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FACULDADE DOM ALBERTO ÉTICA, CIDADANIA E SUTENTABILIDADE SANTA CRUZ DO SUL – RS 1 1 CIDADANIA Cidadania é um termo de difícil definição simples, mas em um conceito amplo, cidadania pode ser dita como a qualidade de ser cidadão, e desse modo sujeito de direitos e deveres. PENA (2015) traz uma boa definição de cidadania: “A cidadania é o conjunto de direitos e deveres exercidos por um indivíduo que vive em sociedade, no que se refere ao seu poder e grau de interven- ção no usufruto de seus espaços e na sua posição em poder nele intervir e transformá-lo. Essa expressão vem do latim civitas, que quer dizer cidade. Antigamente, cidadão era aquele que fazia parte da cidade, tendo direitos e deveres por nela habitar. Atualmente, esse conceito extrapola os limites ur- banos, podendo ser compreendido no espaço rural.” Cidadania é um tema que vem sendo discutido com bastante constância atualmente, mas, na maioria das vezes não é feita uma profunda reflexão acerca do tema, motivo que torna bastante necessário estudos que buscam desnaturalizar este conceito tão vazio, pelo seu uso indevido e ao pouco conhecimento a respeito de uma questão fundamental no que tange ao exercício democrático e ao engajamento necessário à vida em sociedade. Fonte: institutomillenium.org.br Os Docentes M. Lima, A. Junior e Brzezinski (2016) colocam o termo da seguinte forma: AULAS 11 A 20 2 “A cidadania é notoriamente um termo associado à vida em sociedade. Sua origem está ligada ao desenvolvimento das pólis gregas, entre os séculos VIII e VII a.C. A partir de então, tornou-se referência para os estudos que enfocam a política4 e as próprias condições de seu exercício, tanto nas so- ciedades antigas quanto nas modernas. Mudanças nas estruturas socioeco- nômicas incidiram, igualmente, na evolução do conceito e da prática da ci- dadania, moldando-os de acordo com as necessidades de cada época. O conceito contemporâneo de cidadania se estendeu em direção a uma pers- pectiva na qual cidadão não é apenas aquele que vota, mas aquela pessoa que tem meios para exercer o voto de forma consciente e participativa. Por- tanto, cidadania é a condição de acesso aos direitos sociais (educação, sa- úde, segurança, previdência) e econômicos (salário justo, emprego) que permitem ao cidadão desenvolver todas as suas potencialidades, incluindo a de participar de forma ativa, organizada e consciente da vida coletiva no Es- tado”. Segundo MORAES (2013), o termo cidadania tem origem no latim civitas, já o conceito advém da Antiguidade, aproximando-se nas civilizações gregas das noções de igualdade, liberdade e das virtudes tidas como republicanas – que mesmo atualmente são relacionadas ao termo. O ponto primordial da história do conceito de cidadania nos leva a dois questionamentos fundamentais: o significado de ser cidadão e quem pode ser caracterizado como tal. Segundo o ponto de vista de Aristóteles, ser cidadão perpassa pela titularidade de uma espécie de poder público sem limitações e com poder de decisão coletiva. Já em relação aos critérios necessários à cidadania, Aristóteles os pontua de modo bem mais restritivo, posicionadoos entre os poucos homens que não dependiam de sua força produtiva para viver, excluindo os estrangeiros, as mulheres e os escravos. A edificação da categoria cidadania pelo ponto de vista romano possui um caráter mais jurídico. A palavra latina civis, ainda com uma acepção ligada ao cidadão, teria que garantir os direitos dos nativos em relação aos estrangeiros. Dessa forma, os direitos dos civis relacionam-se ao voto – constituição de família, direito de paz ou guerra, às eleições nas magistraturas, contração de obrigações, ou mesmo quanto à propriedade ou libertação de servos. Os termos patricius, gentilis e civis na Roma antiga, eram relacionados à noção de cidadania, denominando uma mesma figura social. Dessa forma, pode-se perceber que a história de Roma conferia uma noção extensa aos critérios de cidadania, e que subsequentemente, esses direitos seriam concedidos ao povo do império sem distinção. O historiador Pedro Paulo Funari (2013), permite-nos verificar a estreita relação entre a cidadania romana e o conceito moderno do termo: 3 “Como podemos avaliar a importância da experiência romana para o concei- to moderno de democracia? Para muitos estudiosos do século XX, a Repú- blica romana foi encarada como uma oligarquia corrupta, uma aristocracia endinheirada, comparada negativamente com a Atenas democrática do sé- culo V a.C. Nas últimas décadas, entretanto, estudiosos têm mostrado que a vida política romana era menos controlada pela aristocracia do que se ima- ginava e, de certa maneira, Roma apresentava diversas características em comum com as modernas noções de cidadania e participação popular na vi- da social. Os patriarcas fundadores dos Estados Unidos da América toma- ram como modelo a constituição romana republicana, com a combinação de Senado e Câmara (no lugar das antigas assembleias). A invenção do voto secreto, em Roma, tem sido considerada a pedra de toque da liberdade ci- dadã. [...] Os romanos tinham um conceito de cidadania muito fluido, aberto, aproximando-se do conceito moderno de forma decisiva. ” 1.1 Democracia e os Direitos fundamentais O reconhecimento dos direitos fundamentais do homem teve origem em docu- mentos históricos que acompanharam o avanço da humanidade na conquista de novos direitos. Tais documentos foram o ponto de origem que deu ensejo à garantia de liber- dades que culminaram com o posterior reconhecimento e positivação dos direitos fundamentais nas constituições. Graças ao longo processo de evolução dos Estados chegou-se até ao Estado Democrático de Direito e à industrialização, advinda das novas formas tecnológicas características da Revolução Industrial e dos avanços científicos, surgindo a neces- sidade de tutela dos direitos das mulheres e crianças nas jornadas desumanas de trabalho de 14 e 16 horas, ensejando no surgimento da Organização Internacional do Trabalho. A Magna Carta estabelecida em 1215, pontifica alguns direitos dos súditos in- gleses, mais especificadamente dos nobres, como o habeas corpus, o due process of law e o direito de propriedade, confirmando um marco histórico na evolução dos direitos fundamentais. Outro movimento que propiciou a evolução dos direitos fundamentais foi a Re- forma Protestante. Ela consagrou o direito à liberdade de culto e opção religiosa no contexto europeu, como bem demonstrou o Edito de Nantes de 1598. A Petition of Rights de 1628, fruto da Revolução Gloriosa foi recebida como um dos mais consistentes precedentes na afirmação desses direitos. Neste documento 4 foi estabelecida a proibição das prisões arbitrárias, concedendo-se habeas corpus e conferindo o direito de petição, como também o princípio da legalidade penal. A Declaração de Direitos do povo da Virgínia, de 1776, consubstancia a ideia de que todos os homens são, por natureza, igualmente livres e independentes, e de que todo poder emana do povo, assegurava o direito de defesa nos processos crimi- nais, o julgamento célere e imparcial, a liberdade de imprensa, entre outros direitos que assumem uma feição democrática na formação do novo governo. A Constituição norte americana, aprovada na Convenção de Filadélfia, ratifica o sentimento e a necessidade de estruturação e positivação desses direitos. Adiante, temos a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de origem francesa, de 1789, com um teor mais metafísico e universal, estabelecendo um novo paradigma, não obstante as críticas a sua consistência. No pós Segunda Guerra, em 1948, a Assembleia Geral da ONU proclama a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que assumiu um caráter de proteçãoem âmbito internacional, criando-se a comissão dos Direitos do Homem, revestida do sentimento de negação aos horrores e violações a tais direitos, como o extermí- nio de judeus, as deportações em massa, os trabalhos forçados, os assassinatos políticos, típicos da conjuntura da época. Na Europa, através do Estatuto de Roma de 1950, foi criada a Convenção Eu- ropeia dos Direitos Humanos. Neste contexto, foi estabelecida a Corte Europeia de Direitos Humanos que reúne protocolos previstos na Carta Social Europeia, com le- gitimidade apenas para avaliar violações relativas aos direitos inerentes à Conven- ção Europeia de Direitos Humanos. Os Estados signatários são submetidos à juris- dição da Corte Europeia de Direitos Humanos. Na América, foi criada a Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como o Pacto San José da Costa Rica, em 1969, com jurisdição exercida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos desde 1978; no entanto, o Brasil tornou-se signatário apenas em 1992. Um dos fatores que impediram ou retardaram um desenvolvimento mais plausível na América Latina foi à ditadura e os seus des- dobramentos políticos. No Brasil, a preocupação do legislador originário sempre foi evidente quanto aos Direitos do Homem e data da primeira Constituição brasileira, de 1824, na van- guarda até mesmo em relação à Constituição belga de 1831, que continha em suas 5 disposições gerais direitos civis e políticos. Seguem-se as constituições de 1891, 1934, 1937, já sob a égide ditatorial, ampliando o rol de direitos para a inclusão da ordem econômica social. A Constituição de 1946 não consagrou o direito à subsis- tência, ocorrendo o mesmo com a de 1967 e, posteriormente, com a de 1969, que de forma sistematizada, elenca os direitos econômicos e sociais. Por fim, a Constituição de 1988 reserva especial atenção aos direitos funda- mentais, contendo o título “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, conferindo por força do art. 5º, §1º, o caráter de aplicabilidade imediata para as garantias funda- mentais e, ainda, com o rol abstraído do art.60, § 4º, as cláusulas pétreas, limitado- ras à atuação do poder constituinte derivado. Logo, a Constituição Brasileira de 1988 institucionaliza a instauração de um re- gime político democrático no Brasil. Introduz também indiscutível avanço na consoli- dação legislativa das garantias e direitos fundamentais e na proteção de setores vul- neráveis da sociedade brasileira. A partir dela, os direitos fundamentais ganham relevo extraordinário, situando- se a Carta de 1988 como documento abrangente e pormenorizado sobre dos direitos dos homens jamais adotado no Brasil. A consolidação das liberdades fundamentais e das instituições democráticas no país, por sua vez, mudam substancialmente a política brasileira de Direitos Humanos, possibilitando um progresso significativo no reconhecimento de obrigações internacionais neste âmbito. 6 Fonte: osconstitucionalistas.com.br O Juiz de Direito e Professor Ingo Wolfgang Sarlet (2015), nos traz uma compreensão acerca dos Direitos Fundamentais: Para a compreensão adequada do que são, afinal de contas, direitos fun- damentais, não basta saber que se cuida de direitos assegurados pela or- dem constitucional de determinado Estado, pois tal circunstância, embora essencial, por si só não é suficiente, ao menos de acordo com a evolução que marcou o constitucionalismo do Segundo Pós-Guerra e da qual o mode- lo adotado pelo nosso próprio constituinte de 1988 é tributário. Dito de outro modo, o conceito de direitos fundamentais também entre nós não se limita à condição de direitos positivados expressa (ou mesmo implici- tamente) em determinada constituição: um direito fundamental não é, por- tanto, apenas um direito de matriz constitucional. O Direito Internacional dos Direitos Humanos, surgido no período pós-guerra, veio como uma tentativa de situar os direitos fundamentais na base da ordem internacional contemporânea. Para que esse objetivo fosse alcançado, seria necessária uma universalização e internacionalização desses direitos, ou seja, a questão dos Direitos Humanos deveria ir além das fronteiras dos Estados Nacionais. 7 Esse processo de internacionalização acabou gerando o surgimento de um sistema normativo internacional, voltado para a proteção e amparo dos direitos fundamentais. O sistema internacional de proteção dos direitos humanos dialoga com os sistemas nacionais para a garantia e o respeito aos direitos e às liberdades fundamentais dos indivíduos. Todavia, se o Estado se torna negligente frente ao compromisso de promoção dos Direitos Humanos, o sistema internacional possui legitimidade para cobrar desses Estados. Essa legitimidade tem lugar, sobretudo, quando se estabelece uma efetiva relação do Estado Nacional com a ordem internacional, no sentido de garantia dos direitos fundamentais. De outra maneira: quando o Estado aceita o aparato internacional. Nessa perspectiva, a intervenção internacional é uma medida que reflete apenas em um auxílio ou em um complemento à proteção interna desses direitos. O processo de internacionalização dos direitos humanos desencadeia a democratização do cenário internacional, uma vez que surge a sociedade civil internacional, composta por organizações não governamentais e por indivíduos, que passam a poder acionar órgãos internacionais em casos de violação dos direitos humanos. Por essas razões, a dimensão da cidadania no exercício de garantia dos direitos humanos, sobretudo no plano internacional, sugere que o favorecimento do acesso às Cortes internacionais a indivíduos ou grupos organizados, não só contribui para a efetivação dos direitos humanos, como se realiza, propriamente, o entendimento de que o sistema internacional de proteção desses direitos envolve um sistema legal juridicamente vinculante, podendo ser exigível, portanto, diretamente pela cidadania. É preciso, no entanto, refletir sobre como a proteção dos direitos humanos costuma se realizar no interior de ordenamentos jurídicos internos dos Estados democráticos e, sobretudo para os objetivos deste trabalho, na democracia brasileira. As declarações francesas de 1789 e americana de 1776, no início da idade contemporânea, trazem a ideia de cidadania apoiada em um discurso liberal, em que os direitos fundamentais se relacionavam à ideia de liberdade, segurança e propriedade. Estabeleciam, desse modo, os direitos civis e políticos. Já no período entre guerras, surge a preocupação com o discurso social da cidadania, sendo valorizada a ideia de igualdade (na dimensão dos direitos sociais e econômicos), 8 como uma tentativa de eliminar a exploração econômica conforme tratava a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado de 1918, da extinta República Soviética Russa. A separação entre os direitos civis e políticos e os direitos sociais acerca da cidadania tem fim com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Aquele texto reúne todos os tipos direitos fundamentais, que agora não podem mais ser pensados isoladamente. Além disso, a Declaração Universal estabelece que os Direitos Humanos são universais e inerentes aos seres humanos. Somando esses dois aspectos, a Declaração de 1948 traz a concepção contemporânea de cidadania. Representando uma nova dimensão sobre o que passa a ser um sujeito de direito: a partir de então, se fala em categorias de direitos, segundo suas condições particulares. Nessa linha, ganha relevo discussões sobre os direitos das mulheres, dos grupos raciais e de quaisquer sujeitos que costumam ser discriminados ou constitua alguma espécie de minoria que precise de uma dimensão de afirmação de seus direitos. É preciso pensar, nesse cenário, se a Constituição brasileira de 1988 acolhe essa nova dimensãode cidadania, tal como descrita. A Constituição brasileira adota a indivisibilidade dos direitos humanos. Ou seja, ela proclama ser inconcebível separar os direitos civis e políticos dos direitos sociais, econômicos e culturais. Nesse quesito, ela atende a concepção de cidadania que se delineou. No que diz respeito ao alcance universal dos Direitos Humanos, a Carta de 1988 também está em consonância com a concepção contemporânea de cidadania, tendo em vista que seu texto afirma que todos são iguais e que os direitos fundamentais são inerentes à pessoa humana. A Constituição brasileira também concebe os direitos fundamentais como um tema de interesse internacional. Além disso, a ordem constitucional estabelecida em 1988 acolhe aquela nova dimensão de sujeito de direito, concreto e categorizado, segundo suas particularidades. Em seu texto, fica clara a divisão em capítulos dedicados a categorias como idosos, crianças e adolescentes, direitos dos índios, entre outros, dessa maneira propondo um tratamento específico para esses grupos. Dessa forma, a Constituição brasileira parece dialogar fortemente com essa nova dimensão de sujeito de direito internacional, e propriamente com a nova concepção de cidadania, tal como apresentada. 9 Para além disso, é possível analisar a responsabilidade do Estado na consolidação da cidadania brasileira observando três elementos essenciais da ideia de cidadania no cenário da discussão sobre Direitos Humanos, refletidos na Constituição brasileira: a indivisibilidade e a universalidade da ideia de direitos humanos, e a característica de especificidade dos sujeitos de direito. A Constituição brasileira assegura todos os tipos de direitos fundamentais e garante a efetividade de seus preceitos. Por essa razão, a todos esses direitos são assegurados a mesma garantia de proteção na ordem jurídica interna. A Carta de 1988 também estabelece o princípio da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, dessa forma vinculando os Poderes Públicos ao dever de promover esses direitos de forma plena e efetiva. Quanto à universalidade dos direitos fundamentais, o Estado brasileiro leva isso em consideração em relação a todos os indivíduos. Além disso, o país é obrigado a observar plenamente na ordem interna os acordos internacionais firmados que tratam dos direitos e garantias fundamentais e que foram ratificados pelo Estado brasileiro. Uma reflexão sobre Direitos Humanos, sobretudo quando se pensa a democracia brasileira e seu passado (recente) de autoritarismo, passa pela necessidade de se analisar a responsabilidade do Estado na consolidação da cidadania no Brasil. A Constituição Federal de 1988 é considerada, por muitos, um marco da transição democrática e da institucionalização dos direitos humanos no Brasil, importando, desse modo, em uma redefinição do Estado e dos direitos fundamentais no país, após longos vinte e um anos de ditadura militar. A importância com o bem-estar social e a preservação da dignidade humana é tão expressiva que a Constituição eleva os direitos e garantias fundamentais ao patamar de cláusulas pétreas. A Carta de 1988 inova ao extrapolar os limites dos direitos individuais e tutelar também os direitos coletivos (direitos que se aplicam a classes ou categorias sociais). Além disso, ela estabelece a aplicabilidade imediata das normas que dizem respeito aos direitos fundamentais. Aquilo que Flávia Piovesan chama de um “constitucionalismo concretizador dos direitos fundamentais”. Os direitos sociais também são tratados na Constituição com a mesma dimensão. O artigo 6º da Constituição estabelece uma série de direitos, como à educação, à saúde e ao trabalho, entre outros. Não obstante, o importante é ressaltar que a Constituição estabelece “uma ordem social com um amplo universo de normas que 10 enunciam programas, tarefas, diretrizes e fins a serem perseguidos pelo estado e pela sociedade”. Por outro lado, além da ordem social, a Constituição de 1988 também estabeleceu uma ordem econômica, marcada pelo intervencionismo estatal em prol do bem-estar social. 1.2 Histórico de organização das sociedades Pode-se dizer que uma estrutura social é o que define determinada sociedade. Ela é constituida da relação entre os diversos fatores — econômicos, políticos, históricos, sociais, religiosos, culturais — o que torna cada sociedade única. Uma das características da estrutura de uma sociedade é sua estratifícação, ou seja, a forma como os indivíduos e grupos diferentes são classificados em estratos (camadas) sociais e o modo como ocorre a mobilidade de um nível para outro. A questão da estratifícação social foi analisada pelo sociólogo brasileiro Octávio Ianni, em diferentes sociedades, com base, fundamentalmente, na forma como os indivíduos organizam a produção econômica e o poder político. Para estudar a estratifícação em cada sociedade é necessário que se verifique “como se organizam as estruturas de apropriação (econômica) e dominação (política)”, afirma Ianni na introdução ao livro Teorias da estratifícação social. Entretanto, essas estruturas são atravessadas por outros elementos — como a religião, a etnia, o sexo, a tradição e a cultura —, que, de uma forma ou de outra, influem no processo de divisão social do trabalho e no processo de hierarquização. A estratifícação social e as desigualdades decorrentes são produzidas historicamente, ou seja, são geradas por situações diversas e se expressam na organização das sociedades em sistemas de castas, de estamentos ou de classes. Cada caso precisa ser analisado como uma configuração histórica particular. As sociedades organizadas em castas O sistema de castas é uma configuração social de que se tem registro em diferentes tempos e lugares. No mundo antigo, há vários exemplos da organização em castas (na Grécia e na China, entre outros lugares). Mas é na índia que está a expressão mais acabada desse sistema. 11 A sociedade indiana começou a se organizar em castas e subcastas há mais de 3 mil anos, adotando uma hierarquização baseada em religião, etnia, cor, hereditariedade e ocupação. Esses elementos definem a organização do poder político e a distribuição da riqueza gerada pela sociedade. Apesar de na índia haver hoje uma estrutura de classes, o sistema de castas permanece mesclado a ela, o que representa uma dificuldade a mais para entender a questão. O sistema sobrevive por força da tradição, pois legalmente foi abolido em 1950. Pode-se afirmar, em termos genéricos, que existem quatro grandes castas na índia: a dos brâmanes (casta sacerdotal, superior a todas as outras), a dos xátrias (casta intermediária, formada normalmente pelos guerreiros, que se encarregam do governo e da administração pública), a dos vaixás (casta dos comerciantes, artesãos e camponeses, que se situam abaixo dos xátrias) e a dos sudras (a casta dos inferiores, na qual se situam aqueles que fazem trabalhos manuais considerados servis). Os párias são os que não pertencem a nenhuma casta, e vivem, portanto, fora das regras existentes. Entretanto, há ainda um sistema de castas regionais que se subdividem em outras tantas subcastas. O sistema de castas caracteriza-se por relações muito estanques, isto é, quem nasce numa casta não tem como sair dela e passar para outra. Não há, portanto, mobilidade social nesse sistema. Os elementos mais visíveis da imobilidade social são a hereditariedade, a endogamia (casamentos só entre membros da mesma casta), as regras relacionadas à alimentação (as pessoas só podem ter refeições com os membros da própria casta e com alimentos preparados por elas mesmas) e a proibição do contato físico entre membros das castas inferiores e superiores. Repulsão, hierarquia e especialização hereditária: estas são as palavras-chave para definiro sistema de castas, de acordo com o sociólogo francês Céléstin Bouglé (1870-1939), discípulo de Durkheim. Mas nenhum sistema é totalmente rígido, nem o de castas. Embora seja proibido, as castas inferiores adotam costumes, ritos e crenças dos brâmanes, e isso cria uma certa homogeneidade de costumes entre castas. A rigidez das regras também é relativizada por casamentos entre membros de castas diferentes (menos com os brâmanes), o que não é comum, mas acontece. A urbanização e a industrialização crescentes e a introdução dos padrões comportamentais do Ocidente têm levado elementos de diferentes castas a se 12 relacionarem. Isso vai contra a persistência dos padrões mais tradicionais, pois, no sistema capitalista, no qual a índia está fortemente inserida, a estruturação societária anterior só se mantém se é fundamental para a sobrevivência do próprio sistema. No caso específico da índia, o sistema de castas está sendo gradativamente desintegrado, o que não significa, entretanto, que as normas e os costumes relacionados com a diferenciação em castas tenham desaparecido do cotidiano das pessoas. Isso é confirmado pela existência de programas de cotas de inclusão para as castas consideradas inferiores nas universidades públicas. [...] a palavra casta parece despertar, de início, a ideia de especialização he- reditária. Ninguém, a não ser o filho, pode continuar a profissão do pai; e o filho não pode escolher outra profissão a não ser a do pai. [...] [É] um dever de nascimento. [...] A palavra casta não faz pensar apenas nos trabalhos hereditariamente divididos, e sim também nos direitos desigualmente repar- tidos. Quem diz casta não diz apenas monopólio, diz também privilégio. [...] O "estatuto" pessoal de uns e de outros é determinado, por toda a vida, pela categoria do grupo ao qual pertencem. [...] Quando declaramos que o espíri- to de casta reina em dada sociedade, queremos dizer que os vários grupos dos quais essa sociedade é composta se repelem, em vez de atrair-se, que cada um desses grupos se dobra sobre si mesmo, se isola, faz quanto pode para impedir seus membros de contrair aliança ou, até, de entrar em relação com os membros dos grupos vizinhos. [...] Repulsão, hierarquia, especiali- zação hereditária, o espírito de casta reúne essas três tendências. Cumpre retê-las a todas se se quiser chegar a uma definição completa do regime de castas (BOUGLÉ, 1973, p. 90 e 91). As sociedades organizadas por estamentos O sistema de estamentos ou estados constitui outra forma de estratifícação social. A sociedade feudal organizou-se dessa maneira. Na França, por exemplo, no final do século XVIII, às vésperas da revolução havia três estados: a nobreza, o clero e o chamado terceiro estado, que incluía todos os outros membros da sociedade — comerciantes, industriais, trabalhadores urbanos, camponeses, etc. Nas palavras de Octávio Ianni, no livro Teorias da estratifícação social, “a sociedade estamental [...] não se revela e explica apenas no nível das estruturas de poder e apropriação. Para compreender os estamentos (em si e em suas relações recíprocas e hierárquicas), é indispensável compreender o modo pelo qual categorias tais como tradição, linhagem, vassalagem, honra e cavalheirismo parecem predominar no pensamento e na ação das pessoas”. Assim, o que identifica um estamento é o que também o diferencia, ou seja, um conjunto de direitos e deveres, privilégios e obrigações que são aceitos como 13 naturais e são publicamente reconhecidos, mantidos e sustentados pelas autoridades oficiais e também pelos tribunais. Numa sociedade que se estrutura por estamentos, a condição dos indivíduos e dos grupos em relação ao poder e à participação na riqueza produzida pela sociedade não é somente uma questão de fato, mas também de direito. Na sociedade feudal, por exemplo, os indivíduos eram diferenciados desde que nasciam, ou seja, os nobres tinham privilégios e obrigações que em nada se assemelhavam aos direitos e deveres dos camponeses e dos servos, porque a desigualdade, além de existir de fato, transformava-se em direito. Existia assim um direito desigual para desiguais. A possibilidade de mobilidade de um estamento para outro existia, mas era muito controlada — alguns chegavam a conseguir títulos de nobreza, o que, no entanto, não significava obter o bem maior, que era a terra. A propriedade da terra definia o prestígio, a liberdade e o poder dos indivíduos. Os que não a possuíam eram dependentes, econômica e politicamente, além de socialmente inferiores. O que explica, entretanto, a relação entre os estamentos é a reciprocidade. No caso das sociedades do período feudal, existia uma série de obrigações dos servos para com os senhores (trabalho) e destes para com aqueles (proteção), ainda que camponeses e servos estivessem sempre em situação de inferioridade. Entre os proprietários de terras, havia uma relação de outro tipo: um senhor feudal (suserano) exigia serviços militares e outros serviços dos senhores a ele subordinados (vassalos). Formava-se, então, uma rede de obrigações recíprocas, como também de fidelidade, observando-se uma hierarquia em cujo topo estavam os que dispunham de mais terras e mais homens armados. Mas o que prevalecia era a desigualdade como um fato natural. Um exemplo dado pelo sociólogo brasileiro José de Souza Martins ilustra bem isso. Ele declara, em seu livro A sociedade vista do abismo: novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes sociais, que durante uma pesquisa no Mosteiro de São Bento, na cidade de São Paulo, encontrou um livro da segunda metade do século XVIII, no qual havia dois registros de doações (esmolas): uma feita para um nobre pobre (os nobres podiam tornar-se pobres, mas não perdiam a condição de nobres), que recebeu 320 réis; outra, para um pobre que não era nobre, que recebeu 20 réis. Comenta o sociólogo que “um nobre pobre, na consciência social da época e na 14 realidade das relações sociais, valia dezesseis vezes um pobre que não era nobre [...] porque as necessidades de um nobre pobre eram completamente diferentes das necessidades sociais de um pobre apenas pobre”. Atualmente, se alguém decide dar esmola a uma pessoa que está em situação precária, jamais leva em consideração as diferenças sociais de origem do pedinte, pois parte do pressuposto de que elas são puramente econômicas. José de Souza Martins conclui que basicamente é isso o que distingue estamento de classe social. Hoje, muitas vezes utilizamos o termo estamento para designar determinada categoria ou atividade profissional que tem regras muito precisas para que se ingresse nela ou para que o indivíduo se desenvolva nela, com um rígido código de honra e de obediência — por exemplo, a categoria dos militares ou a dos médicos. Assim, usar as expressões “estamento militar” ou “estamento médico” significa afirmar as características que definiam as relações na sociedade estamental.
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