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15. As vivências do tempo e do espaço e suas alterações O segundo, não o tempo, é implacável. Tolera-se o minuto. A hora suporta-se. Admite-se o dia, o mês, o ano, a vida, a possível eternidade. Mas o segundo é implacável. Sempre vigiando e correndo e vigiando. De mim não se condói, não para, não perdoa. Avisa talvez que a morte foi adiada ou apressada. Por quantos segundos? Carlos Drummond de Andrade DEFINIÇÕES BÁSICAS As vivências do tempo e do espaço constituem-se como dimensões fundamentais de todas as experiências humanas. O ser, de modo geral, só é possível nas dimensões reais e objetivas do espaço e do tempo. Portanto, o tempo e o espaço são, ambos, condicionantes fundamentais do universo humano e estruturantes básicos da nossa experiência. Em seu “Tratado do tempo” (Física IV, 10-14), Aristóteles busca abordar algumas das principais dificuldades teóricas sobre a natureza do tempo e a temporalidade – se o tempo existe ou não e se ele é constituído por momentos presentes que se sucedem. Assim, movimento e repouso, mudança e permanência, bem como a natureza dos entes que estão submetidos ao tempo, foram temas difíceis e relevantes para o grande filósofo da Antiguidade (Puente; Baracat Jr., 2014). Mais tarde, Santo Agostinho irá questionar “[...] o que é, por conseguinte, o tempo? Se alguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei” (Puente; Baracat Jr., p.122). Para ele, só o tempo passado e o futuro podem ser longos ou curtos; apenas eles têm duração. Mas como algo que não existe pode ser longo ou curto? O passado e o futuro parecem ter duração, mas não existência; o presente existe, mas não tem duração. Assim esse importante filósofo medieval levantou questões difíceis e sutis sobre o tempo e a temporalidade (Puente; Baracat Jr., 2014). Para o físico Isaac Newton (1643-1727) e o filósofo Gottfried W. Leibniz (1646-1716), o espaço e o tempo produzem-se exclusivamente fora do homem e têm uma realidade objetiva plena. São realidades independentes do ser humano. Em contraposição a essa noção, o filósofo alemão Immanuel Kant (1724- 1804) defende que o espaço e o tempo são dimensões básicas, que possibilitam todo e qualquer conhecimento, intrínsecas ao ser humano como ser cognoscente. Segundo ele, não se pode conhecer realmente nada que exista fora do tempo e do espaço. Para o filósofo alemão, entidades que pairam fora do tempo e do espaço, como Deus, a liberdade ou a alma humana, não podem ser propriamente conhecidas. Pode-se pensar sobre elas, mas nunca conhecê-las objetivamente, pois não se dão no tempo e no espaço. Nesse sentido, Kant acrescenta, à visão de Newton, a dimensão subjetiva do tempo e do espaço, elevando-os ao status de “categorias do conhecimento humano”. Para o filósofo, o tempo e o espaço são “entidades potenciais ou ocas”; isto é, embora sejam absolutamente necessárias ao conhecimento e se encontrem presentes no interior do homem, só adquirem plena realidade quando preenchidas por objetos do conhecimento. Para o filósofo francês Henri Bergson (1859-1941) uma das principais dificuldades para compreender o que o tempo realmente é origina-se na história da filosofia, quando o espaço e o tempo foram considerados como do mesmo gênero. Estudou-se o espaço, determinou-se sua natureza e sua função, depois transportaram-se para o tempo as conclusões obtidas. Para passar de um a outro, foi suficiente mudar uma palavra: justaposição por sucessão. Segundo esse filósofo, o problema é que os pensadores sempre se referiram à duração (temporalidade) como uma extensão (espacialidade): “Quando evocamos o tempo, é o espaço que responde ao chamado” (Bergson, 1984). Ao tentar estudar o movimento, o fluir da vida e das coisas, a inteligência se concentrou em uma série de posições fixas, sucessivas. Bergson (1984) propõe que, para captar o que realmente o tempo é, o que significa a duração, deve-se abandonar tal atitude. Diz ele: Abandonemos esta representação intelectual do movimento, que o desenha como uma série de posições. Vamos direto a ele, consideremo-lo sem conceitos interpostos: nós o vemos simples e uno. A essência da duração está em fluir, nunca veremos algo que “dure” ao nos atermos ao estável acoplado ao estável. O tempo, a duração, o movimento é o contrário, é o fluxo, é a continuidade de transição, a mudança ela mesma. Esta mudança é indivisível (Bergson, 1984, p. 103). Os filósofos existencialistas também deram grande ênfase à questão da temporalidade. Para eles, o tempo não é simplesmente um objeto real, exterior ao homem (como queria Newton), nem uma entidade oca, como postulava Kant, mas um dos elementos constituintes do ser. Para Martin Heidegger (1889-1976), o homem deve ser compreendido pelas condições básicas do “estar/ser no mundo”, “estar/ser com os outros” e, fundamentalmente, como “ser para a morte”. Assim, a morte e, por consequência, a temporalidade definem a condição humana. Para o filósofo alemão, analisar o tempo é observar o homem em sua maior contradição: a tensão permanente entre permanência e transitoriedade, poder e impotência, desejo pela vida e irremediavelmente marcado pela inevitável morte. Por fim, cabe ressaltar que a dimensão temporal da experiência humana relaciona-se com os chamados ritmos biológicos. Os de maior importância para a psicopatologia são: o ritmo circadiano (dura cerca de 24 horas, alternando-se o dia e a noite), os ritmos mensais relacionados principalmente ao ciclo menstrual (dura cerca de 28 dias), as variações sazonais (as quatro estações do ano) e as grandes fases e marcos da vida humana (gestação, nascimento, infância, adolescência, período adulto, velhice e morte). Muitos dos ritmos biológicos associam-se tanto a flutuações hormonais e bioquímicas como a símbolos culturais (datas festivas, representações culturais das fases da vida, ritos de passagem, etc.), contribuindo para a determinação do estado mental do indivíduo. PERCEPÇÃO DO TEMPO E SENSO DE REALIDADE O neurocientista Armin Schnider (2013) identificou uma série de pacientes com desorientação temporal e confabulação, cuja neuroimagem revelava certas lesões neurológicas que implicavam a perda da capacidade de discriminar entre um evento ou pensamento ocorridos no passado e algo que está ocorrendo no momento. Tal discriminação é essencial para o contato com a realidade, para se discriminar o que é real, acontecendo neste momento conosco, do que é uma lembrança passada ou uma fantasia relacionada ao futuro (de fato, • • neuropsicologicamente, construir um futuro em nossa mente utiliza os mesmos mecanismos neurais da construção mental de nosso passado) (Schnider, 2013). Todos os 14 pacientes de Schnider tinham algo em comum: a principal área lesada situava-se em uma área filogeneticamente antiga do cérebro – o córtex orbitofrontal medial posterior. Assim, Schnider postulou que, para a discriminação do que é real, em relação ao que é lembrança ou fantasia, é essencial a integridade dessa área do lobo frontal, que realiza o que os neuropsicólogos chamam de filtragem da realidade (reality filtering). Dessa forma, formulou-se a hipótese de que um dos componentes importantes da construção mental da realidade seria a chamada orbitofrontal reality filtering (Liverani et al., 2016). Qualidades da vivência de tempo A experiência da temporalidade é fundamental para o senso de coerência e continuidade do self e da identidade pessoal (Stanghellini et al., 2016). Vários elementos compõem a experiência de temporalidade: percepção do tempo, estimação prospectiva e retrospectivade intervalos, percepção da duração, experiência da passagem do tempo e duração antecipada. Assim, como salienta Marc Wittmann (2009), a experiência da temporalidade é influenciada de forma muito marcante pelos estados afetivos e emoções, assim como pelas experiências de vivências corporais (embodiment). Dessa forma, quando falamos do tempo, usamos expressões como: “aqueles 40 minutos de dor intensa parecem ter durado um século”, “as duas horas de espera pelo retorno de meu filho duraram uma eternidade” ou “estava tão alegre com minha namorada que o tempo voou, não percebi que se passaram três horas”. Além desses elementos afetivos, a percepção do tempo é também influenciada por outros aspectos cognitivos, como atenção, memória de trabalho e memória de longo prazo (Wittmann, 2009). De toda forma, é inquestionável que a vida psíquica, além de ocorrer e se configurar no tempo, tem ela mesma um aspecto especificamente temporal, e, por isso, é legítima a distinção do tempo em: tempo subjetivo (interior, pessoal); e tempo objetivo (exterior, cronológico, mensurável). Muitas vezes, ocorre certo descompasso entre o tempo subjetivo e o cronológico. Tal discrepância pode ser tanto um fenômeno primário, uma legítima alteração da consciência do tempo, como um fenômeno secundário, decorrente de alterações da consciência, da memória, do pensamento, etc. O poeta Fernando Pessoa (1888-1935) ilustra a dessincronia que pode existir entre o tempo cronológico, objetivo, e o subjetivo, vivenciado internamente pelo indivíduo (algo próximo à duração de Bergson): Viajei. Julgo inútil explicar-vos que não levei meses, nem dias, nem outra quantidade qualquer de medida de tempo a viajar. Viajei no tempo é certo, mas não do lado de cá do tempo, onde o contamos por horas, dias e meses; foi do outro lado do tempo que eu viajei, onde o tempo se não conta por medida. Decorre, mas sem que seja possível medi-lo. É como que mais rápido que o tempo que vimos viver-nos... (Pessoa, 1995, p. 293) ESPAÇO E TEMPO PROFANOS E SAGRADOS Segundo o historiador Mircea Eliade (1992), o espaço e o tempo têm qualidades particulares e diferentes para o homem religioso em relação ao não religioso. Para o primeiro, o espaço não é homogêneo; apresenta rupturas, quebras. O espaço sagrado é forte, significativo, o único que, para o homem religioso, é de fato real, que existe realmente. O espaço sagrado constitui uma experiência primordial, que corresponde à fundação do mundo. Para o indivíduo devoto de uma religião, o templo faz parte de um espaço diferente da rua onde ele se encontra. A porta que se abre para o interior do templo significa o limiar que separa dois modos de ser, o profano e o religioso; é a fronteira que distingue e opõe dois mundos, mas, ao mesmo tempo, a via pela qual esses dois mundos se comunicam. Da mesma forma, por meio dos ritos, o homem religioso passa da duração temporal ordinária para o tempo sagrado. Esse é um tempo indefinidamente recuperável, repetitivo, por tratar-se de um tempo mítico e primordial, tornado presente por meio do rito, da festa religiosa. Segundo Eliade (1992, p. 38), “[...] toda festa religiosa, todo tempo litúrgico, representa a reatualização de um evento sagrado que teve lugar num passado mítico, nos ‘primórdios’ “. ANORMALIDADES DA VIVÊNCIA DO TEMPO E RITMO PSÍQUICO NAS SÍNDROMES DEPRESSIVAS E MANÍACAS Embora em quadros depressivos leves pareça haver uma percepção do tempo mais precisa, fenômeno chamado de “realismo depressivo” (Kornbrot et al., 2013), nos graves a passagem do tempo é percebida como lenta e vagarosa. Em contrapartida, nos estados maníacos, é percebida como rápida e acelerada. O ritmo psíquico também é oposto nesses dois transtornos: na mania, há taquipsiquismo geral, com aceleração de todas as funções psíquicas (pensamento, psicomotricidade, linguagem, etc.), e, na depressão grave, ocorre bradipsiquismo, com lentificação de todas as atividades mentais (Kitamura; Kumar, 1982). Ilusão sobre a duração do tempo Trata-se da deformação acentuada da percepção da duração temporal. Ocorre, sobretudo, nas intoxicações por alucinógenos ou psicoestimulantes (cocaína, anfetamina, etc.), nas fases agudas e iniciais das psicoses e em situações emocionais especiais e intensas. Acontece também quando são recebidas, por exemplo, muitas informações novas; o tempo pode parecer transcorrer de modo extremamente veloz ou comprimido, ou de forma muito lenta e dilatada. Atomização do tempo Vivemos no tempo presente, em um agora que se vincula intimamente aos acontecimentos passados e às possibilidades do porvir. A alteração ou a falta dessa experiência subjetiva natural do fluir temporal, decorrente da perda ou do enfraquecimento de ambas as margens do tempo (passado e futuro), produz uma redução quase puntiforme ou atomizada do tempo, fazendo-o parecer uma sucessão de pontos presentes que não se articulam entre si. O indivíduo não consegue inserir-se naturalmente na continuidade do devir; adere a momentos quase descontínuos. Esse fenômeno ocorre nos estados de exaltação e agitação maníaca, geralmente acompanhados da chamada fuga de ideias e de distraibilidade intensa. Inibição da sensação de fluir do tempo (inibição do devir subjetivo) A experiência normal do tempo implica a ampliação de um agora que se estende ao passado e se dirige ao porvir. Implica também um movimento mental que integra o fluir dos acontecimentos objetivos e externos à dimensão temporal subjetiva, ou seja, ao devir da vida subjetiva. A anormalidade da sensação do fluir do tempo corresponde à falta da sensação do avançar subjetivo do tempo, na qual o sujeito perde o sincronismo entre o passar do tempo objetivo, cronológico, e o fluir de seu tempo interno. Isso ocorre em síndromes depressivas graves. Certos pacientes com depressão grave expressam sua vivência do tempo dizendo que o tempo encolheu, que não passa, deixou de fluir, ou que está passando muito mais devagar que o normal. Indivíduos muito ansiosos descrevem uma pressão temporal, como se o tempo de que dispõem fosse sempre insuficiente: “Sinto que nunca vou dar conta de fazer o que devo fazer em determinado período”. Pacientes com transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) grave ocasionalmente experimentam uma lentificação enorme de todas as atividades, sobretudo quando devem completar alguma tarefa. Alterações da vivência do tempo na esquizofrenia Pacientes com esquizofrenia, sobretudo em surtos agudos, apresentam importantes alterações da vivência do tempo. Pode-se descrever tais alterações como fundadas na desarticulação e quebra do aspecto natural, pré-reflexivo, que caracteriza a vivência normal do tempo. A experiência temporal em pessoas com esquizofrenia, sobretudo nos períodos de agudização, é marcada pela fragmentação, que se verifica pela alteração da percepção do fluir do tempo, bem como por vivências anormais, como déjà vu e déjà vecu e estranhamento do tempo passado e futuro, relacionados a delírios e alucinações (Stanghellini et al., 2016). Alguns pacientes com esquizofrenia experimentam certa passividade em relação ao fluir do tempo; sentem que sua percepção temporal é controlada por uma instância exterior ao seu Eu. Outros, geralmente mais graves, sofrem verdadeira desintegração da sensação do tempo e do espaço. As alterações das vivências do tempo, de modo geral, estão associadas a alterações da experiência do self, marcantes na esquizofrenia (Stanghellini et al., 2016). ANORMALIDADES DA VIVÊNCIA DO ESPAÇO No estado de êxtase, há perda das fronteiras entre o eu e o mundoexterior. Nesse caso (que também pode ser classificado como transtorno da consciência do eu), o sujeito sente como se estivesse fundido ao mundo exterior (López Ibor, 1957). A vivência do espaço no indivíduo em estado maníaco é a de um espaço extremamente dilatado e amplo, que invade o das outras pessoas. O paciente desconhece as fronteiras espaciais e vive como se todo o espaço exterior fosse seu. Esse espaço não oferece resistências ao seu eu. Nos quadros depressivos, o espaço exterior pode ser vivenciado como muito encolhido, contraído, escuro e pouco penetrável pelo indivíduo e pelos outros. Já o paciente com quadro paranoide vivencia seu espaço interior como invadido por aspectos ameaçadores, perigosos e hostis do mundo. O espaço exterior é, em princípio, invasivo, fonte de perigos e ameaças. No caso do indivíduo com agorafobia, o espaço exterior é percebido como sufocante, pesado, perigoso e potencialmente aniquilador.
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