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DIREITO POSITIVO E CIÊNCIA DO DIREITO Muita diferença existe entre a realidade do direito positivo e a da Ciência do Direito. São dois mundos que não se confundem, apresentando peculiaridades tais que nos levam a uma conside ração própria e exclusiva. São dois corpos de linguagem, dois discursos linguísticos, cada qual portador de um tipo de orga nização lógica e de funções semânticas e pragmáticas diversas. Os autores, de um modo geral, não se têm preocupado devidamente com as sensíveis e profundas dissemelhanças entre as duas regiões do conhecimento jurídico, o que ex plica, até certo ponto, a enorme confusão de conceitos e a dificuldade em definir qualquer um daqueles setores sem utilizar notações ou propriedades do outro. São comuns, nes se sentido, definições de ramos do Direito que começam por referências ao conjunto de regras jurídicas e terminam com alusões a princípios e composições que a Ciência desenvolveu a partir da análise do direito positivo. Por isso, não é demais enfatizar que o direito positivo é o complexo de normas jurídicas válidas num dado país. À Ciên cia do Direito cabe descrever esse enredo normativo, orde nando-o, declarando sua hierarquia, exibindo as formas lógi cas que governam o entrelaçamento das várias unidades do sistema e oferecendo seus conteúdos de significação. O direito positivo está vertido numa linguagem, que é seu modo de expressão. E essa camada de linguagem, como cons trução do homem, se volta para a disciplina do comportamento humano, no quadro de suas relações de intersubjetividade. As regras do direito existem para organizar a conduta das pessoas, umas com relação às outras. Daí dizer-se que ao Direito não inte ressam os problemas intrassubjetivos, isto é, da pessoa para com ela mesma, a não ser na medida em que esse elemento interior e subjetivo corresponda a um comportamento exterior e objetivo. Toda a importância do direito posto, numa sociedade his toricamente considerada, ganha força e evidência sempre que nos lembramos dessa arguta observação: Altera-se o mundo físico mediante o trabalho e a tecnologia, que o potencia em resul tados. E altera-se o mundo social mediante a linguagem das nor mas, uma classe da qual é a linguagem das normas do Direito. Seja como for, a disciplina do comportamento humano, no convívio social, se estabelece numa fórmula linguística, e o direito positivo aparece como um plexo de proposições que se destinam a regular a conduta das pessoas, nas relações de inter-humanidade. O objeto da Ciência do Direito há de ser precisamente o estudo desse feixe de proposições, vale dizer, o contexto normativo que tem por escopo ordenar o procedimento dos seres humanos, na vida comunitária. O cientista do Direito vai debruçar-se sobre o universo das normas jurídicas, obser vando-as, investigando-as, interpretando-as e descrevendo--as segundo determinada metodologia. Como ciência que é, o produto de seu trabalho terá caráter descritivo, utilizando uma linguagem apta para transmitir conhecimentos, comu nicar informações, dando conta de como são as normas, de que modo se relacionam, que tipo de estrutura constroem e, sobretudo, como regulam a conduta intersubjetiva. Mas, ao transmitir conhecimentos sobre a realidade jurídica, o cien tista emprega a linguagem e compõe uma camada linguística que é, em suma, o discurso da Ciência do Direito. Tal discurso, eminentemente descritivo, fala de seu objeto — o direito positivo — que, por sua vez, também se apresenta como um estrato de linguagem, porém de cunho prescritivo. Reside exatamente aqui uma diferença substancial: o direito posto é uma linguagem prescritiva (prescreve comportamen tos), enquanto a Ciência do Direito é um discurso descritivo (descreve normas jurídicas). Tomada com relação ao direito positivo, a Ciência do Direito é uma sobrelinguagem ou linguagem de sobrenível. Está acima da linguagem do direito positivo, pois discorre sobre ela, trans mitindo notícias de sua compostura como sistema empírico. Entre outros traços que separam as duas estruturas de linguagem pode ser salientada a circunstância de que a cada qual corresponde uma lógica específica: ao direito positivo, a lógica deôntica (lógica do dever-ser, lógica das normas); à Ciência do Direito, a lógica apofântica (lógica das ciências, lógica alética ou lógica clássica). Em função disso, as valên cias compatíveis com a linguagem das normas jurídicas são diversas das aplicáveis às proposições científicas. Das pri meiras, dizemos que são válidas ou não válidas; quanto aos enunciados da ciência, usamos os valores verdade e falsidade. As proposições que o jurista formula sobre o direito positivo podem ser verdadeiras ou falsas. Paralelamente, há diferença importante no campo semântico e também no pragmático, bastando lembrar que as proposições normativas se dirigem para a região material da conduta, ao passo que as científicas simplesmente descrevem seu objeto, sem nele interferir. É inadmissível, portanto, misturar conceitos desses dois segmentos do saber jurídico, que têm métodos próprios e dis tintos esquemas de pesquisa e compreensão. Mantenhamos na memória esse critério distintivo de su perior relevância, porque diz com a natureza mesma do ob jeto de que nos ocupamos, além de marcar, com segurança, o tipo de trabalho que havemos de desenvolver: o direito po sitivo forma um plano de linguagem de índole prescritiva, ao tempo em que a Ciência do Direito, que o relata, compõe-se de uma camada de linguagem fundamentalmente descritiva.