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1 Disciplina: Introdução aos Estudos Históricos Autor: M.e Rangel Max Lima Vidal Revisão de Conteúdos: Marcos Vinicius Tavares Revisão Ortográfica: Esp. Juliano de Paula Neitzki Ano: 2019 Copyright © - É expressamente proibida a reprodução do conteúdo deste material integral ou de suas páginas em qualquer meio de comunicação sem autorização escrita da equipe da Assessoria de Marketing da Faculdade São Braz (FSB). O não cumprimento destas solicitações poderá acarretar em cobrança de direitos autorais. 2 Rangel Max Lima Vidal Introdução aos Estudos Históricos 1ª Edição 2019 Curitiba, PR Editora São Braz 3 Editora São Braz Rua Cláudio Chatagnier, 112 Curitiba – Paraná – 82520-590 Fone: (41) 3123-9000 Coordenador Técnico Editorial Marcelo Alvino da Silva Revisão de Conteúdos Marcos Vinicius Tavares Revisão Ortográfica Juliano de Paula Neitzki Desenvolvimento Iconográfico Juliana Emy Akiyoshi Eleutério FICHA CATALOGRÁFICA VIDAL, Rangel Max Lima. Introdução aos Estudos Históricos / Rangel Max Lima Vidal. – Curitiba: Editora São Braz, 2019. 85 p. ISBN: 978-85-5475-354-2 1. História. 2. Historiografia. 3. Escola de Annales. Material didático da disciplina de Introdução aos Estudos Históricos – Faculdade São Braz (FSB), 2019. Natália Figueiredo Martins – CRB 9/1870 4 PALAVRA DA INSTITUIÇÃO Caro(a) aluno(a), Seja bem-vindo(a) à Faculdade São Braz! Nossa faculdade está localizada em Curitiba, na Rua Cláudio Chatagnier, nº 112, no Bairro Bacacheri, criada e credenciada pela Portaria nº 299 de 27 de dezembro 2012, oferece cursos de Graduação, Pós-Graduação e Extensão Universitária. A Faculdade assume o compromisso com seus alunos, professores e comunidade de estar sempre sintonizada no objetivo de participar do desenvolvimento do País e de formar não somente bons profissionais, mas também brasileiros conscientes de sua cidadania. Nossos cursos são desenvolvidos por uma equipe multidisciplinar comprometida com a qualidade do conteúdo oferecido, assim como com as ferramentas de aprendizagem: interatividades pedagógicas, avaliações, plantão de dúvidas via telefone, atendimento via internet, emprego de redes sociais e grupos de estudos, o que proporciona excelente integração entre professores e estudantes. Bons estudos e conte sempre conosco! Faculdade São Braz 5 Sumário Prefácio ...................................................................................................... 8 Aula 1 – História: um campo de conhecimento ........................................... 10 Apresentação da aula 1 .............................................................................. 10 1.1 – Antes da cientificidade do conhecimento histórico ...................... 10 1.2 – Heródoto, Tucídides e Flávio Josefo ........................................... 13 1.3 – A Idade Média ............................................................................. 16 1.4 – A Idade Moderna ........................................................................ 17 Conclusão da aula 1 ................................................................................... 19 Aula 2 – O tempo: um dos objetos da história ............................................ 19 Apresentação da aula 2 .............................................................................. 19 2.1 – O tempo fora da história .............................................................. 20 2.1.1 – O tempo para Aristóteles ......................................................... 21 2.1.2 – O tempo para as Ciências Biológicas ...................................... 21 2.1.3 – O tempo cronológico e o tempo existencial .............................. 22 2.1.4 – A física e o tempo de Isaac Newton .......................................... 22 2.2 – Tempo linear e progresso ........................................................... 22 2.3 – Ciclos econômicos da história ..................................................... 23 2.4 – Temporalidade: domínio do historiador ...................................... 24 2.5 – Kant e as representações: desvalor da história ........................... 25 2.6 – Hegel e a temporalidade histórica ............................................... 25 2.7 – A cultura superior em Condorcet ................................................ 25 2.8 – A contribuição de Darwin ao etnocentrismo ................................ 26 2.9 – Heideger, Dilthey e os Annales ................................................... 27 2.10 – O tempo subjetivo da psicologia ............................................... 27 Conclusão da aula 2 ................................................................................... 28 Aula 3 – O ofício do historiador e as fontes históricas ................................. 29 Apresentação da aula 3 .............................................................................. 29 3.1 – Documentos escritos .................................................................. 29 3.1.1 – Cartas ...................................................................................... 30 3.1.2 – Testamentos ............................................................................ 31 3.1.3 – Circulares, jornais e revistas ................................................... 31 3.1.4 – Documentos judiciais ............................................................... 33 3.1.5 – Documentos do Estado ........................................................... 34 3.1.6 – Outras fontes ........................................................................... 34 3.2 – Fontes iconográficas .................................................................. 35 3.2.1 – Pintura ..................................................................................... 35 3.2.2 – Escultura e arquitetura ............................................................. 36 6 3.2.3 – Mapas ...................................................................................... 36 3.3 – Fontes orais ................................................................................ 38 Conclusão da aula 3 ................................................................................... 38 Aula 4 – História e Memória: a produção do conhecimento histórico ......... 39 Apresentação da aula 4 .............................................................................. 39 4.1 – História e Memória ...................................................................... 40 4.2 – A memória .................................................................................. 40 4.2.1 – Lugar ocupado e distância temporal ........................................ 41 4.2.2 – Relações desenvolvidas .......................................................... 42 4.2.3 – A memória está exposta ao inconsciente ................................. 42 4.2.4 – A memória e os sentimentos .................................................... 42 4.2.5 – Memória individual e coletiva ................................................... 43 4.2.6 – Memória e linguagem .............................................................. 43 4.2.7 – Memória e vida ........................................................................ 44 4.3 – A história ..................................................................................... 44 4.3.1 – A história e a instrumentalidade............................................... 45 4.3.2 – História e diluição .................................................................... 45 4.3.3 – História é ciência ..................................................................... 45 4.3.4 – História oral ............................................................................. 46 Conclusão da Aula 4 .................................................................................. 46 Aula 5 – A longa duração: contextualização do surgimento das escolas de teoria ..................................................................................................... 47 Apresentação da aula 5 .............................................................................. 47 5.1 – Contextos de longa duração: do século XV ao século XIX ......... 47 5.2 – Contribuições da Reforma Protestante ....................................... 48 5.3 – O trabalho neste contexto ........................................................... 49 5.4 – A usura e a acumulação ............................................................. 50 5.5 – A fé ............................................................................................. 51 5.6 – O Iluminismo ............................................................................... 52 5.7 – Finalmente, o século XIX ............................................................ 52 Conclusão da aula 5 ................................................................................... 53 Aula 6 – Produção historiográfica: a objetividade e neutralidade das fontes ......................................................................................................... 54 Apresentação da aula 6 .............................................................................. 54 6.1 – Os atores do Positivismo ............................................................ 55 6.1.1 – Auguste Comte (1798-1857) ................................................... 55 6.1.2 – Stuart Mill (1806-1873) ............................................................ 57 6.1.3 – Leopold Von Ranke (1795-1886) ............................................. 58 6.2 – O método Positivista ................................................................... 59 Conclusão da aula 6 ................................................................................... 61 7 Aula 7 – A crítica da fonte: o materialismo histórico-dialético ..................... 61 Apresentação da aula 7 .............................................................................. 61 7.1 – Figuras históricas do materialismo histórico-dialético ................. 61 7.1.1 – Friedrich Hegel (1770-1831) .................................................... 62 7.1.2 – Karl Marx (1818-1883) ............................................................. 64 7.1.3 – Friedrich Engels (1820-1895) .................................................. 66 7.2 – Materialismo histórico-dialético: o método .................................. 67 Conclusão da aula 7 ................................................................................... 69 Aula 8 – A cientificidade histórica dos Annales ........................................... 70 Apresentação da aula 8 .............................................................................. 70 8.1 – As gerações dos Annales ........................................................... 71 8.2 – A primeira geração ..................................................................... 71 8.3 – A segunda geração ..................................................................... 73 8.4 – A terceira geração ...................................................................... 74 Conclusão da aula 8 ................................................................................... 76 Índice Remissivo ........................................................................................ 78 Referências ................................................................................................ 82 8 Prefácio Olá, caro aluno e cara aluna. Bem-vindos à disciplina de Introdução aos Estudos Históricos. Iremos adentrar ao processo do saber que irá nos mostrar como é desenvolvido o modo de produzir história ao longo de alguns paradigmas direcionadores dos conhecimentos históricos. Trataremos da História enquanto campo do conhecimento científico, já que ela nem sempre foi considerada uma ciência. Vamos entender como foi esse processo que proporcionou ao historiador o ofício de cientista. Iremos ver sobre as fontes e o trabalho do historiador. Procuraremos compreender como é a sua relação enquanto cientista diante das diversas fontes que são tratadas para a produção do conhecimento histórico. Vamos às perguntas que podem auxiliar em como devemos entender esta disciplina, ou seja, qual direção deve nos guiar diante deste material: como se escreve ou se produz o conhecimento da história? Quem é o historiador? Qual a relação da história com o tempo? O que são e quais são as correntes historiográficas? O que é a historiografia? Quais são e como faço uso das fontes históricas? Todas essas indagações e outras que poderiam ser formuladas devem ser respondidas no desenvolvimento de nossas aulas a partir daqui. Mesmo a forma e, ainda, o como produzir o conhecimento histórico tem a sua trajetória que precisa ser concebida no tempo da história. É como se disséssemos: “Vamos entender como se produz o conhecimento histórico na história da história”; isso é o que simplifica o propósito da nossa disciplina, ou seja, compreender o processo histórico do fazer histórico e da produção do conhecimento ao longo da história. Iremos expor a forma de escrita e captação do conteúdo histórico ao longo das civilizações desde os Gregos até a contemporaneidade, priorizando as correntes e formas da produção historiográfica que mais influenciaram e impactaram no modo de operação dos conhecimentos históricos. Veremos as principais correntes historiográficas, como a Escola Positivista, que é precursora da história enquanto ciência, no processo de desenvolvimento do pensamento racional do século XIX. Compreenderemos as novas propostas sobre como 9 produzir o conhecimento histórico, empreendidas pelo Marxismo, com base no materialismo histórico-dialético, e também veremos a última grande escola que tem direcionado o modo de fazer história desde o início do século XX, a chamada Escola dos Annales, que propõe dar voz aos “esquecidos” da história. Ao propormos a compreensão das Correntes Historiográficas, não vamos aprofundar em sua teoria de maneira específica, finalidade esta que será alcançada nas disciplinas de Teoria da História, mas precisamos, neste momento, compreender o que são essas correntes e como elas são importantes para a história enquanto campo científico. A exposição das correntes historiográficas nesta disciplina é um primeiro passo para compreendermos como elas colaboraram de maneira fundamental para a cientificidade do conhecimento histórico, ao propor métodos estruturados para que o historiador possa trabalhar com as fontes e objetos, “elevando” a história a campo de conhecimento científico. Esta disciplina é fundamental na formação do historiador como licenciado, pois com ela é possível entender a vida humana dentro de seu contexto social em um dado tempo histórico. A priori, esses são os caminhos nos quais iremos trilhar, para que possamos agir como historiadores segundo a corrente historiográfica que mais se adequar ao nosso perfil de trabalho. De antemão, faço-lhe a seguinte recomendação: não se preocupe em se apegarpor quaisquer correntes historiográficas para direcionar seu modo de operação na história. Mas, nesta disciplina, abra sua mente ao máximo, para compreender todas as correntes e, quando estiver mais adequado ao processo de manuseio da história, escolher quais caminhos teóricos trilhar enquanto historiador. Um grande abraço, e vamos lá! 10 Aula 1 – História: um campo de conhecimento Apresentação da aula 1 Olá, caro aluno e cara aluna. Sejam bem-vindos à primeira aula da disciplina. A partir de agora, vamos compreender quem é o historiador, como ele tem atuado ao longo da história humana, qual sua importância e como ele vem se transformando ao longo do tempo. Veremos de maneira sucinta a atuação de homens que hoje são tidos como historiadores, partindo do período grego, caminhando para alguns personagens historiográficos em Roma, no contexto de ascensão do cristianismo e ainda saltaremos para dentro do teocentrismo histórico da Idade Média. Em seguida, veremos um novo modo de pensar a história, a partir do processo conhecido como Renascimento, sob a perspectiva de que abrirá as portas para a revolução científica e consequentemente viverá seu apogeu com a ciência moderna, em que se busca a elevação das ciências humanas. Esse processo de exposição da aula tem como objetivo auxiliar na compreensão temporal linear de como houve a construção da história e da própria historiografia, sem que necessariamente a história fosse tratada como uma ciência ou campo de conhecimento disciplinar, como iremos conhecer e vivenciar a partir do século XIX. Boa aula! Importante A historiografia se ocupa da forma como a história é produzida, quais as correntes teóricas que direcionam suas ferramentas analíticas e produção do conteúdo histórico. 1.1 Antes da cientificidade do conhecimento histórico A partir de agora, nossa preocupação será em definir o que é história. Ao longo do tempo, no que tange à produção do conteúdo histórico, os autores e cientistas que empreenderam essa caminhada tiveram a preocupação em definir 11 o que de fato pode ser concebido e definido como história, como primeira questão metódica, para balizar o serviço e a atividade do historiador. Segundo o historiador da Escola dos Annales Marc Bloch (1974), a história é o estudo do ser humano no tempo e, portanto, o historiador é aquele que se ocupa de conhecer e documentar essa história de forma metódica. Antes, porém, de adentrarmos nas representações de história e historiador, que são validadas a partir do século XIX, com a “elevação” da história ao reconhecimento enquanto ciência, vamos nos valer dos conceitos de história e historiador, considerados quase que informais, pois se encontram dissolvidos dentro dos períodos históricos. Ao pensarmos nas primeiras narrativas que representam, de alguma forma, uma produção historiográfica, guardadas as devidas proporções no que tange ao rigor científico proposto no século XIX, temos que a história, para o contexto da Grécia Antiga, era a história dos mitos, das narrativas heroicas e dos representantes das origens gregas que se encontram no interior dos poemas Ilíada e Odisseia. Essas são produções históricas sobre o passado heroico da civilização grega em que há a exposição da relação dos homens com o processo de construção social, e a relação dos homens com o transcendente mítico, personificados pela sua deidade. Vocabulário Deidade: diz respeito à divindade. É comum encontrarmos na historiografia que esses textos são poemas. Caso sejam, a poesia pode ter sido um dos primeiros meios ocidentais de se produzir a história. A priori, quem compilou esses poemas de Ilíada e Odisseia foi Homero ou os homéridas. Homero é tido como o grande responsável por compilar oralmente o conteúdo dessa poesia histórica. Expomos os dois termos devido à existência de duas compreensões sobre esse personagem da historiografia. A primeira é a probabilidade de Homero ter de fato sido um homem, que se encarregou de transmitir o passado micênico grego, oralmente para gerações posteriores até o momento que fora compilado de forma escrita. 12 Outra interpretação traz a possibilidade de ter havido os homéridas: uma função social no passado grego que se encarregava de garantir a transmissão oral do passado da Grécia. Para que possamos compreender como seriam esses homéridas, vamos recorrer didaticamente ao exemplo da realidade das tribos indígenas. Nessas tribos existe um personagem patriarca, às vezes investido na figura do pajé que é, entre outros aspectos, responsável por garantir que as tradições das tribos vão ser apreendidas pelas gerações ascendentes e vindouras. Esse processo ocorre por meio da transmissão oral do conhecimento cultural acumulado. Importante Muitas tribos indígenas vêm aprendendo, aprimorando e intensificando o processo de construção de sistemas alfabéticos escritos de suas próprias línguas de origem. Uma grande parte das sociedades indígenas brasileiras se mantém como sociedades de tradição exclusivamente oral, mas uma outra parte adquiriu recentemente a prática alfabética. Os indígenas têm adquirido a prática alfabética tanto em português como em suas línguas nativas (GUESSE, 2011). Dessa forma, alguns especialistas da historiografia defendem que os homéridas seriam profissionais da tradição oral grega responsáveis por garantir essa transmissão do passado grego aos mais infantis e assim por diante. Por isso, o formato dos poemas e a forma apoteótica assemelham-se ao processo de construção proposital de um passado glorioso, com heróis que atendam a magnitude dessa glória. Vocabulário Apoteótica: diz respeito à apoteose, que significa endeusamento de algo ou de alguém. 13 1.2 Heródoto, Tucídides e Flávio Josefo Ainda no contexto de uma possível historiografia dos gregos, temos outro grande personagem, Heródoto. Representado pela arte renascentista com seus pergaminhos às mãos, viveu entre 485-425 a.C. e se destacou na escrita da história da invasão dos persas na Grécia. Foi reconhecido como um dos primeiros a usar para esse perfil de trabalho literário o termo em grego historie, que originalmente faz referência à “pesquisa”. Apesar da demora no reconhecimento da história enquanto um campo científico do saber, o termo usado por Heródoto já expressava um trabalho árduo de empreender-se no campo da pesquisa para que houvesse o conhecimento sobre o passado. Heródoto. Fonte: https://pixabay.com/pt/her%C3%B3doto-a-est%C3%A1tua-de-fil%C3%B3sofo- 1211819/ Para alguns historiadores, Heródoto subverteu a originalidade de algumas fontes, exagerando a sua precisão e conteúdo e, ainda, ampliando, possivelmente, o espaço territorial pelo qual percorreu no propósito de conhecer sobre o passado. Certo é que Heródoto tem sido representado como pai da História, mas uma história relegada “à periferia” do conhecimento. Ou seja, não havia nenhum tratamento específico com relação à sua produtividade ou seus métodos de produção. Por outro lado, havia nesse período em que Heródoto viveu poucas áreas do saber que reconhecessem mais especificamente seu 14 rigor, sobretudo a retórica e as ciências da saúde e da botânica. Para alguns, porém, Heródoto ainda foi o pai da historiografia. Outro escritor grego importante no processo historiográfico no tempo é Tucídides. Tucídides viveu entre 460-400 a.C. e foi responsável por documentar em sua época sobre a Guerra do Peloponeso. Enquanto Heródoto, para muitos, foi importante para a historiografia, pensando o formato da escrita, Tucídides foi responsável, para alguns, pelo processo de construção do rigor metodológico para a construção do conhecimento e conteúdo histórico. Há ainda outros nomes que podemos aprofundar por meio de pesquisas. Aqui, limitar-me-ei emcitá-los: Posidônio, Políbio, Hecateu de Mileto, Xenofonte e Éforo. Tucídides. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Tuc%C3%ADdides#/media/File:Thucydides-bust- cutout_ROM.jpg Podemos inserir, dentro de perspectivas similares que corroboram para uma forma de exposição histórica, o conteúdo do complexo de narrativas bíblicas ramificadas no judaísmo. Estas foram responsáveis por conduzir uma produção da história do homem desde sua origem, mas que a partir da perspectiva profissional do ofício do historiador se enquadram no campo da produção mítica, da mesma forma em que estão enquadradas as produções de Ilíada e Odisseia. Concomitante à produção historiográfica bíblica, há, em certa medida, uma mudança na análise do conteúdo bíblico, a partir, sobretudo, da ascensão do cristianismo. Uma importante personagem da historiografia para esse processo foi Flávio Josefo. 15 Flávio Josefo. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Fl%C3%A1vio_Josefo#/media/File:Josephusbust .jpg Flávio Joséfo nasceu em 37 d.C e pôde acompanhar in locus o efeito da ascensão do cristianismo a partir da igreja primitiva, a releitura do judaísmo pelos cristãos e, ainda, verificou presencialmente o processo de invasão das tropas de Vespasiano, responsáveis por destruírem Jerusalém. Possuía nacionalidade judaico-romana e era membro sucessório de uma importante família no contexto do Império Romano. Seu nome em hebraico é Yossef Ben Mattiyahm. Seu falecimento se deu no ano 100. Por descrever alguns fatos históricos, vivenciados cotidianamente, foi responsável por desenvolver um conhecimento histórico participativo. A pesquisa participativa é hoje um importante recorte do método de pesquisa das ciências humanas, em que o pesquisador vivencia na pele as contradições do objeto pesquisado. Guardadas as devidas proporções, Flávio Josefo teve significativa importância para registros que nos permitem compreender esse processo envolto no Império Romano e ascensão do cristianismo. 16 1.3 A Idade Média No contexto da Idade Média, temos significativas mudanças no campo da produção que se destina ao conteúdo histórico. Concentrada nos monastérios e em figuras da vida religiosa, a história, nesse momento, é uma história teocêntrica. As relações sociais e a organização dos fatos históricos, por parte do historiador, estão fundamentados na vontade de Deus e, mesmo as discussões mais incisivas sobre o tempo histórico, como fez Santo Agostinho, parte de Deus como princípio central – Deus é o motor da história, o dominante da história. Essa história, muitas vezes, estava sendo produzida dentro dos monastérios, e seus precursores são vinculados diretamente à vida sacra. Como exemplos, temos Gregório de Tours (538-594), historiador galo- romano – viveu na antiga região da Gália, mas possui laços diretos com os descendentes do império Romano – ficando conhecido como o Bispo de Tours. O historiador Jacques Le Goff se utiliza de diversas produções de Gregório para compreender, na narrativa, o processo de construção do mundo feudal a partir das dinastias merovíngias. A principal contribuição de Gregório para a historiografia foi a sua obra Historia Francorum, obra responsável por relatar diversas personagens do processo de construção da Europa feudal, dentro das dinastias merovíngias e carolíngias, que circunscrevem aos Francos. Estátua de São Gregório no Museu do Louvre, na França. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Greg%C3%B3rio_de_Tours#/media/File: Gregory_of_Tours_cour_Napoleon_Louvre.jpg 17 Outro expoente desse período é João de Bicaro (540-631) ou São João Godo de Valclara – Bispo de Girona, que fundou o mosteiro Bicaro –, também clérigo da igreja, que produziu uma história teocêntrica, a partir de Deus como governante das ações humanas. Esse conjunto de historiadores não oficiais, no sentido da história enquanto ciência, foram fundamentais para um processo de afirmação da igreja na Europa Feudal. Eles são responsáveis por construírem as histórias dos santos católicos e as figuras heroicas dos clérigos que, de geração em geração, aumentavam o seu poder simbólico no contexto da Idade Média. Esse processo empodera de tal forma a igreja que ela adentra o ano 1000 buscando, com a Reforma Gregoriana, a infalibilidade papal e ser uma igreja que jamais devesse ter suas verdades questionadas. Verdades que muitos desses historiadores ajudaram a construir. Ainda no contexto da Idade Média, podemos citar outros nomes que, necessariamente, não foram historiadores, mas que suas discussões filosóficas foram fundamentais para o maior problema da história: a relação do homem com o tempo. Temos o clérigo Santo Agostinho, que empreende reflexões fantásticas que contribuem para a importância da história, cuja centralidade de algumas reflexões está justamente na relação do homem com o tempo e em seu processo de construção social, que são objetos motores do trabalho dos historiadores. Há ainda as contribuições de Santo Tomás de Aquino, com sua magna obra Summa Theologica, que também irá empreender discussões sobre a relação do homem com o tempo, responsáveis por auxiliar a discussão historiográfica. 1.4 A Idade Moderna Avançando para o contexto da Modernidade, na virada do século XV e XVI, o processo que culminou no movimento renascentista vai impactar no modo como o ser humano enxerga e constrói a própria história. Agora, o pensamento racional, evocado do glorioso passado grego, permeia a vida renascentista. Essa racionalidade grita pela valorização do homem como ser responsável pelo próprio tempo e construtor da própria trajetória a partir das relações sociais. A historiografia renascentista vai então se preocupar com a história do indivíduo, centrada nas personagens da vida urbana, que revelam a história do novo e do 18 avanço, e passa a conceber o processo de construção historiográfico como ferramenta educativa. Concomitante a esse processo, historiadores passam a ser compiladores, construtores de enciclopédias que se tornam verdadeiros baús de um conhecimento da vida do homem e produzido pelo homem. Para alguns historiadores, o período da Renascença para a história significa o desabrochar de um espirito científico que será plenamente vivido na modernidade. Concebendo o período dos séculos XIV, XV e XVI como momento de ruptura com o obscurantismo religioso da Idade Média, cultuando o passado glorioso do pensamento racional que irá proporcionar um boom de revoluções científicas em diversas áreas – inclusive nas ciências sociais, com notoriedade para História, Sociologia, Geografia, ciências que irão tomar proporções inéditas na modernidade. Aqui também é possível enxergar a contribuição interdisciplinar no processo de desenvolvimento tanto historiográfico quanto para todo o campo cientifico, sobretudo quanto aos artistas, que terão papel fundamental no processo de construção da história do indivíduo, retratando a partir de agora, sob a égide do humanismo, a esfera subjetiva e objetiva dos objetos de pesquisa historiográficos, Nesse sentido, a arte renascentista irá ser um modo de operação que permite a construção de sujeitos históricos antes não conhecidos, cujas imagens eram inexpressivas. Basta percorrer a Velha Europa para notar a quantidade de artes renascentistas que se revelam verdadeiras obras historiográficas, caracterizando personagens históricos. Assim, a modernidade é o auge desse processo que, com o desenvolvimento técnico, permite ao historiador se munir de outras fontes e, principalmente, desenvolver o método de pesquisa, buscando “elevação” a título de ciência, tais quais as ciências exatas e biológicas. Esse movimento irá resultar em três grandes escolas do pensamento historiográfico que coexistem na contemporaneidade da historiografia– encontramos um pouco de cada no modo de produzir história, na atualidade. Veremos, nesta disciplina, a contribuição de cada uma dessas correntes no processo de construção das ciências sociais com ênfase para a história. 19 Conclusão da aula 1 Chegamos ao final da nossa primeira aula. Aprendemos sobre o caminho de uma construção do conteúdo histórico sem que, necessariamente ou, de forma oficial, houvesse um debate com relação à historiografia enquanto construção de método de produção do conteúdo histórico, a concebendo como um ramo do conhecimento científico. Caminhamos a partir da Grécia até a modernidade, citando e expondo ao aluno alguns personagens de cada período, proporcionando a chance de identificação visual com cada etapa do processo. Com essa exposição, esperamos subsidiar nosso aluno com uma base intelectual que auxilie e facilite a compreensão das próximas etapas dessa disciplina, que envolve uma discussão mais técnica do processo de construção historiográfico, problematizando correntes historiográficas e construção de métodos. Atividade de Aprendizagem No processo de compreensão a partir da imagética, pesquise sobre o museu do Louvre na França e descreva a sua importância para a historiografia. Aula 2 – O tempo: um dos objetos da história Apresentação da aula 2 Olá, aluno(a). Seja bem-vindo(a) a nossa segunda aula. Vamos buscar expor sobre um debate inacabado, devido ao seu contínuo movimento, ou seja, a sua constante necessidade de transformação. Vamos expor sobre o tempo. Problema singular para a historiografia e objeto de debate de outras ciências, a concepção de tempo, de que se mune o historiador no processo de análise e narrativa do seu objeto, é determinante para os resultados do seu trabalho. 20 Para que o trabalho do historiador se desenvolva da forma mais plena possível, é necessário pensar em outros objetos que envolvem seu ofício. Certamente, porém, devemos a priori pensar que seja qual for esse objeto, sempre haverá para o ofício do historiador a preocupação fundamental de quando e onde esse objeto está enquadrado. Então, para o processo de construção científica do conhecimento histórico, o tempo é objeto, mas também compõe a metodologia. Nesse sentido, esta aula é de suma importância para a formação do historiador, sobretudo como produtor de pesquisas e conhecimentos historiográficos. Para o historiador que irá focar no ensino, tende a ser menos influente, podendo se limitar ao conhecimento informativo das diversas leituras e concepções temporais. Por outro lado, para o profissional de história que irá empreender no campo da pesquisa historiográfica, a forma com a qual ele concebe o tempo direcionará seus trabalhos, a relação com as fontes, a forma com a qual ele faz a leitura dos fatos e demais aspectos. Bons estudos! Cada ser humano se relaciona com o tempo de forma diferente. Fonte: https://image.freepik.com/fotos-gratis/passe-segurar-um-cronometro_53876- 24904.jpg 2.1 O tempo fora da história O tempo, apesar de ser fundamental para o trabalho do historiador, não se limita a um problema da história. Desde a antiguidade da Grécia, passando para o período clássico, os racionais do tempo e da sociedade já se 21 preocupavam com a forma com a qual os homens se relacionam com o tempo e como o concebemos. Pensemos filosoficamente a indagação: o que é o tempo? 2.1.1 O tempo para Aristóteles O filósofo clássico Aristóteles (384-322 a.C.), tido como um dos responsáveis pelo método científico, se preocupou com o tempo e sua concepção para pensar as relações sociais e existenciais da humanidade. Ao debruçar-se sobre o problema do tempo, Aristóteles faz a observação de que, antes, para pensarmos o tempo, precisamos existencialmente admitir que existe o movimento. Aristóteles vai desenvolver uma justa relação entre tempo e movimento. Ele expõe que o tempo é perceptível pela concepção do movimento por meio das transformações perceptíveis pelo homem vivente nas diversas esferas da sua existência. Elas permitem-lhe experimentar o fato de que o tempo está de alguma forma caminhando. Ainda dentro da concepção aristotélica, essa percepção vai balizar as relações do homem com o tempo, tanto no seio da vida social quanto no seio da vida física. 2.1.2 O tempo para as Ciências Biológicas As correntes de pensamento mais vinculadas às ciências biológicas, como, por exemplo, a psicologia, irão compreender duas formas temporais, correlatas à existência biológica: existência física do ser e a existência da pisque desse mesmo ser. Nesse sentido, as ciências biológicas afirmam o tempo enquanto uma percepção sensorial, não sendo uma criação intelectual do ser humano. Assim, o tempo é uma experiência do meio corpóreo experimentando algum tipo de passagem, correlato às condições físicas. A evidência desse conceito temporal é presente no processo natural de envelhecimento humano. 22 2.1.3 O tempo cronológico e o tempo existencial Há, ainda com relação à concepção de tempo, o tempo cronológico (esse sim dotado de uma convenção humana) e o tempo existencial, ou seja, o tempo que a psique do ser humano consegue captar, perceber. No caso do tempo cronológico, ele é instituído de acordo com as condições e objetivos da sociedade em um dado período. Um segundo adendo ao tempo cronológico é que ele vem para organizar funções e atividades específicas da vida social do ser humano. Ambas as concepções encontram harmonização nas divisões temporais de semear e colher, de paz e de guerras. Essas perspectivas são encontradas em momentos da construção historiográfica sem que fosse dada como uma ciência mitológica propriamente dita. 2.1.4 A física e o tempo de Isaac Newton Ao ingressarmos no contexto que emerge as bases da modernidade, com profundo apego ao conhecimento científico e metódico a partir do desenvolvimento da técnica propriamente dita, temos a física, que também irá se ocupar de definir e questionar sobre a unidade temporal, ou seja, sobre o tempo. O que nos importa destacar está na construção de Isaac Newton (1643- 1727). Ao escrever, no ano de 1687, a obra Philosophiae naturalis principia mathematica (Princípios da Matemática da Filosofia Natural), definiu o tempo absoluto verdadeiro e matemático pela sua própria natureza, por si próprio. Ou seja, o tempo possui uma objetividade que independe de quaisquer fatores da vida humana, que deve e pode ser quantificado na natureza. Esse tempo é a medida para o movimento em um determinado espaço. Ele dividiu esse tempo em relativo e absoluto. O absoluto é o existente na concretude da natureza. O relativo é aquele que percebemos de acordo com o movimento no espaço. 2.2 Tempo linear e progresso O princípio temporal de Isaac Newton foi importante para a escola positivista da história no que tange à organização de uma lógica temporal, linear e progressista. Essa perspectiva foi fundamental para uma produção 23 historiográfica, que labutava em fazer o hoje ser superior ao ontem e, por isso, construir uma perspectiva de progresso. No seio da vida cotidiana do ser humano, essa percepção sobre o tempo provocou uma serie de complicações utópicas no dia a dia na medida em que esse conceito passou a se afirmar no interior do senso comum. O ser humano, pois, ignorantemente se convenceu que necessariamente o hoje deve ser melhor que ontem e que amanhã será melhor que hoje. Há a consciência, porém, de que esse processo não ocorre dessa forma. Diametralmente, a vida nos conduz a descaminhos que nos mostram que hoje podemos fatalmente experimentar sensações e fatos que culminarão em um retrocesso de muitos fatores da nossa cotidianidade, colocando por terra essa percepção de progresso no tempo. É claroque o fundamento dessa concepção está assentado no tecnicismo que as disciplinas matemáticas produzem nesse contexto. A técnica incorporou com demasia precisão a capacidade de desenvolver melhores condições por meio de uma linearidade progressista, mas, infelizmente, essa realidade não se aplica ao tempo relacionado à vida humana em sua psique e na sua objetividade histórica. Na história propriamente dita, essa linearidade matemática e progressista cria a percepção de que a produção do conteúdo histórico deve acontecer dentro da organização com começo e fim – uma produção historiográfica cujo conteúdo deve caminhar para uma definição, dando em determinado momento a sensação de que o problema foi definido, resolvido, atendendo a perspectiva solucionadora dessa época, em que se depositava na construção racional da ciência toda a possibilidade de solução. Por outro lado, devemos fazer o seguinte alerta nesse processo de formação da história: as ciências sociais, de uma maneira geral, não possuem quaisquer possibilidades de trazer ao seio da sua produção a competência solucionadora no processo de fazer da história humana, sobretudo com o ser humano se tornando o dono de seu fazer. 2.3 Ciclos econômicos da história Com o processo crescente do sistema capitalista pautado na mercadoria de todas as espécies, as teorias econômicas também vão contribuir para uma 24 percepção sobre o tempo. Isso irá ocorrer com a retomada dos ciclos temporais aplicados à noção de ciclos econômicos. Ou seja, assim como a natureza possui ciclos produtivos (do arroz, da soja, do milho, etc.), a economia e o tempo do mundo capitalista também possuem e acompanham a lógica dessa produtividade, sendo igualmente cíclicos. Esse processo vai ocorrer com mais força no contexto do século XX, contribuindo inclusive para a quantificação dos dados para a produção historiográfica, em que cada vez mais as ciências sociais, de modo geral, apelarão aos dados quantitativos como o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) para construir a narrativa histórica que convém ao objeto e à capacidade do historiador. Por isso, nesse momento encontramos historiografias publicando obras e definindo recortes temporais pela produção: sociedade do café, ciclo histórico do açúcar, entre outros que remetem ao ciclo de um sistema produtivo. 2.4 Temporalidade: domínio do historiador As temporalidades históricas, por sua vez, podem ser entendidas como um passo significativo para que o tempo fosse cada vez mais propriedade e domínio do historiador. Paul Ricoeur (1976), ao tratar do tempo no contexto da temporalidade histórica coloca este como um processo social intuitivo que progride com o amadurecimento psicológico do sujeito que o percebe. Ou seja, para efeito da temporalidade histórica, o historiador está refém da maturidade e da forma que percebe aquele processo. Nesse sentido, para a história enquanto campo científico, é o empoderamento do historiador frente ao tempo que determinaria seu domínio. A partir desse momento, parece haver um processo de conscientização de que o tempo histórico e a forma com a qual o historiador lida com seu objeto ocorrem com alguma medida de subjetividade do historiador. Isso ocorre na medida em que a percepção do historiador pode ser influenciada pelo seu próprio contexto ou condição existencial e ainda que não perceba influenciar na escolha do objeto, em como tratá-lo, conflitando inclusive com a tese positivista da neutralidade do pesquisador sobre o objeto. 25 2.5 Kant e as representações: desvalor da história Essa relatividade quanto à temporalidade na história e ao posicionamento frente ao objeto aumenta na medida em que Immanuel Kant (1724-1804), em sua obra Kritik der reinen Vernunft (Crítica da Razão Pura) (1781), estabelece que o homem jamais consegue apreender o problema em sua totalidade. Dirá que o que concebemos são representações que produzimos do concreto, mas jamais conhecemos o concreto propriamente dito. Essas representações, por sua vez, são permitidas pelos sentidos que captam todo o processo. O problema posto por Kant, para a historiografia é, dessa forma, que tudo que for produzido pela história não passa de representações, caindo em uma linha tênue com a inverdade. 2.6 Marx e Engels e a temporalidade histórica A proposta de como pensar o tempo e tudo o que é produzido em um dado contexto ocorre a partir de diferentes perspectivas. O filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) propõe o idealismo absoluto, cuja ideia central era a de que o mundo, finito, era um reflexo da mente – a consciência humana criaria a realidade. Esta, sozinha, era verdadeiramente real. A partir dele e em contraponto a ele, Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) propõem o materialismo histórico-dialético, baseando-se no argumento de que a história resulta de condições materiais, e não de ideias – a realidade criaria a consciência humana. Esse procedimento com relação ao tempo histórico analisa as condições de um determinado tempo a partir das mudanças nas condições materiais do ser humano, provocadas, sobretudo, pelo trabalho. Ou seja, se pretende entender aquele dado período, sua inércia ou mesmo suas transformações, deve-se partir das relações sociais e materiais do ser humano. 2.7 A cultura superior em Condorcet Novamente mais próximo de uma produção positivista e etnocêntrica da história, temos a temporalidade diagnosticada e debatida por Marie Jean Antoine 26 Nicolas de Caritat (1743-1794), conhecido como Marquês de Condorcet. Sua proposta é que o tempo histórico deve ter sua análise a partir da cultura. Essa proposta cultural em nada se assemelha às propostas contemporâneas. Diz respeito a uma análise progressiva das sociedades a partir do seu conteúdo cultural, determinando na linearidade do tempo que uma cultura no passado é sinônimo de atraso, enquanto o presente é uma cultura social complexa e sinônimo de progresso, que deve ser inclusive seguido por outras nações como modelo de progresso. Essa cultura etnocêntrica foi fundamental para a historiografia que se encarregou de produzir um conteúdo histórico eurocêntrico, como se as bases da sociedade europeia fossem sinônimo de progresso, havendo a necessidade de estudarmos o tempo a partir delas e aprender com elas o caminho do progresso. 2.8 A contribuição de Darwin ao etnocentrismo Concomitante a essa visão de temporalidade progressista da história, ainda houve um adendo que auxiliou no processo de surgimento da Escola metódica dita positivista, o processo de seleção evolucionista da história, extraída justamente da tese de Charles Darwin (1809-1882) sobre as espécies. Essa “simbiose” gerou no positivismo de August Comte (1798-1857) a necessidade de se buscar uma história cuja narrativa se encarregasse de contar a história da evolução das nações a partir de leis que deveriam balizar ou regular o desenvolvimento humano. Veremos mais à frente as especificidades da escola metódica, mas podemos salientar que, pelo fato de ter se desenvolvido simultaneamente enquanto história e sociologia, ela busca parâmetros regulatórios para a condução da história e da sociedade, no sentido de criar um método que, uma vez adotado, no tempo, poderá te conduzir ao mesmo estágio de progresso ou evolução do outro. São as receitas de bolo para o progresso da humanidade no campo historiográfico. Somado a isso, ainda temos a contribuição de Leopold Von Ranke (1795-1886), que irá supervalorizar o Estado Nacional, em um determinado estágio de progresso comparado a outro menos evoluído. Há ainda nessa valorização do Estado as questões correlatas à construção dos heróis 27 nacionais. No Brasil, por exemplo, essa perspectiva influenciou na construção dosheróis brasileiros do período da Ditadura Militar. 2.9 Heideger, Dilthey e os Annales Influenciando a temporalidade como compreensão do historiador, temos a contribuição de Martin Heideger (1889-1976) e de Wilhelm Dilthey (1833- 1911), que formularão temporalidades desenvolvidas no interior da Escola dos Annales. Heidegger refuta a tese de uma temporalidade absoluta, dizendo que isso era algo variável de acordo com a relação com o futuro. Dilthey acrescenta ainda que essa variável poderia ser também a partir do presente. Quando os Annales discutem a temporalidade, usam esses autores para refutar a noção de anacronismo, ou seja, de enxergar a história a partir de questões do presente. Esse processo é o que gera na humanidade as fontes históricas. A Escola dos Annales, veremos de maneira específica, significou uma renovação na temporalidade histórica, havendo o trabalho simultâneo de diversas temporalidades em um mesmo processo analítico. Veremos isso com a escola já no seu momento inicial com Fernand Braudel. 2.10 O tempo subjetivo da psicologia Sobre o tempo, pensando a historiografia, o processo de interdisciplinarização do conteúdo histórico passou-se a partir da fenomenologia, campo desenvolvido sobretudo na psicologia, com a perspectiva de tempo objetivo e o tempo subjetivo e que algumas historiografias têm carregado sua produção com essa noção. Objetivamente, existe um tempo, seja ele cronológico, seja ele social ou de qualquer outra forma. A relação do sujeito historiador, porém, com o tempo, pode variar devido a sua subjetividade e emoção. Para encerrar, vamos a uma ilustração cotidiana desse processo. O dia tem convencionalmente 24 horas. Se você se encontra em um estado emocional positivo ou alegre, o dia passa a uma velocidade maior. Se as mesmas 24 horas, forem vivenciadas, experimentadas em um momento de angústia ou de tristeza, a sensação da psique é que esse dia está mais longo. 28 O certo é que o tempo histórico permanece para a historiografia e para o historiador em constante revisão e transformação, devido ao próprio quadro de transformação contínua da vida humana e suas relações sociais. Como historiadores, temos que ser criteriosos em nossa escolha com relação à temporalidade histórica, pois isso irá interferir no processo analítico. Ainda que a corrente positivista pregue a neutralidade do historiador frente ao objeto, é em demasia impossível que essa interferência não ocorra, mesmo em estágios do processo que não aparente, como a escolha do objeto, o recorte temporal, o recorte espacial que, apesar de estarem amparados pela técnica do ofício do historiador, podem facilmente carregar em algum grau a subjetividade do pesquisador. Conclusão da aula 2 Chegamos ao final de mais uma aula. Aqui, pudemos problematizar sobre a relação do homem/ser humano com a história e o tempo. Vimos o tempo fora da história, em outros campos analíticos, mas que influenciaram o modo de construção historiográfico, e outros que ainda influenciam. Expomos sobre algumas temporalidades inerentes ao historiador, que nos servirão como base para analisar as três principais correntes historiográficas desse processo. A discussão foi uma contextualização geral e histórica sobre o problema sempre inacabado do historiador e o tempo, que deve orientar a sua forma de entender, enxergar e construir o conteúdo da história. Atividade de Aprendizagem Fora do tempo histórico, pudemos ver diversas contribuições acerca do tempo no processo de construção da vida humana no seu contexto total. Dessa forma, empreenda uma pesquisa e descreva qual a exposição de Platão sobre o tempo. 29 Aula 3 – O ofício do historiador e as fontes históricas Apresentação da aula 3 Olá, caro aluno e cara aluna. Seja bem-vindo(a) à terceira aula da disciplina. A partir de agora, vamos aprender sobre as fontes históricas enquanto conteúdo analítico para o ofício de historiador. Nesse momento, escolhemos fazer a exposição objetiva dessas fontes a partir de uma perspectiva mais tradicional da história, metodicamente nos limitando a problematizá-las nelas mesmas. Não há quaisquer pretensões de uma criticidade absolvida pelas correntes historiográficas das quais nos utilizaremos. Iremos expor primeiramente sobre as fontes escritas, depois as fontes iconográficas, pensando na sua diversidade e, por fim, iremos analisar as fontes orais. De maneira sucinta, também iremos pensar as fontes vinculadas a outras ciências, mas que igualmente são úteis ao processo de construção do conhecimento historiográfico. Boa aula! 3.1 Documentos escritos Analisando especificamente as opções de fontes dentro do recorte das fontes escritas, podemos levar em conta as fontes escritas ditas oficiais e pessoais. Comumente essas fontes oficiais são relacionadas a documentos de instituições públicas, privadas ou mesmo religiosas, que expressam as convenções sociais de cada tempo. As fontes pessoais são documentos escritos circunscritos à vida privada de um sujeito ou coletividade que não tenha quaisquer relações institucionais. Uma carta, por exemplo, ou mesmo um documento podem ser enquadrados na condição de fontes históricas escritas pessoais de uma determinada pessoa. 30 3.1.1 Cartas Carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei Dom Manuel I (1500). Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Pero_Vaz_de_Caminha#/media/File:Carta-caminha .png A imagem é da carta de Pero Vaz de Caminha, escrivão da esquadra portuguesa que chegou ao Brasil no início do século XVI. As cartas, de maneira geral, são importantes documentos de uso do historiador para construir uma percepção do real. No caso do nosso exemplo, podemos pensar no que a carta deve ter contribuído para a construção da historiografia ter acesso ao conteúdo desse documento. Ela possibilitou ao historiador compreender quais as percepções que o português teve ao encontrar as terras brasileiras, como ele concebeu o território, os ocupantes e o quanto o cenário impactou a perspectiva portuguesa, como exemplos. Outra situação interessante de se problematizar ao se ter acesso a tal fonte é quanto à linguagem e aos termos da época, que revelam por meio do letramento e das expressões usadas a formação cultural de quem escreve. A carta pode ser tanto oficial quanto pessoal. Por exemplo, no contexto da carta de Pero Vaz de Caminha, ela se trata de um importante meio de comunicação pessoal, ao passo que é usada tanto para meios oficiais, de estado, exército, cartórios e outros. Os textos bíblicos, por exemplo, que se 31 tornaram fundamentais para a constituição do cristianismo, sobretudo os textos paulinos, se tratam de cartas destinadas a amigos e a igrejas, que foram fontes para a história e ainda para fundamentar toda uma filosofia cristã. 3.1.2 Testamentos Os testamentos também se enquadram enquanto importantes fontes de conhecimento acerca de um contexto histórico. Com eles, podemos quantificar riquezas e proporcionar dimensões de valor – o que era valoroso para o objeto pesquisado e, ainda, para quem direcionava suas posses –, revelando situações no campo da afetividade. Também é possível, nos testamentos, compreender o processo de valorização das relações sociais, transformações e heterogeneidade no processo de construção das relações. Um exemplo interessante nesse processo de análise historiográfica de testamentos ocorreu em documentos testamentários de senhores de escravos no estado do Paraná. No testamento, o senhor garantia posses ao escravo, garantindo-lhe alguma condição de vida e de sustentabilidade. Para o contexto da escravidão moderna, no Brasil, porém, esse testamento serviu para problematizar a heterogeneidade do processo escravocrata no território brasileiro. Também permitiucompreender relações de pessoalidade, em que os senhores, algumas vezes, trataram com carinho o seu escravo, demonstrando clara afetividade por ele. Esse tipo de revelação, por exemplo, proporciona ao historiador uma riqueza analítica complexa, que compõe, no processo, com outras ciências; narrativa, estrutura linguística e análise de discurso auxiliam na compreensão dos documentos escritos. 3.1.3 Circulares, jornais e revistas As circulares, jornais e revistas têm se tornado importantes fontes historiográficas no processo de análise do contexto social em dada realidade histórica. Passado pelo crivo metodológico da corrente que embasa o processo, esse tipo de documento é muito buscado para analisar períodos mais recentes da história, histórias regionais, formações de territórios novos, que permitem o 32 acesso a esse tipo de fonte, com conteúdo significativo para compreender os dilemas e perspectivas de um dado território no tempo. Anúncio de escravo fugido (1834). Fonte: https://br.pinterest.com/pin/624733779533584105/ Enquanto fonte histórica, temos, como exemplo, uma circular que trata da informação sobre um escravo fugido, com todas as especificações acerca do escravo e ainda uma proposta de recompensa para sua captura. Importante fonte escrita, esse tipo de circular é muito recorrente no cotidiano do trabalho dos historiadores que estão debruçados sobre a escravidão moderna, no contexto da história do Brasil. Esse tipo de documento, por exemplo, auxilia no processo de compreensão das características sociais do escravo, de como se escreve sobre esse sujeito, revelando a forma com a qual a sociedade concebia e tratava na cotidianidade a sua pessoalidade. 33 Saiba mais Em 13 maio de 1888, a aprovação de uma lei pelo Império deu fim ao sistema que permitia o tratamento de homens e mulheres negros como objetos, propriedades cujo valor se media em moedas e, por isso, podiam ser negociados como mercadoria. O Jornal Nexo apresenta dados e conversa com pesquisadores dedicados ao tema da desigualdade racial para entender o atual estado da questão no Brasil. As diferentes etapas da vida do brasileiro, da primeira infância à velhice, são abordadas sob a ótica da população negra, colocando à vista as dimensões do problema e as saídas possíveis para uma sociedade livre dele. Ao fim, colunistas do Nexo apresentam ensaios inéditos sobre questões não resolvidas no Brasil pós-abolição. Disponível no link: https://www.nexojornal.com.br/especial/2018/05/11/130- anos-p%C3%B3s-aboli%C3%A7%C3%A3o 3.1.4 Documentos judiciais Documentos judiciais são importantes fontes históricas para compreender diferentes contextos históricos, sobretudo a partir dos conflitos que comumente agravam o processo de transformação social. Se fizermos um comparativo com o tempo presente, o sistema judiciário possui significativa importância no processo de vida cotidiana e relações sociais. As leis, por exemplo, são vistas sociologicamente como mecanismos de coerção social e balizam as relações sociais. Por isso, ter acesso aos processos judiciários ajuda a compreender o modo de vida do contexto social no passado. 34 3.1.5 Documentos do Estado Esboço da Constituição Francesa de 1795. Fonte: http://3.bp.blogspot.com/- oIqTPxYzH4M/VgZr49SqhkI/AAAAAAABA3Q/tPyuJaZkwuA/s1600/constitucion_anyo_i ii_republica_francesa.jpg Os documentos ditos oficiais em grande parte são vinculados às instituições. Como exemplo, temos um fragmento do esboço da Constituição Francesa de 1795 com diversas anotações. Esse tipo de documento comumente causa diversas problematizações entre os historiadores, sobre a objetividade de documentos que atendem a necessidade de uma instituição, carecendo de uma revisão crítica sobre essa intencionalidade. Na tradição positivista, por exemplo, o método analítico consistia em não questionar a objetividade da informação que o documento trazia. 3.1.6 Outras fontes Para que você possa se aprofundar em uma possível necessidade da sua carreira de historiador, seguem outros tipos de fontes históricas: registro de cartório; registro de nascimento; obituário médico; registro de alfandegas; balanço contábil; etc. As possibilidades para fonte histórica são numerosas, dependendo muito da criatividade e capacidade por parte do historiador em 35 explorar as alternativas que vão surgindo no processo de construção da humanidade. 3.2 Fontes iconográficas Ao tratarmos de fontes iconográficas, estamos falando da importância da imagem no processo de construção do conteúdo histórico. A iconografia tem se valido de singular importância para o processo de conhecimento histórico. Enquadram-se como iconografia fontes como pinturas, fotos, esculturas, desenhos, mapas e quaisquer outros procedimentos imagéticos empreendidos no passado e que nos possam revelar informações sobre o passado. 3.2.1 Pintura A pintura traz conteúdos reveladores da história humana que, além de demonstrar a perspectiva da época sobre o objeto retratado, também demonstra a própria vivência da realidade representada. Em algumas ocasiões, falam mais que quaisquer outros tipos de documentos. Teto da capela Sistina (Michelangelo, 1508-1512). Fonte: https://br.pinterest.com/pin/379076493605247014/ 36 A título de exemplo, temos a pintura na Capela Sistina, em Roma, considerada uma obra de arte renascentista de Michelangelo. Ela confirma, assim como outras obras renascentistas, o movimento intelectual que clamava pelo renascimento da perspectiva clássica dos gregos, sobre a vida e a centralidade do homem. Podemos perceber que quanto mais antiga a civilização pesquisada, maior a importância das imagens, mesmo porque grande parte das civilizações mais antigas não possuíam sistemas de grafia e registravam sua vida a partir de pinturas – como, por exemplo, as pinturas rupestres. 3.2.2 Escultura e arquitetura As esculturas são importantes fontes históricas iconográficas. Revelam concepções de mundo, de sociedade, de pessoas e de objetos e auxiliam o historiador no processo de reconstrução do tempo. Isso é fundamental em diferentes tempos. A título de exemplo, na Grécia, muitos personagens importantes eram representados por meio de esculturas. Concomitante às esculturas, temos a cunhagem de moedas. Como exemplo dessa riqueza cultural, temos as moedas do Império Romano, que são muito ricas no processo de compreensão sobre seus símbolos e funcionamento. A arquitetura é outro importante documento historiográfico, podendo servir como indicador da tecnologia de uma dada civilização no processo de construção. 3.2.3 Mapas Os mapas também são importantes fontes historiográficas, justamente por não estarem limitados à utilidade da história. Pertencentes à cartografia no contexto da geografia, os mapas mostram muito mais que territórios e localizações: revelam movimentos e transformações que denunciam a relação do ser humano com o espaço e, consequentemente, com o tempo. Os mapas revelam a condição territorial de reinos, de impérios, de estados nacionais e movimentos migratórios e permitem ao historiador enxergar os dilemas territoriais que tais processos tiveram que encarar. 37 Um mapa, enquanto fonte histórica, pode ser concebido como um revelador da capacidade técnica de determinado tempo em um povo, ao apresentar uma tecnologia na própria confecção do mapa. Também pode revelar a noção de espaço concebido por uma dada civilização. Por exemplo, ao consultarmos os mapas europeus da Idade Média (anteriores aos descobrimentos), veremos que, de fato, os medievais, no eurocentrismo territorial, em momento algum em sua cartografia apresentam sinais de que concebiam a existência de tais terras, demonstrativode relativa fatalidade no processo histórico dos descobrimentos. Portulano. Parte do Atlas Catalão. (Abraham e Jehuda Cresques, 1375). Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Catalan_Atlas#/media/File:Atles_catal%C3%A0_ (full_4,_ca000004).jpg Como exemplo de fonte histórica, temos a representação de um portulano. Este gênero cartográfico “desenvolveu-se durante os séculos XIII e XV ao redor da bacia mediterrânea e é considerado base do desenvolvimento técnico necessário para a cartografia científica renascentista” (NOGUEIRA; BIASI, 2015). Concebido antes das Grandes Navegações, não se encontra documentado o continente americano, relevando a importância do mapa e da interdisciplinaridade das fontes, no processo de pesquisa do historiador. 38 3.3 Fontes orais As fontes orais tratam-se de documentos históricos muito antigos quanto à sua utilidade ou mesmo em sua forma tradicional de transmissão de conhecimento. Por outro lado, sua utilização como fonte histórica é contemporânea, complexa e em constante processo de análise. A fonte oral caminha junto com o conceito de história e memória; a história construída a partir das narrativas. É uma fonte historiográfica extremamente complexa para se trabalhar, na medida em que o historiador fica refém da memória do depoente e tem que crivar e cruzar diversos discursos, analisando suas congruências e divergências e amarrando o processo analítico com outras fontes “mais” documentais, para caminhar num processo de validação da narrativa. Como ela é dependente da memória, as fontes orais em certa medida são um risco para o historiador. Por outro lado, enquanto forma humana de transmissão de conhecimento, sobretudo tradicional, é o meio mais antigo para se reproduzir uma história de geração em geração. Mesmo na contemporaneidade, podemos perceber sua eficiência nos povos indígenas, ao sustentarem suas tradições a partir da oralidade. É muito importante, contudo, estar dotado de técnicas e ferramentas metodológicas para validar a utilidade da fonte oral, no processo afirmativo da historiografia. Conclusão da aula 3 Chegamos ao final de mais uma aula. Conhecemos diversas fontes históricas que se encontram disponíveis para a historiografia, fazendo proceder com o trabalho do historiador. Expomos as fontes com exemplos objetivos de como podemos nos servir delas, e também imagens que auxiliassem na compreensão das fontes históricas. Os objetivos desta aula se justificam na medida em que cada fonte histórica é utilizada e aproveitada dentro de um contexto metodológico proposto pela corrente historiográfica e o método de que se utiliza o historiador – de acordo com a corrente historiográfica, a forma de tratar a fonte histórica utilizada pode variar. Isso significa que positivistas, materialistas histórico-dialéticos e 39 culturalistas dos Annales podem tratar de uma mesma fonte histórica a partir de perspectivas e visões diferentes. Assim fica claro o porquê de não aprofundamos a nossa análise sobre o processo de utilização das fontes históricas. Atividade de Aprendizagem Faça a leitura do documento abaixo, que trata do texto contido na declaração do fim da Escravidão Moderna no Brasil, assinado pela princesa Isabel. Descreva o que pode ser percebido no texto, na linguagem e na intencionalidade de sua carta, procedendo como um historiador frente ao documento. http://www.historia.seed.pr.gov.br/arquivos/File/fontes%20historicas/lei_aure a.pdf Aula 4 – História e Memória: a produção do conhecimento histórico Apresentação da aula 4 Olá, caro aluno e cara aluna. Sejam bem-vindos à quarta aula da disciplina. A partir de agora, vamos aprofundar em conhecer sobre a correlação entre história e memória e ainda aprofundar nossa compreensão em como lidar com os documentos orais no processo de crivo para construção do conteúdo histórico. Esse processo é muito importante para o ofício do historiador, no sentido de validar e tornar científico o conhecimento histórico. A preocupação com o processo científico na construção do conhecimento histórico é justamente o que diferencia a história, enquanto disciplina científica, de outras matérias, como estória, jornalismo e outros que não possuem o rigor científico. Bons estudos! 40 4.1 História e Memória A relação entre história e memória é íntima em demasia. A história, segundo a historiografia, em muito recorre à memória para produzir a história. Apesar dessa relação muito próxima, história e memória possuem muito mais coisas que as diferem do que necessariamente elementos que as tornam parecidas. O uso da tradição oral ou da memória para o processo de construção da história passou a ser considerado com maior intensidade a partir de 1950 nos Estados Unidos e no México a partir da invenção do gravador. Basicamente, consiste em diversos meios de colher depoimentos, entrevistas e falas que possam ser filmadas, gravadas ou mesmo transcritas sobre um fato histórico sobre o qual estará debruçado o historiador. O que há de comum entre memória e história que as fazem manter constante diálogo? Basicamente, história e memória mantêm em comum a justificativa do diálogo constante entre elas, a relação conectada entre passado e presente. Tanto a história quanto a memória se utilizam do passado para tratar de questões correlatas ao presente. Para grande parte dos historiadores, isso é o que há de mais acentuado entre história e memória, no que tange à similaridade. Depois dessa correlação vinculada que ambas sustentam pelo passado para pensar questões do presente, há muitas outras questões que as diferem. E as diferem de tal maneira que a história deve ter muitos cuidados com as zonas de tensão entre ela e a memória quando se utilizar dessa fonte como subsídio para a construção do conhecimento científico. Vamos trazer mais alguns elementos circunscritos à realidade da memória que irão nos auxiliar a compreendê-la comparativamente à história. 4.2 A memória É válido se atentar, enquanto futuro historiador, que a memória é a linha tênue posta com a história, incitando muitos historiadores iniciantes ao erro de tratá-las como iguais ou mesmo confundi-las no processo analítico e construtivo junto às fontes. Nesse sentido, o historiador deve ter respeito com relação à memória enquanto “patrimônio histórico” do seu objeto de pesquisa. 41 Visto que constantemente estamos lutando para que patrimônios históricos físicos sejam conservados e tratados com respeito para que se conservem neles as insígnias de um tempo passado, a memória, nesse sentido, indefere-se. Ela se trata, antes de tudo, de um metafórico patrimônio histórico que empreende uma luta de igual ou maior proporção para se manter, tal qual, quaisquer patrimônios históricos e culturais que possam encontrar-se em risco de desabamento pela falta de cuidados por aqueles que se interessam pelo conteúdo nele impresso. Dito isso, o primeiro ponto metodológico que chamamos a atenção é a relação da memória com o lugar. Para que a memória possa metodologicamente ser utilizada pela história, devemos nos perceber sua íntima relação com o lugar, ou seja, o espaço que proporcionou vazão a essa memória. Toda memória expressa pelo depoente possui um lugar onde ela foi construída, originada, e conhecer ou saber desse lugar é fundamental para o historiador no processo de legitimação daquela determinada memória para o conhecimento histórico. Perceba, aqui, o que propósito do lugar é justamente em desenvolver um caminho para crivar a sua originalidade e a sua utilidade para a produção historiográfica. Uma memória sem lugar possivelmente deve ser descartada do processo de construção historiográfico. 4.2.1 Lugar ocupado e distância temporal Além de se preocupar, enquanto historiador,com o lugar de onde se origina determinada memória, deve também se atentar com o lugar que ocupa o depoente com relação à memória e seu lugar de origem, pois as experiências posteriores no tempo e sua vivência em um espaço distinto do original em que foi gerada podem facilmente interferir na rememoração dos fatos. Narrativas desconexas e cheias de lacunas podem ser trazidas, tornando o trabalho do historiador ainda mais complexo. Quanto maior for a distância temporal com relação ao fato rememorado, maior é o risco desse fato ser rememorado com condições de falhas. 42 4.2.2 Relações desenvolvidas Concomitantes ao lugar ocupado no momento da rememoração estão as relações que se desenvolvem posteriormente ao processo vivido que também podem alterar a veracidade do fato vivido. Essas lembranças próximas ao real vivido podem ser lançadas ao esquecimento, transformando o jeito de rememorar, sendo contado o mesmo fato de diversas maneiras. Esse risco fica claro quando o historiador passa a empreender a tentativa de uso da memória em mentalidade coletiva, ou seja, a tentativa de reconstruir metodologicamente um fato que diversas pessoas vivenciaram conjuntamente. Ao empreender as entrevistas individualmente, é possível construir um mosaico de fatos e detalhes, que um lembrou e o outro não. Ou, ainda, um terceiro que colocou outra ponta no novelo que, há pouco, sequer existia. 4.2.3 A memória está exposta ao inconsciente É comum da nossa atividade cerebral que, ao passar dos dias, semanas, meses e anos, “lancemos fora” para o inconsciente diversas informações que fazem dele um depositário sem vida. Subitamente, porém, podem mudar os rumos da retórica do entrevistado, com surgimentos, que alteram o curso analítico, tornando o processo algo realmente como um quebra-cabeças ou mesmo a construção de um mosaico, que ao final precisa fazer sentido ou mesmo manter uma coerência metodológica. 4.2.4 A memória e os sentimentos Diferente da objetividade do historiador, a memória vinculada ao vivido ou ainda de quem vive está atrelada e exposta aos efeitos da emoção. Desse modo, o afeto que o meu entrevistado desenvolve para com o objeto pesquisado pode facilmente alterar o modo, a intensidade e até mesmo a veracidade com a qual o entrevistado narra o fato. Isso inclusive pode acontecer inconscientemente. Dependendo do que se trata, pode sim ser consciente, havendo a ocultação de fatos, ou mesmo a mudança da intensidade com o qual eles ocorreram na realidade. 43 Essa relação entre memória e sentimento é uma problematização aguda, no processo de construção do saber histórico vinculado a esse procedimento. 4.2.5 Memória individual e coletiva As memórias individuais e coletivas possuem uma estreita relação de influência que tornam o processo analítico, a compilação e a organização das narrativas um desafio considerável para o ofício do historiador. No caso expresso, a memória individual, apesar de todos os campos de subjetividade, não consegue ser construída sozinha. Nesse sentido, a memória individual, além de estar vinculada ao lugar de origem, está conectada com o coletivo que a muniu e a proporcionou dinâmica para sua construção individual. Outro ponto de soma nesse processo de construção da memória individual é a sua absorção do conhecimento histórico. É como se eu fosse narrar sobre minha experiência na infância com a ditadura militar, mas tivesse um imbricamento na memória entre o que vivi e o que os outros viveram; é possível que eu rememore aquilo que foi transmitido pelo meu ciclo social mais próximo e que pode facilmente interferir no meu processo de rememorar o fato. Assim, irei expressar uma memória carregada de sentido individual subjetivo, que é o que vivi, de sentido coletivo, que é o que absorvi com as narrativas de outros e, por fim, aquilo que aprendo com a história. Nesse processo de três dimensões, se ampliam os riscos significativos para a fidelidade ou mesmo objetividade histórica. 4.2.6 Memória e linguagem A relação entre memória e linguagem deve ser compreendida como um sendo responsável pela afirmação da outra. A linguagem é o modo ou caminho pelo qual ocorre o processo de afirmação da memória. O sujeito que rememora está condicionado pela linguagem para dar vida a essa memória. Eu vivo, lembro e torno documento ou fonte histórica por meio da linguagem. É a conexão entre o lembrar e o narrar. A linguagem também pode ser concebida pela historiografia enquanto ferramenta responsável por socializar a memória, 44 pois é capaz de congregar em um único espaço memórias vinculadas a culturas e sentimentos dos mais diversos. Outra condição que deve ser observada é que a memória é objeto de lutas de interesses e de grupos sociais. Isso ocorre na medida em que há uma disputa entre aqueles que buscam manter vivas suas memórias no seio do cotidiano, mas, para isso, é urgente a necessidade de outras memórias serem apagadas, negativadas ou transformadas de tal modo que tenham menos importância. Um exemplo desse processo é a transição do Renascimento para a Modernidade, com relação à memória Medieval. A tentativa para a afirmação do Renascimento e o pensamento racional da Modernidade era de apagar da memória as lembranças sobre a Idade Média. Uma das formas de executar esse processo é negativando as imagens ou as memórias anteriores. Aí vemos e confirmamos a memória enquanto campo de disputa de interesses e de grupos sociais distintos, fosse no tempo ou no espaço. 4.2.7 Memória e vida A memória é a expressão da vida na medida em que procuramos a memória de quem de alguma forma vivenciou algo e apenas recorre à lembrança para expor o vivido. É necessário salientar que o historiador jamais irá ter sucesso em captar a totalidade da narrativa, ficando isso condicionado à exclusividade de quem vivenciou o processo na pele. Para concluir a etapa comparativa da memória, fechamos deixando claro que se trata de uma representação do passado carregada de mágica e afetividade e ainda dotada de uma multiplicidade de memórias, ou seja, a narrativa singular que deve ser comparada com o lugar e com o outro, devido à emergência de várias memórias. 4.3 A história A história faz uso da memória no processo de construção do conhecimento historiográfico. Esse processo, contudo, ocorre amparado por um método que vai validar ou não o resultado do processo. Assim, a história se diferencia da memória porque é uma categoria acadêmica de estudo, ou seja, 45 tende à verificação do conteúdo da memória. História e verificações caminham juntas para que haja uma real construção histórica. 4.3.1 A história e a instrumentalidade A história como campo científico de análise e verificação para validação do conteúdo histórico é responsável por instrumentalizar a memória, de modo que consiga elevar seu potencial útil. A história, assim como a memória, é revisitada. A história, porém, é revisitada no sentido estrito das ciências, que se trata da constante verificação metódica do conteúdo construído para que não haja erros na sua veracidade ou validade frente ao leitor. A história não se torna, nesse sentido, um aglomerado de memórias. Ela criva e verifica a memória, com criticidade, sem que haja quaisquer alterações. Outra condição importante para o campo da história é o cruzamento das memórias. Devido à necessidade de encontrar condições para a construção lógica e clara da memória, a história é responsável pela sistematização do processo de cruzar diferentes narrativas 4.3.2 História e diluição Na história ocorre a diluição da memória no corpo social no qual ela é produzida e no qual ela surge. Ao levar a memória ao lugar de origem, no corpo social onde ela nasceu, ela passa por um processo de diluição, no sentido