser traduzida como “tomar distância” das crenças e das militâncias religiosas e políticas para poder apreciar e compreender melhor e mais amplamente o fenômeno da religião. Em outras palavras, não se fará catequese ou apologia de religião, mas uma introdução crítica sobre as ciências que estudam a religião. A única defesa que cabe fazer, nesse sentido, é a da análise crítica, independente e profunda, da religião ou das religiões. Você intui, por experiência, que quando se está muito envolvido com um jogo, não se consegue observar algumas estratégias que estão “debaixo de nosso nariz”, para usar uma expressão popular. Por outro lado, em sua intuição, constatará que é importante adquirir também sensibilidade e abertura, uma certa “empatia” para o fenômeno religioso, em sua totalidade, aprofundando, assim, as possibilidades de compreensão. As religiões, múltiplas em suas instituições, valores, preferências, símbolos, mitologias, crenças e práticas e em sua variedade de fieis, crentes ou adeptos, têm diante de si um importante desafio: buscar maior compreensão e maior tolerância. Se existe uma certeza na época atual é a de que a diversidade e pluralidade vieram para ficar. Por isso, é importante que você conheça as mais diferentes manifesta- ções religiosas e espirituais de um ponto de vista acadêmico e a partir de teorias e pesquisas desenvolvidas em centros de excelência e das melhores publicações sobre a temática. Com este livro, você terá um maior auxílio no desafio que as sociedades vi- vem hoje: a busca da convivência pacífica entre diferentes credos e valores e uma troca enriquecedora e produtiva, com o gerenciamento das identidades coletivas e individuais, religiosas e não religiosas. A mais urgente tarefa histórica dos tempos atuais, segundo o antropólogo Pierre Sanchis, é a paz social entre as religiões. Para alcançá-la é fundamental que você amplie sua compreensão e seu entendimento sobre o fenômeno religioso. Daí a importância das Ciências da Religião. Bons estudos! Emerson Sena da Silveira. Antropólogo e Doutor em Ciência da Religião pelo Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião - Universidade Federal de Juiz de Fora-MG. As Ciências da Religião 1 capítulo 1 • 10 As Ciências da Religião “Para definirmos religião é preciso que nos libertemos de toda ideia preconcebida”. “Se a filosofia e a ciência nasceram da religião, é que a própria religião começou por fazer as vezes de ciências e de filosofia”. Frases de Émile Durkheim, sociólogo francês, extraídas do livro As formas elementa- res da Vida Religiosa, lançado em 1912, em Paris, França. A religião, se você observar bem, sempre está nas manchetes dos jornais e é assunto frequente nas redes sociais. Por outro lado, o próprio conceito de religião ficou problematizado em nosso tempo. Como saber se isso ou aquilo, se esse cul- to ou esse mito é religião ou tem a ver com religiosidade? A impressão que você tem é que ela nunca saiu de cena, embora tenha se transformado, e muito, assim como as sociedades e o mundo. Para essas e outras perguntas este livro apresenta uma singela intenção: elaborar uma introdução ao vasto e fascinante mundo das Ciências da Religião. No entanto, como estudar a religião de forma acadêmica e científica? Nesse capítulo, você compreenderá como as Ciências da Religião escolheram por objeto a religião e como constituíram-se em área ou campo acadêmico-científico den- tro das Ciências Humanas e Sociais. Saberá também que essa história começou oficialmente no séculoXIX, em sua segunda metade, embora suas raízes estejam mergulhadas em séculos anteriores, o século XVIII. Você conhecerá como uma das raízes distantes das Ciências da Religião, e de todas as Ciências Humanas e Sociais, foi, sem dúvida, a filosofia grega e a maneira como ela distanciou-se do pensamento ou conhecimento mítico-mágico do mundo. Você conhecerá um pouco do contexto social, histórico e científico do nas- cimento das Ciências da Religião, as questões mais debatidas e também alguns fatos, conceitos e autores essenciais ao estudo acadêmico-científico da religião. Outra questão apresentada neste livro, e importante para seu conhecimento, é a da cientificidade das Ciências da Religião e a forma como a academia e a ciência produzem conhecimento específico para compreender os fenôme- nos religiosos. capítulo 1 • 11 OBJETIVOS • Compreender as origens das Ciências da Religião; • Identificar o caráter acadêmico-científico das Ciências da Religião; • Localizar fatos e contextos básicos para as Ciências da Religião. As Ciências da Religião Se você prestar atenção apenas na dimensão política das relações entre religião, Estado e poder, verá nesses últimos anos, eventos e fatos que repercutem até hoje, como a irrupção da República Islâmica do Irã, em 1979 e de movimentos de mi- litantes islâmicos noutras regiões do Oriente Médio (Arábia Saudita). Se você fizer uma pequena pesquisa em fontes históricas confiáveis, perceberá que nos anos 1980 ocorreu o engajamento da Direita Cristã e dos evangélicos fundamentalistas na política norte-americana – começando pela eleição de Ronald Reagan (1911-2004). Por essa época, a Teologia da Libertação, uma leitura sócio- -libertadora do Evangelho e da Bíblia, atingiu o auge no Brasil e na América Latina. O pentecostalismo expandiu-se muito nessa mesma região, no Sudeste Asiático e na África Subsaariana. Há também a resistência sindical e católica ao regime co- munista polonês e a ressurgência de identidades religiosas na Europa Oriental pós- comunista. Eram as igrejas orientais e ortodoxas cristãs, das quais pouco se ouve falar, mas que guardam muitas riquezas dos primórdios do cristianismo. Após 21 anos, a ditadura militar teve fim na ocasião do movimento das Diretas Já (1985), com a convocação da Assembleia Nacional Constituinte pelo então presidente José Sarney, em razão da morte de Tancredo Neves o qual foi eleito indiretamente por um Colégio Eleitoral. No processo de elaborar a nova Constituição, houve intensa presença das igrejas (católica e evangélicas) por meio de seus organismos, pastorais, movimentos ou de representantes eleitos pelo voto direto. As igrejas evangélicas, por exemplo, lideradas pela Assembleia de Deus, elegeram uma bancada com 18 deputados federais e mobilizaram-se em torno de temas como liberdade religiosa e temas morais. Também ocorreu a expansão das chamadas igrejas neopentecostais, com rituais de cura misturados a investimento nos meios de comunicação e marketing. capítulo 1 • 12 Em 1988, um ano antes da queda do Muro de Berlim, aconteceu a histórica visita do papa João Paulo II a Cuba, país socialista não democrático (segundo os parâmetros das democracias liberais-representativas ou social-democratas baseadas no Estado de Direitos), antecipando o fim da Guerra Fria e do mundo bipolar – dividido entre a antiga URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) e os EUA (Estados Unidos da América). Em 1989, com a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética, o mundo assistiu ao fim do comunismo como alternativa real e uma aceleração da globalização cultural e financeira que passou a trazer oportunidades e ameaças ao mesmo tempo. A religião permaneceu firme na cena histórica, mais uma vez. Nos anos 1990, se você fizer uma boa pesquisa, verá que outra série de fatos repercutiram assuntos ligados à religião, mesmo que de forma indireta. Em 1995, realizou-se o primeiro processo de clonagem bem-sucedido de um mamífero (ove- lha Dolly), colocando em pauta a questão da criação e da bioética. As polêmicas acirraram-se e surgiram os cientistas ateus que passaram a fazer militância com a ideia de “provar” a inexistência de Deus e/ou a inutilidade da religião. Essa militância ateísta, você poderia pensar, é uma “religião civil”, tal a maneira como defendem seus pontos de vista. Nessa década de 1990, a Igreja Universal do Reino de Deus e Igreja Renascer em Cristo compraram redes e programas de TV e rádio, marcando o avanço das igrejas pentecostais sobre o espaço público e as redes de comunicação social. Por esses anos, você observou que ocorreram terríveis guerras que opuseram cristãos ortodoxos e muçulmanos na antiga Iugoslávia. As minorias religiosas sofreram massacres que chocaram o mundo inteiro. Um deles foi o massacre cometido pelo exército sérvio da Bósnia, comandado pelo general Ratko Mladic na cidade de Srebrenica, em 1995, onde foram torturados e assassinados 8 mil muçulmanos. Entre meados dos anos 1990 e os anos 2000, os atentados terroristas colo- caram em evidência o radicalismo religioso em voga e desde essa época aos dias atuais, tornou-se um dos grandes desafios a ser enfrentado pelas religiões e pelos governos. Um radicalismo religioso que brotou em todas as grandes religiões mun- diais, cristãos, muçulmanos, budistas e hinduístas e que continua ainda hoje. Nos dias atuais, em Mianmar ou Birmânia, país asiático de maioria budista, você notará, se pesquisar um pouco nos jornais, a ocorrência da forte repressão con- tra a minoria étnica, linguística e religiosa muçulmana: os rohingyas ou ruaingás. Apesar de viverem durante muitas gerações nessa terra, o governo de Mianmar negou-lhes cidadania e impôs a migração em massa, fazendo milhares de famílias sofrerem muito. capítulo 1 • 13 As minorias, religiosas e não religiosas, entendidas em sentido socioantro pológico – grupos desprotegidos, sem poder ou com pouco poder político, eco- nômico, cultural ou social, dotados de uma identidade étnica, sexual, racial ou religiosa – são vulneráveis e, por isso, sofrem violências graves e persistentes. No Brasil, as minorias religiosas que mais sofrem com violência, perseguição e pre- conceito são as religiões afro-brasileiras, assim como os protestantes e evangélicos sofreram entre meados do século XIX até meados do século XX. Tenha em mente que o conceito de minoria sociológica é diferente do de mi- noria numérica e é definido por elementos positivos e negativos. Se os elementos negativos são propagados com força maior (senso comum), a minoria sofre as “con- sequências do preconceito” (ideias ou imagens depreciativas ou discriminatórias que antecedem reflexão racional, ponderada e inteligente) e aquilo que vira preconceito e piora, tornando-se, por exemplo, crimes previstos na legislação brasileira (e também na maioria dos países do mundo, em especial, no mundo ocidental) que são injúria racial (ofensa à dignidade de um indivíduo em função de sua raça ou etnia) e racis- mo (espalhar preconceito ou ódio a todo um grupo étnico). Isso é uma forma de censura à existência das minorias e ao seu modo de ser, o que lhes é prejudicial. Saiba que, em geral, as minorias reagem, buscando o orgulho da identidade para, assim, reverterem os conceitos. Caso não façam isso, seus membros começam a se enxergar (trazer para dentro de si) e se definir pelo preconceito, com consequências negativas dos pontos de vista morais, intelectuais e emocionais (violência interna, depressão, desestruturação etc.) para o grupo e para o indivíduo que pertence a esse grupamento. Não custa nada lembrar a você uma das maiores lições da Ciência Política sobre o regime democrático de Estado: a democracia não é a prevalência absoluta da vontade da maioria. Você pode se perguntar o que diferencia o regime demo- crático de direito de outros regimes políticos como a ditadura ou o totalitarismo (nazismo, fascismo italiano etc.). E a resposta é muito simples, a diferença é que osregimes democráticos respeitam e promovem os direitos das minorias étnicas, religiosas e socioculturais. Talvez você não tenha pensado com mais calma e se perguntado o que todas essas notícias e questões expressam. Esses exemplos demonstram a presença e a força da religião como crença, imagem, origem, metáfora, metonímia, compor- tamento e conhecimento. Para que você entenda tudo isso, é preciso que você se aprofunde nas Ciências da Religião e descubra os elementos indispensáveis para a boa formação acadêmica do teólogo, do sociólogo, do filósofo, do antropólogo, do psicólogo, do historiador, do geógrafo e outros. capítulo 1 • 14 CURIOSIDADE Dê uma navegada neste portal: <http://www.unicap.br/observatorio2/>, com acesso em: maio 2018. Ele se chama Observatório Transdisciplinar das Religiões, elaborado por um grupo de estudos da Universidade Católica de Pernambuco (Recife). Reúne imagens, notícias de congressos, simpósios e outras, fóruns e discussão, textos breves. Aproveite também para ler este texto, do professor e investigador em Ciências da Re- ligião da Universidade de Lisboa, Steffen Dix “O que significa o estudo das religiões: Uma ciência monolítica ou interdisciplinar?”, texto disponível em: <http://www.ics.ul.pt/publicacoes/workingpapers/wp2007/wp2007_1.pdf> Assista também a este pequeno vídeo, que explica a diferença entre mito e razão, dispo- nível em: <http://www.dailymotion.com/video/x8ia32>, com acesso em: maio 2018. Esse vídeo vai enriquecer e ampliar muito seu conhecimento acadêmico sobre as religiões. As Ciências da Religião têm suas origens em um século conturbado, violento, cheio de mudanças sociais, econômicas, culturais, religiosas, políticas e morais. Se pesquisar em bons livros de história e filosofia, você verá que nesse século nascem e se fortalecem importantes doutrinas filosóficas e científicas que deixarão suas marcas nas artes, nas religiões, nas sociedades e nas Ciências da Religião. Leia o que escreveram dois grandes pensadores desse século sobre seu tempo: “Tudo o que era sólido desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar friamente sua posição social e suas relações mútuas”. Se você pensou que era o século XX ou do XXI, enganou-se. É o século XIX. REFLEXÃO Os dois filósofos que cunharam a famosa expressão “Tudo que é sólido desmancha no ar” foram Karl Marx e Friedrich Engels no livreto O Manifesto Comunista, publicado em 1848. Apesar da linguagem polêmica e jornalística, esse texto inspirou muitos pensadores. O Manifesto Comunista fala do perpetuum mobile que a burguesia e o capitalismo impuseram ao mundo ocidental moderno, despindo todos os valores e relações sociais da aura de sagra- do. Rupturas e abalos se tornam constantes. Porém, o capitalismo e a sociedade da época de Marx e Engels não são mais os mesmos, mudaram, mas a dinâmica da aceleração parece ter permanecido. Fica como uma boa dica de leitura. capítulo 1 • 15 Entre 1875 e 1914, mais ou menos, nascem as primeiras cátedras universitá- rias dedicadas ao estudo exclusivo da religião ou das religiões. A religião passava a ser problematizada e ocupava uma nova posição, a de fenômeno a ser investigado e pensado, assim como se fazem com outros fenômenos sociais e humanos. Em outras palavras, as Ciências da Religião institucionalizaram-se, tornando-se parte de espaços universitários de pesquisa e ensino. Contudo, se você prestar atenção, é em nossa época que a religião, ou reli- giões, tornaram-se objetos de milhares de estudos e pesquisas por parte das mais variadas disciplinas e dos mais diversos métodos. Por isso, é importante conhecer as Ciências da Religião. ATENÇÃO Como ser um bom leitor? Note bem que o bom leitor não tem preconceitos em ler livros e textos considerados clássicos da área de humanas e sociais, literatura, arte etc. Karl Marx, Adam Smith, John Loc- ke, Thomas Hobbes, Charles Darwin, entre outros, são considerados clássicos. O bom leitor não possui preconceito em ler poesias, romances, best-sellers e outros. Ler é abrir novos mundos dentro de si. Mas, é preciso saber ler! Há dois modos de ler, um bom e outro ruim. Modo ruim. A leitura de “cabeça cheia” é um modo ruim, pois é ler com uma ideia ou frase pronta, na qual o leitor acredita à medida que lê. É o leitor ideológico, que impõe uma camisa de força ao texto por conta de preferências que ele mesmo não sabe de onde vieram. Nesse caso, não há vontade de ler, mas vontade de escutar o eco daquilo em que acredita. Esse leitor deseja confirmar sua tese e torna-se um “cabeça-dura”. Por isso, movimentos como abaixo-assinados para impedir um autor, pesquisador ou pensador de dar palestras, ou falar sobre seus livros mostra, na verdade, uma reunião de “cabeças- duras”, “não leitores” por convicção. E que triste é um movimento como este. Vários são os sinais do leitor cabeça-dura ou ideológico, portanto, leitor ruim: lei- tor-papagaio repete o tempo todo as mesmas palavras e ideias; leitor-pedra, rígido, não consegue ler autores e livros que pensam diferente daquilo que acha correto ou, pior, tudo que lê, é reduzido uma ideia ou palavra, em geral, pobre e repetitiva, monótona. capítulo 1 • 16 Bom modo. Ser um bom profissional, pesquisador, teólogo, cientista da religião ou so- ciólogo, por exemplo, é desenvolver as habilidades de um bom leitor. Como professor e pes- quisador, cansei de ouvir de algumas pessoas críticas a autores e livros e, quando procurei saber o porquê, descobri que muitas não sabiam o motivo, porque na verdade não leram o texto e o autor que criticam. Ora, como é possível criticar o que não se leu bem? A leitura de “cabeça vazia” é o melhor modo de ler porque consegue entender o que lê e vai além, compreendendo o texto sob a luz de outras perspectivas. É uma leitura produtiva porque o leitor lê e entende a ponto de ficar inspirado. É o leitor não ideológico, capaz de ampliar seu universo sem usar “óculos” que distorcem o que lê para confirmar suas verdades (“puxar a sardinha para sua brasa”). Se você deseja ser um bom profissional, não há outro caminho, senão ser um leitor não ideológico, aberto, tolerante, crítico, aumentando o vocabulário a cada leitura feita, aprendendo a cultivar e a refinar as próprias reflexões. Leia o que diz o cientista da religião Frank Usarski (2013, p. 51-52): o “status institucional da disciplina é, em parte, fruto de uma demanda pública no sentido da relevância prático-social da disciplina que, por sua vez, sanciona o apoio político e material por órgãos públicos. A essa demanda corresponde uma oferta da Ciência da Religião no sentido de produção de um conhecimento específico não fornecido por nenhuma disciplina acadêmica.” (grifo do autor do livro) Aí você percebe que o estudo da religião exercido de forma acadêmico-cientí- fica é um dentre os diversos modos de ver a religião. Existem outras formas, como a poesia, a arte, a literatura e a teologia. Não são modos excludentes entre si, mas são diferentes e podem conflitar entre si, o que não é algo negativo, pois, afinal, as diferenças de perspectivas enriquecem o seu conhecimento do objeto. O ângulo e o método variam nas Ciências da Religião porque há Ciências, no plural, da religião, mas há uma convergência: estudar a religião não é tabu, qualquer religião pode ser estudada e compreendida com o objetivo de desfazer preconceitos, ou seja, ideias que vêm antes de investigarmos mais detidamente um assunto. Nesse ínterim, ocorrem processos de especialização das ciências como um todo e da multiplicação das teologias e histórias internas de cada tradição ou fa- mília espiritual (FILORAMO; PRANDI, 2016). Você sabe que hoje é ainda mais capítulo 1 • 17 difícil para um estudioso ou pesquisador dominar todos os detalhes de uma disci- plina, por exemplo, a sociologia. Há sociologia econômica, sociologia da família, sociologia da religião e dentro de cada sociologiadessas há estudos, pesquisas e autores. Mesmo que você escolha um tema específico dos estudos de religião, por exemplo, a secularização e a laicidade, logo perceberá que há diferentes estudos, artigos, livros e pesquisadores somente sobre esses dois temas. Talvez você se pergunte se essa situação de especialização ocorre nas Ciências da Religião. Essa situação ocorre, por exemplo, com a emergência mais recente da geografia da religião, da economia da religião e da ecologia da religião, ciências que procuram estudar o fenômeno religioso do ponto de vista do território e da geopolítica, das relações econômicas e da ecologia total, respectivamente. Há o risco de perder a visão da totalidade e da singularidade do objeto de estu- do, no caso das Ciências da Religião, a religião. Por isso é fundamental que você co- nheça as principais escolas teóricas, os autores mais importantes, os temas e questões fundamentais para não se perder na imensa floresta dos estudos da religião. Mas, antes de falar das origens das Ciências da Religião e de seu contexto sociocultural-histórico, o século XIX, é importante que você aprenda sobre alguns antecedentes inevitáveis para o estudo acadêmico e científico da religião ou das religiões. Dentre esses antecedentes, você compreenderá um pouco mais sobre a ruptura com o pensamento mágico e mítico, o pensamento racional-crítico e sobre os livros e pensadores que antecederam as Ciências da Religião. MULTIMÍDIA O que é religião e ciência? Sugerimos alguns vídeos curtos para aprofundar o tema deste capítulo. Assista a este vídeo: O que define uma religião?. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=3fyi- v1fcb3u>, com acesso em: maio 2018. E este outro, A ciência é maior que a religião?. Dispo- nível em: <https://www.youtube.com/watch?v=bg_i1doyfgi>, com acesso em: maio 2018. Em ambos os vídeos, um cientista da religião, Frank Usarski, professor da PUC São Paulo, aborda esses dois importantes assuntos. Após vê-los, condense em dois parágrafos o que aprendeu. Lembre-se de que um dos melhores meios para estudar e memorizar é escrever à mão. capítulo 1 • 18 REFLEXÃO Convido você a refletir sobre algumas questões a partir de um belo documentário sobre religião, religiosidade e povo chamado Santo Forte, dirigido por um dos maiores cineastas documentaristas brasileiros, Eduardo Coutinho (1933-2014). Esse cineasta dirigiu também um filme marcante, Cabra Marcado para Morrer (de 1984), que narra a vida do migrante nordestino em São Paulo. Antes de passar para você o link, seguem algumas perguntas: 1. O que é religião e experiência religiosa para as camadas populares? 2. A religião é aquilo que as lideranças, instituições e hierarquia definem que seja? 3. As classes populares vivenciam a religião de forma própria em relação às instituições? O documentário Santo Forte fala sobre a religiosidade de moradores simples de uma favela situada na zona sul do Rio de Janeiro. Em outubro de 1997, a equipe de cinema entrou na favela Vila Parque da Cidade, Gávea, para filmar os moradores assistindo à missa celebrada pelo Papa João Paulo II no Aterro do Flamengo. Após isso, a equipe voltou para investigar como era a diversidade religiosa local. A partir daí, aparecem no documentário, católicos, evangélicos, umbandistas em uma impressionante riqueza de experiências religio- sas. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=58VNxWKx3VU&t=259s>, com acesso em: maio 2018. CONCEITO Bancada parlamentar evangélica: grupo de políticos em cargos eletivos (vereadores e deputados) que procura direcionar seu comportamento a partir de valores religiosos. A ban- cada mais famosa é a do Congresso Nacional. A bancada evangélica é muito diversa entre si, agrupa diferentes igrejas e possui opiniões e posições diferentes. Cátedra: o mais alto posto da hierarquia do magistério. Vem do latim cathedra, originado de um vocábulo grego que significa “assento” ou “cadeira”. Significa a disciplina (cadeira) que ensina um professor que detém o alto grau de conhecimento reconhecido pela comunidade universitária. Especialização científica: processo pelo qual a ciência aprofunda-se verticalmente nas áreas de estudo, acumulando pesquisas, gerando o nascimento de novas disciplinas, méto- dos de estudo e realizando novas descobertas. Evolucionismo: o evolucionismo defende a teoria de que o processo de evolução das espécies se dá de forma lenta e gradativa. Houve aplicações equivocadas da ideia de evolu- capítulo 1 • 19 ção para explicar, de forma inadequada, uma suposta “seleção natural” na sociedade, em que os melhores e mais fortes prevaleceriam. Filólogo e filologia: especialista em filologia, a ciência que tem como objetivo estudar uma língua por meio de textos escritos. Em um significado mais amplo, a filologia se ocupa da literatura e da cultura de um determinado povo. Laicidade: processo de separação política entre Igreja e Estado, no qual as leis e a es- trutura estatal distanciam-se das normas e valores da religião. Lenda: versão parcial de um mito que narra acontecimentos heroicos, trágicos, cósmicos e outros etc. Mito: narrativa, oral ou escrita, que conta uma história, de forma mágica, sobre as origens da vida, do mundo, da humanidade, da morte, das doenças etc. A linguagem do mito existe desde as origens dos povos e ainda continua presente. Assim como uma poesia, o mito não pode ser provado como verdadeiro ou falso no sentido científico. Oráculo de Delfos: a cidade grega de Delfos abrigava o mais famoso templo dedicado ao deus da luz, do sol e da sabedoria, Apolo. O oráculo refere-se à resposta que os sacer- dotes e sacerdotisas dedicadas ao deus da luz davam aos que iam ao templo consultar o deus Apolo. Perpetuum mobile: expressão em latim que quer dizer, movimento perpétuo, movi- mento que não para nunca. Pensamento racional-crítico: pensamento com base em uma estrutura abstrata, racio- nal que funciona encadeamento causas e efeitos com raciocínio rigoroso e criticidade. Pitonisa: nome da sacerdotisa dedicada ao deus grego Apolo, escolhida depois de um rigoroso ritual, deveria dedicar-se integralmente às atividades de adivinhação e consulta dos cidadãos gregos. Positivismo: uma corrente de pensamento filosófico, sociológico, político e jurídico que surgiu em meados do século XIX na França e se espalhou por todo mundo ocidental. Tinha muitas ideias, mas principal era a de que o conhecimento científico, em especial o empírico, era superior e melhor de todos os outros conhecimentos (o teológico, o mítico, o religioso, o poético, o filosófico, o artístico). Santuários religiosos: lugares e construções dedicadas a alguma divindade, santo, santa ou fenômeno natural divinizado. Secularização: processo pelo qual o monopólio do poder religioso institucional é que- brado em todas as áreas da sociedade. Rapsodo: poeta popular, ou cantor, que ia de cidade em cidade recitando poemas. capítulo 1 • 20 Com este pequeno glossário, você ampliará mais seu compreensão. Isso é mui- to importante para ser um bom pesquisador, seja um cientista da religião, admi- nistrador, economista, teólogo, sociólogo, antropólogo, historiador, geógrafo ou psicólogo que deseja estudar a religião e o fenômeno religioso. A origem do pensamento racional-crítico Você terá notado que as lendas e os mitos sempre foram alicerces para os povos antigos e primitivos, das mais diversas regiões do planeta, dos povos nômades às grandes civilizações. Os mitos contam histórias fantásticas, mágicas, nas quais a realidade não é apresentada de forma racional, com lógica e cadeia causal, mas como algo fantástico, incrível, absurdo. É uma forma de conhecimento do mundo com base em imagens hiperbólicas e na sensação do maravilhoso, do indescritível, do que muda tudo. Os gregos, por exemplo, atribuíam suas origens aos heróis que protagonizam a Guerra de Troia, na poesia de Homero, e os romanos, atribuíam aos irmãosRômulo e Remo, filhos do deus Marte, eternizados nos relatos do historiador Tito Lívio (romano). O pensamento mítico, observe, vem de um longo período na Grécia, talvez desde o século X A.E.C ou a.C. (antes da Era Comum ou dez séculos antes do nascimento de Cristo) até o século V d.C. (depois da Era Comum). O conjunto dessas lendas e mitos, transmitidos de geração a geração, por avós, mães/pais, filhos/filhas e netos/netas, quando passados para a linguagem escrita, originaram as grandes literaturas. A Odisseia e a Ilíada são os dois conjuntos de obras da literatura grega que mais influenciaram o mundo. A autoria de ambos os poemas é atribuída ao poeta e rapsodo grego Homero. ATENÇÃO Odisseia: uma das principais obras literárias do Mundo. Odisseia narra o regresso de Odisseu ou Ulisses, herói grego, à sua terra natal, Ítaca, depois de participar da Guerra de Troia. Com esperteza e crueldade, enfrenta aventuras que atrasam seu retorno para os bra- ços de Penélope, sua fiel esposa. capítulo 1 • 21 Ilíada: é um poema longo, atribuído a Homero, que coletou e registrou antigos relatos orais, composto por 24 cantos com milhares de versos, que narra a Guerra de Troia, cidade que se localizava na atual Turquia. Ao lê-la, você logo se dará conta da riqueza de detalhes. Essa obra era recitada em festejos públicos. Mas, em um determinado momento da história, nas cidades-estados da Grécia, alguns homens começaram a ler de forma diferente esses antigos mitos e lendas. Saiba que os primeiros filósofos duvidaram das origens mágicas e miraculosas e se perguntaram se havia outras explicações. Pouco a pouco nasce a filosofia como pensamento racional-crítico que se descolou do pensamento mítico. Observe que a filosofia surgiu na Grécia, no século VI A.E.C. Os primeiros filósofos eram os pré-socráticos, assim chamados porque co- meçaram a pensar a cosmologia (o mundo e a vida), atribuindo a gênese de tudo a uma arché ou princípio universal e porque viveram em uma época anterior a Sócrates (469 a.C.-399 a.C.), um dos maiores filósofos da história, nascido em Atenas. Sócrates não deixou nada escrito, mas seu discípulo, Platão (427 a.C. – 347 a.C.) escreveu muito, inclusive sobre seu mestre. © W IK IM E D IA .O R G © W IK IM E D IA .O R G Figura 1.1 – Platão (427 a.C.-347 a.C.) Cabeça de Platão, cópia romana. A original foi exposta na Academia depois da morte do filósofo (348/347 a.C.). Figura 1.2 – Figura 2: Sócrates (469 a.C.- 399 a.C.) Busto de Sócrates pelo artista Anderson, Domenico (1854-1938). capítulo 1 • 22 O método socrático de busca da verdade, o elenkhós, era muito diferente dos filósofos sofistas gregos que seguiam a erística (a disputa para ver quem fala melhor sobre um tema, impondo a “verdade”). O elenkós era um jogo de pergun- tas e respostas feito em público, um método com base em argumentos e não em opiniões. Não se faz boa filosofia sozinho, isolado em um quarto ou dando respos- tas sem pensar bem, e isso leva tempo e convívio com outras pessoas dispostas a duvidar, pensar, buscar refletir. Note bem: refutar significa investigar, desconsiderar o que é banal e mostrar sentidos que não estavam claros no argumento. Isso levava os interlocutores com quem Sócrates conversava a profundo embaraço porque frequentemente havia lacunas nas opiniões que não eram percebidas antes do elenkós. Antes de encontrar a verdade da resposta, que nunca é dada de antemão, mas que só surge depois da investigação feita em conjunto, você precisa saber o significado das perguntas feitas, para que não sejam “perguntas retóricas”, ou seja, perguntas apenas para confirmar o que já se sabe ou para chamar atenção para o evidente. O método socrático é apoiado em investigação feita em grupo, com perguntas e respostas dadas de forma racional, sistemática e procurando mostrar as con- tradições e impasses do que se está pensando, dos conceitos e dos preconceitos. Observe: Sócrates conversava com generais, soldados, comerciantes, sacerdotes, educadores, artistas, mulheres, outros filósofos e pessoas simples, desagradou a ponto de a cidade de Atenas, que serviu nas guerras, tê-lo condenada à morte por envenenamento. O desagrado ocorreu por diversos motivos, por exemplo, inveja, despeito e porque o método socrático promovia o que você pode chamar de desinstalar-se, sair da “caixinha”, sair do quadrado e abrir a cabeça. COMENTÁRIO Perceba que a expressão “só sei que nada sei”, nunca foi dita pelo filósofo de Atenas. Essa frase era uma inscrição no Templo de Delfos, dedicado ao deus Apolo. Depois de visitar o Oráculo de Delfos, e ouvir uma sacerdotisa (pitonisa), Sócrates adotou esse lema. O lema completo era: Conhece-te a Ti mesmo e conhecerás todo o universo e os deuses, porque se o que procuras não achares primeiro dentro de ti mesmo, não acharás em lugar algum. Mas não entenda esse lema no sentido moderno, como uma espécie de busca interior ou psi- cológica. Não havia naquela época a ideia de subjetividade individual ou de psicologia moderna. capítulo 1 • 23 Quer saber um pouco mais? Leia o texto escrito por Platão, Defesa ou apologia de Sócrates neste site: <http://www.revistaliteraria.com.br/plataoapologia.pdf>, com acesso em: maio 2018. Esse texto foi escrito um tempo depois da morte de Sócrates, seu mestre, condenado a beber veneno, sentença que aceitou com coragem e é considerado um dos mais belos textos da filosofia ocidental. Um bom livro para saber mais, com linguagem bem acessível: GHIRALDELLI JR, Paulo. Sócrates. Pensador e educador. A filosofia do conhece-te a ti mesmo. São Paulo: Cortez, 2015. O pensamento mágico/mítico é o oposto do pensamento racional-filosófico. Este explica por razões e causas, ou seja, cadeias causais para os efeitos e para ligar uma razão à outra. O pensamento mítico/mágico não desapareceu com as mu- danças da modernidade, as Revoluções Industrial e Tecnológica, as redes sociais. Ainda há hoje grupos e indivíduos que procuram explicar coisas, fatos e fenô- menos pulando as cadeias causais e a boa lógica argumentativa (o jogo de pergun- tas e respostas). Observe que o mito, nesse caso, não tem o sentido que as pessoas comuns (leigas ou não especialistas) dão, que é o de mentira e falsidade. Por exemplo, há um grupo de pessoas que acredita na “teoria da Terra plana”, apesar da ciência, pesquisas, cientistas e imagens por satélites. Observe que havia duas grandes teorias muito antigas sobre o cosmos: a que falava da Terra plana como centro do universo e a que falava da Terra não plana, mas com o Sol como centro. No começo do século XVI, cientistas e filósofos conseguiram demonstrar empiricamente que a Terra era mais arredondada (nosso planeta não é um círculo perfeito) e não era o centro do sistema cósmico. É interessante insistir no fato de que o sistema solar, do qual a Terra é um dos planetas, é um dentre milhares presentes na Via Láctea, a galáxia que o abriga e que, por sua vez, a Via Láctea é uma dentre milhões de outras galáxias viajando no tempo e no espaço. Foi colocado entre aspas “Terra plana” para chamar sua atenção porque não é uma teoria, ou seja, um conjunto coerente de conceitos submetidos a provas e testes (de cunho empírico, como laboratórios, questionário etc. ou de cunho não empírico, como a lógica racional do argumento). A “crença” na “Terra plana” é um conjunto de impressões e ideias costuradas por opiniões pouco lógicas, de natureza mágica e fantástica, que não resistem a argumentos e provas empíricas e não empíricas. capítulo 1 • 24 Note que a passagem do pensamento mítico ao racional, do mito à ra- zão crítico-lógica, durou muito tempo. Mas, talvez surja uma dúvida em sua mente: quem começou este movimento de independência do pensamento racio- nal-crítico em relação ao pensamento mítico-mágico-religioso. Um dos que co- meçaram a pensar fora da “caixinha” do mito foi Tales de Mileto (624 a.C.–558 a.C.) foi um filósofo, matemáticoe astrônomo grego, o iniciador da filosofia da physis, pois afirmou a existência de um princípio originário único (“tudo é água, tudo provém dela”), causa de todas as coisas que existem, sendo a primeira propos- ta filosófica de fato. A partir daí, surgiram outros filósofos e outras propostas que se descolaram progressivamente do relato mítico e mágico das origens do mundo, dos homens, do universo e da vida. É interessante que você conheça três características dos gregos que foram essen- ciais para o desenvolvimento do pensamento racional-crítico, a filosofia, que será fundamental para as Ciências da Religião e para as Ciências Humanas e Sociais: I. A política, enquanto forma de disputa oratória, que contribuiu para formar um grupo de iguais, os cidadãos, que buscavam a verdade pela força da argumentação (cadeias causais e lógica argumentativa). II. O Palácio Real, que centralizava os poderes militar e religioso, foi subs- tituído pela Ágora, espaço público onde os problemas da pólis (cidade-es- tado) eram debatidos. III. A palavra, utilizada na prática religiosa e nos ditos do rei, perdeu a função ritualista de fórmula justa, passando a ser veículo do jogo de per- guntar, pedir e dar razões e da discussão. Há, porém, algo de fundamentalmente novo na maneira como os gregos pu- seram a serviço do seu problema último – da origem e essência das coisas – as observações empíricas que receberam do Oriente e enriqueceram com as suas próprias, bem como no modo de submeter ao pensamento teórico e casual o reino dos mitos, fundado na observação das realidades aparentes do mundo sensível: os mitos sobre o nascimento do mundo. JAEGER, Werner. Paideia. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 197. capítulo 1 • 25 Para finalizar este item, convido você a olhar atentamente a figura 1.3. Você perceberá, ao explorá-la, que se trata da cópia de uma famosa pintura da Renascença Italiana, A Escola de Atenas (Scuoladi Atenas, no original italiano). © W IK IM E D IA .O R G Figura 1.3 – A escola de Atenas. Esse afresco (pintura em parede), foi pintado por Raffaello Sanzio (Urbino, Itália, 1483-Roma, Itália, 1520) e ilustra a Academia de Platão. Sua composição se deu entre 1509 e 1510 a partir de uma encomenda do Papa Júlio II para decorar um palácio no Vaticano. Observe, na figura 3, que, no centro, estão os filósofos Platão e Aristóteles. Platão segura o Timeu (um dos seus livros) e aponta para o alto com o dedo indi- cador, simbolizando o mundo das formas supremas, do supremo conhecimento, enquanto os outros estão para baixo, o mundo das cópias, das formas sensíveis. Aristóteles segura a Ética (um dos seus livros) e tem a palma da mão estendida para frente e apontando para baixo, simbolizando o mundo sensível e o das formas empíricas. Note que ao redor dos dois filósofos estão outros pensadores. Descubra quem são no link disponível em: <https://www.thinglink.com /scene/775285510984695808>. Acesso em: maio 2018. capítulo 1 • 26 CURIOSIDADE Como tornar-se mais inteligente com o método de Sócrates É possível aumentar nossa inteligência com o famoso método socrático do elenkhós? Sim. Assista a este vídeo com apenas 10 minutos, produzido por um filósofo profissio- nal, Paulo Ghiraldelli. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=oGrHyRSXs3s>. Acesso em: maio 2018. Depois de assistir, anote em uma folha o que aprendeu. Escrever é uma das melhores maneiras de aprender e aumentar o seu conhecimento. Sobre as Ciências da Religião, saiba que é factível estudar as religiões de forma livre e crítica, deixando os preconceitos e abrir-se a um novo mundo de sensibili- dades, experiências, diversidade e conhecimento. Mas, é preciso dizer a você algo óbvio: como qualquer outra realidade vivida por mulheres e homens, por socieda- des e por grupos, há nas religiões aspectos negativos como a violência, a mentira, o horror, a guerra, a desonestidade. Antecedentes das Ciências da Religião Note que o estudo da religião de forma acadêmico-científica é um dentre os diversos modos. O ângulo e o método variam nas Ciências da Religião, mas há uma convergência: a religião não é tabu, qualquer religião pode ser estudada e compreendida. Como visto, há muitas raízes no processo de formação das Ciências da Religião, mas, para você não ficar ainda mais amplo, iremos falar do filósofo escocês David Hume (1711-1776) e do filósofo germânico Immanuel Kant (1724-1804). Segundo o cientista da religião Frank Usarski (2013), Hume é apontado como o “mentor” precoce do estudo científico da religião devido a uma abordagem estritamente dentro das exigências científicas modernas. O filósofo escocês não estava interessado em defender a religião, mas em explicá-la de forma racional, sem apelar para instâncias mágicas ou metafísicas. A obra de Hume significou o coroamento de um grande movimento de tenta- tivas para explicar e compreender a religião. Um caminho que foi inaugurado pelo pensamento racional grego. capítulo 1 • 27 AUTORES Alguns autores que abriram caminhos para as Ciências da Religião David Hume (1711-1776). Nascido em Edimburgo, Escócia, foi um filósofo e historia- dor que viveu no período chamado Iluminismo (século XVIII). É um dos mais importantes filó- sofos iluministas ocidentais. Uma de suas maiores ideias foi introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos filosóficos e deixar de lado a metafísica. Obras principais: Tratado da Natureza Humana (de 1740); Investigação sobre o Entendimento Humano (de 1748); Investigação sobre o princípio da moral (de 1751); Discursos Políticos (de 1752); Diálogos sobre a religião natural (depois de 1776); História natural da religião (de 1757). Immanuel Kant (1724-1804). Nascido em Königsberg, antiga Prússia, este filósofo alemão é considerado o fundador da “Filosofia Crítica”, pois se dedicou em resolver a relação conceitual entre a realidade e a natureza do nosso conhecimento. Principais obras: História Universal da Natureza e Teoria do Céu (de 1755); Observação Sobre o Sentimento do Belo e do Sublime (de 1764); Crítica da Razão Pura (de 1781); O que é o Iluminismo? (de 1784); Fundamentação da Metafísica dos Costumes (de 1785); Crítica da Razão Prática (de 1788); Crítica do Julgamento (de 1790); A Religião Nos Limites da Simples Razão (de 1793); A Paz Perpétua (de 1795); A Metafísica dos Costumes (de 1797). Observe que o tratamento racional da religião continuou nas obras de muitos pensadores como Jean Jacques Rousseau (1712-1778), Friedrich Schleiermacher (1768-1834), Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) e Arthur Schopenhauer (1788-1860). Todos eles pensaram a religião a partir de termos e conceitos racio- nais e suas reflexões influenciaram as Ciências da Religião. Mas, note que a possibilidade de estudar a religião como um produto pu- ramente cultural do ser humano surgiu no mundo ocidental a partir da obra de Immanuel Kant Crítica da Razão Pura, publicada em 1781. Kant descreveu, pela primeira vez, o lugar que permite a observação da reli- gião a partir de uma perspectiva exterior. Escreve Kant: “A nossa época é a época da crítica, à qual tudo tem que se submeter. A religião, pela sua santidade e a legislação, pela sua majestade, querem igualmente subtrair-se a ela. Mas então capítulo 1 • 28 suscitam contra elas justificadas suspeitas e não podem aspirar ao sincero respeito, que a razão só concede a quem pode sustentar o seu livre e público exame.”. (KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de M. P. dos Santos e A. F. Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 5). Um dos lemas mais bonitos da Ilustração ou Iluminismo foi cunhado por Kant: Sapere Aude, em latim, que pode ser traduzido como “atreva-se a conhecer” ou “ouse saber”. © W IK IM E D IA .O R G Figura 1.4 – Kant (desenho de 1791). Contexto sócio-histórico-científico das Ciências da Religião Observe que o século XIX é um século de guerras, epidemias,expansão e descobertas científicas. Ao ler um pouco da história, você terá a impressão que o tempo pareceu ficar mais acelerado, em especial no Ocidente. Entre as gran- des mudanças vividas naquela época, você já deve ter ouvido falar da Revolução Industrial e das conquistas coloniais europeias. Por meio da arqueologia, da genética e da história, o intercâmbio, pacífico ou guerreiro, entre povos, tribos e civilizações ocorre há milhares de anos. Contudo, você terá percebido que houve formas específicas de contato no século XIX: mis- são religiosa (missionários cristãos enviados para converter outros povos e tribos); missão comercial (comércio de produtos e serviços) e missão colonial (submissão de outras populações ao violento poder colonial). Lembre-se que esse século é marcado pelo grande sucesso das ciências naturais e físicas, com grandes impactos, por exemplo, o das descobertas e da teoria de Charles Darwin (1809-1882), em seu livro, A origem das espécies, publicado em 1859. Note também que as matemáticas e as ciências físicas alcançaram grandes re- percussões e as ciências médicas avançavam. Tudo isso gerou mudanças profundas na maneira de produzir conhecimentos acerca da realidade, do mundo, da vida e da religião, por exemplo. Com isso, surgem o positivismo e o evolucionismo. Esses dois movimentos foram mais do que uma teoria das ciências naturais e da filosofia, mas como uma visão de mundo, duas formas de ver as relações humanas e a vida. capítulo 1 • 29 Observe que o choque advindo do encontro com novas realidades e valores re- ligiosos diferentes dos vividos no Ocidente e o declínio da hegemonia cristã trouxe uma nova exigência. Qual seria a exigência, você poderia se perguntar. Segundo os estudiosos Firolamo e Prandi (2016, p. 8) ficou clara e nítida “a exigência de se confrontar, de maneira cada vez mais sistemática e crítica (ou seja, livre de injunções de valor, teológicas ou filosóficas), a tradição cristã com todas aquelas tradições religiosas orais que agora ficaram acessíveis [...]”. CONEXÃO Dê uma lida neste portal: Observatório Transdisciplinar das Religiões no Recife, dispo- nível em: <http://www.unicap.br/observatorio2/>. Acesso em: maio 2018. Ele reúne imagens, notícias de eventos de estudos sobre religião, fóruns e discussão, textos breves sobre te- máticas religiosas. Aproveite para espiar este texto de um sociólogo e cientista da religião português: Steffen Dix, O que significa o estudo das religiões: Uma ciência monolítica ou inter- disciplinar?. Disponível em: <http://www.ics.ul.pt/publicacoes/workingpapers/wp2007/ wp2007_1.pdf>. Acesso em: maio 2018. Assista a este pequeno vídeo, explicando a diferença entre mito e razão, disponível em: <http://www.dailymotion.com/video/x8ia32>. Acesso em: maio 2018. O registro desse contato (cartas, livros, relatórios) começou a circular ampla- mente e levantou perguntas sobre a razão de ser dos europeus e dos outros povos, em especial quando se tratava da “religião” de povos indígenas ou “selvagens”. A palavra religião foi colocada entre aspas porque a definição não é consensual entre os estudiosos das Ciências da Religião e porque, para esses povos e etnias, a religião não é uma região ou dimensão da vida separada das demais dimensões. As ideias religiosas, míticas e mágicas fazem parte de uma realidade única, junto com as ideias políticas, estéticas, sociais. Atente: em geral, a expressão cosmologias autóctones, e no caso do Brasil, cosmologia indígenas são as mais adequadas para falar desse todo indivisível. No século XIX, a presença dos estudos sobre as estruturas linguísticas e estru- turas mitológicas em comparação com outras. Antigas civilizações na Índia são descobertas; o Egito é redescoberto. Com isso, novas línguas, novas informações e capítulo 1 • 30 muita coisa diferente chega à Europa. Tudo isso teve grande impacto e gerou uma “revolução” no conhecimento que havia sobre a religião. A própria Bíblia se tornou objeto de estudos arqueológicos, sociológicos, lite- rários, históricos e filológicos que mostraram realidades bem diversas e diferentes sobre os livros mais sagrados do cristianismo, escritos ao longo de séculos, em di- versos contextos, por diversos autores e com diversos tipos de linguagem (poética, épica, trágica, sapiencial etc.). Nesse aspecto, os estudos mais recentes mostram uma realidade muito interes- sante sobre a Bíblia, um vasto conjunto de livros considerados sagrados pelos cris- tãos. No século XIX, esses estudos mostraram novas faces da história e somados aos estudos arqueológicos, bateram de frente com as narrativas míticas como os gi- gantes narrados no livro de Gêneses. Os estudos linguísticos e históricos nos mos- traram, por exemplo, que os evangelhos e os livros do Novo Testamento têm “ca- madas”, identidades, autorias, mudanças de ênfase e uma incrível riqueza literária. CURIOSIDADE A Bíblia No mundo cristão, a Bíblia, como conjunto de livros considerados sagrados, só foi co- nhecida e praticada como texto religioso fora do judaísmo e por meio da tradução dos livros originais, escritos em aramaico e hebraico, para o grego, importante língua na época de Jesus. A tradução mais famosa é a Septuaginta. Frederico Lourenço, nascido em Lisboa, doutor em literatura grega, ex-professor da Universidade de Lisboa, um dos mais importantes estudiosos, está traduzindo a Bíblia do grego direto para o português. Escreveu um livro saboroso para ler: LOURENÇO, Frederico. O livro aberto. Leituras da Bíblia. Rio de Janeiro: Oficinal Raquel, 2017. Veja este trecho da página 16: “Este fato é tão incômodo tanto para crentes como para não crentes [...]: nenhum livro da Bíblia foi escrito para ser relativizado e lido cum grano salis [...]. Claro que isso levanta problemas quando somos confrontados com um texto como o Cântico dos cânticos [Cantares de Salomão na versão protestante], que [...] não foi escrito como texto religioso para um dia figurar num livro sagrado, mas como simples epitalâmio erótico. Por incrível ironia da história, a este texto supremamente profano, deu-se (por razões que desconhecemos) uma augusta autoria a Salomão e a legitimidade de uma leitura não alegórica. capítulo 1 • 31 Porém, importa falar sobre a questão da cientificidade das Ciências da Religião, isto é, sua autoridade para investigar e estudar os fenômenos religiosos tendo como horizonte a questão da busca da neutralidade dos valores ou axioló- gica e da objetividade relativa, como assim se expressou Max Weber (1864-1920). Entenda que esses dois ideais da ciência, apesar de serem impossíveis de alcançar completamente, devem orientar o comportamento do estudioso da religião. REFLEXÃO Neutralidade axiológica e objetividade relativa são dois importantes conceitos cunhados pelo sociólogo, historiador, economista e estudioso alemão Max Weber para aju- dar as ciências sociais e econômicas a estudarem seus objetos. Trata-se de procedimentos para controlar a interferência de valores subjetivos e pessoais, que escapam da esfera da racionalidade, nas investigações e estudos dos cientistas. Nos capítulos seguintes, você verá com mais detalhes suas importantes reflexões. Com base no pensamento de Max Weber, observe que há um vazio entre a realidade e os conceitos usados para descrevê-la. Se houvesse uma coincidên- cia perfeita entre realidade e teoria, você não necessitaria de estudos, pesquisas, leituras e críticas, por vezes árduas e trabalhosas. Para entender as religiões, você precisa considerar esse hiato e ver que os conceitos iluminam a realidade, mas não a substituem, assim como a realidade não acaba com a importância de estudar e produzir boa teoria. No caso de Max Weber, o método é o o tipo ideal, modelos teóricos construídos a partir de dados, documentos e leituras, que ajudam a pen- sar, classificar e compreender as religiões e experiências religiosas vividas ao longo da história e na sociedade. O caráter científicodas Ciências da Religião Mircea Eliade (2016), cientista da religião, filólogo e historiador das religiões de origem romena nos diz que a ciência das religiões, como disciplina autônoma, tendo por objeto a análise dos elementos comuns das diversas religiões é uma ciência muito recente (data do século XIX) e sua fundação quase coincidiu com a da ciência da linguagem. capítulo 1 • 32 Quem primeiro cunhou o termo foi o filósofo e historiador Max Müller que propôs a expressão “ciência das religiões” ou “ciência comparada das religiões” ao utilizá-la no prefácio do primeiro volume de sua obra Chips from a German Worship lançada em Londres, no ano de 1867. O desenvolvimento das Ciências da Religião, Ciência da Religião, Ciências das Religiões ou Ciências das Religiões nos permite afirmar que elas se constituem em um empreendimento acadêmico dedicado ao estudo histórico e sistemático das religiões concretas, as do passado ou as do presente. AUTOR Mircea Eliade (1907-1986). Pensador, mestre, historiador especialista em questões religiosas, mitólogo e escritor romeno, nasceu em Bucareste e morreu em Chicago, tendo sido professor e pesquisador. É considerado um dos mais importantes especialistas em his- tória e filosofia das religiões. Empreendeu muitos estudos sobre cultura e filosofia oriental, mas também sobre a história das religiões e a linguagem simbólica das diversas tradições religiosas. Nasceu em uma família de cristãos ortodoxos e se tornou poliglota (italiano, in- glês, francês e alemão). Principais obras: Cosmos e História: O Mito do Eterno Retorno (de 1954); Ferreiros e Alquimistas (de 1956); Ioga, Imortalidade e Liberdade (de 1958); Ritos e Símbolos de Iniciação (de 1958); Padrões das Religiões Comparadas (1958); O Sagrado e o Profano: a Natureza da Religião (de 1959); Mitos, Sonhos e Mistérios (de 1960); Mito e Realidade (de 1964); A História das Religiões.Volume I. Da Idade da Pedra aos Mistérios de Elêusis (de 1969). A História das Religiões. Volume II. De Gautama Buddha ao Triunfo do Cristianismo (de 1969) e A História das Religiões. Volume III. De Muhammad à Época das Reformas (de 1985). É importante você perceber que o uso da palavra religião no singular diz res- peito à ideia de que apesar de todas as diferenças e variedades empíricas das reli- giões, é possível construir um ou mais conceitos teóricos que unifiquem, na teoria, as diferenças palpáveis na prática. As Ciências da Religião, como você verá no decorrer deste livro, não adotam uma postura elogiosa e confessional, isto é, elas não professam uma fé ou fazem apologia de uma religião. A posição adotada é a de um conhecimento científico da religião, com base em inúmeros estudos, desde perspectivas histórico-racionais- compreensivas-interpretativas, embasadas em diversos métodos. capítulo 1 • 33 Avance um pouco mais: os julgamentos de valor e os julgamentos morais fazem parte da condição humana do cientista da religião ou do estudioso e pes- quisador das religiões. O que você necessita entender é que é fundamental estar conscientes desses julgamentos e ter senso crítico para controlar seus efeitos sobre seus estudos e pesquisas. Se isso não ocorre, há um grave problema de honestidade intelectual e científica, pois não se pode usar a credencial da ciência para validar a afirmações de valor que são pessoais e subjetivas. A posição teórica mais importante defende que um conhecimento científico da religião, desde o ponto de vista das Ciências da Religião, é mais produtivo se mantivermos uma linha não normativa, isto é, uma linha que busque investigar a religião em suas múltiplas dimensões, manifestações e contextos socioculturais sem levar em conta julgamentos de valor ou quaisquer julgamentos sobre a valida- de moral de sua existência. (USARSKI, 2013, p. 51) Por exemplo, existem pelo Brasil, inúmeras igrejas chamadas igrejas cristãs inclusivas porque aceitam a existência e o modo de ser da minoria LGBTI+ (Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travesti, Transexuais, Indeterminados e Outros). As Ciências da Religião fazem uma análise dessas igrejas sem julgá-las melhores ou piores do que outras igrejas cristãs por conta do princípio da neutralidade axiológica e da objetividade científica relativa. Por isso é importante que você preste atenção no que escreve Frank Usarski, cientista da religião: “a Ciência da Religião não instrumentaliza seus objetivos em prol de uma apologia a uma determinada crença privilegiada pelo pesquisador.”. (USARSKI, 2013, p. 51) Em outras palavras, a postura das Ciências da Religião é a da “indiferença” diante do objeto do seu estudo (USARSKI, 2007). Essa postura é uma técnica de observação e estudo e que você pode traduzir como: distanciar-se das crenças e das militâncias para poder observar com mais amplitude o objeto, no caso, a religião ou as religiões. Você sabe, por experiência do senso-comum, que quando alguém está muito dentro de um jogo ou de um assunto não consegue observar outras táticas, estra- tégias e pontos de vista. Por outro lado, observe é preciso ter certa sensibilidade e abertura para a religião ou as religiões, caso se queira entender mais amplamente. Note que esse princípio do distanciamento está associado a dois termos téc- nicos, “ateísmo metodológico” ou “agnosticismo metodológico”, segundo escreve Frank Usarski (2013, p. 51). Considere que, com isso, não compete ao cientista da religião perguntar sobre a “última verdade” [verdade absoluta e inquestionável] capítulo 1 • 34 ou avaliar e julgar uma religião a partir dos valores e aspectos internos de outra religião. Observe um exemplo concreto: nas religiões cristãs as ideias religiosas giram em torno de noções como pecado/salvação e Deus/Diabo, o que não ocorre em religiões como as de influência africana (candomblé, tambor de mina, batuque) e as orientais (hinduísmo, budismo). Além de vertentes internas, essas religiões têm diferentes ideias religiosas sobre o homem, a vida, a morte, o sofrimento, a espiritualidade etc. No caso das Ciências da Religião, os pontos de vista internos a uma religião não são pontos de vista absolutos. Ao contrário, são um ponto de partida provisó- rio, pois o objetivo das Ciências da Religião é alcançar uma visão mais ampla e a melhor interpretação possível sobre a religião ou as religiões. Isso significa assumir que, para as ciências, o conhecimento é sempre provisório, submetido a critérios exigentes de investigação e a questionamentos permanentes. Essa posição é funda- mental para que você avance nas pesquisas e não fique apenas repetindo ideias e posições sem a menor noção do que está fazendo. Atente, nesse sentido, para a existência de alguns estudiosos que preferem reconhecer nas Ciências das Religiões, um campo disciplinar, ou seja, um campo em que diferentes ciências, com seus respectivos métodos, convergem para estudar o fenômeno religioso em sua inesgotável complexidade e riqueza. Observe que Ciência da Religião, escrito no singular, tende a expressar a ideia de um objeto de estudo próprio e de um método unificado sob a influência da fenomenologia da religião. Há outros pensadores que preferem ver na Ciência ou Ciências da Religião uma vocação ao pluralismo metodológico, ou seja, para se estudar bem a religião, é preciso usar vários métodos. Embora outros pesquisadores das Ciências da Religião a considerem uma es- trutura científica, eles se perguntam se seria uma ciência com perfil homogêneo e um método central ou se com perfil interdisciplinar e métodos complementares, embora às vezes conflitem entre si. Por exemplo, Firolamo e Prandi (2016), es- tudiosos italianos, preferem ver as Ciências da Religião como um campo ou área disciplinar e, portanto, dotada com uma estrutura aberta e dinâmica, na qual as disciplinas científicas ajudam na tarefa de estudar a religião. O estudo da religião de forma acadêmico-científica é um dentre os diver- sos métodos (métodos históricos, sociológicos, antropológicos,fenomenológicos, quantitativos e outros). O ângulo e o método variam de acordo com as Ciências da Religião, mas há uma convergência: a religião não é tabu, não há assunto capítulo 1 • 35 proibido e, assim, qualquer fenômeno que envolva espiritualidade e religião pode ser estudado e compreendido. Por isso, fazer uma boa investigação nas Ciências da Religião é fazê-la dentro do espírito socrático, sob a inspiração do método de refutar, o elenkhós. Apesar da história da institucionalização das Ciências da Religião ser antiga, perceba sua relativa juventude no Brasil. O primeiro departamento de estudos da religião e o primeiro curso no setor público foram criados na Universidade Federal de Juiz de Fora (Minas Gerais), em meados dos 1960 e 1970. Em 1978, foi aber- to o primeiro curso de pós-graduação em Ciências da Religião, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Hoje no Brasil, são 17 cursos de graduação presenciais e 12 cursos de pós-graduação (mestrado e doutorado). Há perspectivas crescimento em médio e longo prazo da graduação e da pós-graduação; é uma área em plena expansão, com muitos congressos, estudos e revistas. Perceba que a história das Ciências da Religião pode ser organizada em três grandes momentos, mais ou menos entre as datas: surgimento e institucionaliza- ção (1870-1945); internacionalização (1950-1989) e pluralização (1990-atual). No primeiro momento, as Ciências da Religião ou ciência da religião deu seus primeiros passos: em 1873, foi criada a primeira cátedra na Universidade de Genebra, Suíça, com o nome de História Geral das Religiões. Daí em diante, surgiram as seguintes cátedras/departamentos de estudos da religião: 1877, nas universidades holandesas de Amsterdã e Utrecht; 1879, França, surge a primeira cátedra de História das Religiões assim como em Roma (1884) e em 1904, na Universidade de Manchester, Inglaterra. É importante que você veja estes dois estudiosos das Ciências da Religião: • Friedrich Max Müller (1823-1900), orientalista e filologista comparativo alemão que desnudou as estruturas míticas e linguísticas presentes nas fontes lite- rárias e documentais de povos civilizados como os hindus. • Cornelius Petrus Tiele (1830-1902), considerado um dos iniciadores da Ciência da Religião ou Ciências da Religião. Observe que ambos distinguiram as Ciências da Religião da Teologia e defenderam que a religião fosse estudada de forma científica e sem finalidades religiosas práticas. As Ciências da Religião, nesse primeiro momento, ficaram espremidas entre fortes debates sobre a epistemologia e metodologia (caminho que leva ao conhe- cimento do objeto). Note, em particular, dois problemas, o desprezo positivista pela religião, considerada por muitos estudiosos como superstição e atraso e o capítulo 1 • 36 exclusivismo teológico, que considerava a religião e seu estudo, uma proprieda- de exclusiva de líderes religiosos e/ou de igrejas específicas e suas teologias. Essas duas posições foram vencidas, mas ainda causam dificuldades em alguns espaços acadêmicos. Desse primeiro momento, dentre importantes obras e autores, dois em espe- cial são fundamentais para seu conhecimento: • Em 1912, o sociólogo francês Émile Durkheim publicou o livro As formas elementares da vida religiosa, na qual propõe uma interpretação simbólica do sa- grado e da religião. • Em 1917, o teólogo luterano e filósofo alemão, Rudolf Otto, publicou a obra O Sagrado: um estudo do elemento não racional na ideia do divino e a sua relação com o racional, na qual defende uma tentativa de apreender o mistério do sagrado, sua força irracional. No segundo momento, após a Segunda Guerra Mundial, nos anos 1950 são criados departamentos de estudos da religião (Religious Studies) nos EUA e na Espanha. Em 1950 é criada a IAHR (International Association for the History of Religion – Associação Internacional de História da Religião). Nessa fase também, o romeno Mircea Eliade, historiador, cientista da religião, filósofo e filólogo pro- duziu a maior parte de seus estudos e pesquisas sobre religiões e mitologias. Por fim, o terceiro momento é marcado pela abertura de novas associações de estudos e pesquisas sobre religião no Brasil e no mundo. É importante ter uma noção das organizações da área de Ciências da Religião: ABHR, SOTER e ANPTRCRE. São respectivamente: a Associação Brasileira de História das Religiões (2000), a Sociedade de Teologia e Ciência da Religião (1985) e a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Teologia e Ciências da Religião. São grupos sérios e dedicados aos estudos da religião de um ponto de vista científico, acadêmico e procurando o rigor exigido pelas regras metódicas da ciência. MULTIMÍDIA Visite os sites dessas associações. Saiba mais sobre textos, eventos, congressos, artigos, revistas acadêmicas e outros assuntos das Ciências da Religião. SOTER, disponível em: <http://www.soter.org.br/>. Acesso em: maio 2018. ABHR, disponível em: <http://www.abhr.org.br/>. Acesso em: maio 2018. ANPTECRE, disponível em: <http://www.anptecre.org.br/>. Acesso em: maio 2018. capítulo 1 • 37 Em termos de conceitos e métodos, ampliam-se as perspectivas com os im- pactos dos estudos pós-coloniais e pós-modernos, das teologias contemporâneas (teologia feminista, teologia das religiões etc.) e as influências de pensadores como Michel Foucault (1926-1984) e Martin Heidegger (1998), entre outros. CURIOSIDADE Em setembro 1893 ocorreu o Parlamento Mundial das Religiões, em Chicago, EUA. Centenas de estudiosos, pesquisadores, religiosos e líderes de tradições religiosas do mun- do inteiro se reuniram para conversar sobre temas como espiritualidade, religião, cidadania, justiça, paz. ATIVIDADES Reflita sobre como estudar a religião 01. A atividade consiste em refletir sobre três perguntas: Como estudar a religião? É possível estudá-la e compreendê-la? Qual deve se a postura científica do cientista da religião diante de fenômenos religiosos diversos? Para prosseguir, selecione pelo menos três breves reportagens, bem diferentes, extraídas, de grandes jornais brasileiros, que falem sobre religião. Faça uma pequena lista do que você consegue identificar como pontos em comum das três reportagens pontos diver- gentes nas notícias. Depois, anote as diferenças. Por fim, responda. 02. Descubra se você é um bom leitor Com esta atividade, avalie-se como leitor. As perguntas a seguir servem como orientação para seu comportamento como leitor. Convido você a responder. Se for necessário melhorar seu comportamento como leitor, não hesite em dar de si, seu melhor. 01. Quantos livros você leu no último mês? ( ) 1 ( ) 2 ( ) 3 ( ) mais de 3 ( ) nenhum capítulo 1 • 38 02. Você costuma ler apenas um tipo de literatura? ( ) Sim ( ) Não 03. Quais tipos de livros costuma ler? ( ) Ficção ( ) Não ficção ( ) Autoajuda ( ) Acadêmicos ( ) Outros (quais):___________ 04. Você já leu algum livro acadêmico sobre religião? ( ) Sim ( ) Não 05. Você já leu algum livro de filosofia? ( ) Sim ( ) Não 06. Você já leu algum livro da área de Ciência Humanas? ( ) Sim ( ) Não 07. Você já criticou algum autor ou livro que não leu? ( ) Sim ( ) Não 08. Você já postou em suas redes sociais algum comentário negativo sobre livros que não leu? ( ) Sim ( ) Não 09. Você já rejeitou algum livro ou autor sem ter lido o original, apenas com base no que os outros disseram (“ouvi dizer que...”)? ( ) Sim ( ) Não 10. Você consegue identificar algum pensador, autor ou personalidade atuante nas redes sociais que costuma falar de livros que ele mesmo não leu? ( ) Sim ( ) Não 11. Você costuma ter algum livro de cabeceira de cama e lê-lo? ( ) Sim ( ) Não 12. Você sabe distinguir gêneros literários, por exemplo, poesia, crônica, prosa ( ) Sim ( ) Não capítulo 1 • 39 13. Você consegue distinguir os diferentes tipos de linguagem naquilo que você está len- do, porexemplo, irônica, poética, científica, histórica, filosófica, mítica, satírica, fantasiosa, religiosa? ( ) Sim ( ) Não 14. Você consegue identificar os diferentes tipos de linguagem em livros considerados sa- grados como a Bíblia? ( ) Sim ( ) Não 15. Você costuma prestar atenção na qualidade e autoridade da fonte e das informações daquilo que você lê? ( ) Sim ( ) Não 16. Você divide bem suas tarefas e seu tempo de forma que proveito para ler? ( ) Sim ( ) Não RESUMO O pensamento racional-crítico desde a Grécia e pensadores como David Hume e Imma- nuel Kant deram as bases das Ciências da Religião. As diferenças entre o pensamento racio- nal-crítico e o pensamento mítico-mágico cresceram ao longo do tempo a partir de algumas características do pensamento e da cultura gregos. Os precursores das Ciências da Religião e o contexto histórico-cultural dos estudos da religião são fundamentais. As principais carac- terísticas das Ciências da Religião, sua proposta de cientificidade e estudo da religião e al- guns dos principais nomes, como Otto e Durkheim foram estudados. Algumas nomenclaturas usadas no campo ou área das Ciências da Religião e alguns dos seus temas e agrupamentos são imprescindíveis para uma melhor compreensão do fenômeno religioso. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 2012. ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. A essência das religiões. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2016. capítulo 1 • 40 FIROLAMO, Giovanni; PRANDI, Carlo (orgs.). As Ciências das Religiões. 8. ed. São Paulo: Paulinas, 2016. USARSKI, Frank. História da Ciência da Religião. In: PASSOS, João D.; USARSKI, Frank (Orgs.). Compêndio de Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas: Paulus, 2013, p. 51-73. TEIXEIRA, Faustino (org.). A(s) Ciência(s) da Religião no Brasil. Afirmação de uma área acadêmica. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 2008. USARSKI, Frank (org). O espectro disciplinar da ciência da Religião. São Paulo: Paulinas, 2007. Ciências da Religião e as definições de religião 2 capítulo 2 • 42 Ciências da Religião e as definições de religião “Para definirmos religião é preciso que nos libertemos de toda ideia preconcebida”. “Se a filosofia e a ciência nasceram da religião, é que a própria religião começou por fazer as vezes de ciências e de filosofia”. Émile Durkheim, sociólogo francês, extraídas do livro As formas elementares da Vida Religiosa, lançado em 1912, Paris. Muita gente e muitas notícias citam frequentemente o termo religião. Observe atentamente como as manchetes de jornal abrigam sob o conceito de religião, situações, fatos e personagens diferentes, por exemplo, o Estado Islâmico, nome criticado por muita gente, porque, segundo especialistas em cultura islâmica, não seria nem Estado nem islâmico. Preste atenção em duas manchetes, extraídas da página eletrônica do G1, jor- nal eletrônico da Rede Globo: Espaço sagrado no Irã guarda lembranças da primeira religião persa. Há 2500 anos o zoroastrismo dominava a antiga Pérsia. E no templo do fogo, a 1800 me- tros de altura, eram realizados cerimônias e rituais”. (Globo Play, 2 set. 2017) 1 Igreja para público LGBT+ discute religião sem preconceito no AM (Amazonas). Fundadores afirmam que local é refúgio para aqueles que resolveram sair da igreja tradicional. Reuniões e cultos são baseados em Teologia Inclusiva. (19 jul. 2017, texto) 2 Você parou para pensar que as duas manchetes remetem a dois fenômenos dis- tantes no tempo e no espaço? Mas, será que esses dois fenômenos não guardam nada em comum? Pense nos elementos em comum: estão relacionados, de algum modo, à religião e à ideia de cultos, reuniões e ritos. E as diferenças? Observe bem: 1) vestígios históricos de um espaço sagrado de uma antiga religião, mais antiga que o cristianismo, e ainda hoje presente na Pérsia, ou atual região onde estão o Irã e o Iraque e 2) uma nova interpretação de religião como uma comunidade inclusiva para seres humanos que possuem orientação afetivo-sexual naquilo que é chamado de LBGT+, ou seja, Lésbicas, Bissexuais, Gays, Transgêneros/Travestis e outros. 1 Disponível em: <https://globoplay.globo.com/v/6081302/>. Acesso em: 28 out. 2017. 2 Disponível em: <https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/igreja-para-publico-lgbt-discute-religiao-sem- preconceito-no-am.ghtml>. Acesso em: 28 out. 2017. capítulo 2 • 43 Por fim, observe mais duas reportagens. A primeira, da Folha de São Paulo, publicada de 31/10/2017, na data em que se comemora a Reforma Protestante, foi intitulada: “Igreja Presbiteriana critica 'cadáveres da política' e bancada evangélica’” 3. A segunda, do Jornal Estado de São Paulo, de 1/11/2017: “Mulheres sauditas se revoltam com cidadã-robô que não precisa usar hijab. Sophia, primeiro robô do mundo a receber cidadania, também não tem de andar acompanhada de um guar- dião homem e tem mais direitos do que as outras sauditas”.4 Faça uma pausa e reflita que definir religião é tarefa complexa, difícil, contro- versa, plural (diversidade de perspectivas) e sempre inacabada. É possível começar a definir religião e depois iniciar a investigação, ou ao contrário, começar a inves- tigação dos fenômenos religiosos para alcançar, ao menos, uma ideia de fenômeno religioso que tende a ser provisória. Mas, é possível dizer que as frases ditas pelo sociólogo Émile Durkheim, em seus estudos sobre a religião no livro As Formas Elementares da Vida Religiosa, trazem o melhor caminho para os pesquisadores: “Para definirmos religião é pre- ciso que nos libertemos de toda ideia preconcebida”. [grifos do autor do livro] O que você pode entender da posição expressa nessa frase? Algumas coisas, mas dentre elas, ressaltamos a expressão “ideia preconcebida”, isto é, aquela ideia que todos têm de religião antes de estudar religião, pode se tornar um obstáculo ao pesquisador que deseja obter uma visão acadêmica, menos ingênua e mais crítica. Por outro lado, é o ponto de partida, o pressuposto, muitas vezes inconsciente, e por isso, é preciso trazer essas ideias preconcebidas à tona, analisá-las, ver seus pontos fracos, criticá-las e construir ideias melhores. Você reparou que, no mundo contemporâneo ocorreram fraturas nos grandes consensos que um dia existiram, mas, ao mesmo tempo, muros e fronteiras são erguidos (intolerâncias políticas e religiosas) e aconteceram grandes deslocamen- tos sociais, espaciais e culturais, muitas vezes motivados por guerras e, ao mesmo tempo, de temores e antagonismos. Em um panorama tão fragmentado e em mutação constante, estudar as reli- giões desde um ponto de vista científico-acadêmico constitui-se, observe bem, em uma grande vantagem na formação do estudante de ciências humanas e sociais e do estudante de teologia. 3 Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/10/1932004-igreja-presbiteriana-critica- cadavares-da-politica-e-bancada-evangelica.shtml>. Acesso em: 31 out. 2017. 4 Disponível em: <http://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,mulheres-sauditas-se-revoltam-com-cidada- robo-que-nao-precisa-usar-hijab,70002069365>. Acesso em: 1 nov. 2017. capítulo 2 • 44 Assim, você verá neste capítulo, os principais problemas relativos à defini- ção de religião. No senso comum, a origem da palavra religião é apontada como religare, (ligar de novo, ligar algo que estava rompido) do latim clássico, mas há muito mais elementos que importa conhecer, por isso é importante que você te- nha uma visão histórica bem fundamentada. Por fim, reflita sobre como é importante conhecer algumas características das definições mais comuns, a substancialista, a funcionalista e a compreensiva, mos- trando suas diferenças e semelhanças. Ter uma visão ampla e ao mesmo tempo aprofundar alguns pontos específicos dará a você um “passaporte” para sair das “caixinhas” estreitas do pensamento e da vida. Nesse sentido, você é convidado a “pensar fora da caixa”. OBJETIVOS • Entender
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