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50 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 17, Edição 23, Ano 2021. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, Reexistência: existência e resistência ao poder dominador! Vol. 17, n. 23, p. 50-67, jan/dez2021. MAQUIAVEL E A LÓGICA DO PODER: O PROBLEMA DA ESTRUTURA POLÍTICA MEDIEVAL A DEMONSTRAR RUPTURAS NO ALVORECER DO PENSAMENTO FILOSÓFICO MODERNO MACHIAVEL AND THE LOGIC OF POWER: THE PROBLEM OF THE MEDIEVAL POLITICAL STRUCTURE DEMONSTRATING RUPTURES IN THE DAWN OF MODERN PHILOSOPHICAL THOUGHT BORGES, Ricardo de Moura 1 Resumo O presente artigo traz uma discussão sobre a lógica do poder em Maquiavel, analisando o processo histórico do surgimento da política, por meio de revisão bibliográfica. Demonstra as concepções e o surgimento da política na idade antiga, por meio dos considerados pilares do pensamento filosófico antigo: Sócrates, Platão e Aristóteles. Depois, com a expansão do cristianismo, por meio do Império Romano em decadência surge um período na história denominado de Idade Média, momento em que a lógica do poder está pautada pela mentalidade cristalizada de um poder divino. Daí foram destacados os três poderes concentrados na Igreja Católica: religioso, econômico e intelectual, que dão suporte à lógica do poder. Por fim adentramos o pensamento do filosofo renascentista Nicolau Maquiavel, fazendo uma análise do pensamento político sob uma nova perspectiva, por meio de dois termos: a virtú e a fortuna, que são ferramentas chave para entender o pensamento do nosso filosofo renascentista, a partir de sua obra O Príncipe. Palavras-chave: Maquiavel. O Príncipe. Lógica do Poder. Política. Abstract This article presents a discussion on the logic of power in Machiavelli, analyzing the historical process of the emergence of politics, through a literature review. It demonstrates the conceptions and emergence of politics in the ancient age, through the considered pillars of ancient philosophical thought: Socrates, Plato and Aristotle. Then, with the expansion of Christianity, through the decaying Roman Empire, a period in history called the Middle Ages appears, a moment in which the logic of power is guided by the crystallized mentality of a divine power. Hence, we highlight the three powers concentrated in the Catholic Church: religious, economic and intellectual, which support the logic of power. Finally, we enter the thought of the Renaissance philosopher Nicolau Machiavelli, analyzing political thought from a new perspective, through two terms: virtú and fortune, which are key tools to understand the thinking of our Renaissance philosopher, from his work The Prince. Keywords: Machiavelli. The prince. Logic of Power. Politics. 1 Mestrando em Sociologia – UVA – CE; Graduado em Licenciatura em Filosofia pelo Instituto Católico de Estudos Superiores do Piauí – ICESPI, Av. Palmeirais em Teresina-PI (2015). Graduado em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Piauí, Campus Senador Helvídio Nunes de Barros em Picos-PI (2016). Pós Graduado com Especialização em História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena pelo Centro Universitário Internacional - UNINTER, polo Picos-PI (2017). Pós Graduado em Filosofia pela Estácio de Sá. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/9110148245859195. 51 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 17, Edição 23, Ano 2021. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, Reexistência: existência e resistência ao poder dominador! Vol. 17, n. 23, p. 50-67, jan/dez2021. Introdução Muito discutido e objeto de muitas reflexões, o pensamento de Maquiavel, surpreendentemente, se faz presente depois de séculos de sua escrita, principalmente nas chamadas crises políticas, que estamos vivendo em nosso século. Dessa forma, é de fundamental importância que nos debrucemos sobre esse filósofo, para que entendamos a filosofia política no pensamento político moderno. Contudo devemos situarmo-nos no contexto histórico, para não corrermos o risco de desumanizar o homem, sem ao menos torná-lo demônio ou anjo que inaugurou uma nova forma de pensar sobre a política. Para isso dividimos o presente artigo em três tópicos que nos ajudarão a compreender o processo histórico do pensamento de nosso filósofo. Por isso, no primeiro tópico encontramos os gregos e os romanos como inventores da política, ressaltando de forma breve os pilares do pensamento filosófico grego desde a formação das primeiras cidades e a necessidade de se criar uma organização política com leis que norteassem a vida na pólis. Passando pelos sofistas e no divisor de águas, Sócrates, podemos apreciar a compreensão de política e a lógica do poder nos dois pilares da filosofia, a saber: Platão e Aristóteles, fazendo perceber que esse modelo foi alastrado para outras civilizações, onde Roma domina a Grécia pela força, nas conquistas territoriais, mas a cultura, a filosofia, a matemática, a religião e a política gregas são assimiladas pelos romanos de forma intensa. No segundo momento, adentraremos a Idade Média, começando a desconstruir esse termo, demonstrando uma construção feita pelos modernos, colocando em evidência que a lógica do poder agora passa a ser incrementada pelo desempenho e expansão constantes do cristianismo e passando por uma breve analise de construção do cristianismo pelas bases judaicas e com sua expansão através da agregação e expansão pelo Império Romano. A igreja católica agora passa a possuir os três poderes, a saber: religioso, econômico e intelectual. Dessa forma, a lógica do poder passa a se cristalizar, onde a filosofia passa a ser serva da teologia e os textos sagrados dão ênfase à construção da política medieval, dando autoridade ao soberano por forças divinas. No terceiro momento, apresentamos uma análise sobre a compreensão da lógica do poder em Maquiavel, situando-o historicamente e culturalmente, demonstrando que, a partir de sua experiência de vida na política na cidade de 52 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 17, Edição 23, Ano 2021. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, Reexistência: existência e resistência ao poder dominador! Vol. 17, n. 23, p. 50-67, jan/dez2021. Florença e em momentos de exílio, utiliza a sensibilidade e análise da história, buscando em outros autores, como por exemplo, o historiador Tito Lívio, que descreve a expansão de Roma, para compreender a situação política, culminando em sua obra de grande repercussão até os dias atuais: O Príncipe. O pensamento político que já estava concretizado no período em que Maquiavel viveu era pautado no período medieval. Cabe destacar que esse período estava alicerçado na cristandade que, com a queda do império romano, ganhou força e se mostrou como ponto unificador a partir de uma sociedade marcada pelo sistema feudal, que não pode ser entendo apenas como posse de terras para caracterizá-lo, como veremos mais adiante. O poder dos reis, dos senhores feudais marcou uma nova organização da sociedade, agora atrelando dois poderes, o poder temporal e o poder religioso, que na idade antiga se faziam separados, mas que também se uniram. Vale ressaltar que os antigos povos romanos, por exemplo, tinham o rei ou imperador Augustus,que quer dizer divino, por isso esse imperador era visto com um novo deus presente na terra, portanto, sendo aqueles contrários a essa concepção deveriam ser executados. Diferentemente do cristianismo, em que o rei deveria ser sagrado por um bispo, um cardeal ou até pelo próprio pontífice de Roma, o papa, para receber autoridade política que deveria ser dada por Deus, a nova estrutura apresentada pelo expansionismo dos mercadores, que se fez presente desde o tempo das guerras “santas”, como as cruzadas, o surgimento e a intensificação das feiras nos oriundos burgos, onde moram os chamados burgueses, dentre outros fatores trouxeram o alvorecer de novos tempos que se configuraram por uma historiografia tradicional de: Idade Moderna. Nesse contexto, percebemos a figura do nosso filósofo, que provavelmente, se tivesse nascido em tempos anteriores, poderia ter ocupado grandes posições de destaque na sociedade, o que de fato não aconteceu, devido aos interesses políticos da época. Este, em Florença na Itália (1469 – 1527), é designado como um bom estudioso, principalmente dos clássicos, a exemplo não só dos grandes oradores gregos mas também dos filósofos Platão e Aristóteles, que deram uma grande contribuição para o pensamento político. Maquiavel configurava-se como intelectual e apaixonado pela política, mas acabou percebendo o problema conceitual de uma política que estava se tornando ultrapassada em relação às interpretações teóricas da época. Dessa forma, o filósofo analisou os problemas políticos por meio de 53 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 17, Edição 23, Ano 2021. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, Reexistência: existência e resistência ao poder dominador! Vol. 17, n. 23, p. 50-67, jan/dez2021. um caminho novo. Por fim, veremos sobre como a lógica do poder, em Maquiavel, parte de um pressuposto de análise de cunho investigativo, segundo o autor que analisou a história minunciosamente, estabelecendo uma nova ótica sobre a virtú e a necessidade de o soberano se fixar no poder através das oportunidades, onde esse conceito está intrinsecamente unido ao conceito de fortuna. Gregos e romanos inventaram a política: a lógica do poder nos clássicos Em primeiro lugar faz-se necessário buscarmos entender o conceito e o surgimento do termo política, para posteriormente adentrarmos o pensamento de Maquiavel. Entendemos que, em seu sentido, a política foi inventada pelos gregos e aprimorada pelos povos romanos, tendo justamente como finalidade a obtenção da vida justa e feliz. Por esse motivo, muitos pensadores colocam que a política está intrinsecamente unida à ética. Atualmente isso parece difícil de ser visualizado, devido às graves crises políticas existentes. Parece que uma vive distanciada da outra, devido a concepção de que os políticos são corruptos, fazendo com que esse atributo seja inerente à política. Percebemos uma grande cobrança de ética na política, de modo que parece ser necessário voltarmos à origem da invenção da política, para encontrarmos os pontos que ligaram ética e política que está associado a phíloi, tendo em vista a sua separação em nossos tempos. Como acrescenta Konstan (2005, p. 90): Phíloi inclui todos os que são simpáticos aos jovens rebeldes. Na atmosfera da guerra civil, em que os fugitivos retornam para derrubar o novo regime, as relações são polarizadas entre amigos e inimigos, e o termo phíloi equivale a partidários. De fato, houve um vínculo interno entre política e ética, que trazia um significado das qualidades do poder e das leis que necessariamente dependiam das qualidades morais dos cidadãos. Como afirma Japiassú (2006, p.220), “política é tudo aquilo que diz respeito aos cidadãos e ao governo da cidade, aos negócios públicos”. Com o surgimento das cidades (polis em grego), que deve ser entendida para além do espaço urbano, como comunidade política, onde se seguia a lógica de que somente em uma cidade boa e justa poderia haver homens bons e justos e, consequentemente, somente por meio de homens bons e justos poderia existir uma cidade boa e justa. O surgimento da cidade, contudo não nasceu de passividade e justiça, mas justamente por meio da luta de classes, havendo um poder exercido por uma 54 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 17, Edição 23, Ano 2021. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, Reexistência: existência e resistência ao poder dominador! Vol. 17, n. 23, p. 50-67, jan/dez2021. autoridade. Claro que antes dos gregos havia essa autoridade, mas esta era exercida pelo predomínio dos mitos, sendo que foi justamente na cidade que o poder e autoridade existiram de forma política, substituindo o poder despótico (chefe da família). Esses conflitos gerados na polis e agora, não solucionáveis apenas por um poder despótico, entre ricos e pobres e entre ricos e ricos, agora deveria fundamentar-se em leis e princípios que valessem para todos os cidadãos. Assim nasce a política como uma necessidade de organização social. Dessa forma, não apenas no tempo de Maquiavel existia a luta pelo poder político, mas desde o seu surgimento na Grécia Antiga, quando os mesmos estavam interessados em garantir um status social para angariar benefícios para si e os seus. Percebemos o surgimento de três grandes sofistas (sábios, professores) Hípias, Protágoras e Górgias, que tinham por finalidade ensinar a elite ateniense a arte do bem falar, por meio da oratória e da retórica. Ora, se a própria política nasce de uma convenção social, por uma necessidade, o pensamento dos sofistas conclui que a polis (cidade) não é diferente, ao perceberem que a vida em comum traz mais benefícios do que o próprio isolar-se. Daí nasce o nomós (leis), ou seja, regras de convivência, como reforça Botelho (2015 p. 49): E é ai que entram os sofistas. No século 5 a.C., o nome (não?) se aplicava exatamente a uma escola filosófica, mas a uma profissão. Os sofistas eram intelectuais itinerantes que perambulavam na Grécia, ensinando diversos assuntos – principalmente a arte de raciocinar com clareza e falar de forma convincente. Adotaram a dialética, criada por Zenão, e adaptaram-na a suas necessidades. Nessa transitoriedade onde algo que poderia se naturalizar necessariamente poderia ser mudado com a discussão e o debate, surge um espaço privilegiado, chamado de Ágora, que é um espaço público onde a jovem elite bem preparada pelos sofistas podia discutir em público, argumentando em favor de suas opiniões nos debates das assembleias, a fim de defender sua posição. Dessa maneira continua Botelho (2015 p. 49): O primeiro dessa nova tendência filosófica foi Protágoras, nascido por volta de 490 a.C em Abdera, no norte da Grécia. Passou a vida perambulando de cidade em cidade e dando aulas sobre a arte de falar bem; seu ensino não era desinteressado: quem quisesse ouvi-lo e aprender com ele tinha de pagar. Essa veia mercantil trouxe má reputação aos sofistas – afinal de contas, nada estaria mais longe do ideal contemplativo descrito por Pitágoras do que um intelectual que pensa e fala por dinheiro, sem se preocupar com a realidade final das coisas. Por isso, a palavra sofista até hoje tem uma conotação negativa. “Eles não tinham a intenção de ensinar coisas ligadas a religião ou à virtude; ensinavam a arte de argumentar e todos os conhecimentosa eles relacionados. 55 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 17, Edição 23, Ano 2021. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, Reexistência: existência e resistência ao poder dominador! Vol. 17, n. 23, p. 50-67, jan/dez2021. Como veremos posteriormente, nosso filósofo passou por muitas discussões políticas em Florença, no século XV d. C. Nesse contexto, surge um filósofo considerado como divisor de águas para a história da filosofia, pois antes, e mesmo no tempo dele, o pensamento era caracterizado pela busca do princípio de todas as coisas pela própria natureza, e agora, com Sócrates, o problema filosófico passa a ser antropocêntrico, ou seja, o homem é o centro de seus questionamentos, procurando sair do mero mundo das opiniões dos sofistas, para se chegar a uma essência do que seja a justiça. Sócrates conclui que a verdadeira sabedoria se daria pelo reconhecimento da própria ignorância, como nos refere Botelho (2015, p. 61): O primeiro passo no caminho do filósofo é sempre incômodo: consiste em questionar todos os conhecimentos herdados, todas as certezas individuais e coletivas, e recomeçar a busca pela verdade de forma implacável, expondo tudo à lamina de um raciocínio rigoroso. Após a mensagem de Pitonisa, Sócrates convenceu-se de que a missão era iluminar a mente dos seres humanos, mostrando-lhes que nada sabiam – pois só assim poderiam vir a saber alguma coisa. Mesmo com a dúvida por parte de muitos historiadores da filosofia sobre a existência ou não de Sócrates, devido ao fato de o conhecermos apenas pelo que outros deixaram sobre ele, ou seja, os seus discípulos, é inegável que este, real ou não, provocou uma nova forma de se pensar a filosofia. Como afirma Reale (1990, p. 85), Parece sempre mais claro que se deve distinguir duas fases na vida de Sócrates. Na primeira fase, ele esteve próximo dos físicos, particularmente Arquelau, que, como vimos, professava doutrina semelhante à de Diógenes de Apoínea. Sofrendo a influência da sofistica, fez próprios os seus problemas, embora polemizando firmemente contra as soluções que lhes foram dadas pelos maiores sofistas. Assim sendo, não é estranho o fato de que Aristófanes, na celebre comédia As nuvens, representada no ano 423, tenha apresentado um Sócrates bem diferente daquele apresentado por Platão ou Xenofonte, que é o Sócrates da Velhice, o Sócrates da última parte da vida. Com isso entendemos que Sócrates, como qualquer outro pensador, está marcado pela sua época, cultura e sociedade, de onde são lançados olhares e perspectivas sobre os problemas surgidos. O seu discípulo Platão escreveu uma obra intitulada A República, onde coloca o ideal ético a ser seguido, para que haja justiça na polis, onde o Rei- filósofo deveria ser o melhor governante para a polis grega. Já o seu discípulo Aristóteles escreveu uma obra intitulada A Política, e nos diz que o homem, por natureza, é um ser político, destacando que é na polis (cidade) onde o ser humano tem as melhores condições de desenvolver suas potencialidades. Com essa breve contextualização 56 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 17, Edição 23, Ano 2021. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, Reexistência: existência e resistência ao poder dominador! Vol. 17, n. 23, p. 50-67, jan/dez2021. histórica, evidenciamos que a lógica do poder, discutida posteriormente, já se faz presente desde a criação da política na Grécia antiga, onde a luta de classes e interesses políticos trouxe diversas discussões, ou por uma busca constante por verdades passageiras, opiniões que poderiam ser moldadas ao prazer das circunstancias, ou na perspectiva platônica, posta sob foco o Sócrates que busca a essência, a verdade imutável, caracterizando que a justiça, mesmo sob o olhar do próximo discípulo de Platão, Aristóteles, deve ser almejada por todos os homens. Assim afirma o filósofo Aristóteles, em sua obra A Política, (p. 1253 a). Estas considerações deixam claro que a cidade é uma criação natural, e que o homem é por natureza um animal social, e um homem que por natureza, e não por acidente, não fizesse parte de cidade alguma, seria desprezível ou estaria acima da humanidade [...]. Agora é evidente que o homem, muito mais que a abelha ou outro animal gregário, é um animal social. Como costumamos dizer, a natureza nada faz sem um propósito, e o homem é o único entre os animais que tem o dom da fala. Por meio da comunicação mais aprimorada por meio da fala, o ser humano constrói a cidade, consequentemente as relações sócias aprimoram- se, ou seja, a natureza dos gatos contemporâneos permanece a mesma desde os tempos de Aristóteles, devido ao grau de abstração do conhecimento, sistematização e passagem para outros tempos. O ser humano, por meio da memória e da fala, transmite o conhecimento, muda a realidade, transforma a natureza por meio da cultura e da política. Pensando sobre a origem e a finalidade da comunidade política, temos a definição do ser humano como animal político, pela analogia com as abelhas e as formigas, que vivem em grupo. Mas, diferentemente das abelhas e formigas, o ser humano desenvolveu a linguagem e, por meio desta, modifica a realidade apresentada. Os romanos expandiram seu território, dominando os gregos e, como era práxis de domínio, instituíram a pax romana, ou seja, dominavam os territórios mas deixavam que estes continuassem com suas tradições, cultura, ou seja forma de organização. Assim, os romanos receberam forte influência a partir do século II a.C, com valores culturais, literários, filosóficos e científicos da civilização grega, que passaram a fazer parte do dia a dia dos romanos. Houve resistência dos setores mais conservadores da sociedade romana, pois estes temiam a perda das tradições. Não diferentemente, a religião romana foi enriquecida com a assimilação de deuses oriundos da Grécia, enquanto a língua latina incorporava as palavras gregas. Até na educação, muitos romanos deixavam a 57 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 17, Edição 23, Ano 2021. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, Reexistência: existência e resistência ao poder dominador! Vol. 17, n. 23, p. 50-67, jan/dez2021. educação dos seus filhos à mercê dos gregos. Esse processo conhecido por helenização foi tão forte que historiadores afirmam que muitas famílias romanas adotaram nomes gregos. Assim nos esclarece Botelho (2015, p.121): O império de Alexandre começou a ruir no momento de sua morte. Depois de 323 a. C., as vastas conquistas do macedônio foram divididas entre três de seus generais: a Ptolomeu, coube o Egito; Seleuco apossou-se do Oriente Médio; e Antígono reclamou a Europa. Após uma sucessão de revoltas contra os macedônios, Atenas foi derrotada definitivamente entre 267 a. C., e sua importância política se extinguiu de uma vez. Mas a roda da fortuna continuou girando: em 198 a. C., os próprios macedônios foram suplantados por Roma. Mas uma vez os gregos acreditaram-se livres, e, mais uma vez, estavam iludidos: algumas décadas depois, a Grécia tornou- se a província de um novo império. A época que vai da morte de Alexandre à anexação da península gregapor Roma é conhecida como Era Helenística. Esses elementos nos ajudam a dar mais um passo para compreender a lógica do poder em Maquiavel, que parece estar mais presente, na idade antiga, entre gregos e romanos, devido aos embates políticos e ao surgimento de novas teorias políticas, como fundamentação dos filósofos acima citados. No entanto, com o alvorecer do cristianismo, as perspectivas políticas ganham uma nova configuração que será discutida no próximo tópico. Idade Média: a lógica do poder teológico político Antes de iniciarmos propriamente a nossa discussão, cabe uma ressalva sobre o termo idade média, que foi construído devidamente por aqueles que se consideravam estar em outro estagio de pensamento, se auto classificando como modernos. Estes tornaram-se conhecidos como renascentistas entre os séculos XV e XVI, quando estabelecem uma visão distorcida sobre o período compreendido entre os séculos V e XIV. Calainho (2014 p. 14) assim afirma: A Idade Média, então, foi vista como um hiato, uma fase de interrupção do progresso humano, um período intermediário – daí média – entre o esplendor da Antiguidade Clássica e os “novos tempos” dos renascentistas e humanistas. A Idade Média foi considerada, então, como “Idade das Trevas”, a exemplo do poeta italiano Francesco Petrarca (1304 – 1374), que se referiu ao período tenebrae (sombra, escuridão). Essa visão foi construída e disseminada por muitos intelectuais da época renascentista e moderna. Calainho (2014, p. 14) ainda destaca que, Percebida como uma época de grande fanatismo religioso, ignorância e estagnação econômica, a Idade Média – a “longa noite de mil anos” – foi desprezada e detratada por vários intelectuais, como o renomado pintor Rafael Sânzio (1483 – 58 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 17, Edição 23, Ano 2021. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, Reexistência: existência e resistência ao poder dominador! Vol. 17, n. 23, p. 50-67, jan/dez2021. 1520), que denominou a arte medieval de gótica, termo que era sinônimo de bárbaro. Este olhar preconceituoso do período medieval se consolidou no século XVI, quando o italiano Giorgio Vasari, publicando uma obra bibliográfica dos grandes artistas da época, popularizou o termo “Renascimento”, em contraponto ao período anterior. E, no século XVII, o alemão Christian Keller publicou, em 1688, um manual de sua autoria, dedicado à Antiguidade e aos Tempos Modernos. Essa visão sobre a Idade Média só ganha uma nova perspectiva de enfoque no século XIX. Mesmo assim, hoje, no século XXI, encontramos o ensino moderno sobre a Idade Média. A idade Média, sob a perspectiva da escola dos annales, nascida na França no século XX, demonstrou que é um período que deve ser olhado como “objeto de novas reflexões historiográficas, ancoradas em novas fontes e metodologias” (FRANCO, 1983.p. 12). Assim, esse novo período histórico começa com a queda do Império Romano, em 476 d. C, e está dividido em: Alta Idade Média (Séculos V a X) e Baixa Idade Média (Séculos X a XIV), tendo em vista que o nosso foco é a concepção política dada pelos fatores que unificaram os povos, ou seja, pela lógica dos poderes políticos sob a égide da política romana e do cristianismo. Com o aparecimento do cristianismo no ocidente, as concepções dos filósofos antigos passam a ganhar nova tonalidade, ganhando uma centralidade religiosa. Por isso a lógica do poder, que antes estava em uma racionalidade política, dada pelo debate e discussão, sendo consolidada pelas leis, propicia o surgimento do direito romano, que até hoje é um dos pilares do ocidente, somando-se a dois outros: O cristianismo e a filosofia grega. Enquanto isso percebemos confronto com o cristianismo inicial e o império romano, como nos mostra Blainey (2012, p. 62), Desde o ano 64, quando Nero governava o Império Romano, empreendiam-se grandes campanhas de perseguição aos cristãos. Algumas eram mais amplas, mas a maior parte delas se concentrava em locais específicos, sob o comando de governadores de províncias. Não se sabe quantos cristãos foram executados no período de trezentos anos. O número de cristãos presos, então, é incalculável. Os crentes desafiadores, que se recusavam a renunciar ao seu Senhor, eram cruelmente torturados em público. Não se poupavam as mulheres: depois de terem o cabelo cortado ou raspado, como forma de humilhação, recebiam o castigo, ainda que tivessem dado a luz recentemente, estivessem grávidas ou fossem idosas. A maior parte dos torturados se recusava a abandonar a crença. Em Cartago, no ano de 203, os sofrimentos de Perpétua, aos 22 anos, e de sua escrava Felicidade permaneceram por muito tempo na memória do povo. Nenhum outro mártir – exceto os apóstolos – foi mais reverenciado do que elas. O cristianismo é herdeiro de duas tradições, a saber: a hebraica e a romana, portanto daqui partiram as suas teorias políticas. Os hebreus deram um caráter 59 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 17, Edição 23, Ano 2021. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, Reexistência: existência e resistência ao poder dominador! Vol. 17, n. 23, p. 50-67, jan/dez2021. teocrático à política. Por essa concepção, o poder pertence com exclusividade a Deus; assim, por meio dos profetas e pessoas ligadas à fé hebraica, pode-se eleger os dirigentes. Encontramos no livro dos provérbios, 8, 15: “É por mim que reinam os reis e que os príncipes governam a justiça”, dando sustentação divina ao governo dos reis na idade média. Provavelmente aqui encontramos um dos principais obstáculos enfrentados por Maquiavel, ao descrever a realidade política por meio de interesses humanos e não apenas, como a mentalidade da época considerava, pautado no livro sagrado. Os hebreus, além de serem conhecidos como povo de Deus, são conhecidos também como povo da lei. Assim, o cristianismo, ao se consolidar, estabelece uma junção da antiga aliança, do povo que estabelece uma aliança com Deus, e uma nova lei ou aliança de Deus com o povo, por meio de Jesus. Com a consolidação do cristianismo, a lógica do poder político, que estava sob força romana, encontramos o príncipe investido de poderes novos. Príncipe é uma palavra que indica primeiro cidadão, contudo, sendo Roma a senhora do universo, o príncipe se torna imperador do universo, que ficaria justamente em Roma. Assim, a lógica do poder está enfaixada sob a teoria política cristã com a teologia política, dando resultado ao poder da Igreja. No entanto, o poder a Igreja cresce na mesma proporção que o poder do Império Romano cai no ostracismo. Dois motivos levam a esse crescimento, Como aponta Chauí (2000, p. 324): A expansão do próprio cristianismo pela obra da evangelização dos povos, realizada pelos padres nos territórios do Império Romano e para além deles; e o sistema resultante do esfacelamento de Roma, conhecido como feudalismo, que fragmentou a propriedade da terra e fez surgirem pequenos poderes locais isolados, de sorte que o único poder centralizado e homogeneamente organizado era a Igreja. Enquanto o Império Romano entra em decadência, a igreja passa a agregar três poderes, a saber: o poder religioso, que antes era marcado pelo politeísmo, chegando até a divindade dos próprios Imperadores (Augustus), o poder econômico (doações de terras fizeram com quea Igreja se tornasse imensamente rica em um período conhecido como feudalismo) e o poder intelectual, já que as obras dos antigos intelectuais estavam sob o domínio da Igreja. Agora deveriam ser repensadas sob a ótica do cristianismo, pois nesse período surge a filosofia como serva da teologia, ou seja, todas as coisas que antes eram explicadas pelos antigos devem passar por uma revisão cristã. Assim, muitos filósofos e 60 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 17, Edição 23, Ano 2021. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, Reexistência: existência e resistência ao poder dominador! Vol. 17, n. 23, p. 50-67, jan/dez2021. teólogos da Idade Média cristianizaram as obras dos antigos, a exemplo de Platão, cristianizado por Agostinho, e de Hipona e Aristóteles, cristianizado por Tomás de Aquino. Como nos esclarece Botelho (2015, p. 137): O triunfo cristão acarretou novos desafios intelectuais à filosofia: a tentativa de adequar a Razão e a Fé, de modo que ambas coincidissem, é uma linha de força que atravessa a história do pensamento desde o fim da Antiguidade até o ápice da Idade Média. Nos primeiros séculos da nova religião, uma sequência de pensadores – conhecidos como os Pais da Igreja – buscou adequar a ideia de revelação divina às especulações clássicas da Antiguidade, essa fase do pensamento cristão é conhecida como filosofia patrística. Sobre o feudalismo, Bloch (1982, p. 38) nos diz que “o feudalismo originou uma sociedade em que o indivíduo não pertencia a si próprio, em que os laços de fidelidade eram maiores do que os de sangue”. Adentrando a Baixa Idade Média no ocidente, percebemos que esta passou por uma crise motivada por diversos fatores, o que fez alvorecer uma nova forma de pensar o poder político através do poder econômico. Essa crise abalou a nobreza, como a queda de fortunas, fazendo com que muitos partissem em êxodo para as cidades que tinham sido menos atingidas pela crise. Outro fator foi a peste negra, que dizimou milhares de pessoas, como salienta Calainho (2014, p. 121), ao dizer que A doença era praticamente fatal em 80 a 100% dos casos, pouco tempo depois de contraída. Ironicamente, chegou à Europa por conta de grande expansão mercantil que marcou o feudalismo, vinda com comerciantes oriundos da colônia genovesa de Caffa, na região do Mar Negro, e difundindo-se pelo restante da Europa. A doença devastou a população do sul para o norte, caminhando em velocidade espantosa e atingindo indistintamente ricos e pobres, bem e mal alimentados. A salvação era estar longe dos focos, a exemplo dos personagens de De Cameron, livro de autoria de Giovanni Boccaccio, escrito em 1350, que viram sua cidade natal Florença, ser dizimada pela moléstia. Como foi visto em um dos fatores que levaram à crise na Idade Média, encontramos a cidade de nosso filosofo descrita na citação acima, onde analisaremos por conseguinte a lógica do poder em Maquiavel, tendo em vista que encontramos perspectivas do pensador. Por isso fez-se jus ao passeio histórico que fizemos na Grécia antiga e no período medieval. Aqui percebemos que essa consolidação cristã do conceito de política romano marca um impasse quando adentrarmos o pensamento de Maquiavel, marcado por crises que não se sustentam mais, percebemos a necessidade do alvorecer do conceito de política sob uma nova ótica. Quando observamos na obra O Príncipe (p. 8), temos a seguinte passagem: 61 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 17, Edição 23, Ano 2021. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, Reexistência: existência e resistência ao poder dominador! Vol. 17, n. 23, p. 50-67, jan/dez2021. Como sei que muita gente já escreveu a respeito dessa matéria, duvido que não seja considerado presunçoso propondo-me examiná-la também, ainda mais se ao tratar deste assunto me afastar dos princípios estabelecidos pelos outros. Todavia, como é de meu intento escrever coisa útil para os que se interessarem, pareceu-me mais conveniente procurar a verdade pelo efeito das coisas do que pelo que delas se imagina. Passemos para o pensamento de Maquiavel enquanto filosofo moderno, renascentista que se situa na cidade de Florença e como o mesmo começa a perceber a lógica de poder político que é instituída na sociedade. Um filosofo que parte de observações do seu cotidiano, marcado por inúmeras derrotas na área da política, passa a escrever sua obra, O Príncipe, no momento em que está preso. Deixando de lado as discussões sobre governos e governantes ideais, o filósofo se preocupa em descrever como é de fato esse governo, destacando que existem limites para o uso da violência para que o soberano conquiste e continue no poder e como conseguir um governo estável. Por isso se faz necessário lançarmos um olhar reflexivo sobre a lógica do poder em Maquiavel, pois proporciona uma visão da história desapegando das tradições até então aceitas. A lógica, portanto, significa uma mudança de paradigmas que perpassa a idade moderna através de considerações dadas por outros filósofos. Portanto, Maquiavel é se torna o precursor da filosofia política moderna com sua forma de entender a política em um viés realista. A Lógica do poder em Nicolau Maquiavel O problema da estrutura política medieval a demonstrar rupturas no alvorecer do pensamento filosófico moderno, se dá justamente pelas condições de constante transformação em que a Europa Ocidental se encontra. Percebemos que, quando Maquiavel nasce, a própria península itálica encontrava-se descentralizada e fragmentada. Destacamos cinco estados que tinham poder: O Reino de Nápoles, O Reino dos Estados Pontifícios, o Estado Florentino, o Ducado de Milão e a Republica de Veneza. Estes viviam em constante conflito, que os deixavam frágeis caso houvesse invasões inimigas. Em 1492 morre Lourenço de Médici, conhecido como Lourenço o Magnifico, rico da casa de Médici que dominava Florença. O seu sucessor não teve o mesmo prestigio. Dois anos após a morte de Lourenço, o rei da França Carlos VII, atravessou os Alpes em busca de conquistar Florença, em um período de guerras que durou até o ano de 1559. Por infelicidade, nosso filósofo Maquiavel passou grande parte de sua vida sob efeito de catástrofes políticas na Itália. Japiassú (2006, p. 177) assim descreve Maquiavel: Homem solitário e revoltado, o italiano Maquiavel (nascido em Florença), tornou- se aos 29 anos, secretário do governo 62 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 17, Edição 23, Ano 2021. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, Reexistência: existência e resistência ao poder dominador! Vol. 17, n. 23, p. 50-67, jan/dez2021. republicano de Florença. Empreendeu várias missões diplomáticas. Os Médici, porém sustentados pelo Papa Júlio II, apoderaram-se de Florença e dos Estados Vizinhos. O republicano Maquiavel organizou, em vão sua resistência. Foi preso, torturado e banido (exilado). Em San Cassiano, onde se refugiou e passou 10 anos, escreveu dois livros: O discurso sobre a primeira década de Tito Lívio e o Príncipe. Com base nesta citação, percebemos o infortúnio do filosofo, que no momento de crise (exílio), preparou uma de suas obrasmais conhecidas e vendidas nos dias de hoje, O Príncipe, que é uma obra dedicada a Lourenço de Médici, que era neto de Lourenço o Magnifico, quando em 1512 a família Médici voltou ao poder de Florença. A obra foi uma esperança para que Lourenço conduzisse a política, tal como seu avô, mantendo um processo de unificação política da região da Itália. Contudo, em 1527, os Médici foram expulsos do poder no mesmo ano em que o nosso filósofo “solitário e Revoltado” (JAPIASSÚ, 2006, p. 177) Niccolò Maquiavel faleceu. Com a queda do último Médici, a cidade de Florença estava em decadência, como afirma Hibbert (1993, p. 223). Florença tinha outros motivos para chorar. Era agora uma cidade triste, pobre, sombria e sem esperança. Os turistas a descreveram repleta de mendigos, vagabundos e monges que em lúgubre cortejo passavam por escuros edifícios de vidraças tapadas com papel. [...]. Apesar dos onerosos tributos decretados por Cosimo, que em seu leito de morte autorizava uma nova forma de imposto de renda, o Estado se encontrava praticamente falido. E falidas se achavam muitas famílias nobres cujos ancestrais haviam sido tão ricos. Maquiavel, ao analisar a política, rejeita as construções tradicionais de política marcadas por um idealismo tanto de Platão, ao falar em seu livro a República do Rei Filósofo, como de Aristóteles, que posteriormente ganha novo teor nos textos de Tomás de Aquino. Assim, segue a trilha dos historiadores antigos, como Tácito, Políbio, Tucídides e Tito Lívio. Como nos esclarece Wefort (2008, p.17), Seu ponto de partida e de chegada é a realidade concreta. Daí a ênfase na verità effettuale – a verdade efetiva das coisas. Esta é sua regra metodológica: ver e examinar a realidade tal como ela é e não como se gostaria que ela fosse. A substituição do reino do dever ser, que marcara a filosofia anterior, pelo reino do ser, da realidade, leva Maquiavel a se perguntar: como fazer reinar a ordem, como instaurar um Estado estável? O problema central de sua análise política é descobrir como pode ser resolvido o inevitável ciclo de estabilidade e caos. Essas questões colocam fim a uma estrutura que estava naturalizada e que foi marcada por leis ditas eternas. Assim essa ordem política não é nem do acaso e nem de forças divinas como se acreditava até então. Como salienta o historiador Miceli (2016, p. 39), ao apontar que, 63 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 17, Edição 23, Ano 2021. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, Reexistência: existência e resistência ao poder dominador! Vol. 17, n. 23, p. 50-67, jan/dez2021. Para melhor entender essa espécie de contemporaneidade entre O Príncipe, basta substituir o personagem título por entidades politicas detentoras de poder social, independente de seus nomes e aparelhos jurídicos-administrativos, sejam os ditadores e chefes de Estado plenipotenciários, sejam os caudilhos ou líderes de partidos únicos, sindicatos todo- poderosos e impessoais burocracias estatais. É como se perguntássemos hoje em dia que o presidente da república de nosso país (em momento de escândalos, corrupção, compra de deputados e etc.) fosse esse poder atribuído a ele pelo acaso ou estivesse pautado em textos sagrados que deveria este ser governante do país. Estando atento à história e aos acontecimentos que o rodeavam, Maquiavel começa a estudar de forma meticulosa e esmiunçada a história para tirar desta os exemplos políticos que fundamentaram sua obra. Uma coisa era o que se via na prática e outra era o conceito sobre política, ou seja, o que se vivia e o como se queria ou dizia sobre como se viver. É o que encontramos em Maquiavel (1973, p. 11): Ora desejando eu apresentar-me com algum testemunho, que prove a minha admiração por Vossa Magnificência, não encontrei entre os meus pertencentes coisa de maior valia ou que tanto estime, como o conhecimento das ações, dos grandes homens, adquirido numa longa experiência das coisas modernas e numa contínua lição das antigas, que, meditadas por longo tempo e examinadas como grande diligência, juntei agora um pequeno volume que vos envio. E, no entanto, que a recebereis, considerando que não posso oferecer dádiva que facilitar-vos, em brevíssimo tempo, o que a mim me custou anos não poucos trabalhos e perigos. Essa prática voltada para uma ação eficaz e real mostra em sua obra, o príncipe, a lógica do poder que se torna a lógica da força, assim como diz Maquiavel (1973, p. 44): “Portanto, precisa ser raposa para conhecer os laços e leão para aterrorizar os lobos”. Em seu contexto histórico percebemos que a visão de mundo se dá a partir do universo político, que não é outra coisa senão a guerra, sendo importante na política alcançar os resultados traçados como meta, não importando os meios para se atingir. Daqui nasce a secularização da política. Teoricamente, Maquiavel descreve pela prática vivenciada o abandono da ética cristã, provocando uma separação entre moral privada e moral pública. Observamos em sua obra o Príncipe onde Maquiavel (1973, p. 11), Não enfeitei a obra nem com palavras brilhantes e pomposas, nem com nenhum desses vãos ornamentos com que muitos autores costuma embelezar e descrever as suas. Apenas quis, ou que nada a honre, ou que só a variedade da matéria e a gravidade do assunto a tornem grata. Nem quero se tenha por presunção que um homem de baixo e ínfimo estado se atreva a discorrer das regras sobre os governos e 64 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 17, Edição 23, Ano 2021. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, Reexistência: existência e resistência ao poder dominador! Vol. 17, n. 23, p. 50-67, jan/dez2021. os príncipes. Porque, assim como os que desenham paisagens se colocam nas planícies para considerar a natureza dos montes e das colinas, e, para considerar as planícies, se colocam no cimo dos montes, do mesmo modo para conhecer bem a natureza dos povos é preciso ser príncipe e para compreender a dos príncipes é necessário ser filho do povo. O governante deverá agir com virtú, como a firma o próprio Maquiavel (1973, p. 44): “É preciso que ele tenha um espirito disposto a voltar-se segundo os ventos da sorte e as variações dos fatos”, não tem nenhuma ligação com os conceitos de virtude ligados à justiça e ao bem, mas sim à força e ao valor. Como salienta Wefort (2008, p. 21), Para os antigos, a Fortuna não era uma força maligna inexorável. Ao contrário sua imagem era a de uma deusa boa, uma aliada potencial, cuja simpatia era importante atrair. Essa deusa possuía os bens que todos os homens desejavam: a honra, a riqueza, a glória e o poder. Mas como fazer para que a deusa Fortuna nos favorecesse e não a outros? - perguntavam- se os homens da antiguidade clássica. Era imprescindível seduzi-la. Respondiam. Como se tratava de uma deusa que era também mulher, para atrair suas graças era necessário mostrar-se vir, um homem de verdadeira virilidade, de inquestionável coragem. Assim, o homem que possuísse virtú, no mais alto grau seria beneficiado com os presentes da cornucópia e da fortuna. Com o cristianismo essa visão foi distorcida e derrotada. A deusa foi substituída pelo poder cego. Dessa forma, a virtude maquiavélica estaria associada a oportunidade, acaso, revelando que aquele que estiver mais apto diante das circunstâncias eatento será o governante. Esse príncipe com a virtú, será aquele que souber aproveitar e fazer as necessárias mudanças para alcançar seus objetivos. Dessa forma entendemos que a lógica do poder se inverte de forma prática e eficiente sob a perspectiva de nosso filósofo. Maquiavel propunha em sua obra demonstrar como deveria ser o príncipe que tivesse as qualidades necessárias com a finalidade de garantir a unificação da Itália, tirando de cena o declínio anárquico e a fragilidade de Florença se submeter a outras potências. Vemos que o sucesso ou o fracasso do príncipe é avaliada a partir da capacidade deste de executar meios necessários para se manter no poder, como afirma a filósofa Aranha (1993, p.65): Aliás, disso nos apercebemos quando Maquiavel descreve as inúmeras ações dos príncipes, cujos perfis não são nitidamente definidos, mas, ao contrário, são apresentados até de forma ambígua, variando conforme a situação. Isso porque, para Maquiavel, o sucesso e o fracasso do príncipe pode ser avaliado não em função de padrões fixos de comportamento, mas de sua capacidade de executar a política exigida para a resolução dos problemas coletivos. Assim percebemos que o filósofo demonstra que o príncipe deve ser ágil, de acordo com as situações apresentadas em seu contexto. No livro O Príncipe, relata a forma 65 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 17, Edição 23, Ano 2021. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, Reexistência: existência e resistência ao poder dominador! Vol. 17, n. 23, p. 50-67, jan/dez2021. como os principados estavam organizados e passa a dar vários conselhos de como o governante deve agir para conquistar territórios e, além disso, mantê-los. Por isso faz uma descrição de como lidar com as pessoas, como garantir a estima e até como evitar os aduladores. Assim, Maquiavel (1973, p. 108) nos diz, Não há outro meio de guardar-se da adulação, a não ser fazendo com que os homens entendam que não te ofendem dizendo a verdade; mas, quando todos podem dizer-te a verdade, passam a faltar- te com a reverencia. Portanto, um príncipe prudente deve proceder por uma terceira maneira, escolhendo em seu Estado homens sábios e somente a eles deve dar a liberdade de falar-lhe a verdade daquilo que ele pergunte e nada mais. Deve consulta-los sobre todos os assuntos e ouvir as suas opiniões; depois de liberar por si, a seu modo, e, com estes conselhos e com cada um deles, portar-se de forma que todos compreendam que quanto mais livremente falarem, tanto mais facilmente serão aceitas suas opiniões. Fora aqueles, não querer ouvir ninguém, seguir a deliberação adotada e ser obstinado nas suas decisões. Quem procede por outra forma, ou é precipitado pelos aduladores, ou muda frequentemente de opinião pela variedade dos pareceres; daí resulta a sua desestima. Para que isso seja compreendido pelo governante, o mesmo deve ter capacidade de ler a história e perceber a hora certa, agir com ponderação, ou seja, a regra máxima para governar deve ser que o governante deve sair da observação de regras absolutas, pois as circunstâncias mudam e o mesmo deve estar atento para a história. O espirito do renascimento, com o alvorecer da modernidade, transformou a mentalidade de nosso filósofo, fazendo com que Maquiavel observasse atentamente a história, procurando a inspiração para pensar a época de sua vida em Florença, mas não nos filósofos antigos clássicos, como os citados em nosso primeiro tópico, que tinham uma lógica do poder diferente do pensando por ele, mas em outros pensadores antigos, de forma particular o historiador Tito Lívio, que fez um relato da expansão de Roma. Conclusão Compreender a política hoje em dia não se restringe apenas a Maquiavel, contudo faz-se de fundamental importância estudá-lo, pois caracteriza-se por uma visão da realidade, onde o filosofo aponta um caminho interessante, que é buscar por si só desnaturalizar o natural. Em uma sociedade marcada por constantes crises em seu contexto, Florença ganhou um intelectual de peso, pois muitos recorrem aos textos de Maquiavel para fazerem suas análises sobre política. Desnaturalizar o natural foi compreender a política não apenas como os outros. A tradição milenar estipulou que todos aceitassem cegamente, mas, justamente por meio de uma análise prática de 66 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 17, Edição 23, Ano 2021. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, Reexistência: existência e resistência ao poder dominador! Vol. 17, n. 23, p. 50-67, jan/dez2021. convivência com as situações políticas de seu tempo, Maquiavel conseguiu desnudar a política e mostrar não um pessimismo, mas um realismo sobre os fatos que se mostravam visível a tal realidade. Compreender a lógica do poder é entender que nas relações sociais somos movidos por interesses, que a construção da sociedade é de fato uma construção e que o ser humano é protagonista de sua história, mas que está dentro de uma história pré estabelecida por forças, instituições e modelos que constituem uma padronização, ou seja, um modelo a ser seguido. Maquiavel utiliza dois elementos chave para a construção de sua obra, a saber: a sensibilidade, que é utilizada como ponto de investigação sobre o Estado, e a criatividade, sob o ponto de vista que procura sobre novos horizontes, novas perspectivas ao construir o pensamento político de sua época. Não se deixa apenas abater pelos problemas vivenciados (exílio), mas faz disto, desse ponto de solidão, um momento para colocar as ideias em uma sequência lógica, raciocinando sobre os eventos acontecidos, fazendo uma análise histórica. Para não concluir, é necessário destacar o quão se faz presente a análise do filosofo sobre a realidade política nos dias atuais, para sair não mais dos conceitos que estavam ligados ao tempo em que Maquiavel viveu, mas das diversas concepções que são formuladas pelos partidos políticos diversos (lembrando que o contexto é diferente, mas as ações políticas de se angariar o poder não são tão diferentes) e pelo que o senso comum muitas vezes destaca, que política deve ser desacreditada completamente, fazendo com que aqueles que estão no poder continuem da mesma forma, pois o senso comum muitas vezes faz com que muitos não se preocupem com a política em si, mas com o que ela pode proporcionar momentaneamente. Essa concepção da relação entre ética e política passa a ser de fundamental importância, para que possamos pensar em uma sociedade com menos desigualdades sociais, pobreza, fome e miséria, entendendo- a não a partir de um sonho utópico, mas que as forças de poder e as instituições se construíram em tempos históricos em nosso país e que tudo tem uma razão de ser e existir graças a virtú e a fortuna. Tudo isso demonstra que essa relação entre política e ética em outros tempos foi vivenciada por um tipo de harmonia, pois, mesmo no nosso imaginário coletivo, existe uma ideia de justiça onde a política verdadeira é compatível com a ética, onde o papel desta é realizá-la e não corrompê-la. Referências A BÍBLIA. Auto elogio da Sabedoria: a sabedoria régia. Bíblia de Jerusalém. São 67 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613Vol. 17, Edição 23, Ano 2021. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, Reexistência: existência e resistência ao poder dominador! 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