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9 O que entendemos por “trabalhar em Análise do discurso”? Bruno Deusdará Décio Rocha Introdução A opção por trabalhar em Análise do discurso supõe do pesquisador, já desde as primeiras etapas de sua formação, uma tomada de posição frente ao campo disciplinar no qual pretende se inscrever, em um processo realizado por meio do reconhecimento da diversidade de suas orientações teóricas e dos conceitos de base, dos procedimentos analíticos, dos percursos metodológicos, das interfaces com disciplinas afins. Para os analistas do discurso, essa tarefa não é simples, uma vez que diversos são os roteiros que viabilizam tal mapeamento. Mesmo que, por uma orientação epistemológica de viés arqueológico1, se possa supor que os campos disciplinares se constituem mais por descontinuidades e rupturas do que continuidades e tradições, é preciso avançar um pouco mais e reconhecer que, no caso da Análise do discurso, sua emergência e configuração como “campo” se dá a partir de gestos diversos, que tornam especialmente distinta essa tarefa. No verbete “análise do discurso”, por exemplo, redigido por D. Maingueneau (2004), manifesta-se um índice da referida diversidade: É difícil retraçar a história da análise do discurso, pois não se pode fazê- la depender de um ato fundador, já que ela resulta, ao mesmo tempo, da convergência de correntes recentes e da renovação da prática de estudos muito antigos de textos (retóricos, filológicos ou hermenêuticos) (MAINGUENEAU, 2004, p. 43) 1 Com base em Foucault (1972), a perspectiva arqueológica se interessa pela condição de produção dos enunciados, buscando dar conta da dispersão do discurso em conjuntos de formações discursivas. Para tal, volta-se para a explicitação das relações entre enunciados e entre enunciados e acontecimentos não discursivos. Como analítica da produção de saberes de diversas ordens, o método arqueológico se volta para as lutas que os discursos travam pelo poder, promovendo o surgimento de certos objetos (e não de outros) e de posições legitimadas de sujeito. Desse modo, desnaturalizando o olhar sobre o cotidiano, a arqueologia cumpre uma função libertadora ao permitir a produção de novas apreensões do mundo. 10 A nosso ver, a impossibilidade apontada no verbete ressalta um outro aspecto interessante: a constituição de um campo de pesquisa marcado por gestos variados de contestação e deslocamento. Tal aspecto parece ensejar modos diversos de apresentação do percurso histórico e de propostas de organização do campo, a partir da variedade de experiências que acabam por reivindicar um mesmo rótulo. O próprio Dicionário chega a mencionar uma “Escola francesa da análise do discurso”, recuperando designação ainda em uso entre nós como modo de apontar uma certa circunscrição. Se, em momentos anteriores, designações como “escola francesa” e “escola anglo-saxã” foram razoavelmente suficientes para a diferenciação de percursos discursivos, fornecendo pistas de uma dada inscrição teórica, de afinidades em relação à temática e às maneiras de constituir o objeto, hoje essas designações parecem não mais recobrir a diversidade de iniciativas e, principalmente, dos cruzamentos teórico-metodológicos que vêm sendo experimentados. Não podemos mais apostar na capacidade discriminadora de todos esses rótulos. Seu poder de diferenciação tornou-se insuficiente. Preferimos, como discursivistas, investir no debate de princípios que reivindicamos como definidores de uma opção ético-política que fazemos no tratamento das práticas linguageiras, e é a tal debate que se destina o presente capítulo. 1. Um trabalho preliminar Iniciamos nosso trabalho de explicitação das pistas de reconhecimento do campo dos estudos discursivos por meio de duas discussões particularmente significativas: em 1.1, o debate a respeito das fronteiras entre o uso corrente e o técnico de “discurso” e, em 1.2, uma discussão acerca do rótulo “análise do discurso”. 1.1 “Nunca tinha feito um discurso antes” Um primeiro movimento em direção ao trabalho em Análise do discurso implica reconhecer que “discurso” é também uma palavra comum da língua portuguesa e que, para empregá-la como conceito, é preciso promover deslocamentos e problematizar aspectos que permanecem neutralizados em seus usos comuns. Na verdade, trata-se de uma palavra cuja acepção se costuma opor à ideia de ação, quando pejorativamente se diz: “isso é só discurso, quero ver a prática!”. A distinção, operada pelo senso comum, entre discurso e prática tem merecido uma constante problematização da área, tal como veremos a seguir. Essa distinção tem consequências diversas na reiteração de certas ideias do senso comum. Uma dessas ideias é a de poder, concebida, nesse caso, de modo formalista e restritivo. Para apresentar essa discussão, o título escolhido para esta seção remete ao pronunciamento de uma estudante do ensino médio da rede pública estadual 11 do Paraná em defesa do movimento de ocupação de unidades escolares como protesto contra as medidas anunciadas na vigência do governo Temer por Bezerra Filho, ministro da Educação e administrador de empresas por formação. Esse pronunciamento, realizado pelos estudantes daquela rede em outubro de 2016, foi apresentado, em discurso relatado, por matéria jornalística2 que promoveu sua repercussão. No enunciado proferido pela estudante, o item lexical “discurso”, empregado como palavra comum da língua portuguesa, atualiza alguns dos traços semânticos que são recorrentes nesse tipo de emprego, e o destaque conferido pela matéria jornalística ao referido trecho de sua fala reforça esses traços. Para ilustrar o que afirmamos, destacamos dois implícitos que, a nosso ver, sustentam esse tipo de emprego: i) é possível viver sem “fazer discurso”; ii) “faz-se discurso” em condições específicas. Como se observa, tais implícitos não só desqualificam a produção de linguagem inscrita em diversos contextos da vida social, como parecem também implicar que apenas alguns dos atores sociais estariam legitimados a tais usos. Formulados desse modo, os implícitos ressaltam um aspecto que será problematizado pelas diferentes definições da área: supõem-se contornos restritivos ao exercício dos “discursos”. Nesses usos correntes, estariam subjacentes elementos de uma concepção formalista e restritiva de poder com a qual não desejamos nos alinhar: o poder como ação privativa de certos espaços institucionais e como posse de alguns (seletos) atores sociais, legitimados por sua inscrição nesses espaços. Um segundo aspecto destacado é o recorte elaborado pelo enunciador jornalista. Tal recorte promove como efeito a secundarização da menção ao eco de outros textos no pronunciamento da estudante. Para uma contextualização do que dizemos, expomos a seguir um trecho da reportagem: A estudante afirmou que nunca havia feito um discurso antes e que não esperava a repercussão - e disse inclusive ter decidido desativar temporariamente sua conta no Facebook por medo de ataque de hackers. “Está um pouco tenso porque eu não estava preparada para isso. Fiquei sabendo um dia antes e não tive uma grande preparação, separei o que já tínhamos falado na ocupação, dividi em tópicos e fui no improviso”, contou a jovem. Mesmo sem experiência na tribuna e com a voz embargada - “minhas pernas tremiam” - Ana Júlia falou com firmeza. Seu discurso não só virou um sucesso nas redes sociais, como também repercutiu na imprensa nacional e internacional. 2 http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2016/10/nunca-tinha-feito-um-discurso-ae-que-viralizou- ao-defender-ocupacao-de-escolas-no-parana.html 12 Como se percebe,a indicação de que o pronunciamento realizado pela estudante é obra coletiva ganha pouca visibilidade no relato fornecido pelo jornalista. Observe-se o seguinte trecho: “não tive uma grande preparação, separei o que já tínhamos falado na ocupação, dividi em tópicos e fui no improviso”. Aqui se explicita o que, para analistas do discurso, é um princípio teórico: todo texto se constitui a partir do vínculo indissolúvel com outros textos – princípio do interdiscurso. Mas algo mais se diz aqui, pois o pronunciamento evidencia a inscrição da locutora em um coletivo: o dos estudantes-em-ocupação. Trata-se de um vínculo que se realiza pela própria exposição da palavra pública. Pensada desse modo, outra concepção de poder emerge: a indissolubilidade entre falar e reivindicar o pertencimento a um coletivo que se constrói, entre outros aspectos, pelo próprio exercício da palavra, uma imanência entre dizer e fazer ver um território no qual se habita enquanto se fala. Sob a referida ótica e contrariamente às expectativas do senso comum, talvez o discurso não esteja tão distante de uma prática quanto se imagina. Com efeito, o que a estudante fazia naquele momento na Assembleia Legislativa do Paraná era muito mais do que mera “exposição verbal sobre determinado assunto”, “alocução que tem o poder de ludibriar aqueles a quem restou apenas a possibilidade de receber mensagens”, como regularmente se define “discurso” no senso comum. De fato, quem sobe à tribuna de uma casa legislativa e, diante de um público multifacetado, toma partido em matéria tão polêmica está inevitavelmente fadado a ... provocar efeitos importantes, exibindo as alianças que promove, e também as que rejeita. E não foi outra coisa o que aconteceu: quem não estava acostumada a fazer “discurso” (situação formal de fala pública sobre um tema em geral controverso) acabou efetivamente atualizando uma prática discursiva (termo que deve ser apreendido como conceito, conforme veremos adiante) das mais relevantes naquele momento. Explicamo-nos: o pronunciamento daquela estudante teve efeitos muito visíveis, como o comprovam posteriores reações de usuários das redes sociais, telefonemas e pronunciamentos de autoridades diversas, uma estrondosa repercussão na mídia nacional e internacional, a atitude do MBL ao cobrar a liberação das escolas, enfim, manifestações de toda a sociedade que acompanhou o evento. Eis por que nos referimos aqui a uma “prática discursiva”: ... falaremos de prática discursiva para designar esta reversibilidade essencial entre as duas faces, social e textual, do discurso. Assim procedendo, reformulamos um termo de Michel Foucault, que o utiliza para referir-se ao sistema que ... regula a dispersão dos lugares institucionais passí�veis de serem ocupados por um sujeito de enunciação. Aqui ver-se-á, de preferência, um processo de organização que estrutura ao mesmo tempo as duas vertentes do discurso. A noção de “prática discursiva” integra, pois, estes dois elementos: por um lado, a formação discursiva, por outro, o que chamaremos de comunidade discursiva, isto 13 é, o grupo ou a organização de grupos no interior dos quais são produzidos, gerados os textos que dependem da formação discursiva. (MAINGUENEAU, 1989, p. 56) Como se percebe, a formulação de um conceito como o de prática discursiva tem o mérito de afastar qualquer confusão entre discurso e prática, por um lado, e, por outro, entre discurso e texto. A produtividade do conceito tem-se revelado em muitas pesquisas, mas ainda de modo insuficiente, como procuraremos argumentar em 3.4, na discussão que fazemos a respeito da produção de um córpus. 1.2 Análises do Discurso e análise do discurso de/sobre x Mencionamos anteriormente a diversidade de “análises do discurso”, mas cabe agora retomar com mais precisão o tema, pois, na realidade, tal diversidade é bem mais restrita do que se poderia supor. Há, com efeito, um determinado uso de “análise do discurso” que apenas em aparência diria necessariamente respeito a uma abordagem discursiva de fenômenos linguageiros – fosse essa abordagem discursiva qual fosse –, como se pode constatar ao cotejarmos os dois grupos de sintagmas a seguir: (i) “análise do discurso francesa”, “análise do discurso brasileira”; (ii)“análise do discurso jornalístico”, “análise do discurso francês sobre os refugiados”. Estamos convencidos de que apenas as formas do grupo (i) dizem respeito ao que denominamos “Análise do discurso”, e isto porque, nas expressões do grupo (ii), “análise do discurso” não é, conforme buscaremos demonstrar, um constituinte intermediário dos sintagmas maiores. Com o apoio de algumas lições deixadas pelo descritivismo linguístico norte-americano, procedemos a seguir a um breve exame de um sintagma de cada grupo, de modo a verificar se suas estruturas hierárquicas sempre preveem a presença do constituinte “análise do discurso”. Para tal fim, recorremos ao procedimento de parentetização: (i) [[[análise d[o discurso]] francesa] (ii) [análise d[o discurso francês sobre [os refugiados]]] Como se percebe, as hierarquias evidenciadas em (i) e (ii) revelam uma importante diferença estrutural. Em (i), um primeiro nível de constituição de sintagma pode ser identificado em “o discurso”; um segundo nível permite-nos apreender o sintagma “análise do discurso”, e somente em um terceiro nível hierárquico chegaríamos ao elemento que funciona como qualificador do sintagma formado no nível anterior, ou seja, é essa “análise do discurso” que se caracteriza como francesa (razão pela qual se encontra a forma feminina do adjetivo – “francesa” –, concordando com “análise”, que é o núcleo do sintagma formado anteriormente). Já em (ii), “o discurso francês sobre os refugiados” é um sintagma no qual “francês”, 14 no masculino, só pode se referir a “discurso”, termo que acaba, então coincidindo com “alocução”, “reunião de textos produzidos a respeito dos refugiados”, para, num último nível, se falar da análise (isto é, o estudo, a investigação) dos textos proferidos sobre o referido tema. Não se tem, portanto, neste caso, o constituinte “análise do discurso” em nenhum dos níveis hierárquicos intermediários de formação do sintagma maior. Por essa razão, restringiremos o campo das diferentes Análises do discurso (que, como disciplina, preferimos grafar com letra maiúscula), caracterizando-as como aquelas cuja estrutura hierárquica é a apontada no grupo (i)3. Quanto aos que anunciam um trabalho de análise de um dado tipo de discurso, característico do grupo (ii), várias serão as escolhas teóricas que poderão ser feitas para tal fim, visto que a(s) Análise(s) do discurso nunca pretenderam ter o monopólio do trabalho de leitura dos textos. 2. Quem trabalha com o discurso? Fizemos referência à polissemia de “discurso” e mesmo à diversidade de “análises do discurso”. Por certo não se sustentou o projeto traçado por Z. Harris de instituir uma – e só uma – “Discourse Analysis” em 1952, em artigo publicado na revista Language que, mais tarde, em 1969, integrou o volume 13 da revista Langages, organizado por J. Dubois e J. Sumpf. O referido volume de Langages trata de temas como enunciado e enunciação e coloca em foco o das tipologias dos discursos. Seus organizadores, em “Problemas da Análise do Discurso”, artigo que abre o volume, defendem ponto de vista sobre discurso que se aproxima da perspectiva de Harris: “a sequência de frases constitui o enunciado que se torna discurso quando se podem formular regras de encadeamento de sucessões de frases” (DUBOIS; SUMPF, 1969, p. 3). Tal reflexão sobre discurso, baseada em uma lógica de encadeamentos subjacente aos textos, distancia-se do que ao mesmo tempo se produz na França em um ano como o de 1969, emblemático da pujança dos investimentos nos estudos discursivos: a Análise do discurso que qualificamos de francesa (ou pêcheutiana), a linha sociolinguística, os estudos foucaultianos do discurso. Nãopretendemos aqui refazer o longo itinerário de significações de “discurso” ou das diversas “Análises do discurso”, uma vez que esse não é nosso objetivo, e também porque tal temática já foi suficientemente explorada em muitos outros trabalhos. Estaremos interessados em pensar a diversidade dos estudos voltados para o discurso a partir da população que os pratica, para retomar a designação 3 Desse modo, incluiremos nessa categoria, independentemente de nossas opções teóricas, orientações tão diversas quanto a Análise do discurso francesa, a Análise pragmática do discurso, a Análise semiolinguística do discurso, a Análise crítica do discurso, a Análise do discurso ecológica, a Análise positiva do discurso, etc. 15 utilizada por Maingueneau (2012, 2015). A razão de tal escolha prende-se a reflexões que consideramos necessárias ao tema e que não foram abordadas pelo autor. Para tal fim, será importante proceder a um contraponto entre o que o autor discute no artigo de 2012, intitulado “Que cherchent les AD?”4, e no livro Discurso e Análise do Discurso, editado na França em 2014 (e, no Brasil, em 2015), para situar o debate sobre “análise do discurso” e “estudos do discurso”. Em seguida, faremos a crítica a tais posições do autor e proporemos alguns pontos que deverão nortear a Análise do discurso que desejamos praticar. Entendendo por discurso a articulação de textos e de lugares sociais, o autor propõe uma diferença entre os estudos do discurso e a Análise do Discurso: Em minha própria perspectiva (Maingueneau, 1995), a análise do discurso é apenas uma das disciplinas dos estudos de discurso: retórica, sociolinguística, psicologia discursiva, análises da conversa, etc. Cada uma dessas disciplinas é governada por um interesse específico. (MAINGUENEAU, 2012, tradução nossa) Cotejando as referidas obras, percebe-se uma diferença no que concerne ao problema da tipologia dos discursivistas proposta pelo autor. Com efeito, no artigo de 2012, os discursivistas são divididos em 3 blocos (ou “populações”, como prefere o autor): no primeiro incluem-se os pesquisadores cuja perspectiva é de ordem “parafilosófica”. Os temas preferidos dos estudos aí desenvolvidos por pesquisadores ligados aos “cultural studies” são “a diferença sexual, a subjetividade, o poder, a escritura, a dissidência” (MAINGUENEAU, 2012); as análises então oferecidas por essa perspectiva centram-se em teses de caráter geral sobre o discurso, que acabam sendo apenas ilustradas por meio da análise do funcionamento dos textos; no segundo grupo de discursivistas, o autor inclui aqueles que utilizam a análise do discurso como “método qualitativo” ao qual se recorreria como instrumento a serviço das ciências humanas e sociais para o tratamento de um córpus5. Para este segundo grupo, o discurso oferece índices que permitirão ao pesquisador o acesso a “realidades” situadas fora da linguagem. O grande risco de tal posição frente à análise do discurso é “apagar ou, pelo menos, atenuar a fronteira entre o estudo do discurso e a ‘análise do conteúdo’6 ..., que propõe técnicas para 4 Argumentation et Analyse du Discours, 9, 2012. 5 Conforme vimos defendendo, pensamos convir insistir na grafia córpus, que usamos tanto no singular como no plural, regularizando uma forma que, por seu largo uso nos estudos linguísticos, já nos parece merecer ser reconhecida em língua portuguesa. 6 Sobre a distância entre análise do conteúdo e Análise do discurso, remetemos o leitor a Rocha e Deus- dará (2017). 16 extrair informação de documentos, mas não leva em consideração sua estruturação linguística” (MAINGUENEAU, 2012). Segundo o autor, este é o grupo mais numeroso de discursivistas; . o terceiro e último grupo, assentado mais solidamente nas ciências da linguagem, busca um “equilíbrio entre a reflexão sobre o funcionamento do discurso e a compreensão de fenômenos de ordem sócio-histórica ou psicológica” (MAINGUENEAU, 2012). Em Discurso e Análise do Discurso, o autor apresenta um panorama dos discursivistas ligeiramente modificado. Com efeito, em Maingueneau (2015), no subitem 2.3, intitulado “Teoria do discurso e análise do discurso”, o autor apresenta dois grandes grupos de discursivistas: aqueles que trabalham com a teoria do discurso, numa mescla de “preocupações advindas do pós-estruturalismo, dos ‘cultural studies’ e do construtivismo”, e questionam os pressupostos das ciências humanas e sociais, por um lado; por outro, aqueles que são analistas – o itálico é do próprio autor – do discurso, ou seja, os que estudam diferentes córpus e, por essa razão, constituem o interesse dos estudos do autor na referida obra. Esse segundo grupo de discursivistas é, então, subdividido em dois subgrupos: (i) aqueles para os quais a análise do discurso é uma caixa de ferramentas no vasto conjunto dos “métodos qualitativos” das ciências humanas e sociais (grupo coincidente com o segundo grupo apresentado no artigo anterior); (ii) aqueles que o autor denomina “analistas do discurso canônicos” (grupo que corresponde ao terceiro grupo do artigo anterior). A rearrumação do campo proposta pelo autor denuncia, ainda que sem o explicitar, o claro privilégio da natureza e do tipo de relação mantida com um córpus específico, tanto para promover a separação entre os dois grupos, quanto para proceder à subdivisão interna do segundo grupo. O referido critério, porém, parece, antes, cumprir a função de elidir um mapa da área que produziria um efeito indesejável: o de apartar em excesso um território disciplinar em torno da linguagem de outras áreas conexas, cujo intercâmbio conceitual se mostrou indispensável desde os primeiros gestos de uma perspectiva discursiva. 3. A Análise do discurso que desejamos praticar Na primeira seção deste trabalho, interrogamos as operações promovidas pelo senso comum na atribuição de sentido a “discurso”, afirmando nossa opção pela indissociabilidade entre produção de textos e prática social, e demonstramos usos distintos para o rótulo “análise do discurso”, enfatizando que, em suas ocorrências, nem sempre se remete à diversidade das Análises do discurso. Na segunda seção, recuperamos uma proposta de desenho do campo que privilegia o córpus como 17 critério para a delimitação da área. Entendemos que tal critério é insuficiente por fazer ver uma circunscrição restrita da Análise do discurso ao campo disciplinar dos estudos da linguagem. Nesta seção, nossa reflexão estará voltada para a opção que fazemos de intensificar o diálogo com a categoria de discursivistas interessados por uma teoria do discurso, conforme enuncia Maingueneau, por razões que apresentaremos à frente. Também tematizaremos duas questões relevantes do ponto de vista metodológico, referentes à produção de um córpus e à eleição de entrada(s) linguística(s) de leitura do córpus produzido, que costumam constituir verdadeiros impasses no trabalho de análise. Finalmente, buscaremos sintetizar o tipo de inscrição que reivindicamos no campo nos estudos do discurso. 3.1 Da necessidade de uma teorização plural Iniciamos nossas considerações a respeito da tipologia de discursivistas proposta por Maingueneau por uma crítica à posição que consiste em isolar os de preocupação “parafilosófica”, interessados por uma “teoria do discurso”, para centrar a atenção nos que são apresentados como (verdadeiros?) “analistas do discurso”, aqueles que trabalham com um córpus, como diz o autor. No primeiro grupo, Maingueneau cita os nomes de M. Foucault, J. Butler, G. C. Spivak, E. Laclau, C. Mouffe, M. Pêcheux e J. Habermas, além de mencionar a influência de L. Althusser e J. Lacan. Nossa reflexão incide aqui sobre o seguinte aspecto: os que se interessam por uma “teoria do discurso” são, coincidentemente, aqueles que têm proporcionado uma teorização, senão mais consistente, pelo menos mais diferenciada sobre inúmeros aspectos pertinentes a uma Análise do discurso. À lista de nomes mencionados pelo autorque acima transcrevemos acrescentamos, de nossa parte, minimamente os nomes de G. Simondon, G. Deleuze, F. Guattari, G. Agamben, B. Latour, por suas contribuições acerca do social e da subjetividade, tópicos que, dentre outros, não podem estar ausentes de um trabalho em Análise do discurso. Em relação a essa categorização em dois grandes grupos, entendemos que Maingueneau já defendeu posição mais “modalizada” e, por isso mesmo, a nosso ver, mais acertada, como é o caso, por exemplo, do texto do próprio verbete “Análise do discurso”, no Dicionário de Análise do Discurso: A análise do discurso, situada no cruzamento das ciências humanas, é muito instável. Há analistas do discurso antes de tudo sociólogos, outros, sobretudo linguistas, outros, antes de tudo psicólogos. A essas divisões acrescentam-se as divergências entre as múltiplas correntes. (MAINGUENEAU, 2004, p. 45) Como se percebe, o rótulo “analistas do discurso” não é aqui reservado apenas “aos que trabalham com córpus”. Ainda que não entendamos como produtivo 18 o fatiamento dos estudos do campo social, parece haver, por parte do autor, uma sensibilidade maior às necessárias interseções – e intercessões – entre considerações de ordem discursiva, sociológica, psicológica (e, acrescentamos, filosófica). A esse respeito, cumpre observar que o que acima chamamos de “posição mais modalizada” do autor parece já estar presente no mesmo texto de 2015, em seu segundo capítulo, no subitem 2.2, intitulado “Fora da linguística”. Com efeito, se é categórica a posição defendida pelo autor em subitem posterior da mesma obra7, no sentido de excluir do campo dos analistas do discurso aqueles que buscam construir uma teoria do discurso, o próprio autor já havia reconhecido, em 2.2, o lugar decisivo das interações entre ciências da linguagem e ciências humanas e sociais no debate sobre as diferentes acepções de “discurso”. É nesse sentido que Maingueneau menciona, então, ao lado do interacionismo simbólico de Mead, ou do dialogismo de Bakhtin, muitos daqueles mesmos discursivistas que, posteriormente, serão excluídos do foco de sua atenção na referida obra (a exemplo de Foucault, Butler, Laclau e mesmo Deleuze, dentre outros). O que ora desejamos enfatizar é que o trabalho daqueles que o autor inclui, no texto de 2015, na categoria dos que “estudam corpora” e que, por isso, são os que atraem o seu interesse (MAINGUENEAU, 2015, p. 32) incorre em uma tomada de posição, diríamos, paradoxal: são, ao mesmo tempo, excessivamente e não suficientemente articulados às ciências humanas e sociais. Um bom exemplo do que aqui dizemos pode ser localizado nos debates acerca do discurso político ou dos imaginários sociodiscursivos, em Charaudeau (2017), ou sobre ideologia e minorias, em trabalhos diversos de Van Dijk. Com efeito, nesses casos, é muito claramente assumida a contribuição de autores como Moscovici, Abric, Johnson-Laird, Eagleton, para citar apenas alguns nomes. Em contrapartida, estão sistematicamente ausentes de seus quadros teóricos e, diríamos mesmo, do quadro teórico da maioria de estudiosos da linguagem reflexões desenvolvidas por autores como Deleuze, Foucault, Simondon, Maturana, Varela, Nietzsche, Espinosa, que muito teriam a contribuir para os temas acima elencados e, certamente, para muitos outros. Somos da opinião de que é precisamente de uma reflexão mais diversificada que carecem os estudos da linguagem – uma diversificação que caracterizamos, grosso modo, como devendo incluir trabalhos assentados em uma filosofia da diferença, isto é, contribuições que não estejam confinadas à perspectiva da filosofia da representação. Esse tem sido o tipo de território ao qual vimos buscando dar consistência em nosso trabalho como discursivistas. Diante do que se tem apresentado como hegemônico no campo dos estudos linguageiros, parece-nos ainda distante a possibilidade de se atualizar esse novo posto de observação das práticas de uma sociedade a que se refere Maingueneau: 7 Referimo-nos aqui ao subitem 2.3, intitulado “Teoria do discurso e análise do discurso”. 19 Os estudos de discurso aparecem como um campo de pesquisa que se alimenta de forças contraditórias, partilhado entre ... a vontade de delimitar um espaço específico e a de se deixar absorver pelas ciências humanas e sociais. Mas esse campo, por mais problemática que possa ser sua identidade, constitui um novo posto de observação das práticas de uma sociedade, um posto que modifica a forma pela qual apreendemos a linguagem, a subjetividade, a sociedade, o sentido. (MAINGUENEAU, 2015, p. 181) 3.2 Da produção do córpus de análise, ou “Já coletei 20 editoriais para minha pesquisa. Isso já basta?” Numa paródia da voz de muitos que se iniciam nas atividades de pesquisa, ilustramos, no título desta seção, um dos impasses recorrentes do trabalho com a Análise do discurso: como se chega à produção – e não mera coleta – de um córpus? Com efeito, uma diferença que precisa ser levada em conta diz respeito à distância que separa a coleta de um córpus versus a produção de um córpus de pesquisa. Não se trata, aqui, de uma questão de quantidade de textos a serem analisados, e sim da assunção de uma atitude que reconheça que a ordem e a sucessão de enunciados efetivamente produzidos no mundo nada têm a ver com uma ordem do discurso, a qual já é uma hipótese de trabalho do analista e que, por isso mesmo, implica uma constante recomposição dos procedimentos de análise. Em outras palavras, quando se fala de “coleta de córpus”, naturaliza-se o material com o qual se pretende trabalhar, assumindo-se uma postura que, com algum humor, poderíamos denominar “extrativista”: o pesquisador vai a campo colher os enunciados que lhe parecerem mais adequados para uma atividade de análise, numa atitude que, como é bem característico das diferentes formas de extrativismo, apresenta muitos pontos em comum com uma ação predatória. Nessa orientação, o plano institucional a partir do qual os enunciados emergem como materialidade costuma ser “achatado” e “colado” à rotina de um mero funcionamento organizacional – diferença que, grosso modo, residiria na oposição entre o plano das formas organizacionais instituídas e o das relações institucionais de força agindo na produção de regras e valores. A descrição dos espaços e das rotinas teria, assim, a função de apartar a materialidade linguística do campo de forças institucionais em jogo, tornando-o ilusoriamente estável e exterior aos enunciados. Deste modo, o que pretendemos evitar é o que muitas vezes se dá: o analista acaba se tornando um “colecionador de córpus”, em procedimentos que lembram a guarda de documentos de uma língua morta, quando o pesquisador-taxidermista 20 se esforça por fazer parecer vivo algo que, na realidade, em decorrência da cisão operada entre discurso e instituição, foi reduzido à inércia de um simulacro de produção verbal 8. 3.3 Dos procedimentos analíticos, ou “Eu quero trabalhar com ‘negação polêmica’ no meu córpus” Um outro problema que também merece reflexão é o da passagem de um quadro teórico definido para a delimitação dos procedimentos analíticos. Se, por um lado, o emprego de dispositivos analíticos é uma das preocupações centrais de um trabalho de pesquisa em Análise do discurso, por outro, a sua eleição sem um prévio exercício exaustivo de leitura dos textos que compõem o córpus oferece muitos perigos. Entre os vários perigos, está o de se “comprimir” e “achatar” o processo de problematização dos recursos e procedimentos a partir dos quais se tornou dizível um certo conjunto de enunciados e uma certa configuração institucional. O que queremos dizer aqui é que uma etapa incontornável do trabalho é o exame das marcas – verbais e não verbais – presentes nos textos, etapa que pressupõe leituras sucessivas do material trabalhado. É preciso abrir espaço para uma sensibilidade que dirá, ao cabo de um certo tempo, qual a entrada linguísticamais promissora para a investigação pretendida. Essa sensibilidade caracteriza o trabalho do analista do discurso como o de um analista institucional9, para quem as marcas linguísticas operam como expressão de forças em jogo numa dada instituição. Afinal, a insistência em um determinado perfil de materialidade – a ênfase em dada estrutura sintática, em dado campo semântico, na retomada insistente de um tópico, na presença de enunciados negativos – parece nunca ser gratuita, apontando, via de regra para a produção de efeitos de sentidos significativos no material sob investigação, em articulação com uma dada espessura institucional. Contrariamente ao que ora propomos, a eleição prévia de uma entrada linguística promove a cisão entre a gênese teórica e a gênese social de um trabalho de análise, gerando conceitos definidos antes de qualquer análise, bem como textos produzidos antes de qualquer recorte do pesquisador. Trata-se de um outro modo de investir na ficção de objetividade científica, ou, em outras palavras, de uma pretensa neutralização das forças que vinculam o pesquisador e uma dada realidade institucional. À guisa de exemplificação do que ora dizemos, lembremos pesquisas como a de Rodrigues (2002). Interessada no debate centrado em bilinguismo e educação de 8 Sobre a distância entre texto e córpus, a reflexão feita por Maingueneau (2015, p. 39-41) também poderá ser útil ao leitor. 9 Para um aprofundamento dos vínculos entre Análise do discurso e Análise institucional, remetemos o leitor a Rocha & Deusdará (2010, 2017). 21 surdos, a autora optou por trabalhar com a revista Espaço, importante publicação do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES). Após o necessário trabalho de saturação de leituras, Rodrigues se dá conta da insistente presença de enunciados negativos nos artigos publicados, o que a faz levantar a hipótese de que o “não” deveria ser constitutivo daquele conjunto de textos. Sua intuição se vê confirmada quando uma análise da negação polêmica no córpus lhe permite a depreensão de 4 diferentes tipos de enunciadores, cuja presença foi relevante no debate sobre a surdez. Muitos outros casos poderiam aqui ser citados. De forma breve, apenas mencionaremos algumas poucas manifestações desses lugares de produção de efeitos de sentido assentados na materialidade linguística. Lugares tão diversificados quanto os que a seguir enumeramos: (i) um padrão sintático de formas, como em texto extraído da tirinha As Cobras (Jornal do Brasil, Caderno B de 25/10/1998): “O empresário honesto paga pelo corrupto. Isso não pode continuar. Tem que pagar para o corrupto”; (ii) uma escolha lexical, como foi o caso da “cruzada contra o inimigo”, anunciada pelo presidente norte-americano, G. W. Bush, em setembro de 2001, para se referir à reação dos Estados Unidos frente à destruição do World Trade Center – uma escolha equivocada, uma vez que o termo “cruzada” ativava uma memória discursiva não de enfrentamento de atos terroristas, mas de combate ao mundo árabe10; (iii) a captação de implícitos, como é o caso de alunos de uma instituição pública de ensino superior que, desejando saber de cada um de seus professores se dariam aula ou não durante uma greve, preferem perguntar “professor, você vai aderir à greve?”, formulação que lhes parece bem menos “ofensiva” do que “professor, você vai furar greve?”. Como se percebe, a diversidade de entradas linguísticas tem o mérito de, em cada contexto específico, proporcionar o acesso a posicionamentos em embate, a um jogo de forças sócio-historicamente constituído e que ganha expressividade na espessura textual. Um trabalho de análise sustentado na indissociabilidade entre o discursivo e o institucional se caracteriza justamente por essa busca. 10 O incômodo causado pelo termo “cruzada” ficou registrado na imprensa: “Washington - O porta-voz da Casa Branca, Ari Fleischer, disse que o presidente dos EUA, George Bush, lamenta ter usado a palavra “cruzada” ao se referir à sua guerra contra o terrorismo, por causa das implicações históricas e religiosas. No domingo, Bush havia dito a repórteres que “esta cruzada contra o terrorismo vai durar algum tem- po”. “Acho que, à medida que essa palavra tem conotações que irritariam alguns de nossos parceiros ou qualquer um no mundo, o presidente lamenta que qualquer coisa assim tenha sido implicada. O sentido de sua declaração foi o tradicional em inglês, de uma causa ampla”, disse Fleischer.” (Estadão.com.br – 18/9/2001). 22 3.4 Do trabalho com um córpus em diálogo com uma prática social Já nos pronunciamos nos itens anteriores sobre a distância entre coletar e produzir um córpus, e também sobre a delicada decisão de escolha de uma entrada linguística. Se dizemos que não se coleta um córpus como quem colhe flores em um campo, é porque os enunciados só têm interesse quando efetivamente funcionam como tais, isto é, quando apreendidos na qualidade de correlatos de uma comunidade que os produz e que, a seu turno, por intermédio desses mesmos enunciados, ganha concretude. O que aqui lembramos é precisamente a definição de prática discursiva, que não pode ser esquecida quando tratamos de produzir um córpus de pesquisa: não há como autonomizar os textos e deixar de considerá-los sob a ótica da comunidade discursiva que é a contrapartida desses textos, na medida em que em tal conjugação é que reside a possibilidade de definir uma certa ordem social que, no final das contas, constituirá o interesse maior de toda análise. Pela definição de discurso que nos serve de apoio, segundo a qual se trabalha na interseção de texto(s) e de uma comunidade, entendemos que, ao lado dos textos que nos interessam, há uma comunidade que enuncia em um dado tempo, um dado espaço, perseguindo determinados fins, etc. Talvez esses textos nos interessem justamente em função da reversibilidade que se produz frente a essa mesma comunidade que lhes dá legitimidade e cuja existência eles tornam possível. Logo, com base em um córpus, mas também para além deste, nosso interesse precisa estar centrado fundamentalmente em agenciamentos: de que modo uma enunciação – sempre coletiva – encontra a materialidade de corpos que se agrupam em torno de enunciados produzidos. Assumindo tal posição, talvez o principal para a caracterização do analista do discurso não seja exatamente o fato de serem “estudiosos de córpus”, como valoriza Maingueneau: a maioria absoluta dos discursivistas não trabalha neste campo da teoria do discurso; são analistas do discurso, com auxílio de múltiplos métodos, estudiosos de corpus. São os que me interessam nesta obra. (MAINGUENEAU, 2015, p. 32) Constituindo-se já como uma visada especial do analista em relação a textos que circulam na sociedade – tanto os textos que pré-existem à ação do pesquisador, quanto os que são recortados e transcritos para posterior consideração (MAINGUENEAU, 2015, p. 40) –, um córpus se legitima quando em correspondência com a ação de protagonistas de uma prática que justifique a urgência de novas leituras como dispositivo de intervenção – a intervenção de que é capaz o analista do discurso – em uma dada ordem social. 23 Conclusões (como se concluir fosse possível ...) Encerramos este capítulo no qual buscamos pistas para refletir acerca das diversas modalidades de inscrição dos pesquisadores no campo das Análises do discurso. Nesse percurso, as pistas perseguidas caracterizam, a nosso ver, um duplo movimento: (i) interrogar o senso comum e as implicações com imperativos aprisionantes acerca do exercício da pesquisa; (ii) discutir as fronteiras que pretendem inscrever problemas em territórios disciplinares. O percurso realizado procurou recuperar textos de ampla circulação e enunciados que nos são dirigidos em nosso trabalho cotidiano de orientação. Em certo sentido, o acesso a esses textos acaba por reiterar, de maneira particularmente interessante, a noção de prática discursiva à qualbuscamos nos alinhar: a captação desses textos marca simultaneamente nosso pertencimento a um grupo de pesquisa que ora se organiza e reúne textos neste livro. Sem dúvida, este é um trabalho que marca a parceria de mais de uma década de seus autores – recorremos a uma estranha 3ª pessoa para cindir provisoriamente a enunciação no plural. Remontamos, assim, às primeiras experiências de pesquisa compartilhada entre orientador e bolsista de Iniciação Científica, que buscavam mapear, na emergência histórica e conceitual da Análise do discurso, uma trajetória de rupturas com o conteudismo (ROCHA; DEUSDARÁ, 2005, 2006, DEUSDARÁ; ROCHA, 2006). Uma experiência que se estende ao momento atual, quando, lotados em um mesmo departamento e participando de uma mesma linha de pesquisa, reconhecemo-nos na função de pesquisadores e orientadores de monografias, teses e dissertações, numa trajetória que sustenta sua coerência no investimento em um trabalho sempre coletivo de formação de um grupo de pesquisa que vem assumindo, ao longo dos anos, configurações diversas em sua composição, em suas escolhas temáticas, nos diálogos com outros campos do saber. Dando consistência a esse investimento, temos a certeza de que, para além das hierarquias implícitas no encontro de professores e alunos, graduandos e pós-graduandos, formar um coletivo de trabalho implica, acima de tudo, acolher um constante questionamento a respeito dos investimentos profissionais, das crenças sobre o trabalho de pesquisa, das disponibilidades e dos talentos, sempre presentes. Com isso, já quase ao final deste capítulo, uma questão parece atravessar toda a discussão que vimos desenvolvendo: a produção de grupo se realiza e se configura também pelas práticas de linguagem, o que reafirma nossa aposta em uma Análise do discurso como um campo de indagação da ordem sócio-histórica. Em um último exercício de reflexão, parece-nos necessário fazer ver de que modo essa aposta multidisciplinar pode contribuir com uma indagação acerca de resquícios de noções cristalizadas, presentes no campo dos estudos linguísticos. Referimo-nos especialmente aqui a uma genérica noção de comunicação, muito 24 regularmente presente nos debates centrados nas práticas linguageiras, como ocorre, por exemplo, quando Maingueneau, ao definir a população de analistas do discurso “canônicos” como aqueles que “se esforçam para manter um equilíbrio entre a reflexão sobre o funcionamento do discurso e a compreensão de fenômenos de ordem sócio-histórica ou psicológica”, explicita que tal equilíbrio consiste em “determinar de que maneira, em uma sociedade determinada, a ordem social se constrói por meio da comunicação” (MAINGUENEAU, 2015, p. 33). A esse respeito, apresentamos duas ordens de argumentos para deslocar a comunicação do lugar central que lhe designa o autor na construção do social, quando é grande o risco de uma excessiva dissociação entre o linguístico e o social, tal como se observa nas abordagens que se assentam em uma perspectiva fortemente representacional: por um lado, o linguístico é apenas um componente dentre outros a participar da construção de tal ordem social e seu coeficiente de transversalidade; por outro, em uma prática linguageira, a comunicação ou a informação são secundárias em relação à palavra de ordem. Nessas duas ordens de considerações, inspiramo-nos em conceitos oriundos da filosofia da diferença: transversalidade e palavra de ordem. Por transversalidade, Guattari busca superar dois impasses no nível do funcionamento institucional, a saber, “o de uma pura verticalidade e o de uma simples horizontalidade”. A hipótese que funda o referido conceito é a seguinte: “é possível modificar os diferentes coeficientes de transversalidade inconsciente nos diferentes níveis de uma instituição” (GUATTARI, 1987, p. 96). Como se vê, para o autor, a ordem social das hierarquias e dos especialismos que caracteriza, por exemplo, uma clínica psiquiátrica, pode ser apreendida, entre outros aspectos, pelo modo como os diferentes grupos tomam a palavra. Para ele, “a transversalidade no grupo é uma dimensão contrária e complementar às estruturas geradoras de hierarquização piramidal e dos modos de transmissão esterelizadores de mensagens” (GUATTARI, 1987, p. 100). Não parece difícil perceber a convergência entre o que se diz aqui e o que discutimos acima a respeito da relação imanente entre discurso e poder. Observe- se como tal perspectiva abre contornos interessantes para a produção simultânea entre linguagem e ordem social: ... todo mundo está cansado de saber que o Estado não faz a lei em seus ministérios. Da mesma forma pode acontecer que num hospital psiquiátrico o poder de fato escape dos representantes patenteados da lei e se reparta entre diversos subgrupos: serviço, chefetes, ou – por que não? – clube inter-hospitalar, associação do pessoal, etc. (GUATTARI, 1987, p. 97) 25 A comunicação nunca é mera “transmissão de mensagens”, mas reiteração de palavras de ordem. Para Deleuze e Guattari, essa noção remete não a “uma categoria particular de enunciados explícitos (por exemplo, no imperativo)”, mas à “relação de qualquer palavra ou de qualquer enunciado com pressupostos implícitos, ou seja, com atos de fala que se realizam no enunciado, e que podem se realizar apenas nele” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 16). Longe de restringir o enunciado às informações que ele carrega, o que se deseja ressaltar é o modo como a circulação dos enunciados encontra-se indissoluvelmente implicada com os implícitos que agencia, favorecendo a emergência de mundos possíveis. Os jornais, as notícias, procedem por redundância, pelo fato de nos dizerem o que é ‘necessário’ pensar, reter, esperar, etc. A linguagem não é informativa nem comunicativa, não é comunicação de informação, mas — o que é bastante diferente — transmissão de palavras de ordem, seja de um enunciado a um outro, seja no interior de cada enunciado, uma vez que um enunciado realiza um ato e que o ato se realiza no enunciado (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 17). Para concluir com um exemplo bastante atual, recuperamos, em 3.3, dois enunciados que apenas aparentemente se equivaleriam: “professor, você vai aderir à greve?” e “professor, você vai furar greve?”. Antes mesmo de se obter algum tipo de informação a respeito da participação de docentes no movimento grevista, a preferência por um ou outro desses enunciados fornece pistas imprescindíveis para reflexões a respeito do modo como se vem contribuindo para instituir a relação entre professor-aluno (que solicitações se “autorizam” fazer?), a relação entre professores e os fóruns da categoria docente de uma dada universidade (que compromisso cada um de nós assume com a construção das decisões coletivas?), a aposta na fragilização de um coletivo de trabalho de base (que convocações para encontros em Unidades acadêmicas não são realizadas?). Como se vê, os enunciados a partir dos quais nos inscrevemos no mundo dão corpo a um conjunto bastante complexo de forças em jogo que podemos acessar por meio de sua materialidade, desde que não se perca de vista sua espessura institucional e não meramente comunicacional. 26 Referências CHARAUDEAU, P. Discurso político. São Paulo: Contexto, 2017 [2005]). 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