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ESPAÇOS, TERRITÓRIOS E AS POLÍTICAS CRIMINAIS: UMA NOVA ABORDAGEM A PARTIR DE ANTIGAS TEORIAS ATÉ ENTÃO IGNORADAS. Everaldo Marques de Oliveira Neto1 Clarice Beatriz da Costa Sohngen2 RESUMO: Este artigo tem por objetivo explicar e demonstrar a importância do uso da transdisciplinaridade na edificação de políticas públicas criminais, em especial, as do tipo não penais, por meio de termos antigos, porém ignorados ou mau compreendidos do Direito brasileiro, da Geografia, das Ciências Políticas e da Sociologia. Para isso, serão utilizadas as noções de espaço, paisagem, território, aglomerados subnormais, territorialização precária, integração perversa, territorialização perversa, teorias de poder, ciclo das políticas públicas e Sistema Integrado de Segurança Pública. A metodologia utilizada será a revisão bibliográfica dos resultados da dissertação de mestrado do primeiro autor, visando alcançar o objetivo acima disposto. PALAVRAS-CHAVE: Transdisciplinaridade, Políticas públicas criminais, Direito brasileiro, Geografia, Sociologia. INTRODUÇÃO No mundo daqueles que se dedicam a estudar e enfrentar os fenômenos da criminalidade, não muito raro se faz o encontro com termos empregados de forma minimamente imprecisa. Estes equívocos ocorrem não apenas pelos leigos na área, mas também, pelos meios de comunicação aparentemente especializados no assunto. A mesma conduta se mostra ainda mais relevante quando ocorre pelas mãos das autoridades públicas, isto porque muitas destas são as responsáveis por elaborar as normas e planos de atuações estatais voltadas à busca da solução ao crime. Outra realidade presente na área é a dificuldade dos ditos “operadores do direito” em articular com conhecimentos que extrapolem os limites jurídicos. Com isto, não poucas são as 1 Doutorando em Ciências Criminais, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente Urbano pela Universidade da Amazônia, concluinte da especialização em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Especialista em Direito Tributário pela Faculdade Damásio, Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade da Amazônia, Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Pará. 2 Doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Mestre em Linguística e Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. ferramentas que deixam de ser utilizadas, mesmo que estas sejam dotadas de elevada carga de efetividade no campo da segurança pública. Como resultado destes dois aspectos, vê-se, constantemente, políticas públicas pouco inovadoras e mau estruturadas, com uma única frente prioritária de ação, e repleta de entendimentos errôneos. Ao mesmo tempo, vê-se crescer na sociedade os mais variados índices de violência, o que torna límpido a necessidade de uma metodologia mais esclarecida e transdisciplinar, principalmente se for considerado que o fenômeno criminal se mostra complexo e clamante de diversos tipos de raciocínios concomitantes. Por fim, faz-se duas ressalvas importantes. Primeiramente, as narrativas conceituais não se aproximarão das análises morfológicas, semânticas, ou ainda, semióticas das palavras. Bem ao certo, alinhando-se às orientações do Primeiro Congresso Mundial da Transdisciplinaridade, ocorrido em 1994 no Convento da Arrábida, Portugal (SANTOS, 20--?), este humilde estudo utilizará os ensinamentos de outras áreas (além das voltadas ao Direito brasileiro) com grande destaque à Geografia, às Ciências Políticas e à Sociologia. Segundamente, algumas das teorias ora utilizadas podem, diferente do que sugere o título, não ser, de fato, tão antigas. Uma parte destas até data meados do século XX, contudo, outras se apresentam como mais recentes, próprias dos primeiros anos do século XXI. O fato é, que entre as primeiras e as segundas existe uma verdade quase que uníssona, qual seja, a de ser ignoradas e mau compreendidas quando da elaboração das políticas criminais, pelo que se passa a esclarecê-las. 1 OS CONCEITO DE ESPAÇO E TERRITÓRIO Pensar no conceito de espaço impõe percebê-lo através dos olhares da Geografia, o que, ao seu lume, impõe explicá-lo segundo a visão de um dos geógrafos brasileiros mais importantes, qual seja, Milton Santos. Para Santos (1997), o espaço é tido como um fator de evolução social, da mesma forma que mais uma instância da sociedade, em paridade às instâncias econômicas, culturais e ideológicas. Em aprofundamento de análise, o espaço seria constituído de duas realidades: a) a realidade das coisas, isto é, dos objetos geográficos, em sendo tanto dos naturais (não transformados pelo homem) como dos artificiais (elaborados pela relação desenvolvida entre o homem e o espaço), os quais se entende como elementos fixos; b) e da sociedade, tidos como os elementos fluxos do espaço. Os elementos fixos seriam o conjunto de objetos geográficos distribuídos sobre uma área. Já os fluxos corresponderiam às maneiras pelas quais os componentes fixos seriam vistos pelos olhos da sociedade, a partir de sua continuidade visível, isto é, daquilo que Santos entende como paisagem. Este último conceito se enquadraria como o conteúdo das dimensões econômicas, sociais, políticas etc., onde são estabelecidos diversos tipos de relações. Não por acaso, Santos compreende que o espaço é a soma de diversas paisagens (idem., ibidem). Santos (1997) também elencou cinco elementos, enumerações, funções próprias do espaço, quais sejam: 1. Homens, fornecedores de trabalho, ou candidatos a ele. O aglomerado destes produziria demandas específicas que são supridas ora pelas Firmas, ora pelos Institutos; 2. Firmas, tidas como a produção de bens, serviços e ideias; 3. Instituições, que são as partes burocráticas do Estado, responsáveis pela produção de normas, ordens e legitimações; 4. Meio ecológico, enquanto conjunto de territórios complexos que compõem as bases físicas do trabalho humano; 5. Infraestrutura, que seria o trabalho humano materializado, edificado, a exemplo das casas, plantações e demais estruturas. Neste momento, chama-se a atenção para um termo presente no quarto elemento (meio ecológico), qual seja, “territórios”. Para dispor sobre este segundo conceito, será utilizado as apreciações de Haesbaert (2004), que, em sua obra “o mito da desterritorialização, do fim dos territórios à multiterritorialidade”, consagrou uma importante diferenciação entre território e espaço. Nos termos aproximados de Haesbaert (2004), territórios são as áreas em que se estabelece apenas as relações de poder, enquanto o espaço é formado por diversas paisagens, onde, como visto acima, se estabelecem variados tipos de relações (incluso as de poder). Assim, territorializar significa dispor das ferramentas necessárias para possibilitar o exercício de dominação/poder de alguns sobre determinada área que, então, restará apropriada, dominada, territorializada. 2 OS CONCEITO DE DESTERRITORIALIZAÇÃO PRECÁRIA E PERVERSA Ante ao cenário discutido acima, Haesbaert (2004) concluiu que a desterritorialização é, em tempos contemporâneos, uma territorialização extremamente precária, por parte do Estado, na qual estariam sujeitas determinadas áreas populacionais. Logo, o fenômeno da territorialização precária pode ser entendido como aquele em que áreas de aglomerados humanos específicos padecem pela ausência de serviços públicos, restando carentes as condições dignas de vida. No âmbito das cidades, esse tipo de territorialização costuma ser observada nas áreas dos aglomerados subnormais, que, nos termos do IBGE (2010), são áreas de pelo menos51 unidades, desprovidas das condições de vida digna, cercadas de problemáticas relacionadas à legitimidade dos títulos de posse ou de propriedade. Somando à ideia de territorialização precária, Colares (2008), que estudou o fenômeno do tráfico de drogas no bairro da Terra Firme, situado no município de Belém do Pará, narrou o conceito de territorialização perversa. Sob a ótica do autor, quando o Estado permite que se instaure o fenômeno da territorialização precária, acima descrito, ele acaba por viabilizar a produção de uma integração perversa daqueles que foram esquecidos pelo Estado, sendo posteriormente lembrados pelas organizações criminosas, que articulam naqueles espaços a territorialização tida como perversa. Nessa perspectiva, grupos “criminosos” passariam a estabelecer as suas regras, determinando os horários de funcionamento dos comércios, das escolas, das festas, da utilização de praças públicas e até da inserção ou não dos jovens na criminalidade. Quando o Estado não instrumentaliza o exercício de seu poder, perante uma fração da sociedade, a criminalidade ocupa esta titularidade do controle, agregando e integrando os cidadãos que por ele foram deixados de lado, exercendo todo o seu poder sobre o modo de vida daquele espaço (COLARES, 2014). Com o fim de solucionar esse problema, o Estado deveria se tornar um organismo vivo, capaz de acompanhar, auxiliar, vigiar e exercer a sua vontade perante as condutas diárias de seus cidadãos, o que implicaria na extrapolação da simples ocupação física e espacial, feita ordinalmente através seus institutos oficiais. Mesmo porque, ao analisar os fenômenos das territorialidades, reflexivamente também se está analisando as relações de dominação e de poder (que a seguir serão detalhadamente examinadas). Acerca destas últimas relações, estudiosos como Maquiavel, Weber, Bobbio, Foucault, Bourdieu e Gramsci, já dissertaram quanto a existência de outros elementos nas mais variadas formas de controle, além daqueles relacionados à força física. Assim, pensar em relações de poder impõem pensar em conteúdos culturais, carismáticos, de submissão espontânea e voluntária, elementos estes que só podem ser superados apenas através de meios ideológicos, de forma árdua e demorada, principalmente se for considerado que os mesmos são diuturnamente exploradas por ambos os lados, isto é, tanto pelo Estado, como pelos espaços midiáticos, e também, pelos ditos “criminosos”, a partir de redes complexas e multifacetadas, o que ratifica o fato de que a vitória da violência necessita mais do que o mero uso da força. 3 AS TEORIAS DE PODER E SUAS IMPLICAÇÕES As constantes guerras entre facções, milícias e outras organizações criminosas evidenciam a luta física pelo poder, em busca da conquista de territórios, estes últimos entendidos de acordo com os termos acima explicitados. Ocorre que, muito embora a dominação possa se iniciar através da força física, esta dificilmente se perpetua por esse único meio, pelo que se faz necessário pensar em outras formas de manutenção e conquista de mais poderes, raciocínios que podem ser reconhecidos nas teorias de Maquiavel, de Weber, de Bobbio, de Foucault, de Bourdieu e de Gramsci. Não é à toa que a busca pela compreensão da origem e dominação desse elemento sempre se fizera presente nos arranjos sociais, desde os tempos dos reinos absolutistas, até as mais recentes teorias envolvendo questões de ordem global, interligadas aos processos de produção capitalista. Explica-se que as teorias de Maquiavel, Weber e Bobbio se dedicam, majoritariamente, a analisar o poder dos Estados e das organizações soberanas, enquanto as teorias de Foucault, Bourdieu e Gramsci são mais voltadas a um poder de caráter eminentemente difuso, isto é, não concentrado nas instituições. No que tange aos preceitos de Maquiavel (2008), um dos pontos mais importantes de seus ensinamentos circunscreve a indagação: “os fins justificam os meios?”. Com esta pergunta, Maquiavel, diferentemente de muito do que é dito acerca de sua obra, não afirma que o rei não teria limites, tão pouco que os fins justificariam os meios. Em verdade, ele assevera que um rei goza, sim, de limites, mas que tais limites se situam bem acima, quando dispõe de uma premissa aos governantes. Trata também de uma condição, da qual deve gozar todo aquele que objetiva possuir um poder, em sendo a característica de ser igualmente amado e temido. Contudo, caso assim não seja possível, isto é, caso fosse necessário optar por apenas umas dessas duas qualidades, um rei deveria ser temido, posto que, para Maquiavel (2008), o amor tenderia a relativizar as relações, enfraquecendo as possibilidades de impor suas vontades. Desse modo, se aquele que possui o poder tivesse que agir de forma violenta, quando objetivasse exercer sua soberania, assim deveria fazer. Porém, é neste momento que o relativizado limite dos poderes de um rei tenderiam a aparecer. Maquiavel ensina que um rei deve buscar ser temido (o que seria um limite acima dos demais), mas nunca ser odiado, pois aí se encontraria uma fraqueza capaz de resultar na perda do poder. Maquiavel também explica que um rei necessita possuir duas qualidades, quais sejam: a virtude (como boa oratória e boas relações) e a fortuna (entendida ora no sentido de oportunidades, ora no sentido de sorte), devendo se apresentar como um leão e uma raposa, no âmbito das relações políticas. A metáfora do leão diz respeito à força do agir e do exigir, e a identificação com a raposa estaria relacionada à qualidade de conseguir ser astuto, esquivando- se dos importunos, quando necessário. Outrossim, haveriam dois tipos de poder: a) aquele que é mais fácil de ser mantido, em geral derivado de uma condição de hereditariedade, pois este poder já se encontraria mais consolidado; b) e o poder que vem a ser mais difícil de ser conquistado, relativo ao novo poder, isto é, próprio de espaços que antes não se apresentava enquanto governados. Nesses últimos casos, o poder teria que, primeiramente, ser tomado à força. Porém, apenas o uso da força não iria garantir sua manutenção. Instrumentos de ordem cultural deveriam ser utilizados, com vistas a promover nas pessoas dominadas o sentimento de pertencimento àquele cenário. Sob este último aspecto, muito se assemelha aos métodos de territorialização perversa, principalmente no âmbito da criminalidade. Uma organização criminosa tende a tomar o poder sobre determinada área mediante o uso da força, com armas de fogo e afins. Contudo, objetivando se manter no poder, essas organizações, concebidas como um estado paralelo, instrumentalizam regras de boa convivência naquele território, incluindo festas e segurança aos moradores da região (COLARES, 2014). Essa comparação permite elucidar o quanto tal teoria ainda é atual e como pode ser utilizada para explicar os fenômenos contemporâneos, no caso, os fenômenos ligados à criminalidade. Séculos mais tarde, o intelectual alemão Max Weber trouxe uma nova visão ao poder, não mais relacionada às identidades dos principados, mas ainda muito interligada ao poder das instituições oficiais. Para Weber, o poder é uma característica de cunho social, isto é, não é algo estático, um objeto, sendo um elemento que surge do exercício de interações entre pessoas. Aquele que possuísse o poder conseguiria controlar os demais, a fim de fazê-los incorrer de acordo com as vontades do ser dominante. Acerca do conceito de dominação, Weber (2010) elenca três formas para que esta venha a ser efetivada: a) dominação tradicional, em que a legitimidade advém das tradições; b) dominação carismática, quando os dominados passam a obedecer ao dominante motivados por uma identificação para com este; c) e a dominação racional-legal, ligadas ao exercício de um poder legitimado pelas leis oficiais. No que tange à prerrogativade controle, esta poderia ser construída a partir de dois métodos: a coerção física ou a forma persuasiva. A primeira incluiria tanto a aplicação ou ameaça de sanções físicas (tidas como sanções negativas), como a manipulação, através de sanções de ordem positiva, por meio de recursos específicos, a exemplo do econômico, na relação patrão e empregado (WEBER, 2010). A segunda incluiria os métodos da significação e legitimação, em que os signos culturais incorporariam o entendimento de que se deveria obedecer àquelas pessoas que, por algum aspecto, receberam a legitimação para comandar. Próximo a esse entendimento da manipulação, Bobbio (1997) também dispõe o conceito de poder enquanto uma influência exercida sobre outros, a fim de fazê-los seguir a vontade do dominante. O filósofo traz o conceito de poder ideológico, advindo de significações, ideias e relações de organizações soberanas, enquanto um exercício social. Passando agora às teorias de poder voltadas a uma característica mais difusa, não tanto própria das organizações estatais, Foucault, Bourdieu e Gramsci parecem concordar, entre si, que o referido poder não nasce, necessariamente, de cima para baixo, isto é, da imposição hierárquica, podendo, também, brotar das relações de baixo para cima, mediante outros meios que façam nascer na parcela dominada o desejo da obediência, mesmo que este desejo seja, por vezes, algo inobservado. Para Gramsci (2005), o poder tende a operar mediante os meios ideológicos, divergindo das perspectivas marxistas, que entendem o poder calcado, majoritariamente, nas estruturas. Nos termos do primeiro, o poder está nas superestruturas (ideologias), enquanto uma ferramenta muito mais forte e potencialmente eficaz. Estas ideologias garantiriam a obediência até mesmo daqueles que não viriam a notar sua qualidade de obedientes. Isto porque estas superestruturas estariam relacionadas aos preceitos sociais mais caros, como aqueles pregados em igrejas, escolas, sindicatos e meios de comunicação (ratificando as possíveis contribuições midiáticas para os termos do fenômeno criminalidade). Não por acaso, o momento histórico conhecido como guerra fria foi expressivamente marcado pela produção de filmes e propagandas, que implantavam, na sociedade, o pavor e o ódio aos rivais. De mesma monta, o nazismo alemão também se apropriou deste artifício para fazer surgir o sentimento de que muito daquela realidade de caos do país devia-se aos imigrantes judeus. Dessa forma, esses valores estariam sendo silenciosamente implantados na sociedade, que viria a agir conforme os interesses daqueles que, em verdade, possuiriam o poder visando alcançar interesses econômicos ou militares (GRAMSCI, 2005). Novamente, faz-se um outro adendo aos termos das teorias já descritas, especificamente no que diz respeito aos ditames do Direito Penal do inimigo e ao populismo penal, que muito se mostram coerentes a este tipo de exercício do poder, no que se refere ao encrostamento da identidade de um inimigo em comum, que deveria ser aniquilado com poucos cuidados. Foucault, reconhecidamente um dos grandes sociólogos da modernidade, discutiu o tema poder, em maior escala, em suas obras “O Poder Psiquiátrico”, “Histórias da Sexualidade” e “Vigiar e Punir”, as quais serão consideradas para elucidar a compreensão do estudioso a respeito do tema. Primeiramente, resta dispor que a obra “Vigiar e Punir”, muito embora também se dedique largamente à abordagem de temas relativos à aplicação de sanções/penas por parte do Estado, desde a identificação desta enquanto um suplício a ser sentido através de castigos corporais, visa, em verdade, explicar as várias formas de manifestação de poder. Foucault (2006), inicialmente, afirma que o ser humano tende a ser individualizado por meio de suas práticas. Tais práticas, ao seu lume, são construídas a partir da ponderação de discursos maiores, de cunho generalizante. Assim, uma das primeiras conclusões de Foucault é a de que os discursos possuem um grande poder; pelo que estes necessitam, aqui, serem melhor analisados. Quando da apreciação dos discursos, observou-se que estes não tendem a dar-se de forma direta, mas sim de forma bastante sutil, enquanto um poder construtivo, edificado mediante alguns valores constantemente repetidos pelos agentes dominantes. Um destes discursos refere-se à identificação do poder produtivo, que melhor pode ser visualizado no livro “Vigiar e Punir”. Nessa obra, Foucault se utiliza das compreensões relativas à metodologia do pan-óptico, um tipo de estabelecimento penitenciário em que o custodiado teria sempre o sentimento de ser constantemente vigiado. Da mesma forma, o custodiado também passaria a receber constantes estímulos, por meios de alarmes, religiosamente periódicos, que norteariam as condutas diárias desses indivíduos. Como resultado, uma autodisciplina seria construída por parte dos detentos, nos termos de um poder disciplinar (típico de uma sociedade industrial, dotada de seus meios de produção limitadores e enrijecidos), o que, posteriormente, faria com que os próprios custodiados viessem a, inconscientemente, obedecer às regras impostas. O método de pan-óptico também pode ser observado nos espaços de fábricas, escolas, assim como no próprio exército, onde o medo da constante vigilância e aplicação regular de provas avaliativas tenderiam a moldar condutas desejadas. Compondo mais um adendo, a compreensão de Foucault (2000), no tocante a esse último aspecto, não parece se distanciar de forma acentuada dos preceitos da teoria behaviorista, no que concerne à visão de ser possível se moldar os comportamentos desejados de outrem, a partir de estímulos específicos, anteriormente estudados e cautelosamente aplicados. Outra condição imposta aos custodiados seria a obrigação do constante trabalho, a partir do raciocínio no qual aquele que produz frequentemente não teria tempo para pensar em delinquir, e ainda se apresentaria enquanto um ser útil à sociedade. Desses processos, construir- se-ia o que Foucault identifica como corpos dóceis e úteis, caracterizados por pessoas disciplinadas e controladas pelo poder (idem., ibidem.). Também existira, na visão do sociólogo, um poder negativo, próximo dos exercidos pelos reis da antiguidade, relativos à aplicação de torturas aos desobedientes, enquanto uma sanção, e ainda, enquanto um meio de inibição aos demais membros da sociedade. Todo esse cenário atua como uma forma de repressão ao proibido, que, portanto, não deixa de ser, também, uma forma de manifestação de poder, coerente a uma visão utilitarista (FOUCAULT, 1999). A proibição do que é naturalmente desejado, a exemplo da sexualidade, acaba por criar o imaginário do puro e do impuro, do bem e do mal, dos comportamentos socialmente aceitos, e daqueles fervorosamente renegados. Aqueles que obedecem às normas da boa sociedade, obedeceriam, também, a uma forma de poder daqueles que controlam esse espaço, uma vez que qualquer eclosão de verdades tende a ser rotineiramente condicionada politicamente (idem., ibidem.). Por fim, Bourdieu (2001) traz a composição de um poder simbólico, ainda mais sutil do que os termos de Foucault. Para o primeiro estudioso, este poder seria estruturado diretamente aos pensamentos humanos, isto é, às formas pelas quais o homem enxerga o mundo ao seu redor, através de pequenos estímulos diários variados. Uma vez consagrados na identidade do pensamento humano, essas estruturas jamais tenderiam a ser discutidas, e todas as ações e comportamentos seguintes seriam construídos a partir de tais raciocínios inquestionáveis. Essas estruturas seriam fruto dos processos de socialização, nos quais haveriam constantes disputas, com vistas a dispor aquele que teria acesso aos meios de controle desse poder. Nesse cenário, a sociedade seria definida em raciocínios sempre dicotômicos,de bem ou mal, feio ou bonito, certo ou errado, naturalizando significativas diferenças sociais, como aquelas existentes entre homens e mulheres, patrões e empregados, senhores e escravos. Assim, por exemplo, não se questionaria, com muito vigor, as diferenças salariais entre pessoas do sexo masculino e feminino (BOURDIEU, 2001). A estrutura social que fora sempre narrada tenderia a colocar a população masculina nos melhores postos de trabalho, nos mais importantes e rentáveis cargos e nas inéditas conquistas. Fora um homem que pisara pela primeira vez na lua, foram homens que abriram as primeiras discussões filosóficas, foram eles que, primeiramente, e em sua maioria, chegaram aos cursos superiores de graduação. Logo, não se apresentaria tão questionável as regras de uma sociedade que perpetuam essas prevalências. Com isso, as pessoas, em geral, obedeceriam às regras de um poder que, neste exemplo, é dominado pelos homens. No âmbito da criminalidade, não se apresenta como uma condição sagaz ir contra os processos de territorialização precária e perversa. Acostuma-se, então, a do Estado pouco esperar, e a dos ditos “criminosos” muito temer e respeitar. Nesse sentido, esses dois fenômenos também acabam se perpetuando. Como é possível observar, as teorias do poder fazem considerável sentido na análise dos fenômenos da criminalidade, bem como todos os demais termos transdisciplinares, pelo que não poderiam ser ignoradas ou ser compreendidas equivocadamente pelas políticas de segurança pública. Contudo, os próprios termos relacionados às políticas ainda são estranhos à maioria, pelo que passam a ser melhor esclarecidos. 4 POLÍTICAS PÚBLICAS E SEUS TERMOS Precipuamente, resta dispor que políticas criminais é apenas uma das espécies do gênero “Políticas Públicas” este, por seu turno, é próprio do campo da Ciência Política, que costuma partir de três tipos de abordagens, quais sejam: I. A investigação acerca do que seria um bom governo, e qual tipo de Estado seria melhor para garanti-lo. Sobre estes questionamentos, debruçaram-se, cautelosamente; II. A verificação acerca do processo decisório, isto é, acompanha quais forças políticas acabam prevalecendo no momento das escolhas do governo; III. A análise dos resultados e implicações de todas estas opções políticas (FREY, 2000). O termo “política criminal” indica, assim, a postura que o Estado assume no desempenho do combate à criminalidade, sendo, também, o ponto intermediador entre os estudos da Criminologia e a aplicação do Direito Penal (NUCCI, 2011). Estas espécies de políticas públicas podem ser do tipo penal ou não penal. As políticas criminais penais são maciçamente voltadas à tipificação de condutas e a aplicação severa de penas. Já as políticas criminais não penais se preocupam no reforço dos direitos sociais, a exemplo do investimento em equipamentos urbanos e comunitários (SOHSTEN, 2013). Por fim, é preciso dispor que toda política pública, até mesmo as criminais, devem ser elaboradas segundo um rito cuidadosamente pensado, caso queira potencializar suas chances de efetividade. Segundo Souza (2006), existem seis passos que deveriam ser seguidos com vistas a permitir a construção de políticas públicas satisfatórias. Esses passos formam o “ciclo das políticas públicas”, sendo composto pelas seguintes dimensões: a) definição de agenda; b) identificação das alternativas; c) avaliação das opções; d) seleção das opções; e) implementação das opções; f) avaliação das medidas tomadas, a fim de verificar seus níveis de eficiência e eficácia. Explica-se que esse ciclo dever-se-ia ser edificado e concluído dentro de um período específico. Ocorre que as constantes substituições políticas, com suas variadas ideologias e interesses privados, acabam por interromper trabalhos anteriormente iniciados, inviabilizando a conclusão de políticas públicas e seus ciclos. Como resultado, as ações estatais de repressão e prevenção ao crime e a violência continuam sendo estruturadas de forma ineficientes, importando não só em gastos desnecessários, mas também, na perpetuação da violência que assola a sociedade e vitimiza, principalmente, determinados grupos vulneráveis. 5 A DEMONSTRAÇÃO PRÁTICA DOS TERMOS A ponderação destes termos, em vias da dissertação de mestrado, permitiu conhecer3 as áreas que mais possuem a predominâncias de indivíduos acusados de praticar crimes patrimoniais. Em seguida, e a partir do conceito de “áreas de vulnerabilidade4”, analisou-se as condições socioeconômicas em que esses residiam, se tornando assim possível identificar a localização dos ditos territórios perversos, entendendo quais as questões estruturais que precisavam ser ajustadas, mediante a atuação de planejamento urbano focado no enfrentamento da insegurança pública, termos que podem a ser vistos a seguir: 3 Após a leitura de 1.300 inquéritos policiais dos anos de 2003, 2008, 2013 e 2017. 4 O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada definiu, em 2015, cinco áreas de vulnerabilidades sociais, com base na ponderação das dimensões: infraestrutura urbana (composta por três indicadores); capital humano (composta por cinco indicadores); renda e trabalho (composta por oito indicadores). Por meio destes, faz-se possível conhecer mais profundamente as condições socioeconômica das áreas de uma cidade (IPEA, 2015). Figura 1 - Classes de vulnerabilidade social e domicílios dos Cidadãos em Conflito com a Lei em Belém do Pará Fonte: Elaboração de Luiz Henrique A. Gusmão; Organização dos dados Everaldo M. de Oliveira Neto Explica-se que cada ponto se refere a um cidadão investigado pela prática de crimes patrimoniais, distribuídos dentre o município de Belém do Pará (incluso seus três distritos – Icoaraci, Mosqueiro e Outeiro), a partir das cinco áreas de vulnerabilidades descritas. Figura 2 - Média das três dimensões do Índice de Vulnerabilidade Social, por áreas de vulnerabilidade, de acordo com IPEA (2015) Fonte: Elaboração de Luiz Henrique A. Gusmão; Organização dos dados Everaldo M. de Oliveira Neto Considerando a figura anterior, que apontou a maior prevalência de cidadãos investigados pela prática de crimes patrimoniais nas áreas de média vulnerabilidade (logo, há muitos territórios perversos nesta área), e somando aos termos desta figura 2, que aponta maior deficiência de capital humano nesta região, faz-se possível identificar que ações devem ser priorizadas no planejamento urbano, visando combater a formação de cidadãos praticantes de crimes contra o patrimônio, principalmente se for considerado os indicadores específicos a seguir. Quadro 1 - As três dimensões do Índice de Vulnerabilidade Social e seus dezesseis indicadores Infraestrutura urbana Percentual de pessoas em domicílios com abastecimento de água e esgotamento sanitário inadequados Percentual de população que vive em domicílios urbanos sem serviço de coleta de lixo Percentual de pessoas que vivem em domicílios com renda per capita inferior a meio salário mínimo e que gastam mais de uma hora até o trabalho no total de pessoas ocupadas, vulneráveis e que retornam diariamente do trabalho. Capital humano Mortalidade até um ano de idade Percentual de crianças de 0 a 5 anos que não frequentam a escola Percentual de pessoas de 6 a 14 anos que não frequentam a escola Percentual de mulheres de 10 a 17 anos de idade que tiveram filhos Percentual de mães chefes de família, sem fundamental completo e com pelo menos um filho menor de 15 anos de idade, no total de mães chefes de família Renda e trabalho Taxa de analfabetismo da população de 15 anos ou mais de idade Percentual de crianças que vivem em domicílios em que nenhum dos moradores tem o Ensino Fundamental completo Pessoas de 15 a 24 anos que não estudam, não trabalham e possuem renda domiciliar per capita igual ou inferior a meio salário mínimona população total dessa faixa etária Pessoas com renda domiciliar per capita igual ou inferior a meio salário mínimo (2010) Taxa de desocupação da população de 18 anos ou mais de idade Pessoas de 18 anos ou mais sem fundamental completo e em ocupação informal Pessoas em domicílios com renda per capita inferior a meio salário mínimo (de 2010) e dependentes de idoso Taxa de atividade das pessoas de 10 a 14 anos de idade Fonte: Elaborado por Everaldo M. de Oliveira Neto, com base no Atlas da Vulnerabilidade Social nos municípios brasileiros (IPEA, 2015) CONCLUSÃO Ante a todo exposto, tem-se por demostrado como o conhecimento de todos estes termos, que extrapolam os meramente jurídicos, podem muito contribuir para percepção mais aprofundada de um planejamento urbano capaz de combater os fenômenos as criminalidades. Explica-se que cada tipo de crime possui seu raciocínio, devendo ser composta investigações individualizadas. Quando os estudos criminológicos visam articular políticas de intervenção policial sobre determinada área, importante se faz primeiramente conhecer os contextos sociais da mesma, a exemplo: que dimensão do espaço se faz mais necessitada? Seria então mais urgente a intervenção policial, ou a prestação de saneamento básico, quando, por exemplo, o elemento mais dificultoso do espaço versa, em verdade, sobre seus elementos fixos, e não sobre os fluxos. Ademais, dentro deste mesmo espaço, há quantos e que tipos de territórios? Se neste houver a territorialização perversa, qual crime mais articulado no mesmo? E ainda, se há o fenômeno da territorialização perversa, que superestruturas, por exemplo, estão mantendo este poder? Isto porque, como fora visto, de pouco adiantará a presença física de policiais nas áreas, se a população que lá vive continua, por exemplo, necessitando de capital humano (como ocorre em Belém do Pará), que quando não alcançado irá ensejar a crença de que sua lealdade para com os ditos “criminosos” lhes é mais favorável, agindo em conluio com estes, mesmo diante da presença de forças policiais. De forma em geral, as políticas públicas criminais brasileiras até então adotadas são diuturnamente alvo de indagações. Por um lado, existem os membros do Executivo, de ideologia repressiva e conservadora, para não dizer reacionária, que reiteram constantemente a necessidade de se investir em projetos de leis mais severas, com medidas punitivas mais intensas, progressivamente mais desumanas, e ainda, com grande potencialidade de se caracterizar como inconstitucionais. De outra monta, índices oficiais demonstram mais do que o aumento da população carcerária. A sociedade resta imersa no sentimento de medo, ao que Bauman (2001) reconhece como um sentimento de grande capacidade exploratória, inclusive, em termos financeiros. Um medo de que parte de ambos os lados, tanto daqueles que descumprem as leis, tidos como “criminosos”, como também daqueles que deveriam preservar os ditames legais. A letalidade policial, e a elaboração de políticas criminais pouco inovadoras, arrastam o cenário que deixou de ser característico latino-americano, e passou a condizer com o famoso “jeitinho brasileiro” de lidar com suas realidades, e mesmo assim, todas estas preposições narradas seguem sendo ignoradas ou aplicadas em equívoco. REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. BOBBIO, Noberto. Os intelectuais e o poder. São Paulo: UNESP, 1997. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. COLARES, Aiala. 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