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Conceito de língua e discurso APRESENTAÇÃO Para compreender o que é língua e o que é discurso, você precisa primeiro entender que há diferentes pontos de vista sobre estes conceitos. Esses pontos de vista são partes de estudos propostos por diferentes teóricos do campo dos estudos linguísticos, como Ferdinand de Saussure, Émile Benveniste e Michel Pêcheux. Nesta Unidade de Aprendizagem, você vai conhecer os pontos de vista de alguns desses teóricos e identificar como eles compreendem os conceitos de língua e discurso. Bons estudos. Ao final desta Unidade de Aprendizagem, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Reconhecer o conceito teórico de língua.• Identificar como diferentes correntes teóricas se assemelham e se distinguem em relação aos conceitos de língua e discurso. • Reconhecer o conceito de discurso e relacioná-lo ao conceito de língua.• DESAFIO Para Émile Benveniste (1991), a linguagem é a faculdade humana, que possui característica universal e difere-se das línguas, as quais são particulares e variáveis. Para esse estudioso, é na língua que a linguagem se realiza. Neste sentido, como pode ser entendido o termo discurso na teoria enunciativa de Émile Benveniste? INFOGRÁFICO No infográfico a seguir, é possível visualizar algumas semelhanças e diferenças entre as três das principais correntes de estudos sobre a língua e o discurso. CONTEÚDO DO LIVRO Para compreender o que é língua e o que é discurso, você precisa primeiro entender que há diferentes pontos de vista sobre estes conceitos. Estes pontos de vista são partes de estudos propostos por diferentes teóricos do campo dos estudos linguísticos, como Ferdinand de Saussure, Émile Benveniste e Michel Pêcheux. No capítulo Conceito de língua e discurso, do livro Linguística Avançada, você vai conhecer os pontos de vista de alguns desses teóricos e identificar como eles compreendem os conceitos de língua e discurso. Boa Leitura! LINGUÍSTICA AVANÇADA Debbie Mello Noble Priscilla Rodrigues Simões Lais Virginia Alves Medeiros Conceito de língua e discurso Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Reconhecer o conceito teórico de língua. Identi� car como diferentes correntes teóricas se assemelham e se distinguem em relação aos conceitos de língua e discurso. Reconhecer o conceito de discurso e relacioná-lo ao conceito de língua. Introdução Para compreender o que é língua e o que é discurso, você precisa primeiro entender que há diferentes pontos de vista sobre esses conceitos. Esses pontos de vista são partes de estudos propostos por diferentes teóricos do campo dos estudos linguísticos, como Ferdinand de Saussure, Émile Benveniste e Michel Pêcheux. Neste texto, você vai conhecer os pontos de vista de alguns desses teóricos e identificar como eles compreendem os conceitos de língua e discurso. Os estudos sobre a língua A defi nição de língua é bastante complexa. Por isso, para que você compreenda melhor esse conceito e, posteriormente, o conceito de discurso, você verá um breve panorama sobre os estudos da ciência das línguas, e conseguirá entender a evolução do conceito de língua. A ciência que estuda as línguas e a lingua- gem é a linguística. Por isso, esses dois objetos muitas vezes se confundem. U N I D A D E 1 Linguística Avançada_U1_C01.indd 11 13/09/2017 16:35:41 Francisco Realce No link e no código a seguir, você pode ler um artigo que discute os conceitos de linguista e linguística do ponto de vista do Curso de linguística geral, de Ferdinand de Saussure (FLORES, 2009): https://goo.gl/ng8ABv Breve percurso histórico A linguagem, segundo Émile Benveniste, é a faculdade humana que possui característica universal e difere-se das línguas, que são particulares e variáveis. Para esse estudioso, é na língua que a linguagem se realiza. Em seu artigo Vista d’olhos sobre o desenvolvimento da linguística, Benve- niste (1991) traça um panorama do desenvolvimento da linguística, e é baseado neste texto que você verá as principais correntes de estudos linguísticos até a mudança proposta por Ferdinand de Saussure. Ezra Benveniste, nascido na Síria, em 1902, foi naturalizado francês em 1924, quando troca seu nome de batismo por Émile. Apesar de ser grande especialista em indo- -europeu, comparatista de numerosas línguas antigas e modernas, Benveniste somente consegue assegurar a divulgação de suas teses entre os linguistas após a publicação do primeiro volume de Problèmes de linguistique générale (em português, Problemas de linguística geral), em 1966. Sua abordagem enunciativa desperta o interesse de filósofos e psicanalistas, como foi o caso de Jacques Lacan, que em 1956 solicitou a Benveniste sua colaboração no primeiro número da revista La psychanalyse. Finalmente, em 1970, suas posições ganham terreno devido à publicação de um artigo sobre a enunciação na revista de linguística Langages. Sua última publicação foi Problèmes de linguistique générale II, em 1974 (BENVENISTE ON-LINE, 2010). Conceito de língua e discurso12 Linguística Avançada_U1_C01.indd 12 13/09/2017 16:35:42 Francisco Realce Francisco Realce No link e no código a seguir você encontra mais informações sobre Émile Benveniste (BENVENISTE ON-LINE, 2010): https://goo.gl/FcKZt2 A linguística ocidental tem sua origem na filosofia grega, cujo principal interesse no conceito de língua girava em torno do debate sobre a natureza da linguagem. Também com os gregos surgem os estudos gramaticais, normativos, ou seja, que formulam regras e, segundo Saussure, os quais visavam apenas distinguir as formas corretas das incorretas. Benveniste destaca que durante séculos predominaram os estudos da língua como objeto de especulação. Não houve preocupação em descrever e estudar uma língua por ela mesma, afirma ele. Assim, a linguística que se faz até o século XIX não observa o funcionamento da língua. Posteriormente à descoberta do sânscrito, no século XIX, surge o que se convencionou chamar de linguística comparada. Isso porque, pelo sânscrito, era possível esclarecer as outras línguas. Foi nesse momento, para Saussure, que se descobriu que as línguas podiam ser comparadas entre si. Após essa fase, até o início do século XX, os estudos linguísticos consistiam em estudar a “[...] evolução das formas linguísticas [...]” (BENVENISTE, 1991, p. 21), ou seja, a linguística era uma ciência histórica. No entanto, essa linguística histórica também não dava conta de abarcar o estudo do funcio- namento da língua. Assim, a cada nova descoberta, era preciso repensar os métodos de análise. Não deixe de ler o Capítulo 1, “Visão geral da história da linguística”, do Curso de linguística geral, de Ferdinand de Saussure (2006), em que é possível compreender melhor como o modo de conceber a língua influenciou na fundação da chamada “linguística moderna”. 13Conceito de língua e discurso Linguística Avançada_U1_C01.indd 13 13/09/2017 16:35:42 Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Francisco Sublinhado O conceito de língua A língua como estrutura Publicado em 1916, o Curso de linguística geral marca o início do que se chamou linguística moderna, com Ferdinand de Saussure. O Curso de lin- guística geral (CLG) foi uma obra póstuma, editada por Charles Bally e Albert Sechehaye, com base em anotações feitas ao longo de cursos oferecidos pelo linguista na Universidade de Genebra. O livro é um tratado sobre o objeto da linguística moderna, inaugurada em virtude de sua publicação, ou seja, um tratado sobre a língua. No link e no código a seguir, você pode ler um artigo que introduz alguns conceitos importantes tratados por Ferdinand de Saussure (HENGE, 2008): https://goo.gl/n9K92B Nesse livro, o autor (SAUSSURE, 2006) apresenta os pressupostos da linguística, definindo o que seria o seu objeto e trazendo uma concepção de língua que instaurou uma nova fasenos estudos linguísticos. O linguista genebrino também abriu caminho para outros pensadores da linguagem. A língua é descrita por Saussure como uma instituição atual e, ao mesmo tempo, um produto do passado. Para ele, a linguagem não é natural ao homem, mas a faculdade de constituir uma língua é. Esta concepção advém do chamado corte saussuriano, o qual separou a linguagem em língua e fala. Vejamos (SAUSSURE, 2006, p. 17): O que é a língua? Para nós, ela não se confunde com a linguagem; é so- mente uma parte determinada, essencial dela [...] É, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenções necessárias adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos. Conceito de língua e discurso14 Linguística Avançada_U1_C01.indd 14 13/09/2017 16:35:42 Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce A língua seria, portanto, um sistema constante, social e que poderia ser analisado em sua organização e funcionamento. Por outro lado, a fala seria o lado individual e variável da linguagem. Veja alguns desses conceitos de maneira mais aprofundada no artigo “Saussure e o estruturalismo: retomando alguns pontos fundamentais da Teoria Saussuriana” (BEZ; AQUINO, 2011), disponível no link e código a seguir: https://goo.gl/WACQx7 Essa concepção vai trazer a ideia de que a língua é uma estrutura, um arranjo sistemático entre partes, visão própria do estruturalismo. O olhar para a língua de maneira sincrônica e sistêmica, em sua possibilidade es- trutural, tem consequências permanentes para os estudos linguísticos. Você verá, a seguir, que a partir da ruptura teórica e do corte saussuriano, surge um novo objeto a ser transmitido e transformado pelos linguistas franceses da década de 1960. Essa separação de língua e fala tem a ver com a necessidade de Saussure em estabelecer o objeto de estudo da linguística. Assim, Saussure realiza uma escolha ao tomar o lado social e constante da linguagem como objeto. Para isso, coloca de lado a fala, mas não a exclui, alertando que uma não se concebe sem a outra. Há inúmeros debates em torno do corte realizado por Saussure (2006), pois ele é visto como uma exclusão do estudo da fala. Sobre esta questão, indicamos a leitura de Medeiros (2016): https://goo.gl/Z7Dm9k 15Conceito de língua e discurso Linguística Avançada_U1_C01.indd 15 13/09/2017 16:35:43 Francisco Realce Francisco Realce Francisco Sublinhado Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Saussure (2006, p. 15) esclarece e justifica a escolha de seu objeto com a famosa frase: “Bem longe de dizer que o objeto precede o ponto de vista, diríamos que é o ponto de vista que cria o objeto.”. Para que você entenda melhor a concepção de língua pensada por Saus- sure, é possível dizer que a língua, como foi estudada por ele, é concreta, e sua concretude está em se constituir como um sistema de signos tangíveis. Esses signos são os signos linguísticos, compostos pela união de um conceito (significado) com uma imagem acústica (significante). Veja a Figura 1, inspirada nas ilustrações do Curso de linguística geral: Figura 1. Signo linguístico como entidade psíquica de duas faces. Fonte: Adaptada de Saussure (2006). As imagens da Figura 1 ajudam você a perceber que uma língua é muito mais do que uma simples lista de correspondência, se assim fosse, todos os termos de uma língua corresponderiam exatamente a outro termo em outras línguas. Na prática, você percebe que não é assim, certo? Com isso, Saussure (2006) quer mostrar que a língua é constituída da união de dois termos. Ele afirma ainda que: Conceito de língua e discurso16 Linguística Avançada_U1_C01.indd 16 13/09/2017 16:35:43 Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce [...] os termos implicados no signo linguístico são ambos psíquicos e estão unidos, em nosso cérebro, por um vínculo de associação. O signo linguístico une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acústica. Esta não é o som material, coisa puramente física, mas a impressão psíquica desse som, a representação que dele nos dá o testemunho de nossos sentidos. A língua como produto social Mikhail Bakhtin, com a publicação de Marxismo e fi losofi a da linguagem, em 1929, inicia uma nova concepção de língua, ressaltando que não há, naquele momento, nenhuma análise de cunho marxista acerca da fi losofi a da linguagem. Veja o que diz o prefácio dessa obra (BAKHTIN, 2006, p. 7): Bakhtin coloca, em primeiro lugar, a questão dos dados reais da linguística, da natureza real dos fatos da língua. A língua é, como para Saussure, um fato social, cuja existência se funda nas necessidades da comunicação. Mas, ao contrário da linguística unificante de Saussure e de seus herdeiros, que faz da língua um objeto abstrato ideal, que se consagra a ela como sistema sincrônico homogêneo e rejeita suas manifestações (a fala) individuais, Bakhtin, por sua vez, valoriza justamente a fala, a enunciação, e afirma sua natureza social, não individual: a fala está indissoluvelmente ligada às condições da comunicação, que, por sua vez, estão sempre ligadas às estruturas sociais. Como você pode observar nesse trecho, Bakhtin vai na direção contrária do que chama de objetivismo abstrato, ele não considera a língua como um “[...] sistema de normas rígidas e imutáveis [...]” (2006, p. 91). É assim que Bakhtin se opõe, então, à concepção de língua anteriormente vista, trazida por Saussure (2006), de língua como sistema, porque considera que em nenhum momento histórico esse sistema seja possível. Veja (BAKHTIN, 2006, p. 92): Dizer que a língua possui uma existência objetiva é cometer um grave erro. Mas exprime-se uma relação perfeitamente objetiva quando se diz que a língua constitui, relativamente à consciência individual, um sistema de normas imutáveis, que este é o modo de existência da língua para todo membro de uma comunidade linguística dada. Este viés do objetivismo abstrato, o qual encara a língua como um produto acabado, homogêneo, engessado, passível de ser sistematizado, é fortemente 17Conceito de língua e discurso Linguística Avançada_U1_C01.indd 17 13/09/2017 16:35:43 Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce combatido por Bakhtin. Ele entende que a língua é um processo em constante transformação pelos sujeitos, constituindo-se em um processo de evolução ininterrupto. Para Indursky (2005), a língua conforme concebida por Bakhtin precisava dar conta das relações sociais e interindividuais. Indursky nos diz ainda que Bakhtin se difere de Saussure, fundamentalmente, por conceber a língua como um produto social, que se constitui pela interação e por seu funcionamento social. Mesmo que o sujeito que fala não perceba, a língua está em processo de transformação contínua. Assim como ocorre com as normas sociais, os sujeitos estão sempre inter- vindo e transformando as normas da língua, porém, este processo não é facilmente perceptível como o primeiro. Há poucos anos, uma norma social muito observada em determinados ambientes era a não utilização de telefones, especialmente em eventos sociais. Hoje em dia, passados menos de 20 anos, essa norma está em desuso, pois a maneira como nos relacionamos com os telefones celulares não é mais a mesma e não concebemos estar em um evento sem registrá-lo com nossos telefones. Essa mudança é perceptível e evidente. Por outro lado, grandes mudanças na língua demoram muito mais tempo para serem incorporadas, como é o caso do pronome de tratamento Vossa Mercê, que levou quase 200 anos para chegar à forma como conhecemos hoje você. O que importa para os sujeitos “[...] é aquilo que permite que a forma linguística figure numdado contexto, aquilo que a torna um signo adequado às condições de uma situação concreta dada [...]”, ou seja, para o locutor importa a língua enquanto “signo sempre variável e flexível”, o que do lado receptor também é verdadeiro, uma vez que este precisa compreender e dar significação a uma “forma linguística” em seu contexto preciso (BAKHTIN, 2006, p. 94). Conceito de língua e discurso18 Linguística Avançada_U1_C01.indd 18 13/09/2017 16:35:43 Francisco Realce Francisco Sublinhado Francisco Sublinhado Francisco Realce Francisco Realce Assim como Saussure, Bakhtin também reflete sobre o signo. No entanto, o signo para Bakhtin (2006, p. 31) coincide com o domínio ideológico, já que “[...] tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo [...]”. Essa definição de signo vai de encontro à formulação de Saussure, que considera o signo como puramente linguístico. Dessa forma, é possível perceber a oposição interior x exterior à língua entre as teorias desses dois autores, ou seja, enquanto para Saussure a língua se explica internamente, precisando colocar de lado o que é exterior a ela para analisá-la, para Bakhtin, a língua remete ao exterior. A partir dessa concepção, a língua se torna fundamental para a compreensão da realidade e das relações de força na sociedade. A seguir, você verá a noção de língua proposta por Émile Benveniste, bus- cando relacionar os pontos de contato e de divergência entre essas concepções com a concepção de discurso. Língua e discurso A maneira como o CLG é recebido e estudado, na década de 1960, na França, é refl exo do mundo da época: a linguística ganha destaque como ciência piloto, mas, ao mesmo tempo, há uma emergência da interdisciplinaridade nos movimentos intelectuais franceses. Considerar isso é essencial para a compreensão da concepção de língua e discurso propostas por Émile Benveniste e Michel Pêcheux, pois você poderá perceber de que forma se assemelham e se distinguem das propostas vistas anteriormente. O homem na língua Com Émile Benveniste, os estudos linguísticos dos anos de 1960 tomam nova forma. O linguista não só afi rma que a linguagem reproduz a realidade, mas ressalta que a realidade se reproduz por meio da linguagem e que possui sua própria organização. Por essa introdução, você pode perceber que a proposta de língua de Benve- niste (1991) é diferente do que vimos até aqui. Ele consegue unir duas formas de compreender esse conceito: a língua é uma estrutura e também um fato social, porque a sociedade não é possível sem a língua, e a língua não deixa de ser um sistema organizado de signos. É por meio do signo que o indivíduo é capaz de simbolizar. Benveniste (1991) ressalta que somente o homem possui a capacidade de simbolizar, de 19Conceito de língua e discurso Linguística Avançada_U1_C01.indd 19 13/09/2017 16:35:43 Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Francisco Sublinhado Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce compreender e interpretar símbolos. Por isso, costuma-se dizer que Benveniste é responsável por incluir o “homem na língua”. “O homem na língua” é o título do Capítulo 21, Parte V, de Problemas de linguística geral I, de Benveniste (1991). Benveniste afirma que “[...] é na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito [...]” (1991, p. 286). A partir dessa frase, você pode perceber que Benveniste incorpora a noção de subjetividade de volta aos estudos linguísticos, porque só a linguagem fundamenta, de fato, a capacidade do indivíduo se propor como sujeito pela possibilidade de dizer eu sou. A subjetividade seria a capacidade do locutor (aquele que fala) de se colocar como sujeito do que diz. Benveniste explica que a linguagem só é possível porque cada locutor se apresenta como sujeito, por meio de algumas marcas em que o locutor se coloca como sujeito da enunciação. Isso se dá por meio das pessoas eu e tu, pois somente eu posso me colocar como eu em uma situação de enunciação, me dirigindo a um tu. Noção de discurso e a análise do discurso A análise do discurso (AD) surge na França, na década de 1960, como uma disciplina de entremeio, que se nutre das fontes da linguística, do materia- lismo histórico e da psicanálise para pensar o discurso, seu objeto central. É a partir da teoria proposta por Michel Pêcheux (2009) e seu grupo que você compreenderá melhor a noção de discurso e perceberá como ela se entrelaça ao conceito de língua. Para pensarmos a língua do ponto de vista da AD, é preciso fazer um deslocamento, iniciando a reflexão pelo corte saussuriano que, como vimos, separa a língua da fala. Dessa forma, é possível perceber como Pêcheux (2009) vai partir dessa separação sistêmica proposta por Saussure (2006) para discutir a noção de língua pelo viés social, considerando o que para Saussure era exterior a ela como parte constitutiva, conforme você pode observar na Figura 2. Conceito de língua e discurso20 Linguística Avançada_U1_C01.indd 20 13/09/2017 16:35:43 Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Francisco Sublinhado Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Figura 2. Comparativo entre as interpretações de Saussure e Pêcheux. Para a AD, a língua é materialidade do discurso, é afetada pela ideologia, pela história e não se pode separar do sujeito. Da mesma forma, o discurso seria a materialidade da ideologia. Assim, em AD, chama-se historicidade a inscrição da história na língua. Uma vez que o que seria “exterior” à língua é incorporado a ela, dizemos que a língua possui uma “exterioridade constitutiva” e, por isso, está sujeita a falhas e ambiguidades. É essa ambiguidade e a possibilidade da língua “falhar” que interessa à AD. Considera-se que a língua não é um sistema fechado e, por isso, os sentidos das palavras e expressões nunca são únicos e prontos. Observe na Figura 3 um exemplo simples de como os sentidos não são estáveis. Figura 3. Exemplo da instabilidade dos sentidos. Fonte: FUVEST (2015). 21Conceito de língua e discurso Linguística Avançada_U1_C01.indd 21 13/09/2017 16:35:44 Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Francisco Sublinhado Assim, muda o entendimento do processo de comunicação entre os falan- tes, o qual até então era visto como transmissão de uma mensagem de um indivíduo para outro. Segundo Orlandi, não existe separação entre emissor e receptor de uma mensagem, mas sim um processo de produção de sentidos por sujeitos, que nunca é o mesmo. Note, então, que a noção de discurso proposta por Pêcheux (e reformulada por Eni Orlandi) é definida como um efeito de sentido entre locutores. Observe que utilizamos a expressão efeito de sentidos, o que dá a ideia de que o sentido não é fechado, único, mas apenas um efeito, uma impressão. Isso se explica justamente pela maneira como a língua é vista na AD, ou seja, se a língua é viva, ela está em constante processo de mudança pelos sujeitos. Essa concepção de língua heterogênea, constituída pela exterioridade, historicidade e atravessada pela ideologia é que abrirá espaço para pensarmos na língua como sujeita a falhas, passível de equívocos e ambiguidades, uma vez que o sujeito não é o detentor dos sentidos e nem eles estão previamente definidos. Como vimos anteriormente, quando falamos sobre a perspectiva de Ben- veniste, o sujeito se constitui como tal pela linguagem. Veja, agora, como é possível compreender essa afirmação e como ela se relaciona com a questão dos sentidos. Você lembra que Benveniste também fala sobre a capacidade do indivíduo de interpretar, de simbolizar? É por meio dessa capacidade de interpretação que o indivíduo se significa, pois a todo momento estamos interpretando o mundo. Contudo, essa interpretação nãoé neutra, tampouco é a mesma para todos, pois os indivíduos tornam-se sujeitos pela ideologia que os afeta, que os leva a interpretar de um jeito e não de outro. Por esse motivo, Orlandi (2012, p. 46) afirma que a ideologia é a condição para a constituição do sujeito e dos sentidos. A ideologia trabalha na produção de evidências, colocando o homem na relação imaginária com suas condições materiais de existência. A ideologia é função da relação necessária entre linguagem e mundo e da relação do sujeito com a língua e com a história para que haja sentido. É também a ideologia que faz com que haja sujeitos, pois é ela quem os constitui em sujeitos (ORLANDI, 2012). Conceito de língua e discurso22 Linguística Avançada_U1_C01.indd 22 13/09/2017 16:35:44 Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Francisco Sublinhado Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Para compreender melhor o conceito de Ideologia leia o seguinte livro: CHAUI, M. S. O que é ideologia? São Paulo: Brasiliense, 2003. (Primeiros Passos, 13). Diante disso, veja o que Pêcheux (2009, p. 147) afirma sobre os sentidos: O sentido não existe em si mesmo, isto é, em sua relação transparente com a literalidade do significante, mas é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico em que as palavras são produzidas. Essa afirmação de Pêcheux traz a ideia de que um sentido não está pronto na língua, esperando para ser “usado”, pois ele não existe em si mesmo, não está colado a uma palavra ou expressão, ele depende da posição que assumem os sujeitos. Isso quer dizer que, para a AD, o sentido do discurso depende dos sujeitos que enunciam e daqueles que o “recebem”. Você pode perceber então que, pela perspectiva pêcheuxtiana, a língua é a condição de possibilidade do discurso, enquanto o discurso é a materialidade da ideologia, “[...] espaço onde emergem as significações [...]” (BRANDÃO, 2004, p. 42). Esses pressupostos de Pêcheux (2009) são fundamentais para o percurso da noção de língua, porque mostra que, apesar do imaginário de uma língua passí- vel de controle, homogênea, sistema que relaciona significantes a determinados significados, sua realidade é o equívoco, a contradição e a impossibilidade de controle de seus sentidos. É nessa contradição entre controle e não controle dos dizeres, que o discurso e a língua se constituem e, também, é na língua e pela língua que o sujeito se constitui. Perspectiva foucaultiana de discurso É importante que você perceba que a perspectiva de discurso de Michel Fou- cault difere um pouco daquela proposta por Michel Pêcheux. Na perspectiva de Foucault, o discurso é espaço de articulação de saber e poder, ou seja, o discurso veicula o saber, gerando poder àquele que fala. No entender de Foucault, o discurso depende do lugar daquele que fala, daí sua relação com o poder. Não é qualquer um que fala de qualquer lugar social, há um direito reconhecido institucionalmente por aquele que diz. 23Conceito de língua e discurso Linguística Avançada_U1_C01.indd 23 13/09/2017 16:35:44 Francisco Realce Francisco Realce Francisco Realce Francisco Sublinhado Francisco Realce Francisco Sublinhado Francisco Realce Assim, o discurso é também entendido por Foucault como um jogo es- tratégico, como lugar de dominação. Somente quem ocupa determinados lugares pode dizer, assim como quem detém o saber é autorizado a ocupar determinados lugares. Se o discurso para Foucault está ligado ao poder, esse poder se afasta das teses de Louis Althusser, uma das maiores influências da teoria do discurso pêcheuxtiana. O poder para Foucault seria uma prática social constituída historicamente, exercida em micro poderes, ao passo que para Pêcheux o poder se relaciona com os aparelhos ideológicos de Estado. As teorias de Foucault e Pêcheux se aproximam entre si, especialmente no que diz respeito à noção de formação discursiva, mas também se aproximam dos estudos de Bakhtin por considerarem a língua como materialidade do discurso. No entanto, Pêcheux se afasta de Bakhtin não somente na questão espaço- -tempo – uma vez que Bakhtin escrevia na Rússia de 1929 – mas também em relação à crítica feita por Bakhtin ao objetivismo abstrato de Saussure. Para saber mais sobre o assunto, acesse Gregolin (2016): https://goo.gl/NnaQ9r Conceito de língua e discurso24 Linguística Avançada_U1_C01.indd 24 13/09/2017 16:35:44 Francisco Realce Francisco Realce Francisco Sublinhado Francisco Realce BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 2006. Disponível em: <http://www.fecra.edu.br/admin/arquivos/MARXISMO_E_FILOSO- FIA_DA_LINGUAGEM.pdf>. Acesso em: 27 ago. 2017. BENVENISTE, E. Problemas de linguística geral I. Campinas: Pontes, 1991. BENVENISTE ON-LINE. Biografia. Porto Alegre: UFRGS, 2010. Disponível em: <http:// www.ufrgs.br/benvenisteonline/Biografia.php>. Acesso em: 23 ago. 2017. BEZ, A. S.; AQUINO, C. Saussure e o estruturalismo: retomando alguns pontos fun- damentais da teoria saussuriana. Cadernos do IL, Porto Alegre, n. 42, p. 5-17, jun. 2011. Disponível em: <seer.ufrgs.br/cadernosdoil/article/download/26000/15222>. Acesso em: 27 ago. 2017. BRANDÃO, H. H. N. Introdução à análise do discurso. 2. ed. 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EXERCÍCIOS 1) Considerando as diferentes abordagens sobre o conceito de língua estudadas, assinale a alternativa que expressa exatamente os conceitos sobre língua: A) Para Saussure, a fala é um sistema de normas rígidas e imutáveis. B) Para Saussure, língua e linguagem possuem a mesma definição. C) A língua, para Bakhtin, é um fato social, um processo em constante transformação pelos sujeitos. D) No entender de Saussure, a língua é o lado individual e variável da linguagem. E) Para Bakhtin, a língua é um sistema de normas rígidas e imutáveis. 2) Qual a relação entre a linguagem e o homem proposta por Émile Benveniste? A) A relação está na capacidade do homem de falar. B) A relação está na possibilidadedo homem se constituir em sujeito pela linguagem. C) Não há relação entre o homem e a língua para Benveniste. D) Benveniste propõe que a linguagem não é natural ao homem, mas a língua é. E) A relação está no estudo que o homem pode realizar pela observação das línguas. 3) Em relação às concepções de discurso estudadas, qual a alternativa está de acordo? A) Foucault afirma que o discurso é um efeito de sentidos entre locutores. B) Benveniste propõe que o discurso é um instrumento de poder. C) Pêcheux acredita que o discurso é a linguagem posta em ação. D) Benveniste entende o discurso como um jogo estratégico. E) Pêcheux propõe o discurso como a materialidade da ideologia. 4) Nas alternativas abaixo, assinale aquela que diz respeito às concepções de língua e discurso estudadas: A) Uma grande contribuição de Bakhtin está em propor a língua como objeto de seus estudos, inaugurando a linguística moderna. B) A proposta de Bakhtin está de acordo com o conceito de língua como sistema proposto por Saussure. C) Somente Saussure reflete sobre o conceito de signo. D) Para Pêcheux, a língua não é passível de equívocos por ser um sistema. E) É Benveniste quem propõe que é pela linguagem que o homem se constitui como sujeito. 5) As diferentes concepções de língua e discurso se relacionam, seja por se aproximarem em alguns pontos ou por se contraporem. Sobre isso, assinale a alternativa que esteja de acordo: A) O curso de linguística geral se baseia nos estudos linguísticos comparatistas. B) Saussure separa a língua da fala em seu estudo, e é nesse ponto que Benveniste se aproxima dele, pois também não trata do lado individual da linguagem. C) As teorias de Pêcheux e Benveniste se afastam no ponto em que o primeiro considera que o homem se constitui como sujeito na linguagem e o segundo não. D) Saussure e Pêcheux aproximam-se por considerar que a exterioridade é constitutiva da língua. E) As teorias de Bakhtin, Pêcheux e Foucault aproximam-se por considerarem a língua como materialidade do discurso, levando em conta uma perspectiva de língua que vai além daquela que a considera somente em sua organização estrutural. NA PRÁTICA A publicidade funciona, na sociedade capitalista, como um instrumento de persuasão e memória entre as marcas e seu público, que não busca somente determinar o que comprar, mas também procura ditar modos de agir, falar e viver. Daí a importância de observarmos os sentidos veiculados nos anúncios e como eles afetam e são afetados pelo público, pois conforme Rocha (1995, p. 29) "A publicidade retrata uma série de representações sociais, sendo muitas vezes um caminho para o entendimento de modelos de relações, comportamentos e da expressão ideológica dessa sociedade." Clique a seguir e veja como uma frase veiculada em uma publicidade foi interpretada pelas pessoas! Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! SAIBA MAIS Para ampliar o seu conhecimento a respeito desse assunto, veja abaixo as sugestões do professor: No artigo O caráter singular da língua na análise do discurso a autora convida a conhecer o campo discursivo. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! O artigo A noção de discurso na teoria enunciativa de Émile Benveniste traz diferentes interpretações do discurso na percepção de Benveniste. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino!
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