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BENEDITO DUTRA Depoimento concedido ao Centro de Memória da Eletricidade no Brasil 1990 Centro da Memória da Eletricidade no Brasil MEMÓRIA DA ELETRICIDADE Depoimento de Benedito Dutra para o Centro da Memória da Eletricidade no Brasil 2 3 Centro da Memória da Eletricidade no Brasil MEMÓRIA DA ELETRICIDADE Programa de História Oral Coordenação: Coordenadoria de Pesquisa – COPQ BENEDITO DUTRA (depoimento) Depoimentos concedidos por Benedito Dutra, em 11 de janeiro de 1990, 19 de julho de 1990 e 24 de julho de 1990, para o âmbito do projeto “Benedito Dutra”, sob a coordenação geral do Centro da Memória da Eletricidade no Brasil – MEMÓRIA DA ELETRICIDADE. De acordo com a Lei 9.160 dos Direitos Autorais Proibida a publicação no todo ou em parte; permitida a citação. A citação deve ser textual com indicação da fonte. Rio de Janeiro 2017 4 Edição Centro da Memória da Eletricidade no Brasil - MEMÓRIA DA ELETRICIDADE ©2017 Presidente: Augusto Rodrigues Diretora-executiva: Helena Guido de Araújo e Oliveira Coordenadoria do Centro de Referência: Leila Lobo de Mendonça Coordenadoria de Pesquisa: Ligia Maria Martins Cabral Coordenadoria de Comunicação: Ivson Alves de Sá Coordenadoria de Administração: Rosana Maria de Almeida Viana Projeto gráfico e editoração eletrônica: Leila Lobo de Mendonça e Vanessa Braga Baranda O áudio deste depoimento pertence ao Centro da Memória da Eletricidade no Brasil – MEMÓRIA DA ELETRICIDADE * No acervo sonoro recebeu o nº de registro - Col. 01 Avulsos-0001 Benedito Dutra * Na Biblioteca Léo Amaral Penna recebeu o nº de tombo - 5756 5 FICHA TÉCNICA Tipo de entrevista: Temática Entrevista: Elisa Muller e Paulo Brandi de Barros Cachapuz Digitação: Maria Izabel Cruz Bittar Local: Rio de Janeiro - RJ Data: 11 de janeiro de 1990, 19 de julho de 1990 e 24 de julho de 1990. Duração: áudio indisponível 6 SUMÁRIO Dados sobre o núcleo familiar Vinda para o Rio de Janeiro, após revolução ocorrida no Amazonas em 1909, acompanhando o seu pai que era oficial do Exército, desincumbindo-se na prática das funções de engenheiro. Estudos iniciais na Escola Barth. Exala as aulas de Educação Moral e Cívica, lamentando extinção da disciplina em 1931, por decreto do presidente Getúlio Vargas. Elogia o presidente Castelo Branco pela sua iniciativa de reintroduzir o ensino de Moral e Cívica. Fim da carreira militar do pai. Trabalhos de seu pai como engenheiro militar: construção da ponte sobre o rio Paraná; unificação das estradas de ferro Itapura- Corumbá e Noroeste do Brasil. Experiência como estagiário no Rio Grande do Sul. Formação escolar no Rio de Janeiro (Colégio Santo Inácio e Colégio- Santo Antônio Maria Zacarias). Escolha da profissão de engenheiro. Em 1925, novo estágio, desta vez, já como estudante de engenharia, na Construção de Macaé. Destaca que a usina de Glicério foi a primeira do país a utilizar equipamento Brown-Bowery. Colegas de curso na Escola Politécnica: Leo Amaral Penna e Guilherme da Silveira Filho. Comentários sobre o curso de engenharia. Destaca que poucos estudantes optavam pela especialização em algum ramo da engenharia, preferindo atuar como uma espécie de clínico-geral. Recorda os professores Dilcídio Pereira, que substituiu o prof. Henrique Morize na cátedra de Física, e Tobias Moscoso, que ministrava a cadeira de Economia Política. Referência à influencia cultural francesa. Menciona outras experiências de trabalho na época de estudante: macadamização da cidade de Campo Grande e construção de Friburgo-Niterói. 7 O fechamento da firma de seu pai e a fundação da B. Dutra. Concorrência para a reforma da estação de Friburgo da Leopoldina Railway. Contato com o Almt. Protógenes Guimarães. A composição da B. Dutra. Questionário. 1) Em 1956, o Sr. atuou em duas frentes de trabalho de suma importância no conjunto de iniciativas do governo JK na área de energia elétrica: a preparação do projeto de constituição da Central Elétrica de Furnas e na área de legislação, a elaboração do projeto de nº 1898, enviado ao Congresso em setembro de 1956, e do Decreto nº 41019 promulgado por JK em fevereiro de 1957. Como Sr. foi convidado a participar desses trabalhos e de que forma conseguiu se desincumbir das tarefas. 2) Em seu depoimento, Cotrim afirma que Furnas foi a única empresa de capital misto verdadeiramente misto que se fez no Brasil? O Sr. concorda com essa afirmação? Como se desenvolveram as negociações com a Light, o governo de Minas e o governo de São Paulo (Monteiro Filho, Bias Fortes e Jânio Quadros) para sua participação em Furnas? 3) Como se desenvolveram as negociações com o Banco Mundial que resultaram na concessão de financiamento de 73 milhões de dólares. 4) Em seu depoimento, Cotrim afirma que o Sr. tinha uma concepção mais rígida de administração, enquanto o diretor técnico de Furnas, Flavio Lyra era mais liberal, cabendo a ele, Cotrim, funcionar como árbitro. (p.219) Caso o Sr. concorde com esse testemunho, o Sr. poderia citar elementos que teriam levado Cotrim a qualifica-lo como um administrador rígido e o Flavio Lyra como mais liberal? 5) Cotrim afirma ainda que devido aos problemas com a George Wimpey, o Sr. em dada altura criou um órgão de compras de materiais estrangeiros. Qiando e como exatamente aconteceu esse episódio? 6) A Diretoria Financeira de Furmas foi desmembrada em três diretorias, segundo Votrim, devido à impossibilidade de acumular os vários serviços de finanças, administrativas de pessoal e compras. Pedir esclarecimentos. ** Questionário 2 1) Como o Sr. aceitou a crise do governo João Goulart que culminou com o movimento político-militar de março de 1964? 2) Por que o Sr. aceitou o convite para assumir o cargo de secretário-geral do Ministério das Minas e Energia? 3) Como estava estruturado o Ministério em 1964? 8 4) Quais as principais alterações da estrutura organizacional do Ministério na gestão de Mauro Thibau? 5) A propósito da compra da Amforp como o Sr. avalia a tese defendida pelo governador Leonel Brizola de que as subsidiárias da Amforp poderiam ser encaminhadas sem indenização? 6) Como o Sr. avalia a tese do ministro San Tiago Dantas de que seria mais interessante nacionalizar as subsidiárias estrangeiras do que conceder a essas empresas as tarifas a que teriam supostamente direito? 7) Como foi construída e como funcionou a comissão interministerial nomeada pelo presidente Castelo Branco em junho de 1964 para levar a cabo a compra das subsidiárias da AMFORP? 8) Em agosto de 1964, o ministro Thibau levou a proposta da comissão ao Conselho de Segurança nacional, ao Legislativo e aos governadores de estados interessados na compra da AMFORP. Quais as resistências enfrentadas pelo ministro? 9) Como o Sr. avalia o contato firmado pela Eletrobras com a AMFORP para a transferência dos bens e ações das empresas concessionárias de energia elétrica que o grupo norte-americano possuía no Brasil? 10) Qual o papel desempenhado pela Eletrobras, em especial o seu presidente, nas negociações para a compra da AMFORP? 9 BENEDITO DUTRA 1ª Entrevista: 11/01/1990 Entrevistador – Sr. Benedito Dutra, nós gostaríamos de começar o seu depoimento lhe perguntando o local e o ano de seu nascimento. Benedito Dutra – Nasci no dia 23 de maio de 1906, na cidade de Manaus, estado do Amazonas, filho de pai mato-grossense, engenheiro civil e militar, e de mãe piauiense. Entrevistador – O sr. viveu o tempo todo em Manaus ou se transferiu para outro estado? Benedito Dutra – Como militar, o meu pai era andejo. O meu segundo irmão é cearense, o meu terceiro irmão é francês, nascidoem Paris, a minha quarta irmã é amazonense ainda, a quinta irmã já é carioca. Nós deixamos a cidade de Manaus para a Guarnição do Rio de Janeiro, depois de ter participado de uma revolução no Amazonas. Entrevistador – O sr. poderia falar um pouco sobre essa revolução no Amazonas? Benedito Dutra – Sobre a revolução no Amazonas, eu era muito criança para poder ter memória, exceto do que ouvi posteriormente na família. O meu pai era oficial do Exército, engenheiro-militar e participou da chamada Revolução do Pensador... o governador, depois que ocorreram no Brasil, não foi a única nem a primeira, eram todas fruto de desinteligências entre os grandes da política, que outra coisa não faziam se não disputar o poder. Ao meu ver, no meu entendimento, ideologia era muito pouca. Tudo se resumia em conquistar o poder para defender interesses pessoais, de grupos ou da família. 10 Entrevistador – O sr. seu pai, tendo se transferido para o Rio de Janeiro, o sr. certamente ingressou numa formação escolar. Como é que foi essa formação escolar? Benedito Dutra – Quando meu pai foi transferido para o Rio de Janeiro, primeiro- tenente do Corpo de Artilharia, porque naquele tempo ainda não havia Corpo de Engenheiros, apesar dele ser engenheiro e, por ser engenheiro, ele pertencia à arma de artilharia. Eu era menino quando vim para o Rio de Janeiro, como já havia dito, em 1909. Em 1909, eu tinha três anos. Um pouco mais tarde, quando eu tinha seis anos de idade, o meu pai sempre nas suas funções de militar, uma função andeja, eu fui matriculado na Escola Barth, uma escola pública que até hoje existe, na antiga avenida de Ligação, hoje avenida Oswaldo Cruz. Quando dessa época, uma impressão que se tornou muito viva com o correr do tempo, porque por esse tempo, a formação do indivíduo que começava nos bancos escolares, tinha por base a educação que se chamava educação moral e cívica. Nós iniciávamos as aulas de manhã, na escola, prestando a nossa homenagem à Bandeira Nacional, cantando o Hino Nacional e a primeira aula era de educação moral e cívica, ou seja, no comportamento do indivíduo como cidadão de uma nação. Com o correr do tempo, tudo isso que tinha se cristalizado no espírito de uma criança, foi duramente abalado quando, em 1931, o ditador Getúlio Vargas, por decreto, exigiu nas escolas públicas e particulares o ensinamento da educação moral e cívica. Essa disciplina só foi restituída em 1964, pelo presidente Humberto de Alencar Castelo que, por decreto, restabeleceu o ensinamento nas escolas públicas e particulares e que nunca foi cumprido. Entrevistador – Dr. Benedito Dutra, sendo o seu pai um engenheiro-militar, por que o senhor optou em fazer engenharia na Politécnica do Rio de Janeiro, não tendo seguido a carreira do seu pai, de engenheiro-militar? Benedito Dutra – Meu pai demitiu-se do Exército quando ainda era primeiro- tenente, se não me engano em 1919 ou 1920, porque considerava que a carreira 11 militar se constituía numa camisa-de-força para o cidadão. Isso é um pensamento pessoal, que não representa o pensamento de meu pai, que foi um dos grandes patriotas que eu conheci. Em 1921, meu pai construía quartéis para o exército porque, tendo deixado a farda, ele, seguindo a carreira civil, teve várias funções, inclusive de diretor da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, da Estrada de Ferro Itapura-Corumbá, em 1915, e foi nessa função que ele promoveu a unificação das duas estradas, que eram uma aberração, porque uma era continuação da outra, separadas pelo rio Paraná e ele juntou, construindo a famosa ponte sobre o rio Paraná e permitindo assim que os trens que saíram de São Paulo fossem até Corumbá sem baldeação em Jupiá. Mas eu devo voltar um pouco atrás, para continuar a história da minha vida. Eu tinha quinze anos de idade quando terminei o curso ginasial. Nessa época, 1921, como disse mais atrás, o meu pai era construtor de quartéis para o Exército brasileiro, depois remodelados não por um militar, mas por um civil genial, chamado Pandiá Calógeras, que foi o primeiro e único ministro civil do Exército desde o Brasil independentemente. Estava meu pai nesta função, construtor de quartéis, como eu já disse, terminava eu o curso ginasial e ele entendeu de me levar ao Rio Grande do Sul e de me fazer ajudante do engenheiro (incompreensível), que era o engenheiro chefe das obras nos quartéis e a quem eu me juntei e de quem me tornei um admirador pelas suas grandes qualidades de profissional e de comandante. Durante um ano eu estive no Rio Grande na função, trabalhando na sede da companhia, que eram em Santa Maria. Essa posição me deu desejo de conhecer uma boa parte do Rio Grande do Sul. Entrevistador – O sr. sempre acompanhou o seu pai nessas viagens? O sr. conheceu muito o Brasil nesse período? E a sua formação escolar? Depois da Escola Barth, o sr. continuou a estudar aqui no Rio de Janeiro? O seu curso foi intercalado, foi interrompido? Benedito Dutra – A pergunta é muito pertinente porque eu fiz um salto no tempo. Embora eu não acredite em um túnel do tempo, eu fiz um salto no tempo. Saindo da Escola Barth, a família se transferiu para Petrópolis. Nós estivemos morando em Petrópolis durante dois anos, até 1914. Durante esse tempo todo, tivemos 12 professora particular, não estive em escola nenhuma. Ao voltar ao Rio de Janeiro, em 1915, fui matriculado no Colégio Santo Inácio, onde fui colega de figuras que hoje estão na história do Rio de Janeiro e de cujos nomes já me é difícil recordar. Da escola, do colégio Santo Inácio, eu fui transferido, e esse é um ponto realmente importante na minha vida. Em 1916, eu fui transferido para Colégio Militar. Como neto de herói da Guerra do Paraguai e filho de militar, eu fui recebido muito bem no Colégio Militar. E, como é de se imaginar, a ideia do meu pai era de que eu seguisse a carreira que ele tinha abandonado. Eu estive no Colégio Militar durante dois anos, onde tive colegas distintos, entre eles o ex-chefe de Junta Governativa do Brasil, Aurélio (incompreensível) Tavares e outros nomes dos quais não me recordo mais. Depois desses dois anos no Colégio Militar, tendo manifestado absoluta ojeriza à farda e à disciplina militar, meu pai me matriculou no Colégio Santo Antonio Maria Zacarias, grande instituição de ensino na rua do Catete, dirigida pelos padres barnabetas, onde eu fiz todo o resto do meu curso, até concluir o curso ginasial, ao qual me referi mais atrás. Do Colégio Barnabetas, fiz aquele estágio no Rio Grande do Sul. Depois disso, um ano, em 1924, de curso anexo na Escola Politécnica e, em 1925, ingressei na Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Entrevistador – Sr. Benedito Dutra, na década de 1920, mais precisamente em 1922, surge no Brasil o movimento tenentista. O sr. afirmou a pouco que seu pai abandonou a carreira militar. Haveria alguma ligação entre os dois fatos? Entre o movimento tenentista e o desligamento do seu pai do Exército? Benedito Dutra – A pergunta é pertinente, mas difícil de responder. Como eu disse a pouco, meu pai me levou para o Rio Grande do Sul em 1921. Nessa época, ele já estava desligado a algum tempo do Exército... não acredito que ele tivesse qualquer ligação, nem conexão com o movimento de 1922, que foi o primeiro movimento militar contra o governo. Posteriormente, em 1924, quando eu fazia o curso anexo para o vestibular de engenharia, houve nova revolta militar, a famosa Revolta dos Dezoito do Forte de Copacabana que todo mundo conhece. Também não acredito que o meu pai tivesse qualquer ligação oi conexão com o movimento, movimento esse do qual fizeram parte militares que foram meus colegas no curso de 13 engenharia, como o recém falecido Rafael Souza Aguiar, uma das inteligências privilegiadas que eu conheci e que fez o curso de engenharia, formou-se engenheiro, formou-se advogado e médico. Rafael Souza Aguiar, formosa inteligência,e que foi, posteriormente, muitos anos depois, o homem que reestruturou e criou o novo Corpo de Bombeiros da cidade do Rio de Janeiro. É obra de Rafael de Souza Aguiar, a quem eu aproveito para prestar a minha homenagem de amigo e de cidadão pelo muito que a sociedade deve a ele. O movimento de 1924 teve como consequência futura o movimento de 1930. Não sei se é o momento de falar sobre isso. Entrevistador – Gostaria de, antes de conversarmos sobre o episódio de 1930, voltar um pouquinho à Escola Politécnica e lhe perguntar: o sr. já tendo uma experiência profissional na construção de quartéis no Rio Grande do Sul, em 1921, como era o seu contato com os colegas, como era o ambiente da Escola Politécnica? A Escola Politécnica conseguiu efetivamente contribuir para a sua formação ou essa experiência anterior teria feito o sr. um engenheiro ainda que não tivesse diploma? Benedito Dutra – A pergunta é muito inteligente, muito curiosa, porque, efetivamente, quando eu fui estudar engenharia, não havia regulamentação de profissão no Brasil nem, muito menos, limitação. Havia, praticamente, o que se chamava a liberdade profissional. Isso eu vou mais adiante mostre a significação que tinha e as consequências. Eu fui estudar engenharia porque o meu pai era engenheiro. Eu tinha iniciado, eu tinha aberto os olhos para a vida em trabalhos de engenharia, embora, no íntimo, o meu desejo fosse estudar medicina. Efetivamente, durante um ano, eu estudei o vestibular de medicina. Mas cheguei a conclusão de que não teria nenhum sentido estudar medicina quando o meu pai era engenheiro, eu tinha um tio, irmão da minha mãe, que era engenheiro (incompreensível), o meu pequeno mundo era um mundo de engenharia. Antes de me formar engenheiro, em 1930, eu estava trabalhando na firma de meu pai, que era uma firma de engenharia e que me propiciou o meu primeiro contato com o setor elétrico, porque em 1925 ou 1926, ainda estudante de engenharia, não me lembro bem, não posso precisar o ano, eu fui designado a trabalhar como ajudante do engenheiro que 14 construía uma usina hidrelétrica no rio São Pedro, usina essa que iria servir a cidade de Macaé. E eu trabalhei nessa usina durante um ano. Dizem que o hábito faz o monge ou que o cachimbo põe a boca torta e eu tinha quinze anos quando comecei a viver o mundo da engenharia. Em 1925, eu tinha vinte anos. Era muito moço, mas desde a minha pouca idade, uma boa parte dela tinha sido vivida na engenharia. E não havia outra coisa a fazer se não continuar onde eu tinha começado. Entrevistador – Dr. Benedito Dutra, na formação Politécnica, já havia divisão entre engenharia civil e engenharia elétrica? A eletricidade já era uma área de formação do engenheiro? Benedito Dutra – Como eu disse a pouco, entrei para a Escola Politécnica em 1925. Foram meus colegas de curso o dr. Leo Amaral Penna, o dr. Guilherme Silveira Filho, e uma porção de outros nomes que no momento não me ocorrem, mas todos eles vieram a brilhar na profissão. Naquela época, o engenheiro civil correspondia à área de atividades a que corresponde o clínico geral na medicina. O engenheiro civil era obrigado a conhecer de tudo um pouco. Ele tinha que conhecer hidráulica, conhecer eletricidade, mecânica, conhecer metalurgia, conhecer geologia, conhecer astronomia. O engenheiro civil era o clínico geral da engenharia. Havia as especializações que eram escolhidas depois do segundo ano de engenharia civil. O estudante fazia os dois primeiros anos de engenharia e depois ele decidia se queria ser engenheiro eletricista, se queria ser engenheiro rodoviário, engenheiro ferroviário, engenheiro estrutural, e por aí afora. Muito poucos escolhiam especialização, porque a especialização é fruto de uma evolução da sociedade, particularmente da economia da sociedade. Não havia campo para muitos especialistas na engenharia nacional e para sobreviver, como meio de vida, tinha que ser engenheiro civil. Engenheiro ferroviário para um país que, nessa época, tinha 18.000 quilômetros de estradas de ferro, não tinha vez, era um ou outro, como, por exemplo, o meu querido amigo e que mais tarde foi considerado o maior engenheiro ferroviário do Brasil, Renato de Azevedo Feio, filho de um chefe de oficina, das oficinas de Engenho de Dentro na Central do Brasil e que chegou, 15 depois de 12 anos de estudo de engenharia, chegou a ser presidente ou diretor-geral da Estrada de Ferro Central do Brasil e que foi considerado, pelo Banco Internacional, o maior engenheiro ferroviário que o Brasil já produziu. Mas era um. Ah, o dr. Eugênio Gudin foi um engenheiro, entre mil, e de fato o que ele era mais, era economista, do que engenheiro. Entrevistador – Dr. Benedito Dutra, o se. Já falou da forte influência do seu pai na escolha da sua profissão. Na Escola Politécnica e, mesmo fora da escola, que professor teve uma influência marcante? Benedito Dutra – A pergunta é de difícil resposta, porque é uma pergunta que individualiza a resposta. E efetivamente, marcante mesmo, eu não posso dizer que tenha havido nenhum professor. Alguns professores ficaram gravados, talvez menos pelo seu valor profissional, seu valor funcional, do que por outras circunstâncias, como, por exemplo, o professor Henrique Morize, que era o catedrático de Física na Escola Politécnica, do curso de engenharia. Em junho de 1925, o professor Henrique Morize se aposentou e o assistente dele, professor Dulcídio conhecia muito pouco de Física. Mas acontece que o professor Dulcídio era um homem de caráter e um homem de vontade. No fim de dois anos, o professor Dulcídio era, efetivamente, um professor de Física. Tinha passado a conhecer Física, coisa que ele conhecia muito pouco em 1925, quando substituiu o titular da cadeira. Entrevistador – Nós gostaríamos de saber como surgiu a oportunidade do sr. trabalhar na usina de Macaé e saber também se, durante o curso, o sr. teve oportunidade de fazer outros trabalhos do gênero? Benedito Dutra – Como eu disse a pouco, eu entrei para a escola em 1925 e, em 1925 ou 1926, não me lembro mais, eu trabalhava na firma de mau pai, como empregado, e fui designado para aquela função de ajudante do engenheiro construtor da usina de Glicério. Mas eu quero fazer um parênteses, quero voltar atrás, e retomar o curso da resposta à pergunta que me foi feita sobre a impressão, 16 ou coisa que o valha, que houvessem feito os professores da Escola Politécnica. Eu mencionei o professor Dulcídio Pereira porque foi a primeira emoção que eu experimentei na escola. Mas, efetivamente, outros professores, sem dúvida nenhuma, foram marcantes. O professor de cálculo, o professor de mineralogia e entre esses todos, há um a que eu quero fazer uma menção especial, o professor Tobias Moscoso, professor de economia política. O segundo ano de engenharia compreendia no seu currículo a cadeira de economia política. Essa cadeira era desconsiderada na escola. Como o curso era livre, ninguém ia às aulas de economia política. Por razões que não vem ao caso, eu me interessei muito pelas aulas do professor Tobias Moscoso, que ensinava economia política. Curiosamente, na cadeira de engenharia, se houvesse só a disciplina de economia, ela não faria sentido. A cadeira de economia política, para o engenheiro, é de uma importância que tem sido relegada a segundo plano, quando devia estar no (incompreensível). O verdadeiro engenheiro, não o engenheiro que vive apenas no mundo da matemática superior, eu estou falando do engenheiro mais materialista, que é o engenheiro que concebe, que pensa, que executa... A cadeira de economia política é aquela que estabelece para o engenheiro o parâmetro fundamental que é aquele do custo- benefício de qualquer projeto, coisa que, pelo menos até recentemente, tem sido completamente ignorada na engenharia brasileira. O custo-benefício não faz sentido para o engenheiro, nem para o que projeta,nem para o que executa, porque ambos estão sempre deslumbrados com a possibilidade de fazer o maior projeto, a maior obra do mundo. Ninguém está interessado em saber se o projeto é econômico ou não é econômico, ou melhor, ninguém examina o aspecto de custo-benefício não faz sentido para o engenheiro, nem para o que projeta, nem para o que executa, porque ambos estão sempre deslumbrados com a possibilidade de fazer o maior projeto, a maior obra do mundo. Ninguém está interessado em saber se o projeto é econômico ou não é econômico, ou melhor ninguém examina o aspecto de custo- benefício do projeto. E, entretanto, a cadeira de economia política no curso de engenharia, cadeira essa que já foi extinta, mas que existia no meu tempo, tinha exatamente por objetivo dar ao engenheiro essa visão que é fundamental. Não basta que o projeto seja tecnicamente perfeito, não basta que o projeto seja 17 tecnicamente viável. O projeto tem que ser também economicamente viável. Isso foi completamente ignorado há muito tempo. Hoje, o engenheiro brasileiro apenas quer saber se há possibilidade dele fazer, pelo menos para aquela situação, aquele local ou aquelas condições, o melhor e maior projeto do mundo. Essa é a razão porque, não na época em que eu era estudante, mas depois que eu me formei, que fundei minha própria firma de projetos de engenharia e de construção, é que me fez avaliar o quanto... que valor tinha, a disciplina de economia política no curso de engenharia e quanto se devia ao professor Tobias Moscoso que, sem dúvida nenhuma, além de grande professor, era um grande profissional. Morreu naquele desastre do Dox, aquele avião alemão que veio ao Brasil, caiu aí na Baía de Guanabara, em frente à Praça XV de Novembro. Ele morreu nesse desastre e, com a morte dele, morreu também a economia política na engenharia. Entrevistador – Dr. Benedito Dutra, na época não havia a profissão do economista. Nessa época, o sr. acha que o engenheiro substituía o economista ou seria o advogado? Benedito Dutra – Nessa época, 1925,1926, eu ia me formar em 1930, não havia o curso de economista, não havia economista no Brasil que, infelizmente, se tornou uma praga como o advogado no princípio do século. No princípio do século, o Brasil foi invadido pelo bacharel em direito. Havia até gari de limpeza pública que era bacharel, e todo mundo se formava em direito. Hoje todo mundo se forma em economista. Em primeiro lugar, não se sabe nem o que é economia. Vai conversar com um economista, pede a ele para definir economia, ele vai gaguejar durante muito tempo, vai mastigar muita coisa, mas cuspir a definição de economia duvido que consiga. É como os democratas também do nosso tempo, falam em democracia, mas não sabem o que é. Democracia é uma palavra muito bonita, anda aí pelos jornais, pelos países mais desenvolvidos, mas o sujeito enche a boca de democracia, que ele não sabe o que é. Vai ver é pastel de vento pra ele. Entrevistador – Eu queria voltar um pouquinho à Politécnica e lhe fazer mais uma pergunta. Nessa época, quando o sr. era estudante, havia algum problema em 18 relação à escassez de livro didático? Como é que isso era resolvido? Benedito Dutra – Não havia problema de livro didático porque o professor dava aula e apenas mencionava os tratadistas a quem a gente devia recorrer para complementar a aula. Em geral, os livros todos de curso de engenharia, com raríssimas exceções, eram franceses, porque nessa época a formação cultural, para não dizer também na espiritual e artística, no brasileiro, era, sem dúvida nenhuma, oriunda da França. Quando se fala de alguma coisa de muito importante, tinha que se falar da Sorbonne. O brasileiro vivia de olhos postos na Europa e de costas para o Brasil. Basta lhe dizer que a família da minha mãe, que era uma família muito grande, em Manaus, na sua grande maioria, conhecia a Europa, Paris, Londres, Lisboa, Madri, mas não conhecia o Rio de Janeiro. Uma das minhas tias mais chegadas, viveu, teve filhos e os criou em Paris. Só veio ao Rio de Janeiro para morrer. Não havia livro didático oficial, o professor é que designava para seus alunos os livros, os compêndios, as obras que eles deviam consultar para acompanhar o curso, a disciplina que eles estavam ministrando, matemática, estradas de ferro, hidráulica, física, química, qualquer das disciplinas, o livro era sempre francês. Entrevistador – O sr. poderia falar um pouco sobre o ano de 1931, que é o ano no qual o sr. cria a sua firma de construção e também é um ano de forte crise econômica no Brasil e o primeiro ano de governo revolucionário de Getúlio Vargas? O sr. poderia falar alguma coisa dessa época? Benedito Dutra – Bom, como esse negócio, mais elegantemente, como esta nossa entrevista vai ser depois revista e podada, eu posso me alongar à vontade, porque depois cortem o que quiserem, para mim não faz diferença, nem eu fico melindrado por isso não. Mas eu devia voltar um pouco atrás e contar um pouco daquilo que se sucedeu à minha primeira atividade ligada ao setor elétrico, que como eu disse foi a minha primeira tarefa de ajudante de um construtor de uma usina hidrelétrica que, entre parênteses, foi a primeira instalação Brown Boveri que se fez no Brasil. O primeiro equipamento Brown Boveri que veio para o Brasil foi para essa pequena 19 usina de Glicério, no rio São Pedro, afluente do Macaé. Se me perguntarem a potência da usina, eu vou ficar em dificuldades. Eu não sei se eram 250 ou 300 kW. Era uma usininha para uma cidadezinha do tamanho de Macaé daquela época. Hoje não serve nem para iluminar o Teatro Municipal. Depois disso, eu fui dirigir a pavimentação da cidade de Campo Grande, em Mato Grosso, que foi a primeira cidade do interior do Brasil que se pavimentou com macadã betuminoso, que eles chamavam de asfalto. Não tinha asfalto nenhum. Era macadã betuminoso. Macadã, que é pedra britada comprimida, pó de pedra, para passar o rolo compressor em cima e dar aquele aspecto de asfalto, mas que não era asfalto. Isso foi em 1928, por aí. Em 1929, fui convocado para dirigir, durante seis meses, a construção da adutora que trazia água da Serra de Friburgo para Niterói. Em 1930, veio a Revolução e a firma de meu pai, que tinha contratos com o governo que tinha acabado de ser deposto, acabou por encerrar as suas atividades. Nessa ocasião, nós estávamos fazendo águas e esgoto de Miracema, de Pádua, de Cambuci, cidades aí do noroeste do estado do Rio, além de outras atividades, das quais eu participava, como sócio que já era da firma. Firmo Dutra & Cia. Ltda. Era o nome da firma de meu pai da qual eu me tornei sócio, depois dessas peripécias todas. Em 1930, tivemos um ano inteiro de perplexidade e acomodação a uma nova ordem e, em 1931, eu fundei a minha própria firma de engenharia e construções – B. Dutra & Cia. Ltda.. Entrevistador – Desses trabalhos que o sr. realizou ainda na época de estudante, qual que o sr. considera o mais importante, se é que houve um mais importante? A construção da usina, o trabalho de macadamização de Campo Grande? Benedito Dutra – Para mim, todos os trabalhos eram importantes, porque para mim é importante o trabalho que a gente faz com entusiasmo, com amor e brio para fazer o melhor possível. E quando a gente termina bem um trabalho, ele passa a ser o mais importante. Não tem mais importante, nem menos importante. Todos são importantes quando eles chegam ao fim dentro dessa mesma filosofia de fazer o melhor. E o melhor não tem comparação. Em 1931, voltando, eu fundei a minha firma, tinha quatro sócios, entre eles o meu irmão, e começamos a enfrentar as 20 agruras de uma crise que se tinha deflagrado em 1929 nos Estados Unidos, o famoso crack da bolsa de Nova York de 1929. Mas, quando a gente é moço, tem cara e coragem e resolvi enfrentar e fazer alguma coisa. E a primeira coisa que me apareceu foi saber que a LeopoldinaRailway, que continuava inglesa, tinha convocado concorrência para reforma da Estação de Friburgo. Me armei de coragem, cara não faltava e fui à diretoria da Leopoldina, na Estação Barão de Mauá, pedir para também ser consultado para os trabalhos de reforma da Estação de Friburgo. Eu fui recebido pelo engenheiro chefe e diretor de linhas, de obras, da Leopoldina, o engenheiro Hutchison, que era um inglês mais alto que eu, duas vezes a minha largura e eu disse a ele, expliquei a ele que eu era chefe de uma firma de engenharia e queria ser ouvido para a reforma da estação de Friburgo. Mr. Hutchison olhou para mim, deu uma risada e disse: — O sr. é muito moço e muito corajoso. — Mas por que, Mr. Hutchison? — A firma é nova, não tem tradição e o senhor quer concorrer com firmas antigas, de tradição. Naquele tempo, existia uma firma fabulosa, uma firma alemã que trabalhava no Brasil e depois gerou a Construtora Nacional. Chamava-se Weiss & Weitagh. Uma segunda firma, fabulosa também, era uma firma inglesa, era a firma... agora me escapa o nome dela. A outra era uma firma também estrangeira, Christian & Nielsen, todas firmas tradicionais e aparecia lá um brasileirinho, chefe de uma firma que tinha um ano de idade para concorrer com firmas que tinham 30 anos, 50 anos. Scott & Hurner era a firma inglesa. Eu disse para Mr. Hutchison: — O velho já foi moço, as firmas velhas já foram novas. Se a gente excluir a nova, ela nunca vai ser velha. — Isto é uma questão de opinião. Sai dali e fui ao interventor do estado do Rio, que era o Almte. Protógenes Guimarães. Fui lá ao almirante e expliquei a ele: — Ô almirante, dá uma palavrinha com esses ingleses. Eu não estou pedindo para eles me darem o serviço, mas para me deixar concorrer. O almirante achou aquilo tudo muito engraçado, muito divertido. O fato é que eu voltei novamente à Leopoldina e eles me convidaram para a concorrência da 21 Estação de Friburgo. Acontece que novos como nós éramos, nossos custos eram muito baixos, porque as nossas despesas gerais eram baixíssimas. Nós éramos tudo: eu era advogado, datilógrafo, era mensageiro, os meus sócios também, cada um era mestre-de-obras e ganhamos a concorrência para a reforma da Estação de Friburgo. Acontece que, logo depois de ganhar a concorrência, eu fui examinar o projeto de reforma e cheguei à conclusão que era possível construir uma estação nova pelo preço da reforma. Voltei à Leopoldina e disse a eles: — Escuta, o que vocês querem? Um prédio velho, um negócio horroroso, que tinha sido uma antiga senzala. Reformar isso? Vamos fazer uma estação nova. Eu faço essa belezinha para vocês pelo mesmo preço. Isso demorou um pouco, foi consulta para Londres. Está lá construída a Estação de Friburgo pelo preço da reforma da estação velha. Quem dirigiu a construção da nova estação de Friburgo, foi o meu sócio e meu irmão, Agesal Dutra. Quem projetou a estação nova de Friburgo foi o meu sócio e arquiteto, já falecido, Ruderico Pimentel e eram meus sócios também nessa época, Tibério Vasconcelos Amorim, meu colega de turma na Escola de Engenharia, e Silvio Miranda Freitas, engenheiro mais velho e éramos companheiros nessa aventura que era a B. Dutra e Cia. Ltda.. A B. Dutra e Cia. Ltda., de saudosa memória, que construiu as duas primeiras barragens do Plano de Eletrificação do Rio Grande do Sul, que foi o primeiro plano de eletrificação concebido no Brasil e que se deve ao nunca esquecido engenheiro Nóe de Mello Freitas. Agora vocês tenham paciência, mas eu estou cansado. 22 2ª Entrevista: 19/07/1990 Entrevistador – Sr. Benedito Dutra, ao final da primeira entrevista o sr. referiu à participação da firma B. Dutra & Cia. Ltda. na construção de barragens de hidrelétricas no Rio Grande do Sul, integrantes do Plano Estadual de Eletrificação, concebidos pelo engenheiro Noé de Freitas. Justamente a esse propósito, gostaríamos que o sr. rememorasse esse episódio e traçasse um perfil de Noé de Freitas. Benedito Dutra – Antes de falar do engenheiro Nóe de Freitas, uma das figuras mais singulares que tiveram atuação no setor elétrico brasileiro, é preciso fazer um retrospecto das circunstâncias em que me aproximei daquela figura e, consequentemente, do que veio, em consequência, resultar na construção das duas primeiras barragens do Plano de Eletrificação do Rio Grande do Sul, primeiro plano de eletrificação concebido no Brasil. Em 1931, quando constitui a firma B. Dutra & Cia. Ltda., da qual também fui sócio... Nessa época, 1931, vivia o país uma crise tão grave quanto a que assolou os Estados Unidos da América do Norte em consequência do sempre lembrado crack da Bolsa de Nova Iorque, de 1929. O trabalho no ramo da engenharia era escasso. Pouco se fazia, tanto pelo governo federal, como pela iniciativa privada, e o trabalho do engenheiro que não fosse funcionário público era um trabalho penoso e de muito pouco resultado. Apesar dessas circunstâncias adversas, eu persisti em continuar naquela atividade em que eu tinha iniciado a minha vida prática, ou seja, a engenharia de projeto e construção. A firma B. Dutra & Cia. Era constituída, além de mim, que praticamente tinha realizado o capital da empresa, por mais três sócios, um deles o meu irmão, meu companheiro de todos os momentos e de todos os tempos e mais um colega do curso de engenharia, o engenheiro Tibério Vasconcelos Amorim, e o engenheiro Silvio Miranda Freitas. Em 1932, a Leopoldina Railway era concessionária das estradas de ferro Rio de Janeiro-Vitória, Rio de Janeiro-Juiz-de- Fora, Rio de Janeiro-Petrópolis, Rio de Janeiro-Friburgo, tinha essa malha de linhas nessa região do estado do Rio, sul de Minas e Espírito Santo, e abriu concorrência privada para reforma da Estação de Friburgo. Nessa época, o estado 23 do Rio estava sob intervenção e a Leopoldina era, naturalmente, uma empresa subordinada à autoridade do estado do Rio. Não fomos convidados para essa concorrência. Me insurgi contra essa circunstância porque apenas duas empresas trabalhavam para a Leopoldina nessa época. A Scott & Hurner era uma empresa inglesa e a Christian & Nielsen que era uma empresa dinamarquesa trabalhando aqui no Brasil. Procurei as autoridades do estado do Rio e não paga a pena comentar a via crucis que eu vivi, mas, afinal de contas, eu consegui que também nos aceitassem como concorrentes. Tratava-se de uma reforma de estação de estrada de ferro, a estação de Friburgo, uma estação muito antiga, muito velha e, como resultado do nosso trabalho, ganhamos a concorrência. Depois de ganhar a concorrência, fiz um exame mais cuidadoso do projeto de reforma e cheguei à conclusão de que não se sabia quanto iria custar a reforma. Havia um preço básico, que era aquele com o qual nós havíamos ganhado a concorrência, mas quando se começa a mexer num prédio velho, não se sabe o que vai aparecer. Eu fiz um estudo mais aprofundado e um dos meus sócios, que era responsável pelo setor de arquitetura da minha firma e que eu não mencionei no princípio, o arquiteto Ruderico Pimentel, me fez um lindo projeto em estilo colonial para substituir a velha estação que não tinha arquitetura nenhuma e eu fui à Leopoldina e propus fornecer à Leopoldina uma estação nova, em estilo colonial, em substituição à estação velha, pelo preço da reforma. Depois de consultas a Londres e discussões internas, a Leopoldina aceitou a minha proposta. Hoje essa estação é a Prefeitura Municipal de Friburgo. Isso foi em 1932. A estação, terminamos a construção em 1934. Por essa época, tínhamos também entrado na concorrência para a construção de uma ponte sobre o alto rio Uruguai, denominado rio Pelotas, ligando Santa Catarina ao Rio Grande do Sul, para o Departamento Nacional de Estradas de Ferro. Ganhamos essa concorrência para projeto e construção da ponte, projeto esse que era... que nós, a minha firma, entregou ao Escritório Emílio Baungarte, que na épocaera a maior autoridade em concreto armado no Brasil e talvez uma das maiores autoridades em concreto armado no mundo. O engenheiro Baungarte deixou um nome inesquecível e respeitado no mundo do concreto armado. Era filho de alemães, tinha vindo para o Brasil moço e aqui tinha conquistado essa posição de destaque nessa atividade particular da engenharia. Em consequência de ter 24 ganho a concorrência, em 1935, iniciamos a construção dessa ponte e, nessa época, eu comecei a viajar novamente para o Rio Grande do Sul, onde eu tinha iniciado a minha vida prática, a qual eu já me referi, quando fui trabalhar, em 1921, como ajudante do engenheiro chefe da construção de quartéis na fronteira com a Argentina. Foi nessa época, 1935, nessas seguidas viagens ao Rio Grande do Sul, que entrei em contato com o engenheiro Noé de Freitas que, nessa época, chefiava o Serviço de Eletricidade da Prefeitura de São Leopoldo. São Leopoldo, próximo de Porto Alegre, era um município de vocação industrial que desenvolvia rapidamente as suas pequenas indústrias e, como tudo quanto é atividade econômica nesse país, carente de energia elétrica. Aliás, deve-se fazer aqui um parênteses: quando se fala de carência de energia elétrica, é necessário frisar que essa situação era, e eu diria que ainda é, fruto de jamais se ter disciplinado o setor elétrico brasileiro. O setor elétrico brasileiro sempre viveu vida tumultuada e nem mesmo o Código de Águas veio disciplinar coisa nenhuma, mas isso é assunto que fica para mais tarde. Tendo entrado em contato com o engenheiro Noé de Freitas, naturalmente não poderia deixar de participar do entusiasmo com que ele, já nessa ocasião, 1935, preconizava a necessidade da intervenção do Estado no setor elétrico, uma vez que não havia possibilidade de despertar maior interesse da iniciativa privada nessa área da economia do país. E, de fato, era muito mais difícil o país, que estava desabrochando para a área industrial e, de fato, só depois da Revolução de 30 o Brasil começou a despertar na área industrial, isso em consequência das mutações que o mundo sofreu depois da Primeira Guerra. Nessa época, para uma atividade de remuneração muito reduzida e de alta capitalização, não havia nenhum atrativo para a economia privada. A poupança brasileira encontrava melhor remuneração em outros campos de atividade da economia, e o engenheiro Noé de Freitas sentia que para desenvolver mais ainda estes outros campos da economia, era necessário oferecer energia elétrica. Seria uma obrigação dos poderes públicos, assim como a educação primária, a saúde pública, e outras atividades elementares da vida social. Mantivemos essa nossa amizade por muito tempo e assisti ao desenvolvimento dos planos do engenheiro Noé de Freitas até que, em 1941, Porto Alegre foi assolada por uma das maiores enchentes já conhecidas na vida da cidade. Basta dizer que, na zona do porto, eu lá estive com água com mais de um metro de altura. Nessa 25 ocasião, conversando com o engenheiro Noé, ele me dizia que um dos grandes problemas de Porto-Alegre – que era a defesa contra as enchentes – poderia ser muito amenizado com a construção de barragens no alto curso dos rios formadores do Guaíba. O Guaíba nada mais é do que um estuário semelhante ao Prata, com a convergência de vários rios, o Jacuí, rio dos Sinos, (incompreensível), todos eles convergem para formar o Guaíba, que se chama Guaíba, mas não é o rio coisíssima nenhuma, é um estuário. — Se é assim, vamos ao Rio e eu vou te apresentar ao dr. Hildebrando de Araújo Góes, que é o diretor, o engenheiro chefe do Departamento Nacional de Obras de Saneamento para o qual nós trabalhamos, já tínhamos trabalhado, no Saneamento, e você veja se consegue que o Saneamento assuma a construção dessas barragens que são barragens de seu plano de eletrificação. Nessa época, já tinha concluído o Plano de Eletrificação do Estado do Rio Grande do Sul e tinha saído da Prefeitura de São Leopoldo e estava na Secretaria, se não me engano era a Secretaria de Obras do estado, chefiando uma comissão estadual de energia elétrica, do estado do Rio Grande do Sul. Ele veio aqui ao Rio, eu o apresenteo ao engenheiro Hildebrando, que era um homem de visão. O dr. Hildebrando levou o plano do Noé ao dr. Getúlio, o presidente Getúlio Vargas, que, como é natural, aprovou o plano. Porque Noé era gaúcho, o plano era gaúcho e o Getúlio também era gaúcho. E foi assim que o Departamento Nacional de Saneamento assumiu a construção das duas barragens, uma no rio Capingui, perto de passo fundo, e a outra no rio São Pedro, que seria desviado para o Santa Maria, para a construção de uma usina no rio Santa Maria. Não houve nenhum tipo de apadrinhamento ou de filhotismo no contrato para a construção dessas barragens por ter me cabido a iniciativa de fazer esta aproximação entre o chefe de Obras de Saneamento fez uma concorrência e eu ganhei a concorrência contra mais cinco concorrentes. Não houve, por conseguinte, nenhuma espécie de favorecimento. Aliás, estas duas barragens constituíram para a minha firma um trabalho gigantesco, porque eu tibe que refazer os projetos e as barragens não foram construídas segundo o projeto original, mas sim conforme o projeto da minha firma, projeto esse que saiu das mãos do meu velho e querido amigo, Félix von Hacnken, que era o chefe do escritório técnico da minha firma. Von Hanken era um russo que 26 tinha saído da Rússia com a revolução comunista e foi para a China, da China para a Alemanha. Na Alemanha, ele foi engenheiro chefe de uma das maiores firmas de engenharia da Alemanha da época – Philip Hoffmann. Da Alemanha ele transferiu- se para a Holanda, tornou-se cidadão de açudes na Indonésia. Von Hanken era um gênio em engenharia, construiu açudes até com bambu. O Von Hanken, depois da Indonésia, veio para o Brasil. Chefiava o Escritório Técnico Baungarten, tinha trabalhado para mim e com a redução das atividades do Baungarten, então o levei para minha firma e foi ele que projetou as duas barragens do Plano de Eletrificação do Rio Grande do Sul. Eu lembro com saudade e emoção do trabalho do engenheiro Noé de Freitas, em que pesem eventuais discordâncias de ordem filosófica, eu o admirava pela sinceridade, pela devoção com que Noé de Freitas se entregou ao Plano de Eletrificação do Rio Grande do Sul. Muitos anos depois, muitos e muitos anos depois, Noé veio a morrer muito discretamente, muito quase que anonimamente, de Mal de Parkinson, lá em Porto Alegre, onde eu o visitei seis meses antes da morte dele, em 1976 ou 1978, não me lembro mais. Esta é a história do meu entrosamento mais profundo com o setor elétrico brasileiro e, como eu disse, vinha dos idos de mil novecentos e vinte e tantos, quando fui ajudante do engenheiro construtor da usina de Glicério, no rio São Pedro, município de Macaé. Entrevistador – (incompreensível). Benedito Dutra – Esta minha vinculação ao Rio Grande do Sul, que como já disse, vinha desde os idos de 1921, quando estive lá pela primeira vez, continuou ao longo de toda a minha vida. Nessa época, fiz uma porção de amigos e relações que me acompanharam por todo o tempo. Entrevistador – (incompreensível). Benedito Dutra – Eu conheci o dr. Walter Jobim porque trabalhava lá nessa época e ele era um homem de extraordinária dedicação à causa pública no Rio Grande do Sul. Conheci Walter Jobim e alguns outros mais. Mas em 1935, depois de contar esta longa história que se prolongou até 1941, eu continuei a trabalhar no Rio 27 Grande do Sul. Construímos o frigorífico de pesca na cidade do Rio Grande, concluímos a conclusão da ponte ferroviária, como já me referi, ligando Santa Catarina ao Rio Grande do Sul, construímos uma ponte na cidade de Pelotas, na zona rural da cidade, uma ponte que era muito importante porque, no local, já tinham sido destruídas pelas enchentes três pontes e, então, nós tínhamosesse desafio, construir mais uma, que não devia ser destruída. Até hoje ela está lá, sobre o arroio Pelotas. É na entrada da cidade de Pelotas. Nessa época, me tornei muito amigo de um engenheiro – Jaires Grilo – que tinha uma firma, (inaudível) Araújo & Cia Ltda., que eram os representantes da minha firma no Rio Grande do Sul. O Jaires Grilo tinha organizado uma empresa industrial denominada Companhia de Indústrias Eletroquímicas. Essa Companhia de Indústrias Eletroquímicas era produtora de sulfato de cobre. Com sulfato de cobre, se produz a chamada calda bordalesa, que é um produto químico destinado a proteger as parreiras, a uva, da filoxera, uma praga. E no Rio Grande do Sul tinha um grande consumo da calda bordalesa nos vinhedos rio-grandenses. E esse meu amigo, Jaires Grilo, produzia sulfato de cobre nessa usina, no Esteio, na Companhia de Indústrias Eletroquímicas. A matéria-prima fundamental para o sulfato de cobre é o cobre que, naquela ocasião, para nós, vinha como matéria-prima sob a forma de sucata de cobre, coisa que é incontrolável. Algumas vezes, você tem muita sucata de cobre, outras vezes não tem nenhuma. Então, o Jaires Grilo, que era um homem de extraordinário descortínio, figura que eu recorso com saudade, obteve a concessão para exploração das minas de cobre do Seival. As minas de cobre do Seival tinham sido exploradas antes da guerra pelos belgas. As minas de cobre do Seival são uma das mais notáveis ocorrências de cobre que se encontrou na natureza até hoje. Era uma mina que, na superfície, apresentava minério de cobre com 7 a 8% de riqueza. Isto nunca existiu no mundo e por ser exatamente um minério altamente rico, era um minério que era escolhido a mão, transportado para a Bélgica em sacos de aniagem, minério esse que, além dessa riqueza de cobre, também tinha ouro e prata. A medida em que a mina foi explorada em profundidade, foi decaindo a riqueza do minério, até que se chegou onde hoje é apenas 2%, que ainda assim era uma coisa fabulosa. Nessa época sobreveio a guerra e a mina foi paralisada e, posteriormente, 28 como já disse, o Grillo conseguiu a concessão, porque a ideia dele era explorar a mina para produzir o cobre de que nós precisássemos na nossa indústria, da qual eu até hoje sou sócio, Companhia de Indústrias Eletroquímicas. Isso nós já andamos pelas alturas de 1938, 1939, 1940. Nessa época, tinha estourado a guerra, eu fui convocado pelo chefe do gabinete do ministro da Aviação, o ministro geral Mendonça de Lima, chefe de gabinete Napoleão Alencar de Guimarães, e o objetivo da convocação era no sentido de nós – Companhia de Indústrias Eletroquímicas – darmos, o mais rapidamente possível, início à exploração da mina para a exploração de cobre, que era o elemento vital para o Brasil, que estava com dificuldade de importar o cobre, que o Brasil não possuía nenhum. Nessa ocasião, estava aqui no Rio de Janeiro também o engenheiro Carlos (inaudível) que tinha se mudado de residência, de Porto Alegre para o Rio de Janeiro, e o engenheiro Carlos (inaudível) tinha ideia de uma usina para produção de ferroligas aqui no Brasil, coisa que nós importávamos, o Brasil importava tudo quanto o que era ferroliga, que era o silício, liga de ferro, de cobre, de alumínio, de tudo. Em 1941, eu me juntei ao engenheiro Carlos (inaudível) e foi construída a Companhia Nacional de Ferroligas para a construção de uma usina destinada a essa atividade, que na época era extremamente importante tanto para o Brasil como para os mercados externos. Foi construída por B. Dutra em Honório Gurgel e como era de se imaginar, já nessa época havia uma ligação também com a Companhia Brasileira Carbureto de Cálcio, de Santos Dumont, que era fabricante de carbureto de cálcio, que na época era indispensável para uso, principalmente, na mineração, para iluminação dos capacetes, e a Companhia Brasileira Carbureto de Cálcio produzia carbureto em fornos elétricos, quer dizer, vários fornos elétricos em Santos Dumont. E nessa época, coincidentemente, a Carbureto acabava der paralisar três fornos elétricos monofásicos que tinham sido substituídos por um grande forno trifásico para produção de carbureto. Era muito mais econômico: um único forno trifásico do que três fornos que tinham que se monofásicos e que tinham que ser três para equilibrar a corrente, porque a corrente era trifásica. Então a Companhia Nacional de Ferroligas teve por elemento inicial da sua estrutura industrial esses três fornos monofásicos da Carbureto de Cálcio, que entraram na companhia como capital. Nós começamos a trabalhar em 1942, 1943, e nessa época começamos a 29 desenvolver um terceiro, um quarto forno trifásico de alta potência. Foi nessa época também que, como consequência de sermos grandes consumidores de energia, tanto nós como a Carbureto de Cálcio, para nós a matéria-prima básica era a energia. Veio a ideia de termos a nossa própria fonte de energia. Daí veio a ideia de construção da usina do Piau, que serviria para abastecer a Carbureto de Cálcio e a Nacional Ferroligas, que nós tencionávamos, então, transladar do Rio para Santos Dumont, com a vantagem de reduzir o percurso da matéria-prima, que ao invés de ir até o Rio de Janeiro, iria apenas até Santos Dumont. De Santos Dumont, nós transportaríamos o produto industrial mais nobre e, por conseguinte, em muito menor quantidade e muito maior preço, podendo suportar o frete que, para a matéria-prima, era pesado. Entrevistador – (inaudível). Benedito Dutra – Não, a Companhia Força e Luz de Juiz de Fora é uma outra história, que nada tem a ver nem com Ferroligas, nem com a Piau. A Força e Luz de Juiz de Fora é um negócio do dr. Ricardo Fortini. Não tinha nada a ver nem com a Piau, nem com a Carbureto de Cálcio, nem com a Ferroligas. Daí surgiu então, em 1942, 1943, surgiu a ideia de se construir uma nova usina e isso tudo se concretizou em 1945, com a fundação da Central Elétrica do Piau. Começamos logo as obras, mas em seguida paralisamos, porque com o término da guerra surgiu uma porção de dificuldades, inclusive caiu no mercado de ferroligas e vivemos um período de estagnação até 1951, quando eu consegui, tanto do governo federal, através do Plano Salte, quanto do Banco do Brasil, através da Carteira de Crédito Agrícola e Industrial, recursos para continuar a construção da usina do Piau, que foi concluída em 1955 e foi inaugurada pelo já eleito presidente Juscelino Kubischek. Em novembro de 1955 inaugurou a usina e assumiu a presidência da República em março de 1956. Essa é a trajetória até a conclusão da usina do Piau. Eu era diretor econômico-financeiro da empresa, como também era da Ferroligas. Foi a entrada em operação da primeira usina particular por empresa constituída depois do advento do Código de Águas, porque depois do advento do Código de Águas não se organizaram mais empresas para a exploração da indústria da 30 eletricidade no Brasil. Entrevistador – Essa companhia foi depois incorporada pela Cemig? Benedito Dutra – Depois eu vou chegar lá. Isso é muito mais tarde. Entrevistador – (inaudível). Benedito Dutra – Não, não chegou a ser transferida. A sua pergunta tem cabimento porque para quem não está nesse meio, de fato parece estranho que um engenheiro que fez engenharia fosse aos poucos descambando para a administração das finanças, da economia. Eu não sei se tive a oportunidade de dizer que no meu curso de engenharia havia uma cadeira chamada economia política, que fazia parte do nosso currículo do segundo ano, e que eu acompanhei com muito interesse, porque várias vezes o meu professor, Tobias Moscoso, dizia que o engenheiro que não fosse economista, era só meio engenheiro. Eu acho que eu sou meio engenheiro porque sou mais economista, financista, do que engenheiro. Eu sou só meio engenheiro, mas um meio engenheiro ao contrário. Quando um engenheiro está na posição de comando, elenão pode ser engenheiro só, se não ele não comanda nada. A atividade técnica é uma atividade criadora, mas é uma atividade criadora pessoal, não é uma atividade de comando, de coordenação. A atividade de coordenação, de comando não é do engenheiro. O engenheiro também tem que ter essa capacidade se ele assumir essa posição. Pode assumir. Hoje, meu deus do céu, o maior diretor que a Light teve era um advogado, não entendia nada de eletricidade, era um advogado... Antonio Galotti. Antonio Galotti era advogado. O engenheiro que está no comando, ele não exerce nenhuma atividade técnica, se não ele não pode estar no comando. A atividade dele como engenheiro é econômica, financeira e, antes de tudo, de coordenação. Ele é um coordenador e ele pode ser essas coisas todas porque ele é engenheiro. Se não fosse engenheiro, ele não faria essas coisas todas, com eficiência, com capacidade. Ah, mas o sr. acabou de citar o Antonio Galotti como um dos maiores diretores da Light. É, ele era advogado, mas ele estava cercado do engenheiro, que não estava desempenhando nenhuma função 31 de engenharia. Estava no comando da atividade da empresa com a função de coordenador e de comandante. Era o Tullio Romano Cordeiro de Mello e vários outros que não me lembro dos nomes agora. Essa é a razão pela qual, talvez também por isso, eu me chame de meio engenheiro, porque eu tenho que fazer engenharia, eu tenho que ter uma noção da significação daquilo que eu estou fazendo no território técnico. Mas tenho que ter, antes de tudo, a capacidade de coordenar e comandar para chegar aquele fim. Entrevistador – (inaudível) Benedito Dutra – Várias, várias outras. Veio a minha firma, depois ceio a (inaudível), que hoje faz parte da Cial, isto é, Companhia de Indústrias Eletroquímicas, depois eu fui incorporador na Sociedade Comercial de Mineração, no Fecho do Funil, em Minas Gerais, que já acabou. Eu fiz parte da Ferroligas, como diretor da Ferroligas, até ela terminar. Eu fui incorporador da Central Elétrica do Piau, eu fui incorporador também da Central Elétrica de Furnas, um dos sete acionistas originais, e uma porção de outras coisas. Isso não me desvincula da engenharia, muito ao contrário. Eu só pude desempenhar estes papéis, desempenhar estar ações porque era engenheiro. No meu entender, se eu não fosse engenheiro, provavelmente a minha posição, as minhas funções seriam outras. Elas foram essas para que se tenha uma noção da significação, das repercussões técnicas daquilo que você está fazendo para você poder desempenhar a função de comando, de coordenação e de comando. Eu não mudei nem de profissão, nem de atividade. Eu continuo sendo engenheiro e desempenhando esta função de administrador e de financista. Durante doze anos eu acompanhei, participei e acionei na minha (inaudível) Central Elétrica de Furnas como diretor financeiro e administrativo, não deixava de ser engenheiro. E só desempenhei estas funções, não sei se muito bem ou muito mal, mas pelo menos sem receber nenhuma reprovação, porque era engenheiro. E o mal hoje do Brasil é que nós aceitamos economista que não é engenheiro. Essa é a desgraça do Brasil. Se eu tivesse autoridade nesse país, precisaria ser engenheiro para ser economista. Precisa ter noção do que é o mundo físico para ser economista. Porque economista que não é 32 engenheiro, é isso que a gente está vendo. É um risco para a empresa, é um risco para a sociedade e é um risco para o país o economista que não é engenheiro. Entrevistador – Eu acho que nós poderíamos agora passar para o relacionamento da Central Elétrica do Piau com a Cemig, porque não há nada escrito nos livros sobre essa questão. Como é que ela foi incorporada, ela conservou a sua razão social, ela perdeu a razão social quando foi incorporada, como é que foi esse episódio? Benedito Dutra – Como nós acabamos de fazer um retrospecto, a Piau foi criada em 1945 e só começou a funcionar, a produzir energia em 1955, quase dez anos depois. Nesse interregno, o estado de Minas Gerais criou o seu Plano de Eletrificação. Esse Plano de Eletrificação de Minas Gerais foi produzido pela Companhia Brasileira de Engenharia, que foi criada pelo engenheiro Ângelo Agostini no governo do dr.. Milton Campos, que eu pelo licença para reverenciar, como uma das figuras de maior categoria moral, espiritual, intelectual que eu conheci. Não sei qual é o conceito que fazem dele em outras áreas. Considerei sempre o governador Milton Campos como um exponencial. Foi no governo dele que se organizou o Plano de Eletrificação de Minas Gerais. Curiosamente, nesse plano de eletrificação, já foi inserida a Central Elétrica de Piau como um dos elementos de primeira grandeza no Plano de Eletrificação de Minas Gerais. Foi a única usina construída por uma empresa privada constituída logo depois do Código das Águas. Todas as usinas que se construíram depois do Código das Águas ou foram construídas por empresas pré- existentes ou por empresas estaduais, constituídas depois do Código de Águas, mas empresas estaduais ou federais. Empresa particular só se constituiu uma depois do Código de Águas: a Central Elétrica do Piau. O engenheiro Agostini, ao formular, juntamente com o Dr. Lucas Lopes e outras figuras... O engenheiro Agostini não podia desconhecer a existência da Central Elétrica do Piau que, na ocasião, tinha uma expressão relevante no cenário do setor elétrico mineiro. Lá ficou, no Plano de Eletrificação, a Central Elétrica do Piau. Como eu disse, a pouco, nós estivemos com as obras paralisadas até 1951. Em 1952, quando nós já estávamos com as obras em andamento, constituiu-se a Cemig no governo do Dr. Juscelino, que foi a 33 continuação do governo do Dr. Milton Campos. Em 1952. Em consequência, a Cemig procurou, como era natural, uma vez em que nós éramos figura no Plano de Eletrificação, procurou na Central Elétrica do Piau para se associar à Central Elétrica do Piau e, em 1953 ou 1954, não posso precisar, a Cemig se tornou também, acionista da Piau. Inaugurada a Piau, começou a trabalhar, continuou a trabalhar, a Cemig era um acionista como um outro qualquer, até que, em 1962, os outros acionistas da Piau, a instâncias do governo de Minas, que por uma série de razões que não vêm a pelo numa exposição desta natureza, resolveram vender as suas ações também à Cemig. E a Cemig comprou então a totalidade das ações da Piau em 1962. Compradas as ações da Piau, eles, pura e simplesmente, extinguiram a empresa, porque o patrimônio já era da Cemig, por via dela ser a detentora da totalidade das ações. E a Central Elétrica do Piau S.A. deixou de existir, mas continuou lá a usina como parte do Patrimônio da Cemig. Agora se você quiser saber o dessus da história, do porque da empresa ter sido vendida à Cemig, esta é uma história que eu não desejo contar. Entrevistador – (inaudível). Benedito Dutra – Não foi modificação nenhuma. O projeto da usina do Piau é da Lavra de uma das figuras mais extraordinárias que eu conheci em toda a minha vida, um homem que figura na minha memória, no meu coração, na minha estima, em um lugar privilegiado: o engenheiro Nello Crocchi. O engenheiro Nello Crocchi era diretor técnico da Carbureto de Cálcio, italiano, veio para o Brasil muito moço, casou-se aqui no Brasil com uma italiana, teve filhos brasileiros, dois rapazes e duas moças, era diretor técnico da Carbureto, um dos engenheiros mais competentes que eu já conheci, um artista, um homem de extraordinária sensibilidade, foi ele que projetou a Piau. Para favorecer à Carbureto e à Ferroligas, só. Entrevistador – (inaudível). 34 Benedito Dutra – A Piau era uma das componentes da capacidade instalada em Minas Gerais. Havia outras, casa uma já com a sua função. O Plano de Eletrificação de Minas, como é natural, considerava dois aspectos: primeiro, o aumento da oferta de energia, através da construção de novas usinase uma interligação das usinas de forma a balancear a disponibilidade de energia para atender melhor a demanda. Você tinha mais energia nessa área com uma demanda inferior, menos energia em outra área, com uma demanda maior, então se procurava, e essa é que é a função do engenheiro, estabelecer um equilíbrio, transportar energia daqui, onde ela sobra, para onde ela falta. E, se não há essa possibilidade, porque todo mundo não tem sobra... 35 3ª entrevista: 24/07/1990 Entrevistador – Dr. Benedito Dutra, em 1956, o sr. atuou em duas frentes de trabalho de suma importância no conjunto de iniciativas do governo JK na área de energia elétrica: a preparação do projeto de constituição da Central Elétrica de Furnas e, na área de legislação, a elaboração do Projeto nº 1.898, enviado ao Congresso em setembro de 1956, e do Decreto nº 41.019, promulgado pelo presidente Juscelino Kubistchek em 1957. Como se deu a sua entrada na equipe de governo JK? Benedito Dutra – Eu creio que, anteriormente, eu já fiz referência à participação da Cemig na Central Elétrica de Piau, que nós organizamos em 1945, 1946, e que esteve paralisada por longo período consequente ao término da guerra, que criou uma situação muito difícil para todas as iniciativas que se baseavam, principalmente, na exportação, e essa foi uma das razões pelas quais a Central Elétrica do Piau ficou paralisada, uma vez que ela ia, primordialmente, fornecer energia para a Companhia Nacional de Ferroligas, que era uma grande produtora de ferroligas para exportação, que, durante a guerra, foi o nosso forte. Os trabalhos da Central Elétrica do Piau só foram retomados em 1951, depois que eu consegui recursos do Plano Salte e do Banco do Brasil, porque, como sempre, o empresário- investidor brasileiro é anãozinho. Em geral, quando ele ganha algum dinheiro maior é para gastar na Europa, não é para investir no país. Mas pondo de lado esses aspectos... Entrevistador – Um parênteses, sr. Benedito Dutra, ao rememorar a Central Elétrica do Piau, me ocorreu formular uma pergunta: o sr. disse que, em 1951, as obras da Central Elétrica de Piau foram retomadas com recursos do Plano Salte e do Banco do Brasil. O sr. poderia dar algum detalhe, algum pormenor, sobre a obtenção desses recursos? Benedito Dutra – Quando a Central Elétrica do Piau foi iniciada, com subscrição de capital da Companhia Nacional de Ferroligas, da Companhia Brasileira de 36 Carbureto de Cálcio e de alguns poucos particulares, tudo fazia crer que o capital subscrito e, potencialmente, disponível, seria suficiente para enfrentar o custo do projeto. Com o término da guerra, se iniciou uma espiral inflacionária no país e esses recursos se revelaram insuficientes. Eu tive um trabalho muito grande em conseguir no Plano Salte, por intermédio do então deputado Henrique Novais, nosso colega engenheiro... O Henrique Novais era o ex-diretor geral do Serviço de Águas e Esgoto do Distrito Federal. Um engenheiro distinto, um homem de grande valor, não sei se ele era baiano. O dr. Henrique Novais patrocinou a dotação de recursos no Plano Salte que, em 1947, tinha sido criado pelo presidente Eurico Gaspar Dutra. Foi o primeiro plano nacional de desenvolvimento econômico, melhor dizendo, foi o início da intervenção do Estado no Governo econômico, depois do hiato que se verificou com a morte do presidente Vargas, que foi o grande artífice do dirigismo econômico no país. Aliás, este aspecto é muito bem focalizado pela Memória da Eletricidade, no livro Panorama do setor elétrico brasileiro, editado pela Memória da Eletricidade. Foi Getúlio Vargas que iniciou o dirigismo econômico nesse país. O Plano Salte, com a sigla de saúde, alimentação, transporte e energia, considerava essas quatro atividades infra-estruturais como fundamentais para o desenvolvimento econômico do país e havia uma dotação no Plano Salte para energia, não especificadamente para quem nem como. Eu tive um destaque da parte que era destinada à energia para a Central Elétrica no Piau. Nessa ocasião, eu também consegui no Banco do Brasil, na Carteira de Crédito Agrícola e Industrial, mais um reforço e com esses recursos foi que nós levamos a bom termo o projeto da Piau. Mas, voltando atrás, como já foi mencionado, a Cemig veio participar do projeto da Piau. Nós tínhamos tido, no passado, muitos contatos com o governador de Minas, o dr. Milton Campos, que foi substituído pelo dr. Juscelino Kubistchek. O dr. Juscelino Kubistchek organizou a Cemig e, na Cemig, sob a direção do dr. Lucas Lopes, foram trabalhar vários colegas, dr. John Cotrim, dr. (inaudível), Flávio Henrique Lyra, e outros mais. Como consequência, na associação da Cemig com a Piau, naturalmente eu estabeleci relações com essa gente toda. Em 1956, já havia assumido a presidência da República o dr. Juscelino, esses amigos, particularmente o dr. Cotrim, me convidaram para dar uma ajuda no Conselho Nacional de Economia, que funcionava no BNDE, o Banco Nacional de 37 Desenvolvimento Econômico. Essa ajuda se manifestou, em primeiro lugar, pelo estudo de um decreto, se não me engano, de 1952, da Lei do Imposto de Renda de 1952, que autorizava as empresas a fazerem a correção dos seus ativos imobilizados em função da inflação, pagando o imposto. Faziam a correção dos seus ativos, naturalmente para efeito de fixação de preço dos seus produtos e pagavam imposto sobre essa correção. Foi a primeira vez que se falou de correção monetária no Brasil. Evidentemente, que as empresas concessionárias de serviços públicos que viviam no regime de tarifas contratadas, como as concessionárias de porte, as concessionárias de serviços de eletricidade e outras, estradas de ferro, todas elas, no regime de tarifa contratada, viviam uma vida infernal porque essas tarifas não eram corrigidas, não eram corrigidas em função da inflação. Então, ocorreu que, havendo a possibilidade da correção dos ativos, isso interessava, particularmente, às empresas de eletricidade, porque, corrigidos os ativos, haveria a base para se promover a correção das tarifas. E, nessas condições, o presidente Juscelino havia vetado um artigo da recente lei do imposto de renda, em continuação à lei de 1952, que não só autorizava a correção dos ativos, mas que esses ativos serviriam de base para a correção de tarifas, exceto as do serviço de utilidade pública. Esse artigo, que se não me engano era o artigo 27 dessa lei do imposto de renda, foi vetado pelo presidente Juscelino. E, vetado este artigo, o presidente Juscelino mandou estudar um projeto de lei autorizando que os serviços de utilidade pública corrigissem os seus ativos para fins tarifários. Daí o estudo que gerou este Projeto nº 1.898 e a mim coube, nesse estudo, a elaboração da parte econômica do projeto. O projeto foi enviado, como era natural, ao Congresso, acompanhado de uma exposição de motivos ou exposição do projeto; E nessa justificação, a mim coube elaborar a parte econômico-financeira. Esse projeto não teve nenhum sucesso no Congresso porque os nacionalismos, se ocasião, o chamado nacionalismo, se sobrepôs a qualquer outro interesse e o projeto foi recusado no Congresso. Nesse meio tempo, também se tratava de disciplinar o Código de Águas, de 1934, e como toda lei, porque o Código, apesar de ser denominado decreto, era lei, porque todos os atos que precederam a Constituição de 1937, atos do governo ditatorial, foram configurados como leis e, mais ainda, insusceptíveis de apreciação pelo Poder Judiciário. Isso é da constituição de 1937, que só foi depois substituída pela Constituição de 1946. A 38 Constituição de 1946 não alterou esse status jurídico dos atos do governo ditatorial, de 1937, a 1946. Nessas condições, era preciso disciplinar o Código de Águas que, como lei, nunca havia sido regulamentado por decreto, porque é o decreto que regulamenta a lei, o decreto é o modo de aplicar a lei. E nós,na esperança de que o Projeto de lei nº 1.898 fosse acolhido no Congresso, tratamos, dr. Cotrim, dr. Lucas Lopes, com instruções do presidente da República, trataram de promover a regulamentação do Código que sobrevindo à Lei 1.898, já o Código representaria os fundamentos da aplicação da lei, porque era a regulamentação do Código. E chegamos à regulamentação do Código baseados, principalmente, num velho estudo que havia sido feito pelo Conselho Nacional de Águas e Energia Elétrica, estudo esse que, não sei por qual razão, não foi adotado pelo governo que, naquela ocasião, podia perfeitamente ter baixado o decreto. Essa regulamentação do Código teve a colaboração, excepcionalmente proveitosa, do dr. José Luiz Bulhões Pedreira, que houvera sido consultor jurídico do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e, além de advogado de altíssimas qualidades, era um homem de uma inteligência extraordinária e há muito identificado com o setor elétrico. De modo que, com ele, pudemos em menos de uma semana, elaborar o 41.109, ou melhor, a regulamentação que depois recebeu o número 41.019 como decreto federal. Entrevistador – O sr. chegou a acompanhar, a ter alguma intervenção no debate, na tramitação do Projeto nº 1.898 no Congresso Nacional? O sr. foi chamado a defender o projeto das críticas feitas pela corrente nacionalista? Benedito Dutra – Não, não participei de nenhuma defesa, de nenhuma ação junto ao Congresso relacionado ao 1.898, mesmo porque considero que isso seria inútil. Não eram os pobres dos elaboradores do projeto de lei que teriam qualquer espécie de influência no Congresso. Essa defesa teria que ser feita pelas bancadas da Câmara dos Deputados e Senado fiéis ao governo e mais pelo ministro. Entrevistador – E, complementando a pergunta do Paulo Brandi, esse tipo de discussão acerca das tarifas era algo que despertasse o interesse da imprensa? 39 Saíram ensaios, artigos, por exemplo, defendendo a correção dos ativos das empresas? Benedito Dutra – A defesa da atualização das tarifas, ou melhor, a defesa da correção monetária dos ativos para que, neles se aplicando o mandamento do Código de Águas que determina que as tarifas sejam fixadas pelo custo, entendendo como custo uma cota de depreciação e uma cota de remuneração sobre o ativo, evidentemente que essas duas cotas sobre um ativo depreciado, não representavam nada. Então era necessário que esse ativo fosse atualizado para que essas duas taxas neles aplicadas representassem, de fato, o verdadeiro custo do serviço. Porque o custo do serviço não é só despesa de operação, o custo do serviço é a depreciação do investimento e mais a remuneração do investimento. Se o investimento está corroído pela inflação, essa remuneração, essa depreciação não tem nenhuma significação. E, evidentemente, não só o serviço sofre com essa situação, como o próprio investidor é roubado no seu patrimônio. E, na época, houve muita discussão pela imprensa, houve muita discussão, inclusive, nos meios técnicos. Entrevistador – (inaudível) Benedito Dutra – Todos esses debates tinham sempre um ranço ideológico, todos eles. Esses debates todos, em tese, eram um choque entre a direita e a esquerda. Não era nada técnico, nem nada realmente de interesse social. Discutia-se apenas se devia ou não acabar com o empresário, que a ideia era acabar com o empresário, socializar o setor, coisa contra a qual eu não me oponho eu não tenho nada que ver com isso, eu não sou contra nem a favor da estatização, apenas acho que estamos vivendo há muito tempo, desde 1934, uma situação absolutamente abstrusa que só tem servido para criar dificuldades, para criar problemas e, principalmente, para desmoralizar o setor elétrico. É o fato dele não ser nem socialista, nem privatista, nem coisa nenhuma. O setor elétrico brasileiro não tem personalidade. O setor elétrico brasileiro precisa e deve ter identidade, ele precisa ser institucionalizado, porque até hoje o setor elétrico brasileiro é amorfo. Ele não é coisa nenhuma. 40 Continuam existindo empresas privadas subordinadas ao governo federal, porque é o governo federal que faz a tarifa. Existem empresas estaduais que não são fruto de planejamento nenhum do governo federal, são planejadas por conveniência política ou não de governos estaduais e têm a sua economia nas mãos do governo federal e, com o correr do tempo, se transformaram em cabides de emprego. Deixaram de cumprir sua missão e se transformaram em cabides de emprego. E todo esse melê, toda essa confusão, tendo a Eletrobras como, teoricamente, mentora do setor elétrico brasileiro. A Eletrobras não dirige coisa nenhuma, porque para dirigir o setor elétrico, era preciso que a Eletrobras comandasse as empresas estaduais. Ela não comanda as empresas estaduais, ela não comanda as empresas particulares, as empresas particulares fazem a sua programação e se submetem ao governo, que aprova ou não, mas não fazem programação oriunda da Eletrobras, como os governos estaduais fazem lá a sua programação. Então a Eletrobras funciona no setor elétrico como a Rainha Vitória. Ela reina mas não governa. Esse é o melancólico panorama do setor elétrico há muito tempo. Entrevistador – Dr. Benedito Dutra, ainda sobre o Decreto nº 4.898, eu gostaria de lhe fazer uma pergunta sobre algo que me intriga muito: se de um lado, esse decreto não foi aceito no Congresso, era um projeto de lei, por outro lado, também as concessionárias estrangeiras que eram acusadas de terem extremo interesse na aprovação dessa revisão, elas não paralisaram os seus investimentos, como, por exemplo, a Rio Light, que produziu, nessa época, a usina de Nilo Peçanha. Então como que o sr., sendo um analista financeiro, explica isso? Qual era a importância da tarifa realmente, dessa revisão da tarifa do ponto de vista de se efetivarem investimentos no setor elétrico? Por que que a Light fazia mesmo tendo a tarifa congelada? Benedito Dutra – A explicação não é muito difícil não. Mesmo com a tarifa congelada, que a essa altura já tinha sofrido algumas correções independentemente de se apreciar ou não o investimento da Light, a verdade é que a Light seria obrigada a fazer novos investimentos para não perder o que tinha feito, porque se ela não viesse a atender o crescimento de demanda, mesmo que insuficientemente, 41 ela correria o risco de ter sua concessão ou o seu contrato, porque naquela época ela era apenas contratante, ter o seu contrato rescindido e ser encampada pelo governo, de graça. Então a Light estava na situação do português que emprestou dez contos ao brasileiro e quando morreu ele era credor de 1.000 contos do brasileiro e o brasileiro vivia muito bem, não tinha a menor preocupação de pagar os dez contos que ele tinha tomado do português, porque o português, para não perder esses dez contos, emprestou mais dez e depois, para não perder 20, emprestou mais dez e assim foi sempre emprestando mais um pouco para não perder o que já tinha emprestado. A Light estava na situação do português: ou ela fazia alguma coisa ou ela perdia tudo. E é natural que ela sempre tivesse esperança de que as coisas se regularizassem, De fato essa regularização nunca chegou a acontecer em sua plenitude, mas, afinal de contas, a Light acabou vendendo o seu patrimônio por 300 e tantos milhões de dólares, que eu não quero saber se valiam mais ou menos, mas que, sem dúvida nenhuma, era muito mais que zero. Essa é que é a razão pela qual em algumas outras concessionárias, inclusive, em escala muito menor, a própria Amforp, foram obrigadas a fazer. Ou faz alguma coisa ou perde tudo. E como a esperança é a última coisa que morre, e essas empresas, na esperança de que um dia se regularizasse uma situação que era absolutamente injustificável, continuaram a fazer algum investimento para não perderem tudo o que tinham. Essa é que era a verdadeira situação à época. Entrevistador
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