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z INTRODUÇÃO O conteúdo teórico que preparamos foi desenvolvido a partir de sólidas bases teóricas, porém com o objetivo claro de preparar o estudante para os enfrentamentos práticos e rotineiros que gravitam em torno dos processos de falência e de recuperação de empresas. A opção pragmática do texto, desenvolvido a partir da base empírica construída ao longo da experiência acumulada na nossa atuação diária, como Promotor de Justiça Titular perante as Varas Empresariais da Capital do Estado do Rio de Janeiro, fica à evidência a partir da frequente citação de casos concretos. Os anos de magistério também foram fundamentais na estruturação da obra, que muito se assemelha a um manual de atuação, na medida em que os principais pontos de dúvidas dos estudantes e operadores do Direito das Empresas em Dificuldades, seja pela percepção dos credores, seja pela ótica do devedor, receberam especial atenção. Estudaremos falência e recuperação de empresas em detalhes, incluindo a 1ª grande reforma promovida pela Lei 14.112, de 24/12/2020, com especial atenção para: os pressupostos para a decretação da falência; os efeitos da quebra sobre a pessoa do falido, seus contratos e seus bens; as formas de alienação do ativo; as causas de extinção das obrigações do falido e o novíssimo “fresh start”; a legitimação e postulação da recuperação judicial; os créditos sujeitos à recuperação judicial; os efeitos da decisão de deferimento do processamento; as regras de suspensão das execuções; o procedimento de verificação de créditos; o rito processual; o plano de recuperação judicial; o funcionamento da assembleia-geral de credores; a concessão e cumprimento da recuperação judicial; o plano especial de recuperação para os pequenos empresários; e as duas espécies de recuperação extrajudicial. A carga horária total é de 24 horas-aula, e o nosso objetivo é oferecer uma visão crítica, atual, prática e multidisciplinar voltada à atualização ou preparação do aluno para o mercado de trabalho, por meio do enfrentamento das questões cruciais para o aprofundamento dos conhecimentos sobre a nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas. Destacamos a intensa relação dos institutos da falência e da recuperação de empresas com outros ramos do Direito, como Direito Civil e Processual Civil, Direito Tributário, Direito Administrativo e Direito Trabalhista, na medida em que a recuperação ou a falência de uma sociedade empresária afeta e exige o sacrifício de credores de toda ordem. Assim, mesmo aqueles profissionais que não atuam diretamente com o Direito das Empresas em Dificuldades não podem prescindir de um acurado estudo sobre os novos contornos do Sistema Jurídico da Insolvência Empresarial. E na esteira de nossa atuação profissional, os temas serão abordados sempre a partir de um enfoque voltado para a prática, mas sem descuido da parte teórica. Dividimos este material em cinco módulos e em todos procuramos citar os precedentes jurisprudenciais mais atuais dos nossos Tribunais, estejam eles alinhados ou não com o nosso posicionamento. Temos a certeza de que o atento estudo deste material, em paralelo com a dinâmica empreendida pela integração e interação com o que lhes reservamos na aula on-line, permitirá uma completa compreensão do mundo das falências e das recuperações de empresas. Bom estudo!!! SUMÁRIO MÓDULO I – INTRODUÇÃO À LEI Nº 11.101, DE 9 DE FEVEREIRO DE 2005 .................................... 11 PRINCÍPIOS INFORMATIVOS DO SISTEMA .................................................................................... 12 Preservação da empresa viável ............................................................................................. 12 Separação dos conceitos de empresa e de empresário .................................................... 14 Proteção aos trabalhadores ................................................................................................... 14 Redução do custo do crédito no Brasil ................................................................................. 15 Celeridade e eficiência dos processos judiciais ................................................................... 15 Segurança jurídica ................................................................................................................... 16 Participação ativa dos credores ............................................................................................. 16 Maximização do valor dos ativos do devedor ..................................................................... 17 Fresh Start .................................................................................................................................. 17 Desburocratização da recuperação de microempresas e empresas de pequeno porte .................................................................................................................................................... 18 Rigor na punição dos crimes relacionados à insolvência empresarial ............................. 18 MÓDULO II – FALÊNCIA ....................................................................................................................... 21 LEGITIMIDADE ATIVA PARA O REQUERIMENTO DE FALÊNCIA ................................................... 21 Confissão da insolvência: autofalência ................................................................................. 21 A pedido dos credores ............................................................................................................ 23 Credor com garantia real .................................................................................................. 24 Credor tributário ................................................................................................................. 25 JUÍZO COMPETENTE ......................................................................................................................... 28 PRESSUPOSTOS FALIMENTARES .................................................................................................... 31 Legitimidade passiva ............................................................................................................... 31 Teoria dos agentes econômicos ....................................................................................... 33 Sociedades empresárias dissolvidas irregularmente .................................................... 34 Sociedades empresárias não sujeitas à LFRE ................................................................. 35 Insolvência ................................................................................................................................ 37 Impontualidade .................................................................................................................. 38 Execução frustrada ............................................................................................................. 40 Atos de falência ................................................................................................................... 42 RITO PROCESSUAL DA FASE PRÉ-FALIMENTAR ............................................................................ 43 Depósito elisivo ........................................................................................................................ 45 SENTENÇA DE FALÊNCIA: CONTEÚDO E RECURSOS ................................................................... 48 ADMINISTRAÇÃO NA FALÊNCIA ..................................................................................................... 49 Juiz .............................................................................................................................................. 50 MinistérioPúblico .................................................................................................................... 50 Administrador judicial ............................................................................................................. 52 Gestor judicial ........................................................................................................................... 56 Credores na administração do processo.............................................................................. 57 Intervenção individual do credor ..................................................................................... 57 Comitê de credores ............................................................................................................ 58 Assembleia de credores .................................................................................................... 60 Falido ......................................................................................................................................... 62 Proibição do exercício da empresa .................................................................................. 63 Restrição ao direito de locomoção .................................................................................. 64 Arrecadação das correspondências ................................................................................. 64 EFEITOS DA FALÊNCIA EM RELAÇÃO AOS BENS DO FALIDO ...................................................... 65 Administração e indisponibilidade dos bens ....................................................................... 65 Bens não sujeitos à arrecadação ........................................................................................... 67 Negociação com os bens da massa falida ............................................................................ 68 Pedidos de restituição ............................................................................................................. 69 Restituição ordinária – in natura ....................................................................................... 69 Bens alienados fiduciariamente, arrendados ou decorrentes de compra e venda com reserva de domínio .............................................................................................. 71 Restituição excepcional ................................................................................................ 72 Restituição em dinheiro ..................................................................................................... 72 Rito da restituição ............................................................................................................... 74 Desconsideração da personalidade jurídica e outros casos de responsabilização ....... 75 EFEITOS DA FALÊNCIA EM RELAÇÃO AOS CONTRATOS DO FALIDO ......................................... 77 Contratos bilaterais ................................................................................................................. 78 Contratos unilaterais ............................................................................................................... 79 Situações especiais .................................................................................................................. 79 Compra e venda a prazo: mercadorias em trânsito ...................................................... 79 Compra e venda de coisas compostas ............................................................................ 80 Compra e venda com reserva de domínio ...................................................................... 80 Patrimônio de afetação ..................................................................................................... 80 Locação ................................................................................................................................ 81 Mandato ............................................................................................................................... 82 Conta-corrente .................................................................................................................... 82 INDIVISIBILIDADE DO JUÍZO FALIMENTAR .................................................................................... 82 Reclamações trabalhistas ....................................................................................................... 83 Causas fazendárias .................................................................................................................. 84 Execuções fiscais ...................................................................................................................... 85 Ações propostas pela massa falida ....................................................................................... 86 Universalidade da falência e ações em curso ...................................................................... 86 INVESTIGAÇÃO DOS NEGÓCIOS CELEBRADOS PELO FALIDO ANTES DA FALÊNCIA .............. 87 Ineficácia objetiva .................................................................................................................... 88 Ineficácia subjetiva .................................................................................................................. 90 VERIFICAÇÃO DOS CRÉDITOS ......................................................................................................... 91 Fase administrativa .................................................................................................................. 92 Fase judicial .............................................................................................................................. 93 Habilitações e impugnações retardatárias ........................................................................... 95 Suspensão dos juros e dos prazos prescricionais ............................................................... 98 Compensação de créditos ...................................................................................................... 99 Quadro geral de credores: concursais e não concursais ................................................ 100 Credores extraconcursais .............................................................................................. 101 Credores concursais ........................................................................................................ 102 Créditos por acidente do trabalho e trabalhistas, estes limitados a 150 salários- mínimos ....................................................................................................................... 103 Créditos com garantia real até o limite do valor do bem gravado ...................... 104 Créditos tributários, excetuadas as multas ............................................................ 104 Créditos quirografários ............................................................................................. 105 Multas contratuais e penas pecuniárias por infrações das leis penais e administrativas ........................................................................................................... 105 Créditos subordinados .............................................................................................. 105 Credor alimentar ............................................................................................................. 106 REALIZAÇÃO DO ATIVO ................................................................................................................ 107 Proteção ao arrematante..................................................................................................... 107 Modalidades de hasta pública ............................................................................................ 109 Disposições comuns .............................................................................................................111 PRESTAÇÃO DE CONTAS .............................................................................................................. 112 ENCERRAMENTO DA FALÊNCIA ................................................................................................... 112 INCIDENTE DE EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES: A REABILITAÇÃO DO FALIDO ........................ 113 Demonstração de regularidade fiscal ................................................................................ 115 MÓDULO III – RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS .................................................................................. 117 ALTERAÇÕES LEGISLATIVAS ......................................................................................................... 118 ESPÉCIES DE RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS .............................................................................. 118 LEGITIMIDADE ATIVA .................................................................................................................... 119 Recuperação judicial do produtor rural............................................................................. 120 Litisconsórcio ativo ............................................................................................................... 121 Consolidação processual ................................................................................................ 121 Consolidação substancial ............................................................................................... 122 Recuperação judicial transnacional .................................................................................... 123 REQUISITOS DA PETIÇÃO INICIAL DO REQUERIMENTO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL ......... 124 Requisitos subjetivos ............................................................................................................ 125 Atividade empresarial há mais de dois anos (caput) .................................................. 125 Não ser falido e não ter obtido recuperação judicial há menos de cinco anos (incisos I, II e III) ................................................................................................................ 126 Sócios controladores e administradores não condenados por crimes da LFRE (inciso IV) ....................................................................................................................................... 126 Requisitos objetivos .............................................................................................................. 126 Situação patrimonial e razões da crise (inciso I) ......................................................... 126 Demonstrações contábeis (inciso II) ............................................................................. 127 Relação de credores (inciso III) ...................................................................................... 127 Relação de empregados (inciso IV) ............................................................................... 127 Certidão de regularidade do Registro Público de Empresas Mercantis (inciso V) ........ 128 Relação de bens dos sócios controladores e dos administradores (inciso VI) ....... 128 Extratos bancários (inciso VII) ........................................................................................ 128 Certidões de protestos (inciso VIII) ................................................................................ 128 Relação dos processos judiciais e disputas arbitrais, com estimativa de valores (inciso IX) ........................................................................................................................... 129 Relatório detalhado do passivo fiscal (inciso X) .......................................................... 129 Relação de bens e direitos do ativo não circulante (inciso XI)................................... 129 CRÉDITOS SUJEITOS AOS EFEITOS DA RECUPERAÇÃO ............................................................. 130 CRÉDITOS NÃO SUJEITOS AOS EFEITOS DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL ................................... 132 Créditos de empréstimo DIP ............................................................................................... 132 Crédito tributário .................................................................................................................. 133 Créditos com direito real de propriedade e assemelhados ........................................... 135 Depositante de coisas fungíveis ......................................................................................... 137 Dívida propter rem – despesas condominiais .................................................................... 137 Singularidade dos créditos sujeitos à recuperação judicial do produtor rural ............ 139 Problemática da trava bancária .......................................................................................... 140 DEFERIMENTO DO PROCESSAMENTO DO PEDIDO .................................................................. 144 Dispensa das certidões negativas ...................................................................................... 145 Stay period e suspensão da prescrição .............................................................................. 145 Prestação mensal de contas................................................................................................ 147 Intimação do Ministério Público e das Fazendas ............................................................. 148 Restrição de venda ou oneração dos bens do imobilizado ............................................ 149 Prazo para habilitação e divergência de créditos ............................................................. 151 Compensação de créditos na recuperação judicial ......................................................... 152 APRESENTAÇÃO DO PLANO ........................................................................................................ 154 MÉTODOS DE RECUPERAÇÃO ..................................................................................................... 154 Restrições ao plano de reestruturação .............................................................................. 156 Passivo trabalhista .......................................................................................................... 157 Vinculação cambial dos créditos ................................................................................... 158 Intangibilidade das garantias reais e fidejussórias ..................................................... 158 OBJEÇÃO DOS CREDORES AO PLANO DE RECUPERAÇÃO ....................................................... 161 APROVAÇÃO OU REJEIÇÃO DO PLANO DE RECUPERAÇÃO DO DEVEDOR ............................ 162 Deliberação dos credores em assembleia ........................................................................ 163 Sistema do cram down ......................................................................................................... 163 Apresentação de PRJ alternativo pelos credores ............................................................. 164 Aplicação da teoria do abuso de direito no exame dos votos dos credores ................ 164 Suspensão da assembleia de deliberação sobre o plano de recuperação................... 166 REGULARIDADE TRIBUTÁRIA PARA A CONCESSÃO DA RECUPERAÇÃO ................................. 167 Controle de legalidade do plano aprovado pelos credores ............................................ 167 SENTENÇA CONCESSIVA DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL E NOVAÇÃO ...................................... 169 RECURSOS ...................................................................................................................................... 169 SUPERVISÃO JUDICIAL DA EXECUÇÃO DO PLANO .................................................................... 169 ALTERAÇÕES DO PLANO HOMOLOGADO................................................................................. 170 AFASTAMENTO JUDICIAL DOS ADMINISTRADORES E DO CONTROLADOR DO DEVEDOR .. 171 CONVOLAÇÃO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL EM FALÊNCIA ..................................................... 172 MÓDULO IV – OUTRAS ESPÉCIES DE RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS ............................................ 175 PLANO ESPECIAL DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL PARA AS MICRO E PEQUENAS EMPRESAS . 175 RECUPERAÇÃO EXTRAJUDICIAL ................................................................................................... 177 Requisitos ............................................................................................................................... 178 Créditos sujeitos e stay period ............................................................................................. 179 Credores não sujeitos .......................................................................................................... 179 Procedimento para homologação ...................................................................................... 180 Oposição ao pedido .............................................................................................................. 181 Decisão homologatória: limitação aos poderes do juiz e recursos ............................... 181 BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................................... 183 PROFESSOR-AUTOR ........................................................................................................................... 184 Passados pouco mais de 15 anos desde o advento da Lei nº 11.101/05, percebe-se um grande avanço no aperfeiçoamento do sistema jurídico da insolvência no Brasil. Porém, se muitos dos problemas decorrentes do revogado Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945, foram resolvidos, outros mais surgiram, revelando-se premente uma primeira grande reforma que já se avizinha, provavelmente por meio do Projeto de Lei em tramitação no Senado nº 4.458/2020, antigo P.L. 6.229/2005 da Câmara dos Deputados, que aglutinou várias outras proposições que tramitavam pela Câmara dos Deputados. Sabia-se que a viabilidade de um moderno sistema de insolvência empresarial também reclamava uma profunda alteração no Direito Tributário, ao menos no que concerne ao tratamento do passivo tributário dos empresários em crise, sendo forçoso gizar que grande parte das alcunhadas reengenharias tributárias depende de uma astuta perspectiva empresarial, sobretudo societária, enquanto, de igual sorte, é elemento lógico da rotina empresarial que reestruturações societárias não possam prescindir de um sólido planejamento tributário. O fato inconteste é que, infelizmente, a LFRE não se revelou plenamente capaz de auxiliar a empresa em crise a superar as suas dificuldades, uma vez que grande parte dessas dificuldades está ligada ao seu passivo fiscal ou atrelada a garantias que excluem o crédito do concurso e, ipso facto, do alcance do plano de recuperação. A posição até então inflexível das Fazendas Públicas e o tratamento privilegiado conferido aos credores detentores de direito de propriedade colidem com a necessidade concreta de se procurarem alternativas para a proteção dos ativos das empresas em crise, causando insegurança no mercado e perplexidade dos operadores do Direito diante da imensa variedade de interpretações das atuais normas. MÓDULO I – INTRODUÇÃO À LEI Nº 11.101, DE 9 DE FEVEREIRO DE 2005 12 O primeiro método de pesquisa utilizado para a elaboração da presente obra foi o dogmático-histórico-descritivo, o que viabilizou a análise do desenvolvimento da legislação falimentar no Direito pátrio ao longo do tempo, sem olvidar a interferência das construções doutrinárias no seu processo evolucionário. Nessa toada, buscou-se uma aproximação entre o sistema normativo atual e a realidade experimentada nesses primeiros 15 anos de vigência da LFRE, o que se fez possível pela utilização de uma metodologia de pesquisa empírica por meio da jurisprudência, na medida em que o Direito, sendo uma realidade histórico-cultural, não admite o estudo de qualquer dos seus ramos sem a noção antecipada da sua evolução dinâmica. Não se pode negar que “todo direito tem seguido a um direito anterior, em desenvolvimento contínuo, de modo que o direito de hoje se apresenta como resultado de um passado e como início de uma evolução futura”. A nossa meta é levar ao aluno uma visão mais pragmática possível dos institutos da falência e da recuperação de empresas, a partir da experiência acumulada à frente da 1ª Promotoria de Justiça de Massas Falidas da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro, com atribuição para atuar perante a 1ª, 4ª e 7ª Varas Empresariais da Capital do Rio de Janeiro, foro pelo qual tramitaram e ainda tramitam alguns dos maiores processos de insolvência empresarial do País. Princípios informativos do sistema Em 13 de abril de 2004, o senador da República Ramez Tebet apresentou, perante a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal, o seu parecer, junto com um substitutivo, ao Projeto de Lei da Câmara nº 71/2003, que se converteu na Lei nº 11.101/05, destacando na exposição de motivos os princípios que o inspiraram na construção do texto. A doutrina, por seu turno, por indução lógica do Direito Positivado, extraiu outros tantos princípios que alicerçam o Direito das Empresas em Dificuldades. Finalmente, as mais recentes alterações legislativas trouxeram à tona novos pilares principiológicos, que se somam aos anteriores com o fim de corrigir alguns defeitos que se tornaram evidentes ao longo dos primeiros anos de aplicação da LFRE. Para dar os primeiros passos rumo ao conhecimento, analisaremos essa base principiológica sobre a qual se edifica a LFRE. Preservação da empresa viável Não por coincidência, o princípio da preservação da empresa foi o primeiro a ser destacado como um dos pilares do novo sistema recuperacional, sendo um dos poucos a ser expressamente positivado na Lei nº 11.101/05, consoante se vê do seu art. 47. Descendente direta do princípio da função social, a teoria da preservação da empresa é o norte da lei, tornando a falência uma exceção a ser evitada o tanto quanto possível, pois a empresa, quando cumpridora da sua função social, deve ser preservada sempre que possível, pois 13 gera riqueza econômica, cria emprego e renda, contribuindo para o crescimento e o desenvolvimento social do País, e é fonte de arrecadação de tributos. Especialmente nesses primeiros anos de vigência, o princípio da preservação da empresa tem sido largamente empregado, não só para suprir as inúmeras lacunas existentes – por exemplo, alteração do plano de recuperação judicial após a homologação – e para ajustar interpretações sobre pontos mais nebulosos, como restringir o poder do juiz ao exame de legalidade do plano de recuperação judicial aprovado pelos credores, mas também – e aqui reside a nossa maior preocupação – para afastar a aplicação literal de dispositivos da própria Lei nº 11.101/05 e da legislação em geral. É grande o desafio de equilibrar a balança quando de um lado está a necessidade de preservação da empresa e, de outro, a letra clara da lei apontando em direção oposta. Até que ponto devemos afastar-nos da norma expressa e dos demais princípios informadores do sistema para buscar a preservação da empresa, mesmo sendo ela viável do ponto de vista econômico e financeiro? Aliás, também difícil é a tarefa de definir o papel do Poder Judiciário na distinção entre empresas viáveis e inviáveis e o que se revela lícito fazer para protegê-las, afinal, tão profícuo para o interesse público como manter no mercado uma empresa viável, preservando a sua atividade, os seus postos de trabalho e a suarelação com clientes e fornecedores, é retirar dele a empresa que não tem como cumprir o seu papel social, dada a sua inviabilidade econômica, a necessidade de respeito aos contratos e o princípio da intervenção mínima do Estado nas relações privadas, sobretudo com o advento da Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019). A LFRE, no nosso sentir, reservou o protagonismo do processo aos credores, uma vez que é vedado ao juízo, ao administrador judicial e ao Ministério Público promover a análise da viabilidade econômica e financeira da sociedade empresária em dificuldade e do plano de recuperação judicial proposto. Em síntese, constatados problemas crônicos na atividade ou na administração da empresa, de modo a inviabilizar a sua recuperação, o Estado deve promover de forma rápida e eficiente a sua retirada do mercado, a fim de evitar a potencialização dos problemas e o agravamento da situação dos que negociam com pessoas ou sociedades com dificuldades insanáveis na condução do negócio. A falência pode ser, sim, o melhor caminho no caso concreto! Ainda que de forma bastante superficial, convém destacar algumas das polêmicas mais sensíveis do sistema que têm sido solucionadas a partir da aplicação, correta ou não, do princípio da preservação da empresa: � quebra da denominada “trava bancária”, afastando os direitos dos credores fiduciários; � proibição de retomada dos bens de terceiros que estão na posse do devedor, essenciais ao seu negócio, mesmo após o decurso do stay period e até da aprovação do plano de recuperação; � ampliação da competência do juízo recuperacional para anular ou suspender atos e processos administrativos contrários ao devedor em recuperação judicial; 14 � ampliação da competência do juízo recuperacional para decidir sobre diferentes demandas de interesse das devedoras em recuperação judicial1, inclusive a cobrança de créditos, e � alteração do resultado da deliberação dos credores em assembleia pela anulação de voto “abusivo”. Esses são apenas alguns dos muitos exemplos da aplicação do princípio da preservação da empresa para a solução de controvérsias nos processos de insolvência. Advirta-se, entretanto, que decisões extremas podem prolongar a permanência artificial no mercado de uma empresa manifestamente inviável, maximizar as perdas dos credores, causar concorrência desleal e apenas retardar uma inevitável decretação de falência. Separação dos conceitos de empresa e de empresário Empresa é o conjunto organizado de capital e trabalho para a produção ou circulação de bens ou serviços. Não se deve confundi-la com a pessoa natural ou jurídica que a explora. Assim, por vezes, mesmo em um processo de recuperação judicial, é preciso separá-la da sociedade empresária, alienando a unidade produtiva no mercado, a fim de que outra sociedade empresária dê continuidade ao negócio de forma eficiente, com esteio no parágrafo único do art. 60 da Lei nº 11.101/05. Exemplos vivos dessa separação, entre sociedade empresária e empresa, são os casos Varig, Casa&Video, Delta, Constellation, Abengoa, OAS e OI, pois em todos eles houve a alienação de unidades produtivas isoladas (UPIs), a fim de que outros empresários do setor dessem prosseguimento aos negócios. Proteção aos trabalhadores Os créditos trabalhistas conservaram certos privilégios. Na falência, entre os credores concursais, terão preferência até o montante equivalente a 150 salários-mínimos, mas é bom lembrar que antes do pagamento dos credores concursais, inclusive trabalhadores, hão de ser adimplidas outras obrigações, como as despesas extraconcursais e as restituições. Já na recuperação judicial pouco se vê de vantagem aos trabalhadores, uma vez que a lei, por um lado, proíbe o pagamento dos credores trabalhistas em prazo superior a dois anos, mas de outro, autoriza expressamente o deságio quando o pagamento é feito em até um ano. Logo, é perfeitamente possível, segundo o entendimento dominante, que o PRJ estabeleça que outros 1 Ver TJRJ, Agravo de Instrumento nº 0024976-71.2020.8.19.0000. 2ª Câmara Cível. Rel. Des. Maria Isabel Paes Gonçalves. Julgado em 21/09/2020. 15 credores recebam antes dos trabalhadores, assim como a própria remissão parcial dos créditos trabalhistas, o denominado deságio ou haircut 2. Aliás, apenas para fins de registro, recentemente nos deparamos com um plano de recuperação judicial que propunha pagamento dos credores trabalhistas em um ano, mas com um “desconto” de 90%.3 Nessa toada, a proposta de deságio para o pagamento dos créditos trabalhistas torna, ao nosso sentir, inócua a proteção temporal conferida pela legislação. Aliás, em tantos outros casos, preocupado com a repercussão negativa de uma proposta de deságio em relação aos trabalhadores, o devedor deixa “de fora” do processo de recuperação judicial o passivo trabalhista, pois, a exemplo do que existe no Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (TRT-1), no Rio de Janeiro, há a possibilidade de parcelamento do passivo trabalhista em prazo superior ao limite previsto no art. 54 da LFRE, pelo denominado plano especial de pagamentos trabalhista (Pept)4, na própria justiça especializada. Redução do custo do crédito no Brasil Diante da criação de um sistema falimentar mais eficaz e célere e da inversão de prioridades na ordem de pagamento, com prevalência do crédito com garantia real sobre o tributário, esperava-se um incremento nos índices de recuperação de crédito, atenuando-se os riscos da inadimplência, com reflexos indiretos no spread bancário. Essa era, contudo, apenas uma aspiração legislativa. Em razão dos incontáveis fatores que influenciam os números da inadimplência no Brasil, dificilmente teremos como estabelecer em um curto prazo uma relação entre a eficácia da LFRE e a redução do spread bancário, especialmente diante das polêmicas envolvendo os limites e as proteções conferidas às garantias fiduciárias e às fidejussórias. Celeridade e eficiência dos processos judiciais É preciso que as normas procedimentais na falência e na recuperação de empresas sejam, na medida do possível, simples, conferindo-se celeridade e eficiência ao processo e reduzindo-se a burocracia que atravanca o seu curso. Nesse sentido, “desjudicializou-se” o procedimento de habilitações e divergências de créditos, autorizou-se a venda imediata dos bens arrecadados na falência logo após o decreto de quebra, 2 Ver Decisão Liminar do Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, no Pedido de Tutela Provisória nº 2.778/RJ, publicada no dia 24/06/2020. 3 Recuperação Judicial de Real Auto Ônibus Ltda. e outras, em trâmite perante a 1ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro sob o nº 0087802-67.2019.8.19.0001. 4 Ato Conjunto nº 11/2019 e Provimento nº 1/2018 da Corregedoria Geral da Justiça do Trabalho; Provimento Conjunto nº 02/2019 do TRT-1; Resolução Administrativa nº 79/2019, do TRT-2; dentre outros. 16 fixou-se um prazo para o encerramento das recuperações judiciais, além de muitas outras regras para assegurar uma tramitação menos demorada desses processos. Nada obstante a nobre intenção do legislador, os processos de falência e de recuperação judicial continuaram lentos e sem a desejada eficiência. Diante desse cenário, a reforma promovida Lei nº 1.4112/2020 trouxe novas importantes regras para imprimir maior celeridade e eficiência. Nas falências, o administrador judicial agora deverá apresentar em 60 dias da sua nomeação um plano de liquidação dos ativos, sempre com um prazo máximo de 180 dias a contar da respectiva arrecadação do bem. Os credores terão o prazo máximo de três anos para apresentarem as suas habilitações ou pedidos de reserva de crédito, sob pena de decadência, e, talvez a regra mais polêmica,foi instituído o denominado fresh start, que permite o pedido de extinção das obrigações do falido ainda durante a tramitação do processo e desde que ultrapassado três anos da sentença de falência. Nos processos de recuperação judicial, proibiu-se mais de uma prorrogação do stay period, concedeu-se aos credores o direito de apresentar um plano de recuperação alternativo e autorizou-se ao juiz a fixação de um prazo menor que dois anos para o encerramento da recuperação judicial5. Segurança jurídica Os dispositivos legais que integram a nova legislação, dentro do possível, foram redigidos com a intenção de evitar múltiplas interpretações e de conferir às partes maior domínio sobre o mérito do processo, reduzindo o poder conferido ao juiz. É evidente que esse esforço é bem- vindo, porém, não foi capaz de evitar o surgimento de inúmeras e gigantescas controvérsias, em especial pela própria complexidade dos temas tratados e das não raras omissões do texto legal, sobretudo em relação ao novel instituto da recuperação de empresas. Nessa linha, a reforma de 2020 procurou dar soluções expressas para alguns pontos do sistema que despertavam acaloradas divergências doutrinárias e jurisprudenciais. A título de exemplo, todos os prazos da LFRE passam a ser contados em dias corridos; só se admitirá uma única prorrogação do prazo de suspensão das execuções contra o devedor; e o produtor rural inscrito no registro público de empresas tem legitimidade para o pedido de recuperação judicial. Participação ativa dos credores A lei buscou dar protagonismo aos credores na solução da insolvência do devedor. É nítido o esforço do legislador de conceder aos credores instrumentos capazes de definir os rumos de um processo de recuperação de empresas ou dos ativos arrecadados em um processo de falência. 5 TJRJ, Agravo de Instrumento nº 0033080-52.2020.8.19.0000. 14ª Câmara Cível. Des. Rel. José Carlos Paes. Julgado em 29/07/2020. 17 Na prática, porém, essa participação tem sido menosprezada por parcela da jurisprudência, de certa forma provocada por algum desinteresse ou desconhecimento por parte dos advogados dos credores. São raros os casos de instalação do comitê de credores, e poucos são os credores que acompanham com efetividade o desenrolar do processo, com exceção dos credores financeiros. Contudo, a reforma de 2020 trouxe novos motivadores para uma participação mais ativa dos credores nos processos de falência e de recuperação judicial, tais como a possibilidade de apresentação de um plano de recuperação alternativo àquele apresentado pelo devedor; e uma ampliação dos poderes dos credores nas hipóteses de alienação de bens do devedor, quer na falência, quer na recuperação judicial. Maximização do valor dos ativos do devedor As regras da LFRE efetivamente buscam maximizar os ativos do devedor em dificuldades. Os bens do devedor falido devem ser alienados em um curto espaço de tempo e sem quaisquer ônus para o adquirente, permitindo-se aos credores e ao juiz decidirem sobre o melhor caminho para a realização desse ativo, sempre contando com a orientação técnica do administrador judicial. Pontue-se que, desde a reforma de 2020, tornou-se possível a alienação integral dos ativos do devedor nos processos de recuperação judicial, por meio da criação de uma UPI única, o que preserva o valor dos intangíveis e favorece o pagamento dos credores. Fresh Start O rápido retorno do empresário falido ao mercado se tornou uma das marcas de reforma promovida pela Lei nº 14.112/2020. Para tanto, um conjunto de novas regras foi introduzido no sistema, fazendo com que o processo de falência tenha como um dos seus objetivos possibilitar um rápido recomeço ao empresário falido. Entre esses novos dispositivos se destacam o art. 10, § 10, e o art. 158, inciso V, que permitem a declaração de extinção das obrigações do falido após três anos da decretação da falência. Acreditamos, contudo, que esse novo instituto não foi adequadamente positivado, uma vez que ele confunde os conceitos de sócio e de sociedade, afastando-se dos anseios do próprio legislador. Como se sabe, a falência de uma sociedade empresária não impede, ao menos juridicamente, que os seus sócios, diretamente ou por meio de outra pessoa jurídica, explorem atividades empresariais, inclusive aquela que era exercida pela sociedade falida. As dificuldades daqueles sócios de “retornarem” à atividade empresarial sempre foram de cunho econômico, uma vez que, sendo pública a informação de que eles estavam ligados a uma sociedade em processo de falência, raramente conseguiam crédito para si ou para as outras pessoas jurídicas das quais participassem. 18 Portanto o objetivo nunca foi reabilitar a sociedade falida, mesmo porque, com o encerramento da falência, o próprio juiz, de ofício, determinará o cancelamento do seu CNPJ, com a consequente extinção da sua personalidade jurídica (art. 156). Estabelecidas essas premissas e sem perder de vista que o verdadeiro objetivo sempre foi criar um sistema que possibilitasse aos sócios da sociedade falida rapidamente retornarem ao mercado de crédito, por meio de novas pessoas jurídicas, devemos ter um redobrado cuidado na interpretação das regras que tratam da extinção das obrigações do falido. Como se verá mais adiante, inspirados pelo princípio da dignidade da pessoa humana, defenderemos o entendimento de que o instituto do fresh start só deve ser aplicado às pessoas naturais atingidas pela falência, e não às sociedades falidas, cujas obrigações só podem ser declaradas extintas com o efetivo encerramento do processo de falência, e não pelo transcurso de três anos da sentença que decretou a quebra. Desburocratização da recuperação de microempresas e empresas de pequeno porte Há, sim, dispositivos na LFRE que desburocratizaram a recuperação judicial das micro e pequenas empresas. Entretanto, mesmo após o advento de algumas modificações, as regras previstas para o chamado plano especial de recuperação judicial colocado à disposição dos pequenos empresários são – perdoem o trocadilho – “especialmente ruins”, o que se revela no baixo número de planos especiais aprovados. A limitação do parcelamento em 36 meses, a reduzida carência de seis meses e a imposição de atualização do passivo pela Selic tornam o plano especial pouquíssimo atraente aos devedores, que podem obter condições muito mais favoráveis em negociação extrajudicial ou no bojo do processo de recuperação judicial comum ou ordinário. Rigor na punição dos crimes relacionados à insolvência empresarial É preciso punir com severidade os crimes falimentares, com o objetivo de coibir as falências e recuperações fraudulentas, em função do prejuízo social e econômico que causam. As penas para os delitos dessa natureza foram aumentadas, a persecução penal e o tempo de prescrição agora se submetem às regras do direito comum, penal e processual penal, porém, na quase totalidade dos estados, a competência para o julgamento das ações penais por crimes falimentares e recuperacionais é reservada às varas criminais comuns, cujos juízes não estão habituados à matéria, possibilitando o retardamento da marcha processual e absolvições divorciadas da prova técnica carreada aos autos. Ademais, Podemos enumerar outros problemas crônicos que impedem a efetividade no combate à prática de crimes relacionados aos processos de insolvência. São eles: 1) a falta de regra clara sobre o conflito aparente de normas penais, sobretudo em relação aos fatos anteriores aos 19 processos de falência e de recuperação judicial e em razão do tipo penal aberto do art. 168, da LFRE; 2) a ausência de delegacias especializadas na apuração desses delitos; 3) a ausência de previsão de um relatório do administrador judicial, no processo de recuperaçãojudicial, para apontamento de responsabilidades criminais; 4) a ausência de previsão de intimação do Ministério Público para acompanhar todos os atos processuais da falência e da recuperação judicial. 20 Falência continua sendo uma espécie de execução coletiva dos bens do devedor empresário insolvente, por meio da qual todos os seus bens são arrecadados e liquidados, para que o produto apurado seja utilizado no pagamento dos credores, obedecendo à ordem legal de preferência. O objetivo primário da falência, portanto, é a satisfação dos credores, o máximo possível, e secundários, a rápida realocação útil dos ativos liquidados na economia e o célere retorno do devedor ao mercado produtivo. Legitimidade ativa para o requerimento de falência O art. 97, da LFRE prevê que o requerimento de falência pode ser iniciado: � a pedido do próprio devedor, empresário individual; � pelo cônjuge do empresário individual falecido, pelo herdeiro ou pelo inventariante; � a requerimento da própria sociedade empresária, por iniciativa dos seus quotistas ou acionistas, na forma da lei e do ato constitutivo ou � por qualquer credor. No entanto, algumas peculiaridades devem ser destacadas para a sua perfeita compreensão. Confissão da insolvência: autofalência Devemos dedicar algumas linhas da nossa atenção para a falência requerida pelo próprio devedor, chamada por muitos de “autofalência”, prevista no art. 97, I e III, c/c art. 105 e seguintes, da LFRE. MÓDULO II – FALÊNCIA 22 De pronto, consignamos ser de interesse exclusivamente acadêmico o estudo do requerimento de autofalência formulado por empresário individual, firma individual ou microempreendedor individual. No plano ainda mais abstrato, afigura-se possível a falência do espólio do empresário individual, por iniciativa do cônjuge sobrevivente, de qualquer herdeiro ou do inventariante, desde que formulado em até um ano do óbito, consoante § 1º do art. 96, da LFRE. No sistema anterior, havia um estímulo, quiçá uma obrigação ou um ônus, para o devedor que confessasse a sua insolvência: a possibilidade de concordata suspensiva, que hoje já não mais existe. Contudo, ao optar pelo pedido de autofalência da sociedade empresária (Ltda.) ou da empresa individual de responsabilidade limitada, evita-se a denominada dissolução irregular da sociedade empresária e a incidência dos efeitos da Súmula 435 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que permite o redirecionamento das execuções fiscais propostas em face da pessoa jurídica para os sócios/titulares com poderes de administração. Ocorre que a reforma promovida pela Lei 14.112/2020 instituiu o “fresh start” do falido como um dos objetivos do processo falimentar e, assim, a autofalência pode se tornar uma das soluções para o devedor em dificuldades, sobretudo para o pequeno e para o microempresário com poucos ativos. Em síntese, três anos após decretada a falência o falido pode pedir a declaração de extinção de suas obrigações, o que lhe permitirá um rápido retorno ao mercado, livre das obrigações relativas ao negócio anterior. Há certa polêmica sobre a possibilidade de o sócio minoritário apresentar o pedido de autofalência. Fábio Ulhoa Coelho6 admite esse pedido, justificando que ele estaria pautado exclusivamente no art. 97, III, e não no art. 105, ambos da LFRE. Discordamos desse entendimento, seja porque não há sequer previsão do procedimento a ser adotado nesses casos – há citação? Qual a causa de pedir, insolvência real ou presumida? É possível depósito elisivo? – seja também porque o art. 97, III, da LFRE, é expresso no sentido de que os sócios só poderão fazer o pedido de falência da sociedade “na forma da lei”, que na nossa opinião é a legislação societária, em especial, atendidos os quóruns previstos nos arts. 1.071, VIII, do CC e 122, IX, da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, sem olvidar a incidência do princípio da preservação da empresa. A saída para o sócio minoritário insatisfeito com a posição dos demais de tentar prosseguir com a empresa é a ação de dissolução parcial. De toda forma, há precedente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), da relatoria do eminente desembargador Pereira Calças, admitindo o prosseguimento de um pedido de autofalência formulado por um sócio com 50% do capital social: 6 Além de Fábio Ulhoa Coelho, outros autores defendem a legitimidade ativa dos sócios minoritários – cotistas e acionistas – para requerer a falência da sociedade empresária que integram, como Luiz Guerra, Amador Paes de Almeida e Sérgio Campinho. Adotamos o caminho apontador por vários outros, entre os quais Ricardo Tepedino, In: TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de; ABRÃO, Carlos Henrique (Coords.). Lei de Recuperação de Empresas e Falências. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 286, 287. 23 Ementa: Falência. Indeferimento da inicial com extinção do processo, sem resolução de mérito. Ação proposta por sócia cotista, titular de 50% das quotas, contra sociedade limitada, em face do abandono do outro sócio. Anterior indeferimento de autofalência. Apelo provido para, com fundamento no art. 97, III, da Lei n° 11.101/05, determinar-se o regular processamento da falência. Necessidade de citação do outro sócio para, querendo, contestar o pedido.7 A autofalência também é o caminho utilizado pelos liquidantes extrajudiciais de certas sociedades empresárias submetidas a um maior controle pelo Poder Executivo Federal, tais como instituições financeiras, seguradoras e operadoras de plano de saúde. Elas podem ser alvos de intervenção e até de liquidação extraordinária que, em alguns casos, pode converter-se em pedido de autofalência, obedecendo aos requisitos da legislação especial, mormente aqueles previstos no art. 21, “b”, da Lei nº 6.024, de 13 de março de 1974. A pedido dos credores Por razões óbvias, os requerimentos de falência são formulados na sua maioria pelos credores. O credor, quando empresário, na forma do art. 97, § 1º, da LFRE, deverá comprovar que está regularmente inscrito no registro público de empresas mercantis. Para tanto, basta apresentar junto com a petição inicial cópia do seu ato constitutivo devidamente registrado na Junta Comercial. Ocorre que, não raro, o requerente, apesar de ostentar a qualidade de empresário, tem o seu ato constitutivo arquivado no Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas, seja por erro no ato da criação da sua pessoa jurídica, seja pela falta de migração de registro, em relação às antigas sociedades civis de prestação de serviços constituídas antes do advento da teoria da empresa, positivada no CC de 2002. No primeiro caso, não há como negar a aplicação da vedação prevista no § 1º do art. 97 da LFRE. Entretanto, no segundo, não parece razoável considerar como sociedades irregulares, especialmente equiparando-as às sociedades em comum, aquelas que no ato da sua constituição se registraram perante o órgão competente, mas não promoveram a migração para a Junta Comercial após a entrada em vigor do atual CC. O credor domiciliado no exterior deverá prestar caução arbitrada pelo juiz, na forma do art. 83 do Código de Processo Civil (CPC) e do art. 97, § 2º, da LFRE, a fim de assegurar o pagamento das custas, dos honorários sucumbenciais e de eventual indenização ao requerido, se constatado que houve dolo no requerimento de falência julgado improcedente, consoante art. 101 da Lei de Falências. 7 TJSP, Apelação 0004092-38.2010.8.26.0000. Rel. Pereira Calças. Julgamento: 14/12/2010. Câmara Reservada à Falência e à Recuperação de Empresa. 24 De fato, são raros os requerimentos de falência formulados por credores estrangeiros, uma vez que normalmente eles se valem de sólidas garantias reais ou bancárias,com pouca vantagem no requerimento de falência do devedor em terras estanhas. De toda maneira, qual deve ser o valor da caução? Defendemos, na prática, 40% do valor do crédito, tendo por referência, embora sem embasamento legal expresso, os percentuais máximos para a fixação do ônus de sucumbência e da pena por litigância de má-fé. Credor com garantia real O art. 9º, III, “b”, do Decreto-Lei nº 7.661/45 proibia expressamente o requerimento de falência por credor com garantia real, salvo se ele renunciasse a garantia ou se provasse, antecipadamente, que ela era insuficiente para cobrir o crédito. Tal proibição sempre foi seguida à risca pela jurisprudência dos tribunais e pela doutrina, que destacam, ainda, a falta de interesse de agir. Ocorre que essa proibição não foi renovada e, ao revés, foi substituída pela eloquente afirmativa de que “qualquer credor” poderá requerer a falência do seu devedor, atendidas as demais exigências legais. Não há nenhuma ressalva em relação aos credores com garantia real. Parcela considerável da doutrina, a exemplo do eminente professor Carlos Henrique Abrão,8 ainda considera a falta de interesse como principal obstáculo para o conhecimento do requerimento de falência formulado pelo credor com garantia real, salvo, como antes, se ele renunciar a garantia ou provar que ela é insuficiente. Em sentido contrário, amparados na interpretação literal da expressão “qualquer credor”, muitos doutrinadores, a exemplo de Salomão e Penalva Santos,9 admitem o requerimento de falência por todos os credores que se sujeitam ao concurso (art. 83 da LFRE), inclusive com garantia real. Sobre o tema, trazemos à colação como importante precedente o caso da Churrascaria Porcão, cuja falência foi decretada pelo MM. Juízo da 7ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro a partir do requerimento de um credor hipotecário.10 Adotamos a tese favorável à legitimidade do credor com garantia real, hipotecária ou pignoratícia, para o requerimento de falência, aduzindo que o seu interesse de agir é incontestável, uma vez que, decretada a falência, ele terá prioridade de pagamento sobre o crédito fiscal, seja ele municipal, estadual ou federal, haverá limitação do privilégio do crédito trabalhista em 150 salários-mínimos, ocorrerá a cessação do aumento do endividamento trabalhista do devedor, bem 8 ABRÃO, Carlos Henrique. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. Coordenadores: Carlos Henrique Abrão e Paulo Fernando Campos Salles de Toledo. São Paulo: Saraiva, 2005. 254 p. 9 SALOMÃO, Luis Felipe; SANTOS, Paulo Penalva. Recuperação judicial, extrajudicial e falência: teoria e prática. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 84. 10 Processo nº 0411258-46.2014.8.19.0001. 25 como se preservará o patrimônio restante do devedor contra eventuais desvios, comuns no período de insolvência. Recentemente, porém, tivemos de nos manifestar em um requerimento de falência formulado por um credor fiduciário contra a renomada rede de lojas de móveis e de artigos de decoração conhecida como Toque a Campainha.11 A princípio, por possuir direito de propriedade, esse credor não estaria sujeito ao concurso da falência, em razão do art. 85 da LFRE, nem mesmo precisaria “habilitar” o seu crédito. Na oportunidade, citamos um único precedente do TJSP que, anulando a sentença de extinção do processo sem o julgamento do mérito, reconheceu a legitimidade e o interesse do credor fiduciário no pedido de falência, forte no argumento de que, em tese, decretada a falência, ele poderia renunciar a garantia e assim habilitar o seu crédito.12 Ainda não estamos totalmente convencidos. Credor tributário Há intensa discussão acadêmica sobre a legitimidade da Fazenda Pública para formular requerimento de falência do seu devedor empresário. Não há mais como negar que o crédito fiscal está sujeito ao concurso de credores estabelecido pela falência, tanto que o crédito fiscal está estrategicamente posicionado nos incisos III e VII do art. 83, assim como no inciso V do art. 84 da LFRE. As mudanças promovidas pela Lei nº 14.112/2020 foram extremamente profícuas, pois instituíram o incidente de classificação de crédito fiscal e previram expressamente a suspensão das execuções fiscais contra as massas falidas, como também dos respectivos prazos prescricionais. Feitas tais considerações, o fato é que o STJ, desde antes do advento da Lei nº 11.101/05, havia sedimentado o entendimento de que a Fazenda Pública não tem legitimidade para requerer a falência do contribuinte devedor, por ausência de previsão legal específica, característica marcante da atividade administrativa vinculada do agente público. Vejamos: PROCESSO CIVIL. PEDIDO DE FALÊNCIA FORMULADO PELA FAZENDA PÚBLICA COM BASE EM CRÉDITO FISCAL. ILEGITIMIDADE. FALTA DE INTERESSE. DOUTRINA. RECURSO DESACOLHIDO. I – Sem embargo dos respeitáveis fundamentos em sentido contrário, a Segunda Seção decidiu adotar o entendimento de que a Fazenda Pública não tem legitimidade, e nem 11 Processo nº 0079439-91.2019.8.19.0001, em trâmite perante a 1ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro. 12 TJSP, Apelação Cível nº 1067465-10.2017.8.26.0100. Relator: Araldo Telles; 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível – 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Julgamento: 24/06/2019; Registro em 25/06/2019. 26 interesse de agir, para requerer a falência do devedor fiscal. II – Na linha da legislação tributária e da doutrina especializada, a cobrança do tributo é atividade vinculada, devendo o Fisco utilizar-se do instrumento afetado pela lei à satisfação do crédito tributário, a execução fiscal, que goza de especificidades e privilégios, não lhe sendo facultado pleitear a falência do devedor com base em tais créditos (STJ, REsp 164.389/MG, Rel. ministro Castro Filho, Rel. p/ acórdão ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, 2ª Seção, Julgamento: 13/08/2003, DJ 16/08/2004, p. 130). Essa orientação continua firme na jurisprudência, mesmo após a entrada em vigor da Lei nº 11.101/05, conforme se constata pelo precedente abaixo: TRIBUTÁRIO E COMERCIAL – CRÉDITO TRIBUTÁRIO – FAZENDA PÚBLICA – AUSÊNCIA DE LEGITIMIDADE PARA REQUERER A FALÊNCIA DE EMPRESA. 1. A controvérsia versa sobre a legitimidade de a Fazenda Pública requerer falência de empresa. 2. O art. 187 do CTN dispõe que os créditos fiscais não estão sujeitos a concurso de credores. Já os arts. 5º, 29 e 31 da LEF, a fortiori, determinam que o crédito tributário não está abrangido no processo falimentar, razão pela qual carece interesse por parte da Fazenda em pleitear a falência de empresa. 3. Tanto o Decreto-lei n. 7.661/45 quanto a Lei n. 11.101/05 foram inspirados no princípio da conservação da empresa, pois preveem respectivamente, dentro da perspectiva de sua função social, a chamada concordata e o instituto da recuperação judicial, cujo objetivo maior é conceder benefícios às empresas que, embora não estejam formalmente falidas, atravessam graves dificuldades econômico-financeiras, colocando em risco o empreendimento empresarial. 4. O princípio da conservação da empresa pressupõe que a quebra não é um fenômeno econômico que interessa apenas aos credores, mas sim, uma manifestação jurídico-econômica na qual o Estado tem interesse preponderante. 5. Nesse caso, o interesse público não se confunde com o interesse da Fazenda, pois o Estado passa a valorizar a importância da iniciativa empresarial para a saúde econômica de um país. Nada mais certo, na medida em que quanto maior a iniciativa privada em determinada localidade, maior o progresso econômico, diante do aquecimento da economia causado a partir da geração de empregos. 6. Raciocínio diverso, isto é, legitimar a Fazenda Pública a requererfalência das empresas inviabilizaria a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, não permitindo a manutenção da fonte produtora, do emprego dos 27 trabalhadores, tampouco dos interesses dos credores, desestimulando a atividade econômico-capitalista. Dessarte, a Fazenda poder requerer a quebra da empresa implica incompatibilidade com a ratio essendi da Lei de Falências, mormente o princípio da conservação da empresa, embasador da norma falimentar. Recurso especial improvido (REsp 363.206/MG, Rel. ministro Humberto Martins, 2ª Turma, Julgamento: 04/05/2010, DJe, 21/05/2010). Esse entendimento foi prestigiado no Enunciado nº 56 da Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal (CJF). No entanto, além da expressa legitimidade conferida às Fazendas Públicas para requererem a convolação do processo de recuperação em falência pela Lei 14.112/2020, o Tribunal de Justiça de São Paulo, em precedente julgado no ano de 2020, deu provimento ao recurso da União Federal para reconhecer a legitimidade ativa da Fazenda Pública quando o pedido de falência do contribuinte estiver fundamentado na denominada execução frustrada, prevista no inciso II do caput do art. 94, da LFRE. Confira-se: FALÊNCIA. PEDIDO FORMULADO PELA UNIÃO FEDERAL. SENTENÇA QUE INDEFERIU A PETIÇÃO INICIAL E JULGOU EXTINTO O FEITO, SEM JULGAMENTO DO MÉRITO, POR FALTA DE INTERESSE DE AGIR DA FAZENDA PÚBLICA. HIPÓTESE DE ANULAÇÃO. PEDIDO DE FALÊNCIA COM BASE NO ART. 94, II, DA LEI Nº 11.101/05. CASO CONCRETO EM QUE RESTOU FRUSTRADA A EXECUÇÃO FISCAL. ESGOTAMENTO DOS MEIOS DISPONÍVEIS À UNIÃO PARA SATISFAÇÃO DO CRÉDITO. INTERESSE DE AGIR. HIPÓTESE QUE NÃO CONFIGURA VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA IMPESSOALIDADE E DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA. EFEITOS DE EVENTUAL DECRETAÇÃO DE FALÊNCIA RELEVANTES PARA A PRESERVAÇÃO DA LIVRE CONCORRÊNCIA, EM COMBATE AOS AGENTES ECONÔMICOS NOCIVOS AO MERCADO. FAZENDA PÚBLICA QUE SE SUBMETE AO CONCURSO MATERIAL DE CREDORES, E, PORTANTO, TAMBÉM TEM INTERESSE NO PEDIDO DE QUEBRA. APELAÇÃO PROVIDA PARA ANULAR A SENTENÇA. (TJSP; Apelação Cível 1001975-61.2019.8.26.0491; Relator (a): Alexandre Lazzarini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Rancharia - 1ª Vara; Data do Julgamento: 30/07/2020; Data de Registro: 31/07/2020) 28 Juízo competente Definido quem pode dar o pontapé inicial do processo falimentar, passemos ao estudo do juízo competente para conhecer tanto o requerimento de falência como o pedido de recuperação judicial ou extrajudicial do devedor empresário. Do ponto de vista legal, não há novidade sobre a questão, estando ela disciplinada no art. 3º da LFRE, que considera competente “o juízo do local do principal estabelecimento do devedor ou da filial de empresa que tenha sede fora do Brasil”. O problema está em definir o que é “principal estabelecimento”. Seria a sede designada no ato constitutivo, o local onde está a maior parte do ativo, o lugar onde funciona a diretoria ou a administração da empresa ou onde o devedor empresário explora a maior parte ou a parte mais relevante dos seus negócios? Evidentemente, a questão só ganha contornos de complexidade quando a devedora possui vários estabelecimentos, tal como uma rede de lojas de departamento ou uma grande construtora e incorporadora, com empreendimentos em diversas cidades. Advirta-se, desde o pórtico, que a competência ora analisada é definida por critérios funcionais, portanto, absoluta, não se prorrogando, nem mesmo pela teoria do fato consumado, conforme sedimentada jurisprudência do STJ: CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PROCESSUAL CIVIL. PEDIDO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL AJUIZADO NA COMARCA DE CATALÃO/GO POR GRUPO DE DIFERENTES EMPRESAS. ALEGAÇÃO DA EXISTÊNCIA DE GRUPO ECONÔMICO. DECLINAÇÃO DA COMPETÊNCIA PARA A COMARCA DE MONTE CARMELO/MG. FORO DO LOCAL DO PRINCIPAL ESTABELECIMENTO DO DEVEDOR. ART. 3º DA LEI 11.101/05. PRECEDENTES. 1. Trata-se de conflito de competência suscitado pelo JUÍZO DE DIREITO DA 2ª VARA DE MONTE CARMELO/MG em face do TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE GOIÁS, nos autos de pedido de recuperação judicial formulado por quatro empresas, em litisconsórcio ativo, com a particularidade de que cada uma delas explora atividade empresária diversa e de forma autônoma, inclusive com estabelecimentos próprios. 2. [...] a norma constante do artigo 3º da Lei 11.101/05 encerra regra de competência absoluta, afastando eventual alegação da existência de preclusão quanto à suscitação do conflito. [...] (CC 146.579/MG, Rel. ministro Paulo de Tarso Sanseverino, 2ª Seção, Julgamento: 09/11/2016, DJe 11/11/2016). 29 Embora, na prática, alguns juízos sustentem as suas competências a partir de diferentes critérios, defendidos muitas vezes por vertentes doutrinárias dissonantes e minoritárias, quando a discussão chega ao STJ é firme a orientação de que principal estabelecimento é aquele onde ocorre o maior volume de negócios, independentemente do local da sede prevista no ato constitutivo, do local onde está a maior parte do ativo imobilizado ou do local onde se situam a diretoria e os sócios controladores. Vejamos: AGRAVO INTERNO NO CONFLITO DE COMPETÊNCIA. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PRINCIPAL ESTABELECIMENTO DO DEVEDOR. 1. Esta Corte, interpretando o conceito de "principal estabelecimento do devedor" referido no artigo 3º da Lei nº 11.101/2005, firmou o entendimento de que o Juízo competente para processamento de pedido de recuperação judicial deve ser o do local em que se centralizam as atividades mais importantes da empresa. [...] (AgInt no CC 157.969/RS, Rel. ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 2ª Seção, Julgamento: 26/09/2018, DJe 04/10/2018). Contudo, como já alinhavado, há na doutrina entendimento diverso, e pelo menos um deles está calcado na respeitada posição de Trajano de Miranda Valverde, para o qual o principal estabelecimento é aquele em que se encontra a sede administrativa do devedor. Assim entendia porque a sede administrativa seria o “ponto central dos negócios, de onde partem todas as ordens, que imprimem e regularizam o movimento econômico dos estabelecimentos produtores”.13 Nada obstante, maior dificuldade se apresenta quando a atividade empresarial é pulverizada, em vários locais, por vezes em quase todo o território nacional, sem clara predominância por alguma cidade, como no caso de uma grande construtora e incorporadora de imóveis ou de uma companhia aérea, ou mesmo quando não há um local fixo para a exploração da atividade, como na hipótese de uma sociedade exploradora de derivados de petróleo, com concessões para vários campos de extração, ou de uma sociedade organizadora de grandes shows pelo País. Em hipóteses como tais, a jurisprudência tem oscilado entre o local designado como sede nos atos constitutivos ou o local onde funciona o centro de comando administrativo, ou seja, onde funciona a direção. Confira-se: CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PROCESSUAL CIVIL. PEDIDO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL AJUIZADO NA COMARCA DE CATALÃO/GO POR GRUPO DE DIFERENTES EMPRESAS. ALEGAÇÃO DA EXISTÊNCIA DE GRUPO ECONÔMICO. 13 VALVERDE, Trajano de Miranda. Comentários à Lei de Falências. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1955. 84 p. v. 3. 30 DECLINAÇÃO DA COMPETÊNCIA PARA A COMARCA DE MONTE CARMELO/MG. FORO DO LOCAL DO PRINCIPAL ESTABELECIMENTO DO DEVEDOR. ARTIGO 3º DA LEI 11.101/05. PRECEDENTES. 1. Trata-se de conflito de competência suscitado pelo JUÍZO DE DIREITO DA 2ª VARA DE MONTE CARMELO/MG em face do TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE GOIÁS, nos autos de pedido de recuperação judicial formulado por quatro empresas, em litisconsórcio ativo, com a particularidade de que cada uma delas explora atividade empresária diversa e de forma autônoma, inclusive com estabelecimentospróprios. [...]. 7. Considerando o variado cenário de informações que constam dos autos, notadamente a de que a ELETROSOM S/A é a maior sociedade do grupo, e que sua atividade é pulverizada pelo país, deve ser definido como competente o juízo onde está localizada a sede da empresa, ou seja, o juízo da Comarca de Monte Carmelo/MG. [...] (CC 146.579/MG, Rel. ministro Paulo de Tarso Sanseverino, 2ª Seção, Julgamento: 09/11/2016, DJe 11/11/2016). Não se pode deixar de mencionar um case de grande repercussão e que de certa forma serviu de orientação para os demais. Trata-se do Caso Sharp. Como cediço, a Sharp comercializava os seus produtos em todo o País, mas a sua diretoria ficava em São Paulo, assim como o seu maior volume de vendas, enquanto a única fábrica estava situada na Zona Franca de Manaus. Inicialmente, a concordata foi processada em São Paulo, a pedido da devedora, mas em razão de um pedido de falência distribuído em Manaus, o STJ, no julgamento do Conflito de Competência nº 37.736/SP, decidiu que a competência seria do local onde funcionava a fábrica, ou seja, Manaus. Há de se consignar que a alteração fraudulenta do estabelecimento empresarial, isto é, quando a mudança tiver por finalidade dificultar a ação dos credores, passou a ser considerada como um ato de falência, o que por si só já autoriza o requerimento da sua quebra, no juízo do local do antigo estabelecimento, conforme art. 94, III, “d”, da LFRE. Nos processos de recuperação judicial de grupo econômico, há de se perquirir qual o principal estabelecimento do grupo com um todo, na linha prevista no § 2º do art. 69-G da LFRE. Por derradeiro, com base no art. 6o, § 8º, da LFRE, a distribuição do pedido de falência ou de recuperação judicial ou extrajudicial previne a competência. 31 Pressupostos falimentares Como já adiantamos, para que seja decretada a falência, deve ficar comprovada nessa fase cognitiva a presença dos chamados pressupostos falimentares, assim entendidos: a) materiais: � legitimidade passiva e � insolvência. Obs.: impossibilidade de recuperação (nosso posicionamento). formal: � sentença de falência. Durante a tramitação do pedido de falência, o juiz deverá perquirir se todos os pressupostos acima destacados estão presentes. A ausência de qualquer um deles impede a sentença de quebra. Analisemos, pois, cada um desses pressupostos. Legitimidade passiva O art. 1º da LFRE foi muito preciso ao restringir a aplicação do novo regime jurídico da insolvência empresarial, ao dispor que: “Art. 1º Esta Lei disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, doravante referidos simplesmente como devedor”. Diante da literalidade do texto legal, somente o empresário individual (art. 966 do CC), a sociedade empresária (art. 982 c/c art. 966 do CC) e a empresa individual de responsabilidade limitada (Eireli) estão sujeitos à falência, pois o instituto é essencialmente empresarial.14 Estão excluídas desse regime, de pronto e por indução lógica, as sociedades simples, os empreendedores rurais que não possuírem registro na Junta Comercial, as pessoas jurídicas sem fins lucrativos, como associações e fundações, e as pessoas naturais que não exercerem, de fato e em nome próprio, atividade própria de empresário. Todos esses estão sujeitos ao procedimento de insolvência civil, disciplinado no CPC de 1973, no capítulo referente à execução por quantia certa contra os bens do devedor insolvente. Em relação ao empresário individual, três pontos devem ser abordados. O primeiro é que o empresário individual, no Brasil, é o titular da firma individual e com ela se confunde, ou seja, não 14 Há projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional pretendendo submeter as sociedades simples ao regime jurídico da insolvência empresarial. 32 podem ser consideradas duas personalidades distintas. A falência, portanto, é do empresário individual (pessoa natural), titular da firma individual (pessoa jurídica). Essa é a posição da jurisprudência: Na verdade, o que se tem é o redirecionamento da execução fiscal para a pessoa física responsável legal pela empresa à época do fato gerador e, agora, discute-se a possibilidade de utilizar como critério para a pesquisa de bens o CNPJ da firma individual do executado. Ou seja, não se pretende analisar fatos e provas, mas o reconhecimento de que no caso de firma individual não existe distinção entre a personalidade jurídica da pessoa jurídica e a da pessoa natural de seu titular, havendo, portanto, confusão entre o patrimônio de um e de outro, o que permitiria a pesquisa dos bens considerando-se o CNPJ da firma individual. Aliás, o próprio STJ já se posicionou no sentido de que a empresa individual é mera ficção jurídica, criada para habilitar a pessoa natural a praticar atos de comércio, com vantagens do ponto de vista fiscal, sendo que o patrimônio da empresa individual se confunde com o de seu sócio, conforme julgado a seguir: (fls. 233/236e) (STJ, ministra Relatora Assusete Magalhães. Decisão Monocrática no AgInt no Recurso Especial nº 1.397.766 – RS. 01/08/2017). Nesse sentido: TJ/MT, Ap. Cív. 92908/68, Quinta Câmara Cível, Des. Rel. Carlos Alberto Alves da Costa. Julgamento: 07/02/2007. O segundo ponto é o fato de ser possível a decretação da falência do espólio deixado pelo empresário individual, desde que o pedido seja feito em até um ano da data do óbito do empresário (art. 96, § 1º, in fine, da LFRE), fato raríssimo e que jamais presenciamos, mesmo após vários anos de atuação na seara falimentar. O último registro é sobre a possibilidade de decretação da falência do empresário individual menor de 18 anos, algo proibido no sistema anterior. Tanto o absolutamente incapaz, autorizado pelo art. 974 do CC, como o maior de 16 anos, emancipado por força do art. 5º, V, do CC, estão sujeitos à decretação da falência. Em relação à Eireli, sem adentrar com desnecessária profundidade nas questões atreladas ao Direito de Empresa, o fato é que ela pode ser constituída para explorar atividade empresarial ou não empresarial, o que implica a necessidade do exame concreto da sua natureza. O registro na Junta Comercial só terá natureza constitutiva da qualidade de empresário para aqueles que exploram atividade rural e, em outra linha, só terão mercantilidade forçada as pessoas jurídicas que se revestirem da forma de sociedade por ações. Assim, constatado que a atividade explorada por uma Eireli não é própria do empresário, por exemplo, funcionando 33 como um pequeno escritório de arquitetura, mesmo registrada na Junta Comercial, ela não estará sujeita à falência. Sem nos aprofundarmos no seu conceito, devemos considerar empresárias e, com isso, sujeitas à falência, todas as sociedades que explorem atividades de produção de bens, como as indústrias; de circulação de bens, como as concessionárias de veículos e as lojas de roupas; e de prestação de serviços, como as imobiliárias, os hotéis e as construtoras. Também serão consideradas empresárias as sociedades que explorem atividade intelectual, artística, literária ou científica quando a estrutura empresarial se sobrepuser à atividade, o que normalmente fica claro quando a atividade-fim não é exercida significativamente pelos sócios, mas, sim, por profissionais contratados.15 É o caso de escolas, laboratórios e hospitais. Ressalvados os casos de confusão patrimonial, defendemos a impossibilidade de litisconsórcio passivo nos requerimentos de falência, ainda que sejam devedores solidários. Entre outras razões de ordem processual, destacamos que a lei se refere ao devedor sempre no singular e que, quando quis admitir o litisconsórcio, foi expressa, ex vi do art. 94, § 1º da LFRE. Teoria
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