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Indaial – 2021 Povo, Cultura e religião Prof. Jose Antonio Teófilo Cairus 2a Edição Copyright © UNIASSELVI 2021 Elaboração: Prof. Jose Antonio Teófilo Cairus Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: C136p Cairus, Jose Antonio Teófilo Povo, cultura e religião. / Jose Antonio Teófilo Cairus. – Indaial: UNIASSELVI, 2021. 239 p.; il. ISBN 978-65-5663-425-8 ISBN Digital 978-65-5663-426-5 1. Cultura. - Brasil. 2. Religião. – Brasil. II. Centro Universitário Leonardo da Vinci. CDD 300 aPresentação Caro acadêmico! Povo, Cultura e Religião são termos de uso universal, mas suas definições não são fixas, pois seus significados variam nas diversas regiões do mundo. De forma análoga, estes termos, possuem significados di- ferentes ao longo da história da humanidade. Todavia, nas décadas finais do século XX, com a revolução da era digital e a aceleração do processo de globa- lização, tópicos relacionados a povos, culturas e religiões passam a ser objeto de debate, controvérsias e até mesmo conflitos. Assim, os princípios funda- mentais formadores de nossa identidade, seja individual ou coletiva, que enfa- tizam a diferença como ponto de partida para nos definir como grupo distinto, ganha contornos dramáticos quando a convivência entre povos, culturas e re- ligiões é pulverizada pelas novas tecnologias de comunicação e pela proximi- dade física proporcionada em consequência da movimentação de povos em escala global. O mundo ficou menor, a humanidade maior e, infelizmente, o fluxo contínuo, quantitativo e qualitativo de informações recebidas em tempo real não nos fez, nem mais sábios, tampouco, nos fez mais tolerantes. Conhecimento é fundamental para se promover entendimento, diálo- go e superar diferenças. Assim, nossa disciplina, além do aspecto pedagógico que a norteia, visa proporcionar conhecimento dos conceitos fundamentais da disciplina com rigor acadêmico e, de forma complementar, espera contri- buir para se conhecer e se perceber a diversidade como um atributo humano a ser celebrado. Convém não esquecer que o ser humano é contraditório por natureza, somos uma espécie biologicamente resistente a mudanças, mas por outro lado, nossas características singulares, como espécie, nos equipa- ram com mecanismos para sobrevivermos, nos adaptarmos e evoluirmos. Na primeira unidade deste livro, você será capaz de entender e defi- nir conceitos básicos como “Povo”, “Cultura” e “Religião” a partir da inter- pretação de intelectuais de épocas e lugares diferentes. Compreenderá tam- bém como esses conceitos, muitas vezes entrecruzados, se transformaram, ao longo da História, adquirindo novos significados, sendo interpretados e empregados de acordo com nosso Zeitgeist (espírito do tempo). Na segunda unidade, abordaremos as religiões monoteístas iniciando com a origem do conceito, com ênfase, nas vertentes monoteístas abraâmicas: judaísmo, cristianismo e islamismo, respectivamente. O estudo destas três religi- ões se desdobra em duas partes principais: na evolução histórica e na compreen- são de seus rituais e práticas religiosas na sua complexidade e transformações. Na terceira unidade estudaremos as religiões dominantes na Ásia Oriental, notadamente, na Índia, China e Japão. De forma análoga à segunda Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novi- dades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagra- mação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilida- de de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assun- to em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA unidade, o hinduísmo, o budismo e o xintoísmo serão analisados em seu as- pecto histórico, filosófico, ritualístico e nas suas vertentes diversas. Bons estudos! Prof. Dr. Jose Antonio Teófilo Cairus Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela um novo conhecimento. Com o objetivo de enriquecer seu conhecimento, construímos, além do livro que está em suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela você terá contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complemen- tares, entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar seu crescimento. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada! LEMBRETE sumário UNIDADE 1 — DEFINIÇÕES DE POVO, CULTURA E RELIGIÃO ........................................... 1 TÓPICO 1 — POVO ............................................................................................................................... 3 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 3 2 DA IDADE MODERNA PARA A IDADE CONTEMPORÂNEA ............................................. 5 3 O USO POLÍTICO E SOCIAL CONTEMPORÂNEO DO CONCEITO DE “POVO” ........... 9 4 ETNIA .................................................................................................................................................. 10 5 RAÇA COMO CONSTRUÇÃO SOCIAL ..................................................................................... 14 RESUMO DO TÓPICO 1..................................................................................................................... 18 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 19 TÓPICO 2 — CULTURA ..................................................................................................................... 21 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 21 2 RELATIVISMO CULTURAL ........................................................................................................... 22 3 CULTURA DE MASSA E A ESCOLA DE FRANKFURT NO SÉCULO XX ........................... 24 4 MARXISMO CULTURAL E AS GUERRAS CULTURAIS NA ATUALIDADE ................... 28 5 CULTURA NO MUNDO PÓS-COLONIAL ................................................................................. 32 RESUMO DO TÓPICO 2..................................................................................................................... 36 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 37 TÓPICO 3 — RELIGIÃO ..................................................................................................................... 39 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................39 2 CONCEITO E ETIMOLOGIA ........................................................................................................ 41 3 O CONCEITO MODERNO DE RELIGIÃO NO OCIDENTE .................................................. 44 4 POVO, CULTURA, RELIGIÃO E POLÍTICA NO MUNDO ATUAL ...................................... 46 5 REFLEXÕES SOBRE O PAPEL DA RELIGIÃO EM TEMPOS DE PANDEMIA .................. 49 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................ 60 RESUMO DO TÓPICO 3..................................................................................................................... 64 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 65 REFERÊNCIAS ...................................................................................................................................... 66 UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS ..................................................................................... 71 TÓPICO 1 — DO MONOTEÍSMO AO MONOTEÍSMO ABRAÂMICO ................................. 73 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 73 2 RAÍZES DO MONOTEÍSMO ........................................................................................................ 73 3 CRENÇA, FÉ E CREDO .................................................................................................................... 74 4 MONOTEÍSMO FILOSÓFICO ....................................................................................................... 77 5 RELIGIÕES ABRAÂMICAS............................................................................................................ 78 5.1 O JUDAÍSMO ................................................................................................................................ 80 5.1.1 Judaísmo no tempo .............................................................................................................. 83 5.1.2 Movimentos no judaísmo moderno .................................................................................. 88 5.1.3 Judaísmo no século XX ....................................................................................................... 90 5.1.4 Identidade judaica atual ..................................................................................................... 90 5.2 ORAÇÕES ...................................................................................................................................... 91 5.3 VESTUÁRIO RELIGIOSO ........................................................................................................... 92 5.4 FERIADOS JUDAICOS ................................................................................................................ 95 RESUMO DO TÓPICO 1..................................................................................................................... 99 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 100 TÓPICO 2 — O CRISTIANISMO ................................................................................................... 101 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 101 2 ORIGENS DO CRISTIANISMO .................................................................................................. 101 2.1 A ERA APOSTÓLICA ................................................................................................................ 102 2.2 PERÍODO PRÉ-NICENO .......................................................................................................... 102 2.3 O INÍCIO DO CÂNONE ORTODOXO ................................................................................... 103 2.4 O CRISTIANISMO ORIENTAL ................................................................................................ 105 2.5 A REFORMA PROTESTANTE .................................................................................................. 110 2.5.1 Denominações Protestantes ............................................................................................ 111 2.6 O CATOLICISMO E A CONTRARREFORMA ...................................................................... 116 2.7 NEOPAGANISMO, TRADIÇÕES INDÍGENAS E AFRICANAS ....................................... 121 2.7.1 Religiões dos povos ameríndios ..................................................................................... 124 RESUMO DO TÓPICO 2................................................................................................................... 128 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 129 TÓPICO 3 — O ISLÃ ......................................................................................................................... 131 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 131 2 ARÁBIA PRÉ-ISLÂMICA E A REVELAÇÃO CORÂNICA ................................................... 133 3 DIVISÕES SECTÁRIAS ................................................................................................................. 140 3.1 A ORIGEM DO XIISMO ........................................................................................................... 141 3.2 KHARIJITAS OU IBADIS .......................................................................................................... 143 3.3 SUNITAS ...................................................................................................................................... 144 3.4 XIITAS .......................................................................................................................................... 144 3.5 O SUFISMO ................................................................................................................................. 146 3.6 A ERA DE OURO DO ISLÃ (750-1258) ................................................................................... 147 3.6.1 O Califado Abássida (750-1258) ....................................................................................... 147 3.7 ISLÃ E O OCIDENTE: UMA HISTÓRIA LITIGIOSA .......................................................... 148 LEITURA COMPLEMENTAR .......................................................................................................... 152 RESUMO DO TÓPICO 3................................................................................................................... 154 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 155 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................... 156 UNIDADE 3 — RELIGIÕES ORIENTAIS ..................................................................................... 161 TÓPICO 1 — HINDUÍSMO E BUDISMO..................................................................................... 163 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 163 2 O PROPÓSITO DA EXISTÊNCIA HUMANA .......................................................................... 163 3 RELIGIOSIDADE NO OCIDENTE E NO ORIENTE ............................................................... 165 3.1 O CONCEITO DE TEMPO ........................................................................................................166 4 O HINDUÍSMO ............................................................................................................................... 167 4.1 BRAMANISMO ........................................................................................................................... 170 4.2 HINDUÍSMO CLÁSSICO .......................................................................................................... 171 5 O BUDISMO ..................................................................................................................................... 177 5.1 ORIGEM E DESENVOLVIMENTO INICIAL ......................................................................... 178 5.2 CISMA E ORIGEM DAS DIFERENTES ESCOLAS BUDISTAS ........................................... 179 5.3 EXPANSÃO BUDISTA NO SUL DA ÁSIA ............................................................................. 180 5.4 O BUDISMO MAHAYANA....................................................................................................... 185 5.5 O BUDISMO HOJE ..................................................................................................................... 187 RESUMO DO TÓPICO 1................................................................................................................... 188 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 190 TÓPICO 2 — CONFUCIONISMO E TAOÍSMO ......................................................................... 191 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 191 2 O CONFUCIONISMO .................................................................................................................... 191 2.1 ANTECEDENTES HISTÓRICOS E CARREIRA EM LU ....................................................... 192 2.2 CONFUCIONISMO: VISÃO FILOSÓFICA ........................................................................... 196 3 O TAOÍSMO .................................................................................................................................... 198 3.1 ORIGENS ..................................................................................................................................... 199 4 RELIGIÃO NA CHINA CONTEMPORÂNEA .......................................................................... 203 4.1 LIBERDADE E REGULAMENTAÇÃO ................................................................................... 204 RESUMO DO TÓPICO 2................................................................................................................... 210 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 211 TÓPICO 3 — XINTOÍSMO .............................................................................................................. 213 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 213 2 ORIGENS .......................................................................................................................................... 213 3 AS CRÔNICAS DE KOJIKI E NIHON SHOKI ......................................................................... 214 4 DEUSES XINTOÍSTAS ................................................................................................................... 216 5 O XINTOÍSMO E BUDISMO ....................................................................................................... 218 6 SANTUÁRIOS XINTOÍSTAS ....................................................................................................... 219 7 ADORAÇÃO E FESTIVAIS ........................................................................................................... 221 8 UMA VISÃO DA RELIGIÃO NO JAPÃO ATUAL................................................................... 222 LEITURA COMPLEMENTAR .......................................................................................................... 232 RESUMO DO TÓPICO 3................................................................................................................... 234 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 235 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................... 236 1 UNIDADE 1 — DEFINIÇÕES DE POVO, CULTURA E RELIGIÃO OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • compreender os conceitos de povo, cultura e religião no contexto histórico; • conhecer as mudanças nos conceitos dos termos ao longo do pro- cesso histórico; • entender sua aplicabilidade sob diversas visões de mundo; • contribuir para o debate dos conceitos de povo, cultura e religião no âmbito de nossa disciplina. 2 PLANO DE ESTUDOS Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade, você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – POVO TÓPICO 2 – CULTURA TÓPICO 3 – RELIGIÃO Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 3 TÓPICO 1 — UNIDADE 1 POVO 1 INTRODUÇÃO Em uma definição comum, geralmente encontrada em qualquer dicionário, a palavra “povo” (do latim populu) define o conjunto de indivíduos que falam a mesma língua, têm costumes e hábitos idênticos, afinidades e uma história e tradições comuns. Porém, conceitos como “povo”, de forma análoga a outros termos com significados subjetivos, diversos e contraditórios, podem ser compreendidos ao se estudar suas transformações e usos ao longo do tempo. Na maioria das sociedades agrárias pré- -modernas as identidades coletivas se formavam apenas no seio das elites governantes, portanto, em civilizações, impérios ou qualquer outra entidade política, antes do século XVIII, as massas de camponeses iletrados não possuíam uma identidade coletiva. Esses camponeses, que formavam a maioria da população, na visão das elites governantes, deviam continuar marginalizados vivendo com seus costumes e práticas e “superstições”. Para contribuir ainda mais para a esta marginalização, a massa de camponeses, geralmente, se expressava por meio de dialetos locais, que dependendo da distância que habitavam do poder central, podia ser mais ou me- nos semelhantes ao idioma das elites governantes. Tal realidade, aliada ao analfa- betismo, que era norma na época, obliterava qualquer possibilidade de acesso ao conhecimento que, geralmente, era reservado, na Europa, aos que falavam idiomas clássicos como o grego e o latim. Convém lembrar que, aqui, nos referimos às so- ciedades cujos governantes reinavam pelo princípio do “direito divino”, portanto, neste quadro, a legitimação dos governantes não dependia pela aprovação popular. Era uma relação – como ocorria na Idade Média, na Europa feudal – de troca e dependência, certamente desigual para os padrões contemporâneos, que envolvia, por exemplo, pela parte do povo, fornecimento de alimentos, mão de obra e soldados em troca de proteção da nobreza. Ainda em tempos pré-modernos, o termo “povo” podia ser utilizado para designar grupos com características homogêneas, tais como, tribos, pequenos estados (reinos, principados etc.) e comunidades religiosas. Assim, “povo” podia servir para identificar coletivamente, gauleses, saxões, ibéricos, celtas e até o “povo de Deus”, para identificar cristãos na Europa medieval. UNIDADE 1 — DEFINIÇÕES DE POVO, CULTURA E RELIGIÃO 4 FIGURA 1 – OS GAULESES FONTE: <https://bit.ly/39k4Cw2>. Acesso em: 21 abr. 2020. Os gauleses, personagensda história em quadrinhos Asterix, o gaulês, são um exemplo bem-humorado de uma representação imaginada do passado francês como padrão de identidade coletiva para todos os franceses na atualidade. INTERESSA NTE O que aconteceu com os povos fenícios, hebreus, canaanitas, assírios, nabateus, ibéricos, gauleses, astecas, entre tantos outros que aparecem em nossos livros de História Antiga? Certamente não desapareceram. Eles estão vivíssimos em nossa genética como pode ser comprovado nos exames de DNA cada vez mais acessíveis para a pessoa comum. Esses povos se misturaram e se fundiram com outros povos, aliás, como ocorreu com nossos antepassados desde sua origem no continente africano. A ideia da existência de um povo geneticamente puro, ao longo da História, não só é impossível como é falaciosa, assim como é falsa a ideia que os povos antigos tenham desaparecido sem deixar traços ou mesmo que os povos atuais sejam uma continuidade biológica pura de povos antigos com o mesmo nome. NOTA TÓPICO 1 — POVO 5 2 DA IDADE MODERNA PARA A IDADE CONTEMPORÂNEA Na Europa Ocidental, a partir do século XV, com o fim da Idade Média, as me- lhorias dos meios de transporte, o aumento do comércio e, consequentemente, da maior interação entre as diferentes regiões, a ideia de “povo” se consolida em torno de grupos etnolinguísticos (povos que falavam o mesmo dialeto ou idioma). Assim, as identidades difusas e fragmentadas do período medieval tendem a se uniformizar em torno dos pa- drões identitários ditados pelo poder central dominado pela nobreza, laica e religiosa. No entanto, apenas do século XVIII em diante, é que as massas marginalizadas, em certas sociedades europeias, cujos privilégios se limitavam à nobreza, são elevadas à condição de cidadãos. Isso ocorre como resultado das mudanças econômicas, sociais e políticas, como, por exemplo, a Revolução Francesa e a Revolução Industrial. Porém, é no século XIX, com o surgimento dos estados-nações, que o termo “povo” vai adqui- rir sua definição moderna. É importante ressaltar que o uso do termo “povo” se torna extremamente conveniente para reforçar uma narrativa nacionalista, que surge no sé- culo XIX, buscando, no simbolismo do termo, um sentido necessário de continuidade histórica para as nações-estados que surgem na Europa e depois na América. Consequentemente, a narrativa nacionalista, a partir do século XIX, tende a manipular o termo “povo” com intuito de impor uma identidade homogênea comum a todos os habitantes dos estados-nação. Dessa maneira, na França, país formado historicamente por uma amálgama de povos através de sua história, tenta fazer dos gauleses sua única ou principal referência identitária. O mesmo princípio ocorre em países formados em épocas mais recentes, como o Brasil, cuja elite políti- ca e intelectual procura, na impossibilidade de negar a diversidade óbvia presente na formação de nossa população, destacar o papel e contribuições de determinados grupos étnicos em detrimento ou mesmo na invisibilidade de outros. A mudança ocorrida, no final do século XVIII, inclusive, pode ser observada nas constituições modernas nas quais a palavra “povo” começa a aparecer em destaque. A primeira aparição da palavra “povo” ocorre no preambulo da Constituição dos Estados Unidos da América, redigida em 1787, se inicia com a frase: “We the People of the United States” (“Nós, o Povo dos Estados Unidos”) (ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, 1787, s.p.). Em seguida, na primeira Constituição francesa, de 1791, o termo aparece na frase: “A Soberania é una, indivisível, inalienável e imprescritível. Ela pertence à Nação e nenhuma parte do povo nem indivíduo algum pode atribuir-se o exercício” (FRANÇA, 1791, s.p.). No Brasil, o termo “povo”, na Constituição do Império de 1824, aparece na frase “Dom Pedro Primeiro, por graça de Deus, e unânime aclamação do povo, Impe- rador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil...” (BRASIL, 1824, s.p.). É signifi- cativo que, na carta magna do império, “povo” aparece apenas para aclamar a figura do imperador que reina por “graça divina”. Em contraste, na Constituição republica- na de 1891, o termo “povo” adquire um novo status: “Nós, os representantes do povo brasileiro...” (BRASIL, 1891, s.p.). E, finalmente, na Constituição de 1988, em sua forma atual: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (BRASIL, 1988, s.p.). UNIDADE 1 — DEFINIÇÕES DE POVO, CULTURA E RELIGIÃO 6 FIGURA 2 – A LIBERDADE LIDERANDO O POVO (REVOLUÇÃO FRANCESA) FONTE: <https://bit.ly/2J5EDxE>. Acesso em: 15 mar. 2020. É importante lembrar que após o século XVIII as mudanças político-sociais transfor- mam os habitantes de um país, antes súditos de um soberano, em cidadãos de uma nação. Por- tanto, a lealdade e obediência aos soberanos é substituída pela lealdade ao país. Dessa maneira, a obediência aos representantes eleitos se baseia no que está estipulado em uma Constituição que, por sua vez, é transformada em lei máxima para todos, sejam cidadãos ou governantes. Isso fica demonstrado pelo fato de que em monarquias os votos de lealdade (em cerimonias de naturali- zação, em cerimonias militares etc.) são dirigidos ao rei ou rainha e a seus sucessores dinásticos. Nas repúblicas, como ocorre no Brasil, de maneira simbolicamente diferente, em rituais e cerimô- nias análogos, se presta juramento à bandeira e não a um indivíduo em particular. IMPORTANT E Na segunda metade do século XIX, nas Ciências Sociais, o termo “povo” surge como alternativa a categoria “raça”. Esta uma categoria menos flexível, mais estática, porque, teoricamente, baseada na Biologia, é utilizada em um contexto histórico que tentava estabelecer hierarquias raciais em bases científicas. É no século XIX, na sua se- gunda metade, quando os europeus vão recorrer à ciência, ou à pseudociência, em alguns casos, para explicar sua superioridade tecnológica e justificar o domínio da Eu- ropa sobre o resto do mundo. Esta simbiose entre “povo” e “raça” teria consequências trágicas no século XX, quando transformada em ideologia de Estado para discriminar, rejeitar e mesmo exterminar grupos considerados inassimiláveis e indesejáveis. O termo “povo”, assim, torna-se modernamente uma metaidentidade que, como o termo indica, incorpora aspectos culturais, linguísticos e religiosos cuja narra- tiva histórica, inicialmente romantizada pelo nacionalismo, passa, ao longo do século TÓPICO 1 — POVO 7 XIX, a ganhar o status de ciência. Essa mudança é adotada por historiadores, que no século XIX, se tornam profissionais encarregados de escrever as narrativas patrióticas de estados-nações para promover a ligação desejada entre passado e o presente. Um dos objetivos principais do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), fundado em 1838, no Rio de Janeiro, era justamente escrever uma história brasileira para um país que tinha ficado independente há apenas dezesseis anos. A ideia é que um país sem his- tória era como um indivíduo sem biografia. Assim, copiando as tendências do nacionalismo na Europa, promovia-se competições em que se escolhia qual narrativa seria considerada como história oficial do Brasil. É importante destacar que a criação de “vultos históricos”, datas sele- cionadas para se celebrar e uma narrativa heroica e patriótica passa a ser a ocupação de histo- riadores profissionais como um componente fundamental na simbologia do estado-nacional. IMPORTANT E FIGURA 3 – O FARDO DO HOMEM BRANCO (1899) FONTE: <https://bit.ly/377EgdZ>. Acesso em: 15 mar. 2020. UNIDADE 1 — DEFINIÇÕES DE POVO, CULTURA E RELIGIÃO 8 O fardo do homem branco é uma charge do final do século XIX que retrata de forma critica o imperialismo europeu e norte-americano. Explicação da charge: escalando a montanha rumo à civilização, John Bull (Inglaterra) e Tio Sam (Estados Unidos) carregam nas costas o resto da humanidade não branca (africanos, latino-americanos,chineses, árabes, indígenas etc.) para ajudá-los a superar as “pedras” da ignorância, superstição, bar- bárie, opressão, brutalidade e vício, características naturais desses povos. INTERESSA NTE FIGURA 4 – OS JUDEUS FONTE: <https://bit.ly/2UY51fs>. Acesso em: 15 mar. 2020. Os judeus é uma ilustração da propaganda nazista, na década de 1930, que busca desumanizar a figura do judeu junto à população alemã e com isso encorajar a dis- criminação e justificar a perseguição aos judeus. Tradução da frase na ilustração: “O espírito judeu corrói a saúde do povo alemão”. INTERESSA NTE TÓPICO 1 — POVO 9 FIGURA 5 – SEGREGAÇÃO RACIAL FONTE: <https://bit.ly/374gNuq>. Acesso em: 15 mar. 2020. Segregação racial no Sul dos Estados Unidos, na década de 1940. A foto foi tirada na Rodoviária de Durham, na Carolina do Norte. A placa indica a sala de espera separada para negros. A segregação racial no Sul dos Estados Unidos só terminou, oficialmente, em 1965. INTERESSA NTE 3 O USO POLÍTICO E SOCIAL CONTEMPORÂNEO DO CONCEITO DE “POVO” Na França, antes da Revolução Francesa, “povo” identificava membros do Ter- ceiro Estado que, por sua vez, incluía qualquer indivíduo que não pertencesse à nobreza formada por clérigos (Primeiro Estado) e nobres laicos (Segundo Estado). Entretanto, o Terceiro Estado na França pré-revolucionária, era formado por uma enorme de massa, (cerca de 96% da população francesa) de burgueses, trabalhadores urbanos e campone- ses. Como seria de se esperar, um espectro social tão diverso tinha identidade, anseios e objetivos muito diferentes. Fato, aliás, que fica evidente no desenrolar da Revolução em que as ideias radicais pleiteadas pelos grupos menos favorecidos, dentro do Terceiro Estado, são derrotadas pelas ideias conservadoras da burguesia que emerge triunfante. As mudanças sociais provocadas pelas Revoluções Francesa e Industrial e, mais tarde, na Era das Revoluções, no século XIX, como foi chamado o período por Eric Hobsbawm (1917-2012), revoluções ocorridas na América Latina e Europa, im- primem ao termo “povo” um caráter ideológico que o relaciona às massas do prole- tariado urbano e camponeses no meio rural. Também é importante destacar que, na- UNIDADE 1 — DEFINIÇÕES DE POVO, CULTURA E RELIGIÃO 10 quela altura, essa nova leitura do termo “povo” é inspirada por uma nova ideologia chamada marxismo, que era uma ideologia com pretensões revolucionárias concebi- da pelo intelectual alemão Karl Marx (1818-1883). Assim, a partir daquele momento, “povo” será também associado ao proletariado e entendido como uma categoria ou classe social em permanente oposição e conflito com a burguesia. Dessa maneira, “povo” adquire, em linhas gerais, o significado que conhecemos, com variações no emprego do termo, muitas vezes, ditada pela orientação ideológica, mas relacionada, geralmente, às classes subalternas ou segmentos pobres da população. Povão, povinho, povaréu, povo-miúdo, gentinha, arraia-miúda, povoléu, plebe, populacho, poviléu, ralé, gentiaga. São alguns adjetivos de uso popular, depreciativos, que associam “povo” às classes sociais subalternas. NOTA 4 ETNIA Na segunda metade do século XX, “etnia” surge como alternativa para “raça”, “nacionalidade”, “origem” e outros significados dependendo do contex- to. Em uma definição genérica etnicidade é o conjunto de características comuns a um grupo de pessoas, que as diferenciem de outro grupo. Geralmente, as diferen- ças incluem a língua, a cultura e uma origem comum. O termo “etnia” significa “povo”, em grego, e, na sua origem, foi usado para identificar “estrangeiros”. A partir da década de 1950, o termo é definitivamente adotado como abordagem científica. Sua principal vantagem, se comparado com “raça”, é com- binar uma bagagem cultural com laços de sangue. Assim, “etnia” possibilitava a sinergia entre um passado linguístico e uma origem biológica. Consequentemente, a flexibilidade conceitual do termo “etnia” possibili- tou que antropólogos, como o norueguês Fredrik Barth (1928-2016), na segunda metade do século XX, demonstrassem, por exemplo, o anacronismo do emprego de conceitos como “tribo” em sociedades não europeias. Ou outros termos aná- logos utilizados, no mesmo período, que refletiam o pensamento intelectual da época. Por isso, termos como “raça” e “tribo” pretendiam ser definitivos, mono- líticos, inflexíveis e preconceituosos nos estudos de sociedades não-europeias. No final do século XX e início do XXI, o termo “etnicidade” volta a ter popu- laridade baseado na teoria do filosofo francês contemporâneo Étienne Balibar (1942-) que a definiu como inteiramente fictícia. Balibar (1998) insiste que as nações não são “étnicas” e de que a própria noção de “origem étnica” é duvidosa. Ele sugere que é o nacionalismo, como ideologia, que torna nações etnicamente diversas em entidades 11 que compartilham uma cultura homogênea por um processo pelo qual estas nações passam a ser apresentadas como uma comunidade natural (BALIBAR, 1998). Essa abordagem crítica do conceito de estado-nação, busca evitar as armadilhas contidas nas definições etnobiológicas ou etnoreligiosas que, infelizmente, ainda dominam a ideologia do nacionalismo e suas formulações etnicistas e essencialistas mesmo após as experiências trágicas do nacionalismo radical na primeira metade do século XX. FIGURA 6 – ETNONACIONALISMO NA POLÍTICA FRANCESA FONTE: <https://bit.ly/3kZKvp9>. Acesso em: 5 maio 2020. A charge critica a declaração do presidente francês, Nicolas Sarkozy, que, em 2016, declarou que, independente da origem, todos os franceses, mesmo os imigrantes, deveriam incorporar a ideia de uma ancestralidade gaulesa. ATENCAO 12 FIGURA 7 – INTEGRALISMO FONTE: <https://glo.bo/39aR2eq>. Acesso em: 22 abr. 2020. O Integralismo foi uma forma de nacionalismo radical que surgiu no Brasil, in- fluenciado pelo fascismo e outras ideologias totalitárias europeias. O Integralismo surgiu após a Revolução de 1930, defendendo um nacionalismo antiliberal, antissocialista e xenófobo. NOTA FIGURA 8 – NACIONALISMO SUPREMACISTA “BRANCO” NOS EUA FONTE: <https://bit.ly/3lXD6Im>. Acesso em: 22 abr. 2020. 13 Os supremacistas brancos nos Estados Unidos defendem ideologias racistas, através de discursos de ódio contra minorias. ATENCAO O pensamento essencialista define-se por duas características: atribui a todos os membros de um grupo social, étnico, histórico ou racial, atributos que podem, com efei- to, encontrar-se, mais ou menos frequentemente, entre os membros desse grupo; explica esses atributos pela natureza do grupo e não pela situação social ou pelas condições de vida. Quando o grupo é visto com aspectos favoráveis estes passam a ser características deste grupo; quando o grupo é visto de maneira negativa, só os aspectos desfavoráveis contam. Assim, os indivíduos do grupo visto de maneira negativa, que por alguma razão, escapam deste estereótipo são considerados como exceções e atípicos. FONTE: ARON, R. Les désillusions du progrès. Paris: Calmann-Lévy, 1969, p. 86. IMPORTANT E No final do século XX e início do XXI, o nacionalismo etnobiológico e et- noreligioso parecia resistir às pressões de teorias, como destacamos no trabalho de Etienne Balibar (1998). A despeito da diversidade e particularidades de cada país, certos aspectos são comuns na estruturação de uma nação. Não obstante, a existência de uma origem étnica ou religiosa foi a ideologia do nacionalismo, a partir do século XIX, ancorada no ímpeto secularista que iria estabelecer os limi- tes do papel desempenhado pela religião nas nações-estado modernas. A partir da segunda metade do século XIX e por quase todo século XX, após in- tensa exposição, as ideologias de cunho laico e sob influência de intelectuais, tais como Auguste Comte, Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber, o papel da religião nos círculos acadêmicos sofre um processo de marginalização (SAHLIYEH, 1990). A ideia é que a religião seria relegada, cada vez mais, aum papel secundário e, eventualmente, desapareceria varrida pelos ventos da modernidade (NORRIS; INGLEHART, 2004). No entanto, o surgimento de movimentos religiosos, em escala global, nas décadas finais do século XX, após décadas de influência marcante de ideologias seculares, tais como, capitalismo, socialismo, liberalismo e comunismo, demons- tram que a religião, em suas várias esferas de manifestações, continua a desempe- nhar um papel fundamental na vida bilhões de seres humanos. 14 O surgimento, ou ressurgimento de identidades etnoreligiosas em diversas regiões do mundo, afetam, sem exceção, todas as religiões chamadas universais. Conflitos e tensões entre grupos etnoreligiosos distintos e, em alguns ca- sos, entre estes grupos e o Estado demonstraram a necessidade de se estudar o fenômeno religioso em um novo contexto histórico, porém, nem só de conflitos se caracterizou o revivalismo religioso contemporâneo. Grupos religiosos em sua forma tradicional ou em forma de novas estruturas sectárias tornam-se atores de peso na política e em sociedade com projetos de poder, ironicamente, colocados em prática via mecanismos disponibilizados pelo estado lai- co que, no passado, foram utilizados para alijar intuições religiosas do poder. • Etnonacionalismo é a forma de nacionalismo que se define em termos de etnicidade. O Países com políticas e práticas etnonacionalistas: Armênia, Bulgária, Croácia, Estônia, Fin- lândia, Alemanha, Grécia, Hungria, Israel, Itália, Malásia, Romênia, Rússia, Sérvia e Turquia. • Nacionalismo etnoreligioso é a simbiose entre nacionalismo e uma religião em particular. Esta conexão se baseia em duas premissas: na politização da religião e a influência na política. O Nacionalismo budista: Myanmar e Sri Lanka. O Nacionalismo cristão (igrejas evangélicas): Estados Unidos. O Nacionalismo católico: Polônia e Irlanda. O Nacionalismo cristão ortodoxo: Rússia. O Nacionalismo cristão maronita: Líbano. O Nacionalismo hindu: Índia. O Nacionalismo islâmico (sunita): Paquistão. O Nacionalismo judaico (sionismo): Israel. NOTA 5 RAÇA COMO CONSTRUÇÃO SOCIAL Theodore W. Allen (1919-2005), na década de 1960, publicou dois volumes de uma obra monumental intitulada A invenção da raça branca. Nessa obra está documen- tado como nos Estados Unidos se criou a categoria racial “branco” para explorar eco- nomicamente os africanos escravizados e para, mais tarde, controlar as nações não- -brancas (ALLEN, 1940). Portanto, brancos não existem; negros não existem. Assim como não existem, vermelhos, amarelos, pardos, azuis, roxos, púrpura ou pessoas de qualquer outra cor. As cores são produtos socialmente construídos, mas são constru- ções que resultaram em tragédias de consequências inimagináveis (DABASHI, 2017). Há mais de cem anos, o sociólogo americano W. E. B. Du Bois (1868-1963) se preocupava com o fato de “raça” estar sendo usada como uma explicação biológica para explicar diferenças sociais e culturais entre indivíduos e povos. Ele se manifes- 15 tou contra a ideia de "branco" e "preto" como grupos distintos, alegando que essas categorizações ignoravam o escopo da diversidade humana (DU BOIS, 2014). A ciência, mais tarde, confirmaria a teoria de Du Bois. Hoje, a tese domi- nante entre os cientistas afirma que raça é uma construção social sem fundamento biológico. E, no entanto, ainda encontramos estudos de genética, em revistas cien- tíficas, utilizando categorias como "branco" e "preto" como variáveis biológicas. De acordo com Pappas (2013), em um artigo publicado pela revista Science, quatro especialistas sugeriram que as categorias raciais são exemplos inadequados para explicar a diversidade genética e precisam ser eliminadas. Estes especialistas pediram às Academias Nacionais de Ciências, Engenharia e Medicina dos EUA que reunissem um painel de especialistas nas ciências biológicas e sociais para encontrar maneiras de os pesquisadores se afastarem do conceito racial na pesquisa genética. Raça, portanto, é um conceito que consideramos monolítico demais cujo significado social que interfere no entendimento científico da diversidade genética humana. Para Michael Yudell (2014), professor de Saúde Pública na Universidade de Drexel, a pesquisa genética moderna está trabalhando com um paradoxo: raça é entendida como uma ferramenta útil para elucidar a diversidade genética humana, mas, por outro lado, a raça também se constitui como um marcador inadequado e impreciso para se estudar a relação entre ancestralidade e genética (YUDELL, 2014). Svante Pääbo (2014), biólogo e diretor do Instituto Max Planck de Antro- pologia Evolucionária, na Alemanha, e que trabalhou no genoma do Homem de Neandertal, afirma: O que o estudo de genomas completos de diferentes partes do mundo mostrou é que, mesmo entre a África e a Europa, por exemplo, não há uma única diferença genética absoluta, ou seja, nenhuma variante em que todos os africanos tenham uma variante e todos os europeus outra. Mes- mo quando a migração recente é desconsiderada. É tudo uma questão de diferenças na frequência com que diferentes variantes ocorrem em dife- rentes continentes e em diferentes regiões (PÄÄBO, 2014, p. 218). Teorias de diferenças genéticas entre pessoas de diferentes raças tiveram repercussões sociais e históricas e ainda ameaçam alimentar crenças racistas. Isto ficou demonstrado há dois anos quando vários cientistas se irritaram com a in- clusão de suas pesquisas no livro polêmico Uma herança problemática, de Nicholas Wade, publicado em 2014. No livro, Wade propõe que a seleção genética deu origem a comportamentos distintos entre diferentes populações. Em um artigo do jornal The New York Times, Allen (2014, s.p.) escreve: “Wade justapõe um relato incompleto e impreciso de nossa pesquisa de diferenças genéticas humanas com especulações de que a seleção natural recente levou a diferenças nos resultados dos testes de QI nas instituições políticas e no desenvolvimento econômico”. Michael Yudell (2014, p. 84) observa que fazer suposições baseadas em aspectos raciais pode também ser perigoso na Medicina: “Se você fizer previsões 16 clínicas com base na raça de alguém estará na maior parte das vezes errado Yu- dell e seus colegas usaram o exemplo da fibrose cística, que é subdiagnosticada em pessoas de ascendência africana porque é considerada uma doença "branca”. Mindy Fullilove (1999), psiquiatra da Universidade de Columbia, acha que as mudanças propostas na abordagem do conceito de raça são "extremamente ne- cessárias". Fullilove (1999) observa que, de acordo com algumas leis no Sul do Esta- dos Unidos, as pessoas que tenham apenas um ancestral negro entre outros trinta e dois ancestrais são consideradas “negras”. O problema dessa legislação anacrônica é que seus 31 ancestrais brancos também são importantes para influenciar herança genética no que diz respeito a sua saúde. Fullilove (1999) acredita que as mudanças propostas na abordagem do conceito de “raça” são fundamentais que se tenha uma ciência melhor (GANNON, 2016). Contudo, fica a pergunta de que outras variáveis poderiam ser usadas se o conceito racial fosse descartado. De acordo com Pääbo (2014), a geografia poderia ser um substituto me- lhor, em regiões como a Europa, para se estudar populações a partir de uma perspectiva genética. No entanto, ele acrescenta que, na América do Norte, onde a maioria da população, nos últimos trezentos anos, vem de diferentes partes do mundo, categorias étnicas, como "afro-americanos" ou "europeu-americanos", ainda podem funcionar como abordagem válida para se analisar a origem da an- cestralidade de uma determinada pessoa (PÄÄBO, 2014). Yudell (2014) concorda, também, que os cientistas precisam ser mais específi- cos em sua linguagem, talvez, usando termos como "ancestralidade" ou "população" que possam refletir com mais precisão a relação entre os seres humanos e seus genes, tanto no nível individual quanto no coletivo. Os pesquisadores tambémreconhecem que, em algumas áreas, o conceito de “raça”, como uma construção, ainda pode ser útil como uma variável política e social, mas não biológica (YUDELL, 2014). FIGURA 9 – RAÇA, UMA CONSTRUÇÃO SOCIAL FONTE: <https://bit.ly/2J5Aj1p>. Acesso em: 1º mar. 2020. 17 Povos sem estado. A simbiose entre povos e estados-nação (países) é um fenômeno europeu da transição da Idade Moderna para a Idade Contemporânea (a partir do século XVIII) e este modelo foi exportado para o mundo através do colonialismo. Ape- sar do senso comum pensar o contrário, apenas 3% dos grupos étnicos no mundo tem seu próprio país. A maioria está distribuído em um ou mais países. Portanto, povos sem estado são a maioria em nosso mundo. Os 10 povos mais numerosos, sem estado (em milhões): • Curdos (30 – 45) – Iraque, Síria e Irã. • Iorubás (35) – Nigéria, Benin e Togo. • Igbo (30) – Nigéria. • Occitanos (16) – França, Espanha e Itália. • Assam (15) – Índia. • Uigur (15) – China, Rússia, Cazaquistão, Uzbequistão e Quirguistão. • Palestinos (13) – Margem Ocidental, Faixa de Gaza, Israel, Síria e Líbano. • Zulus (12.2) – África do Sul, Zimbábue, Lesoto e Suazilândia. • Bávaros (12,5) – Alemanha. • Balúchis (10) – Paquistão, Irã e Afeganistão. IMPORTANT E 18 Neste tópico, você aprendeu que: RESUMO DO TÓPICO 1 • “Povo” é um conjunto de indivíduos que falam a mesma língua, têm costumes e hábitos idênticos, afinidade de interesses, uma história e tradições comuns. • Para entender melhor o conceito de “povo” é preciso entender sua evolução no tempo. • Até o século XVIII, o termo “povo” era usado para identificar grupos com características homogêneas, como por exemplo, tribos, pequenos estados e comunidades religiosas. • Nos séculos XVIII e XIX, com o surgimento dos estados-nações, o termo “povo” adquire sua definição moderna. • Na segunda metade do século XIX, o termo “povo” começa a ser usado como alternativa ao termo “raça”. • Etnicidade, em uma definição genérica, é o conjunto de características comuns a um grupo de pessoas, que as diferenciem de outro grupo. • Etnicidade foi, definitivamente, adotada como abordagem científica, a partir da década de 1950. A principal vantagem do termo, se comparado com raça, é combinar uma bagagem cultural com laços de sangue. • A flexibilidade conceitual do termo “etnia”, no entanto, possibilitou que antropó- logos, como Fredrik Barth, demonstrassem em sociedades não europeias o anacro- nismo de conceitos como “tribo”, que por sua vez, como outros termos utilizados na segunda metade do século XIX, refletia o pensamento intelectual da época. • Étienne Balibar (1998) insistiu no fato de que as nações não são “étnicas” e de que a própria noção de sua “origem étnica” é duvidosa. É o nacionalismo que torna nações etnicamente diversas em entidades que compartilham uma cultura homogênea em um processo pelo qual elas passam a ser apresentadas como uma comunidade natural. 19 1 Etnia é uma categoria de análise, que apesar de conhecida já no século XIX, começa a ser usada como abordagem definitiva após a década de 1950, principalmente, como consequência da relação do termo “raça” com ideias racistas. Sobre a origem da palavra “etnia” qual é seu significado original? a) ( ) Raça. b) ( ) Inimigo. c) ( ) Estrangeiro. d) ( ) Parente. 2 “Povos sem estado” é uma realidade bem mais comum do se pode imagi- nar pelo senso comum. Espalhados pelo mundo, são milhões de pessoas, de determinados grupos étnicos, que vivem em estados-nações como mi- norias, embora pleiteiem uma nação geograficamente definida para seus respectivos grupos étnicos. Assinale, a seguir, a alternativa que CORRETA- MENTE lista os povos sem estado no mundo atual. a) ( ) Búlgaros, armênios e chechenos. b) ( ) Curdos, igbos e palestinos. c) ( ) Zulus, azerbaijanos e iorubás. d) ( ) Uigures, cazaques e berberes. 3 O termo “raça” surge em um contexto histórico que favorece interpretações deterministas e racistas baseadas em teorias pseudocientíficas em voga na época. Levando-se em consideração este quadro, em que contexto histórico aparece o uso do termo “raça”? a) ( ) No contexto de descolonização do mundo pós II Guerra Mundial. b) ( ) No contexto atual após a Guerra Fria. c) ( ) No contexto das Grandes Navegações no século XV. d) ( ) No contexto do cientificismo e imperialismo da 2ª metade do século XIX. AUTOATIVIDADE 20 21 TÓPICO 2 — UNIDADE 1 CULTURA 1 INTRODUÇÃO O termo “cultura” tem origem em “cultivar” relacionado à agricultura e por séculos seu significado foi produzir, desenvolver, por exemplo, cultivar trigo, cultivar artes ou mesmo cultura de bactéria. Cicero, orador romano, foi o pioneiro no emprego do termo como metáfora, com origem na agricultura, para “a forma- ção de uma alma filosófica entendido como o estágio mais avançado do desenvol- vimento humano” (LIMA, 2002, p. 14). Samuel Pufendorf (1632-1694), jurista alemão no século XVII, adotou a me- táfora de Cícero em um contexto moderno com significado semelhante, mas des- cartando o ideal original de que filosofia era o aperfeiçoamento natural do homem. Pufendorf e outros que o seguiram, passaram a entender “cultura” como: “relacio- nada com tudo que faz o ser humano superar seu estágio original de barbarismo e com habilidade se tornar um ser humano completo” (VELKLEY, 2002, p. 15). Em meados do século XVIII, o termo “cultura” começa a ser usado como sinônimo de “civilização” Civilizado passa a significar ser culto ou possuidor de “boas maneiras” e saber apreciar arte, música e literatura. Portanto, naquela altura, “cultura” adquire seu o significado contemporâneo. No entanto, esse uso do conceito de cultura é individual, pois, coletivamente, com a Revolução Indus- trial, tudo associado com “mecânica” passa a ser o oposto de “cultural”. Isso deu início à separação entre atributos individuais e de grupos, e do que é “espiritual e cultural” e do que é “mecânico e material”. Assim, o conceito de “civilização” é associado a esses dois aspectos tão distintos, e cultura, a partir do século XVIII, é entendida como um processo de desenvolvimento intelectual, espiritual e estético (WILLIAMS, 1983). O filósofo alemão, Immanuel Kant (1724-1804), no século XVII, elaborou uma definição individualista de Iluminismo semelhante ao conceito Bildung. O Iluminismo assim libertaria o homem de sua imaturidade atávica e falta de cora- gem de pensar independentemente. Para combater o que Kant chamava covardia, ele encorajava o homem a ousar para ser sábio. Em resposta a Kant, outros intelectuais alemães, como Johann Gottfried Herder (1744-1803), defendiam que a criatividade humana, mesmo sendo imprevisível e diversificada, era tão importante como a racionali- 22 UNIDADE 1 — DEFINIÇÕES DE POVO, CULTURA E RELIGIÃO dade. Ademais, Herder propunha uma forma coletiva de Bildung que ele definia como a “totalidade das experiências de um povo que formavam uma identidade coletiva coerente e um sentimento de destino comum" (FORSTER, 2018, p. 253). Em 1795, Wilhelm von Humboldt (1767-835), um linguista e filósofo prussiano, sugeriu uma antropologia que pudesse sintetizar as ideias de Kant e Herder. Portan- to, na era do Romantismo, intelectuais alemães, particularmente os envolvidos com os movimentos nacionalistas nos diversos estados germânicos e entre as minorias do Império Austro-Húngaro, desenvolvem o conceito de Weltanschauung (cosmovisão). Segundo esta escola de pensamento, cada grupo étnico possui uma cosmovisão única e distinta de outros grupos. Apesar de contemplar certa diversidade cultural, a cosmo- visão ainda separava os grupos humanos entre “civilizados” e “primitivos”. Mais tarde, no século XIX, o inglês E. B. Tylor (1832-1917), fundador da Antropologia Cultural, definia cultura como “uma totalidade complexa que inclui, conhecimento, crença, artes, ética, leis, costumes e outras características e hábitos adquiridos pelo ser humano com membro de uma sociedade”(TYLOR, 1994). Ainda na metade do século XIX, Adolf Bastian, antropólogo alemão, apre- sentava sua teoria da “unidade psíquica da humanidade” na qual, por meio de comparação cientifica de todas sociedades, revela que cosmovisões diferentes possuem os mesmos elementos básicos. Para Bastian, todas sociedades huma- nas compartilhavam um sistema comum de “ideias elementares” (Elementarge- danken) e culturas populares diferentes (Völkergedanken) eram modificações locais de ideias elementares. A teoria de Bastian abriu caminho para uma compreensão contemporânea de cultura que viria, no começo do século XX no trabalho seminal do antropólogo Franz Boas, seu discípulo mais ilustre. 2 RELATIVISMO CULTURAL No início do século XX, a teoria do Relativismo Cultural de Franz Boas (1858- 1942) antropólogo alemão radicado nos Estados Unidos, foi uma verdadeira revolu- ção acadêmica na área de cultura. Boas rompe com os paradigmas vigentes. No final do século XIX, o cientificismo dominava todas as áreas de conhecimento. O cientifi- cismo, nas áreas das chamadas Ciências Humanas e Sociais, se baseava em teorias racistas que pressupunham a existência de uma rígida hierarquia, inclusive cultural, que classificava diferentes grupos humanos em “superiores” e “inferiores”. A ortogêneses, por exemplo, sugeria que todas as sociedades progrediam, de forma linear, através dos mesmos estágios e de uma mesma sequência. Para os evolucionistas, apesar dos povos Inuit (esquimós) e alemães viverem na mes- ma época, os primeiros se encontravam em um estágio inicial da evolução e os últimos em um estado avançado. Porém, Boas (1982) percebe que essa teoria re- plicava o equívoco comumente cometido na teoria de Darwin. Este teria sugerido que os seres humanos descendiam dos chimpanzés. Na verdade, porém, Darwin sugeriu que chimpanzés e humanos evoluíram paralelamente. Para Darwin era TÓPICO 2 — CULTURA 23 fundamental atentar aos processos pelos quais uma espécie se transforma em ou- tra; portanto, “adaptação” é a chave que explica a relação entre as espécies e seu meio ambiente e seleção natural como mecanismo de mudança. Outro aspecto extremamente importante no trabalho de Boas foi, analitica- mente, substituir a categoria epistemologicamente rígida “raça” pela flexibilidade da categoria “cultura”. O antropólogo teuto-americano, de origem judaica, ao lon- go de sua carreira acadêmica combateu vigorosamente o paradigma racista que inspiraria a ideologia nazifascista e formou uma nova geração de intelectuais que dariam continuidade a sua obra, entre eles, o brasileiro Gilberto Freyre (1900-1987). Assim, no final do século XIX e, especialmente, no século XX, o conceito de cultura, gradualmente, se desvincula do caráter hierarquizante, exclusivista e associado a um ideal civilizatório eurocêntrico. Portanto, cultura assume um caráter universal, múltiplo, plural e desprovido de hierarquias. Isto passa a significar, ao contrário do que era preconizado pelos paradigmas cientificistas anteriores, que a cultura dos Inui não era nem melhor nem pior que a dos alemães, mas era apenas diferente. Assim, segundo Boas (1982), não existiam cultura e sim culturas. FIGURA 10 – RELATIVISMO CULTURAL FONTE: <https://bit.ly/2HxUHI3>. Acesso em: 31 maio 2020. Relativismo cultural inverso: o branco como exótico para não brancos. NOTA 24 UNIDADE 1 — DEFINIÇÕES DE POVO, CULTURA E RELIGIÃO 3 CULTURA DE MASSA E A ESCOLA DE FRANKFURT NO SÉCULO XX A "Escola de Frankfurt" refere-se a um grupo de teóricos alemães, muitos radicados, posteriormente, nos Estados Unidos, e que elaboraram teorias críticas às mudanças ocorridas nas sociedades capitalistas ocidentais desde da elaboração da teoria clássica de Karl Marx. Trabalhando no Institut für Sozialforschung, em Frank- furt, Alemanha, no final da década de 1920 e início da década de 1930, teóricos como Max Horkheimer, T. W. Adorno, Herbert Marcuse, Leo Lowenthal e Erich Fromm produziram alguns dos primeiros relatos da teoria social crítica da impor- tância da cultura de massa e da comunicação na reprodução e dominação sociais. A Escola de Frankfurt também gerou um dos primeiros modelos de estu- dos culturais críticos que analisaram os processos de produção cultural e econo- mia política, a política de textos culturais e a recepção do público e o uso de artefa- tos culturais (KELLNER, 1990). Deixando a Alemanha nazista e se instalando nos Estados Unidos, a Escola de Frankfurt observou, em primeira mão, o surgimento de uma cultura de mídia envolvendo cinema, música popular, rádio, televisão e outras formas de cultura de massa (WIGGERSHAUS, 1994). Nos Estados Unidos, onde se exilaram por causa do nazismo, a produção de mídia era, em geral, uma forma de entretenimento comercial controlado por grandes corporações. Max Horkheimer e T.W. Adorno, dois de seus principais teóricos, desen- volveram, nos Estados Unidos, uma análise da "indústria cultural" para chamar a atenção para a industrialização e comercialização da cultura sob as relações capitalistas de produção. Este quadro, nos Estados Unidos, com pouco apoio es- tatal às indústrias de cinema ou televisão e onde surgiu uma cultura de massa altamente comercial, se tornou um modelo das sociedades capitalistas e um foco de estudos culturais críticos. Durante a década de 1930, a Escola de Frankfurt desenvolveu uma abor- dagem crítica e transdisciplinar dos estudos culturais e de comunicação, com- binando economia política, análise textual e análise dos efeitos sociais e ideoló- gicos da cultura de massa. Foi criado, assim, o conceito de "indústria cultural" para analisar o processo de industrialização da cultura produzida em massa e os imperativos comerciais que impulsionavam o sistema. Os teóricos da Escola de Frankfurt examinam todos os artefatos culturais produzidos em larga escala que possuem as mesmas características de outros produtos produzidos em escala industrial, tais como, padronização, comercialização e massificação. As indústrias culturais tinham a função específica de prover a sustentação ideológica das sociedades capitalistas e de integrar indivíduos em seu modo de vida. Dessa maneira a os intelectuais da Escola de Frankfurt produziram análises como, por exemplo, as de Adorno sobre música popular, televisão, astrologia e discursos fascistas; os estudos, de Lowenthal, sobre literatura e revistas populares; e os estudos de novelas de rádio, perspectivas e críticas, de Herzog. Para os teóricos TÓPICO 2 — CULTURA 25 da Escola de Frankfurt, a cultura de massa e a mídia estão no centro da atividade de lazer, são importantes agentes da socialização, mediadores da realidade política e, portanto, devem ser vistas como grandes instituições das sociedades contempo- râneas, com diversos efeitos econômicos, políticos, culturais e sociais. Perseguidos pelo totalitarismo europeu, a Escola de Frankfurt experimentou, em primeira mão, como os nazistas usavam os instrumentos da cultura de massa para produzir submissão da cultura à ideologia fascista. Enquanto, exilados nos Estados Unidos, os membros da Escola de Frankfurt passaram a acreditar que a "cultura po- pular" norte-americana também era altamente ideológica e trabalhava para promover os interesses do capitalismo americano. Controladas por corporações gigantescas, as indústrias culturais eram organizadas de acordo com os princípios da produção em massa, que resultava na criação de um sistema cultural altamente comercial que, por sua vez, vendia os valores, estilos de vida e instituições "do estilo vida americano. FIGURA 11 – O MODO DE VIDA AMERICANO FONTE: <https://bit.ly/3m6ahtw>. Acesso em: 31 maio 2020. Justaposição de imagens mostrando o contraste entre a propaganda do modo de vida americano (o padrão de vida mais elevado do mundo) e a fila de desempregados negros. INTERESSA NTE Walter Benjamin (1892-1940), um intelectual peculiar, que se associou livremen- te à Escola de Frankfurt, em Paris, na década de 1930,descreveu aspectos das novas tecnologias de produção cultural, como fotografia, cinema e rádio. Em seu livro, A obra de arte na era da reprodução mecânica, observou como os novos meios de comunicação 26 UNIDADE 1 — DEFINIÇÕES DE POVO, CULTURA E RELIGIÃO estavam substituindo formas mais antigas de cultura, através das quais a reprodução em massa de fotografias, filmes, gravações e publicações, substituía a originalidade e a "aura" da obra de arte. Além disso, Benjamin (1996) acreditava que o fluxo de imagens criadas pelo cinema produzia subjetividades capazes de compreender a turbulência da experiência moderna nas sociedades urbanizadas e industrializadas. Walter Benjamin (1996) desejava promover uma política cultural e de mídia ra- dical, preocupada com a criação de culturas de oposição alternativas. No entanto, ele reconheceu que mídias como o filme poderiam ter efeitos conservadores. Embora ele considerasse progressivo que as obras produzidas em massa perdessem sua "aura", sua força mágica e abrissem artefatos culturais para discussões políticas e críticas, ele reco- nheceu que o filme poderia criar um novo tipo de magia ideológica através do culto a celebridades de certas estrelas ou imagens através da tecnologia do cinema. Benjamin foi, portanto, um dos primeiros críticos culturais radicais a examinar cuidadosamente a for- ma e a tecnologia da cultura da mídia na avaliação de sua natureza e efeitos complexos. Dando continuidade à crítica da indústria cultural, Max Horkheimer e T.W. Adorno escrevem a obra Dialectic of enlightenment (Dialética do iluminismo), que aparece pela primeira vez em 1948, e traduzida para o inglês em 1972. Eles argumentavam que o sistema de produção cultural era dominado por filmes, ra- diodifusão, jornais, e revistas, era controlado por imperativos comerciais e de pu- blicidade e servia para criar subserviência ao sistema de capitalismo de consumo. Embora os críticos posteriores tenham sugerido que esta abordagem exa- gera o poder manipulador do sistema de produção cultural e, além disso, era re- dutiva e elitista, o trabalho de Horkheimer e Adorno surge como uma alternativa crítica significativa a estudos que subestimam a maneira como as indústrias de mídia exercem poder sobre o público e ajudam a produzir pensamentos e com- portamentos compatíveis com a sociedade existente. A Escola de Frankfurt também contribui na elaboração de uma perspec- tiva histórica da transição da cultura tradicional e do modernismo nas artes para uma mídia produzida em massa para uma sociedade de consumo. Em seu livro inovador A transformação estrutural da esfera pública, Jürgen Habermas (1929-) historiciza ainda mais a análise de Adorno e Horkheimer da indústria cultural. Fornecendo antecedentes históricos para o triunfo da indústria cultural, Habermas observa como a sociedade burguesa nos finais dos séculos XVIII e XIX foi marcada pelo surgimento de uma “esfera pública”. Esta se situava entre a sociedade civil e o Estado e mediava interesses públicos e privados. Pela primeira vez na História, indivíduos e grupos passaram a moldar a opinião pública, dando expressão direta às suas necessidades e interesses e influenciando a política. A esfera pública burguesa tornou possível formar um domínio da opinião pública que se opunha ao poder do Estado e aos interesses poderosos que estavam começando a moldar a sociedade burguesa. TÓPICO 2 — CULTURA 27 Habermas observa uma transição da esfera pública liberal que se originou no Iluminismo e na Revolução Americana e Francesa para uma esfera pública domina- da pela mídia no estágio atual do que ele chama de capitalismo do estado de bem- -estar social e democracia de massa. Essa transformação histórica está fundamentada na análise de Horkheimer e Adorno da indústria cultural, na qual corporações as- sumiram a esfera pública e a transformaram de um local de debate racional em um consumo de manipulação e passividade. Nessa transformação, a "opinião pública" muda do consenso racional emergente do debate, discussão e reflexão para a opinião fabricada de pesquisas ou especialistas em mídia. Para Habermas, a interconexão entre a esfera do debate público e a participação individual foi comprometida e trans- formada em um domínio de manipulação política e espetáculo, no qual, cidadãos- -consumidores ingerem e absorvem passivamente entretenimento e informação. Os "cidadãos" tornam-se espectadores de apresentações e discursos da mídia que arbitram a discussão pública e reduzem seu público a objetos de notícias, infor- mações e assuntos públicos. A tese da indústria cultural descreveu tanto a produção de produtos culturais massificados quanto as subjetividades homogeneizadas. A cultura de massa da Escola de Frankfurt produziu desejos, sonhos, esperanças, medos e anseios, além de um desejo sem fim de produtos de con- sumo. A indústria da cultura produzia consumidores culturais que consumiam seus produtos e estavam em conformidade com os ditames e os comportamentos da sociedade existente. E, no entanto, como Walter Benjamin (1996) apontou, a indústria cultural também produz consumidores racionais e críticos capazes de dissecar e discriminar entre textos e performances culturais, da mesma forma que os fãs de esportes aprendem a analisar e criticar eventos esportivos. Em retrospecto, pode-se ver a escola de Frankfurt funcionar como arti- culação de uma teoria do estágio do capitalismo de estado e monopólio que se tornou dominante na década de 1930. Era uma era de grandes organizações, te- orizadas anteriormente pelo marxista austríaco, Rudolf Hilferding (1877-1941), como "capitalismo organizado", em que o Estado e as grandes corporações geren- ciavam a economia e as quais os indivíduos se submetiam ao controle estatal e corporativo (HILFERDING, 2006). Esse período é frequentemente descrito como "fordismo" para designar o sistema de produção em massa e o regime de homogeneização do capital que dese- java produzir desejos, gostos e comportamentos em massa. Foi, portanto, uma era de produção e consumo em massa caracterizada pela uniformidade e homogenei- dade de necessidades, pensamento e comportamento, produzindo uma sociedade de massa e o que a escola de Frankfurt descreveu como "o fim do indivíduo". Certamente, a cultura da mídia nunca foi tão massificada e homogênea como no modelo da escola de Frankfurt e pode-se argumentar que o modelo foi falho mesmo durante seu tempo de origem e influência e que outros modelos eram preferíveis, como os de Walter Benjamin, Siegfried Kracauer, Ernst Bloch e outros da geração Weimar e, posteriormente, estudos culturais britânicos. 28 UNIDADE 1 — DEFINIÇÕES DE POVO, CULTURA E RELIGIÃO No entanto, o modelo escolar, original de Frankfurt, da indústria cultural arti- culou os importantes papéis sociais da cultura da mídia durante um regime específico de capital e forneceu um modelo, ainda de uso, de uma cultura altamente comercial e tecnologicamente avançada que atende às necessidades dos interesses corporativos de- sempenha um papel importante na reprodução ideológica e na cultura de indivíduos no sistema dominante de necessidades, pensamentos e comportamento. 4 MARXISMO CULTURAL E AS GUERRAS CULTURAIS NA ATUALIDADE Anders Breivik, terrorista norueguês, foi condenado por setenta e sete assassinatos cometidos em julho de 2011. Ele é um dos muitos afiliados à extre- ma-direita que acreditam em um esforço conjunto de uma elite de "marxistas culturais" para destruir a moralidade e a civilização ocidentais. Por certo, existe um fenômeno (ou um conjunto de fenômenos) que possa ser rotulado de "marxismo cultural". No entanto, o marxismo cultural, no sentido acadêmico, tem apenas uma pequena semelhança com a grande ideologia conspi- ratória e “destruidora de civilizações” descrita por Breivik e outros. Para complicar ainda mais a questão, o termo “marxismo cultural”, quan- do usado informalmente, muitas vezes parece se referir a nada mais do quecrí- ticas culturais de esquerda. Claramente, isso acontece no meio acadêmico e em alguns cantos da internet. No entanto, não é óbvio porque a crítica cultural de esquerda deve, por si só, ser considerada algo ruim. Nada disso, no entanto, se qualifica como uma expressão do marxismo cultural. Quando, em certos círculos, as pessoas reclamam do "marxismo cultural", a ênfase parece estar em algo mais específico. Eles estão pensando, talvez, em um tipo de autoritarismo cultural de esquerda: uma tendência a criticar filmes, videogames e outros produtos culturais de uma maneira muito severa que implica na necessi- dade de censura do governo. Além disso, pode, pelo menos, implicar a necessidade de policiamento social agressivo e um ambiente de constrangimento público. Novamente, é possível que esse tipo de autoritarismo de esquerda seja um fenômeno genuíno. É comum em certas áreas da academia e em outros lu- gares, incluindo algumas redes de blogueiros ou jornalistas. Isso pode ser algo de conotação negativa, pelo menos até certo ponto, mas não há necessariamente algo marxista nisso. Em parte, pode representar uma racionalização, no jargão político, de uma aversão a representações de violência e manifestações explícitas de sexualidade. Contudo, tem muito pouco a ver com a subversão de valores no nível da civilização descrita no manifesto do terrorista de Breivik. De fato, muito envolve a resistência a elementos da cultura popular que são imorais pelos padrões tradicionais. 29 Certamente poderíamos perceber uma tendência autoritária, por exem- plo, nas campanhas de consumidores mais conservadores para restringir a co- mercialização de jogos com o Grand Theft Auto V. Porém, duvidamos que a hos- tilidade de esquerda ao GTA V, pelas representações denegrindo as mulheres, seja explicada apenas pelo marxismo cultural. Existem, por certo, razões para a hostilidade baseada em preocupações mais comuns a respeito da violência (espe- cialmente a violência sexual) em nossa mídia de entretenimento. Assim, parece realmente haver algo parecido com uma guerra cultural en- tre pessoas consideradas “autoritárias culturais” versus outras que poderiam ser chamadas de “libertárias culturais”. Até certo ponto, a guerra cultural do século XXI atravessa as classificações políticas/econômicas de esquerda e direita. Mesmo que alguém se alinhe, em geral, com os “libertários culturais”, não significa que, em determinados casos, não se possa discordar deles. O mesmo prin- cípio se aplica aos “autoritários culturais”. Talvez, ao invés de “marxismo cultural” uma expressão diferente possa ser empregada para definir intervenções cultural- mente autoritárias para se tentar policiar arte e cultura. De qualquer maneira, nada disso nos leva a aceitar a “grande narrativa” conspiratória do terrorista de Breivik. Portanto, pouco ou nada existe para se justificar o termo "marxismo cultu- ral". No limite, pode haver uma mentalidade de autoritarismo cultural de esquer- da que tem pouco a ver com Marx e, ironicamente, tem muito a ver com a defesa dos valores tradicionais. Há também, note-se, mentalidades culturalmente auto- ritárias associadas à direita política. Estes tendem a ser de direta e abertamente protetores dos valores e atitudes cristãos tradicionais. O termo "marxismo cultural" está em circulação há mais de quarenta anos. Seu significado permanece um tanto obscuro e contestado, mas há, pelo menos, um certo consenso no seu entendimento. Embora o termo seja frequentemente aplicado pejorativamente, ele tem um significado mais acadêmico que se conecta à virada cultural dentro do marxismo ocidental, iniciado na década de 1920 e, especialmente, após a Segunda Guerra Mundial. Essa mudança do comunismo no estilo soviético encontrou popularidade no final da década de 1950 com as críticas de esquerda à URSS e a própria denúncia de Nikita Khrushchev contra seu antecessor, Joseph Stalin. Posteriormente, cresceu cada vez mais com o desenvolvimento de estudos culturais como disciplina acadêmica. O cientista político Richard R. Weiner (1981, p. 117) escreve: Em resposta a uma série de problemas que os movimentos trabalhistas, nas sociedades industriais avançadas, não foram capazes de resolver, teo- ricamente ou na prática, surgiram nas andanças dos movimentos sociais e políticos nas décadas de 1960 e 1970, a perspectiva culturalmente orientada. 30 Weiner (1981) acrescenta que esta perspectiva teria realmente começado em 1956 com uma série de eventos que alienaram os pensadores ocidentais do comunismo ao estilo soviético, principalmente, a invasão soviética na Hungria. No entanto, Weiner (1981) atribui o termo atual "marxismo cultural" a Trent Schroyer, no livro A crítica da dominação: as origens e desenvolvimento de ume teoria crítica, publicado em 1973. O uso do termo "marxismo cultural" na obra de Schroye é provavelmente o mais antigo que se pode encontrar e ele o relaciona especificamente ao que ele en- tende como uma "teoria da crise" empregada pelos intelectuais marxistas da Escola de Frankfurt. Ele também se refere a outros teóricos, que ele pensa, compartilham a “teoria da crise”, como György Lukács (1885-1971) e Henri Lefebvre (1901-1991). Podemos também concluir que o termo "marxismo cultural" tem uma va- riedade de usos acadêmicos, ideológicos e outros mais populares. É empregado por ideólogos de extrema direita, como Breivik, em teorias conspiratórias que têm pouca credibilidade e é usado popularmente de maneiras que mostram pou- ca compreensão de sua história ou do seu significado original. No entanto, o termo também tem sido útil para os estudiosos conven- cionais que tendem a ser marxistas ou simpatizantes do pensamento marxista. Portanto, não se pode propor que o termo "marxismo cultural" seja simplesmente eliminado, assumindo que isso fosse possível. FIGURA 12 – CARTOON ANTISSEMITA ATRIBUINDO A ORIGEM DO MARXISMO CULTURAL A UMA CONSPIRAÇÃO JUDAICA Tradução: “E para onde o próximo degrau nos levará?” Os degraus semitas do Marxismo Cultural. FONTE: <https://bit.ly/33gy1n9>. Acesso em: 1º jul. 2020. 31 FIGURA 13 – CARTAZ DE PROPAGANDA ELEITORAL NAZISTA, EM 1932 Tradução: O marxismo é o anjo da guarda do capitalismo. Vote nos nacionais-socialistas. FONTE: <https://bit.ly/3fyQrEO>. Acesso em: 1º jul. 2020. Sob a iniciativa de Felix J. Weil, filho de um negociante de cereais que fizera for- tuna na Argentina, foi organizada a “Primeira Semana de Trabalho Marxista” que tinha como prerrogativa lançar a noção de um marxismo verdadeiro e puro. A partir deste evento nasceu a ideia de criar um instituto permanente na condição de órgão independente de investiga- ção. Este instituto foi estabelecido com um donativo de Herman Weil (pai de Felix) e de um contrato com o Ministério da Educação que frisava a exigência de que o diretor do instituto deveria ser titular de uma cadeira na universidade. O Instituto de Pesquisa Social (como foi denominado) e que deveria se chamar Instituto para o Marxismo, foi criado oficialmente por um decreto do Ministério da Educação da República de Weimar (Alemanha) em 1923. Quanto à terminologia, observa-se uma tradicional problemática, pois “escola” notifica um corpo intelectual cujos membros se concentram em uma mesma linha de pensamento, no caso da Teoria Crítica, de uma mesma avaliação crítica social da política vigente, o que não se pode determinar verdadeiramente quando observadas as teorias de seus membros. A Teoria Crítica tornou-se legítima como tal após a publicação da obra “Teoria Tradicional e Teoria Crítica” de Max Horkheimer, na Revista de Pesquisa Social entre 1932 e 1942. É sabido que Horkheimer foi o principal responsável pela consolidação da escola, não somente por sua posição intelectual e política no âmbito da Universidade de Frankfurt, mas, sobretudo, por sua situação financeira que lhe garantiu grandes realizações. FONTE: <https://bit.ly/3fzwz4b>. Acesso em: 19 out. 2020. DICAS 32 FIGURA 14 – PRÉDIO
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