Prévia do material em texto
Botânica Econômica Responsável pelo Conteúdo: Prof.ª Dr.ª Rosana Cristina Carreira Revisão Textual: Prof.ª Dr.ª Selma Aparecida Cesarin Agricultura e a Domesticação de Plantas Agricultura e a Domesticação de Plantas • Apresentar como ocorreu a evolução humana e a relação com as plantas silvestres; • Conhecer os processos de domesticação das plantas e suas características; • Entender quais são os Sistemas Agrícolas, compreender suas diferenças e distinguir as características entre Agricultura extensiva e Agricultura intensiva. OBJETIVOS DE APRENDIZADO • Introdução; • A Evolução Humana e a Relação com as Plantas; • Origem da Agricultura; • Síndromes de Domesticação das Plantas; • Sistemas Agrícolas e os Impactos Ambientais. UNIDADE Agricultura e a Domesticação de Plantas Introdução Você já se deu conta de como as plantas fazem parte da nossa vida, todos os dias, desde que acordamos até a hora que vamos dormir? Respondeu à minha pergunta com um “não”? Vejamos: vamos refletir um pouco! As plantas fazem parte do nosso cotidiano de forma direta ou indireta, sem nos darmos conta! Se você observar a composição dos seus produtos de higiene básicos, encontrará componentes como os extratos de menta, de algodão, de castanha-do-Pará, presença de óleos essenciais e uma infinidade de outros produtos derivados de plantas. E em nossa alimentação? Observe atentamente a variedade de opções de pratos, como mostra a Figura 1 e se lembre, também, das suas refeições nesses últimos dias. Figura 1 – Pratos diversos com vegetais em suas composições Fonte: Getty Images Observou bem? Hummm... deu até fome, não é mesmo? Você deve ter reparado que em todos os pratos mostrados na imagem há plantas utilizadas de forma direta ou indireta, seja na composição de massas (o trigo ou a batata-inglesa, por exemplo), seja na elaboração de molhos (tomates e pimentas) seja na decoração dos pratos (salsinha e limão). Não há como negarmos que precisamos das plantas para nossa sobrevivência! E como se iniciou a relação de dependência da Humanidade com a flora? 8 9 Muitos especialistas consideram que a Agricultura surgiu quase que ao mesmo tempo que as populações humanas. A relação homem-flora não era tão próxima, pois esses povos primitivos eram nômades e consumiam os animais e as plantas silvestres pelo período em que per- maneciam em um determinado local. Assim que esses recursos se esgotavam, iniciava-se uma nova busca pela oferta abundante de alimentos e abrigos melhores! A Evolução Humana e a Relação com as Plantas É bem provável que os nossos ancestrais mais próximos, os indivíduos do gênero Homo, conseguiram sobreviver devido à busca por animais mortos e, eventualmente, pela caça, mas não de forma exclusiva. Havia também a coleta de frutos, sementes, ramos e folhas comestíveis, além da prática da escavação para o encontro de raízes que pudessem ser consumidas. Supostamente, a observação do comportamento alimentar dos animais próximos estimulou nossos antepassados a experimentarem as plantas, quando a caça estava escassa. Esses indivíduos, possivelmente, desenvolveram-se a partir de membros do gênero Australopithecus e possuíam cérebros muito mais volumosos. Achados arqueológicos evidenciaram que a espécie H. habilis é a mais antiga do gênero Homo, vivendo no leste africano, aproximadamente de 2,2 a 1,6 milhões de anos atrás. Esses hominídeos tinham uma caixa craniana maior que as demais espécies ante- riores, o que contribuiu para a fabricação de ferramentas rudimentares de pedra lascada e, provavelmente de madeira e ossos também, porém sem registros fósseis. Com características muito próximas ao do H. habilis, a espécie H. erectus é con- siderada a Figura evolutiva entre H. habilis e H. sapiens. Os registros mostraram que a espécie H. erectus têm a forma de um ser humano típico, com caixa craniana com aumento de 50% em relação à espécie anterior, com postura bípede e adaptado ao ambiente com clima do tipo tropical. Os abrigos eram em cavernas. Havia a confecção de ferramentas mais elaboradas e, supostamente, foi a primeira espécie a utilizar e dominar o fogo. A Idade da Pedra Lascada ou Período Paleolítico é considerado o primeiro período da Pré-História. É chamado assim porque a pedra era a matéria-prima principal utiliza- da na confecção de ferramentas e armas, de corte ou percussão. Os fósseis mais antigos de H. erectus estão na África, mas, aparentemente, migra- ram para a Ásia e para a Europa. 9 UNIDADE Agricultura e a Domesticação de Plantas Acredita-se que o domínio do fogo tenha contribuído para a mudança da África para os continentes Asiático e Europeu, cujos climas são mais frios. Especialistas afirmam que H. erectus vivia em bandos e caçava em grupos do mesmo modo que os modernos caçadores-coletores, evidenciando a cooperação e a divisão de alimentos. Há registro de formação de grupos menores, simbolizando uma organização fami- liar (Figura 2). Até aqui, não há registros de cultivos de plantas, apenas a coleta e o consumo local de plantas silvestres (RAVEN et al., 2018). Figura 2 – Acampamento pré-histórico da família do homem das cavernas. Recriação feita nas cavernas de la Balme, na França, composta por pai, mãe e filho Fonte: Getty Images A Transição para Homo Sapiens Sapiens Sempre haverá polêmicas quando se tenta responder às questões de quando e como apareceu a nossa espécie. Há pelo menos duas hipóteses paleoantropológicas que discutem a nossa origem: Hipótese de Radiação: Propõe que os humanos modernos evoluíram a partir de uma po- pulação de H. sapiens arcaicos que migrou da África e substituiu todas as populações huma- nas no mundo. A nossa espécie descende desse grupo que apareceu na África; Hipótese de Evolução Multiregional:Propõe que diversas populações regionais espalha- das pelo mundo evoluíram lentamente até os humanos modernos. Pelo fluxo gênico, as características modernas apareceram em alguns grupos e se espalharam por miscigenação. Os indivíduos da espécie Homo sapiens tinham como características marcantes a capacidade mental elevada e o corpo bípede bem ereto, o que possibilitou o uso dos braços para manipular e produzir objetos mais complexos, a partir de pedras, ossos, marfins e chifres. 10 11 Nossos antecessores eram excelentes caçadores e, com esses animais, partilha- vam os ambientes, facilitando a permanência em um mesmo local, por mais tempo. Eles também iniciaram a criação de pinturas rupestres (ou petróglifos) nas suas caver- nas, estabelecendo uma relação mais próxima do cotidiano com o ambiente à sua volta. Veja exemplos dessas magníficas pinturas nas Figuras 3 e 4. Os petróglifos são preservados por uma camada dura de “verniz do deserto”. Mas, apesar de todas as suas habilidades, ainda seria necessário muito tempo até que esse nosso antepassado longínquo se tornasse capaz de dominar a Agricultura. No entanto, a base de uma Sociedade moderna estava estabelecida. Figura 3 – Petróglifos pré-históricos no Sítio Arqueológico de Twyfelfontein, na Namíbia Fonte: Getty Images Figura 4 – Petróglifos do Parque Nacional da Serra da Capivara, no Estado do Piauí, Brasil Fonte: Getty Images Conheça mais sobre as pinturas rupestres brasileiras e um pouco da história da humanidade! Faça um tour pela Fundação do Homem Americano. Disponível em: https://bit.ly/2CwlIZB 11 UNIDADE Agricultura e a Domesticação de Plantas Com a sua capacidade cerebral mais acentuada e melhor adaptação aos diferentes ambientes, os seres humanos, agora considerados modernos, logo aumentaram sua densidade populacional e migraram por toda a superfície do globo. Com evidências de grandes alterações climáticas somadas ao aumento populacio- nal e à migração, houve o aumento da procura pela caça e o desaparecimento de várias espécies de animais do mundo. Havia menos de 5 milhões de seres humanos espalhados pelo mundo, prova- velmente e, de forma gradual, começaram e intensificaramo uso de novas fontes alimentares. Há relatos de permanência desses seres ao longo dos litorais, lugar onde haveria animais em abundância. Outros, estabeleceram-se em regiões costeiras e iniciaram o cultivo de plantas (RAVEN et al., 2018). Aprofunde seus conhecimentos sobre a evolução humana. O artigo “A grande árvore ge- nealógica humana”, de autoria de Fabrício R. Santos, remonta a história da humanidade baseada em evidências utilizadas por arqueólogos, antropólogos, biólogos e linguistas. Disponível em: https://bit.ly/38UqNXL Origem da Agricultura Não se sabe ao certo como foi realizado o primeiro cultivo de plantas, mas acre- dita-se que foi uma sequência lógica de simples eventos e, para entendermos melhor, devemos ficar atentos às características das plantas e seu habitat. Habitat: é o espaço, o local no ambiente no qual uma espécie vive. Está relacionado ao ambiente físico em que esse organismo habita e nele consegue obter alimento, abrigo, pro- teção e parceiros para reprodução. Há plantas que habitam áreas abertas, expostas às intempéries do clima e com poucas outras espécies que ofereçam competição. Plantas das Famílias Poaceae (família das gramíneas, que produzem grãos) e Fabaceae (família das leguminosas), crescem deliberadamente nesses habitats e tam- bém em áreas degradadas, canteiros ou terrenos desmatados. Pessoas que coletavam esses grãos de forma regular devem ter deixado cair aci- dentalmente alguns deles próximo aos seus acampamentos ou, observando uma semente germinando do solo, podem ter plantado de forma intencional. Não sabe- mos de fato como se iniciou o cultivo de plantas, mas nossos antepassados criaram uma nova fonte segura e regular de alimento (ABBO et al., 2010), além de não necessitarem caçar constantemente. 12 13 Os seres humanos devem ter permanecido por períodos muito longos nos quais há predomínio de gramíneas e leguminosas, que são fáceis de serem coletadas, além de possuírem sementes como fontes importantes de carboidrato e de proteínas (mais nutritivas). Nossos antepassados, de acordo com Raven et al. (2018, p. 935): Aprenderam a aumentar as suas colheitas pelo armazenamento e plantio de suas sementes, pela irrigação e adubação do solo, e pela proteção de suas culturas contra ratos, aves e outras pragas. Essa gestão contínua de recursos “selvagens” pode ter se intensificado gradualmente em direção ao que hoje é considerado cultivo. Ao aprender a cultivar e a cuidar dessas plantas, os primeiros agricultores muda- ram as características delas de tal modo que foram se tornando mais rendáveis, cada vez mais nutritivas e fáceis de coletar. A essas alterações nas plantas ao longo dos tempos, chamamos de domesticação, que veremos mais adiante. Independentemente da forma como hoje adquirimos os alimentos, eles são resul- tados da Agricultura. A Agricultura é a ação ou o ato de se lavrar a terra. Estima-se que a Agricultura teria se originado há cerca de 11 mil anos na região conhecida como Crescente Fértil (área que compreende o Líbano, a Síria, passa pelo Iraque e Irã). As principais características que favoreceram os primeiros cultivos de plantas nessa região são: • Climas tropical e subtropical com elevados índices de insolação, precipitação e umidade relativa do ar, estações seca e chuvosa demarcadas; • Áreas geralmente montanhosas (típicas para o plantio); • Abundância de recursos naturais, refletindo em um solo com fertilidade o suficiente; • Ausência de florestas densas, para evitar competição pelos recursos naturais com as plantas cultivadas. Você Sabia? A expressão Crescente Fértil foi criada pelo arqueólogo James Henry Breasted pelo fato de o formato da união dessas regiões formar um arco que lembra uma Lua crescente. Para se localizar no mundo, veja o mapa da região correspondente ao Crescente Fértil. Disponível em: https://bit.ly/3eu9uxV Centros de Origem de Vavilov Os estudos sobre os centros de diversidade foram iniciados nas décadas de 1920- 1930 pelo pesquisador russo Nicolai Ivanovich Vavilov. 13 UNIDADE Agricultura e a Domesticação de Plantas Esse estudioso realizou uma série de expedições para muitas partes do mundo, coletando espécies selvagens taxonomicamente muito próximas às espécies cultivadas. Vavilov e seus seguidores reconheceram 12 Centros de Diversidade Genética (Figura 5), localizados em áreas tropicais e subtropicais ou temperadas. Até recentemente, os Centros de Diversidade não incluíam áreas brasileiras, mas com o reconhecimento da importância de plantas como o abacaxi, o cacau, o amen- doim e a mandioca, certas áreas do Brasil, como a Amazônia, passaram a representar importantes Centros de Diversidade de plantas alimentícias. Figura 5 – Centros de Diversidade de Vavilov Fonte: Adaptado de Wikimedia Commons 1. Centro mexicano do sul e Centro americano; 2. Centro sul-americano; 2A. Centro chiloé; 2B. Centro brasileiro-paraguaio; 3. Centro mediterrâ- neo; 4. Centro oriental próximo; 5. Centro abissínio; 6. Centro asiático- -central; 7. Centro indiano; 7A. Centro indo-malaio; 8. Chinês. As primeiras plantas cultivadas pelo homem no Crescente Fértil foram a cevada (Hordeum vulgare), a lentilha (Lens culinaris), o trigo (Triticum sp.) e a ervilha (Pisum sativum). A partir dessa região, conhecido como o primeiro centro de cultivo de plantas, a Agricultura espalhou-se para a Europa, chegando até a Grã-Bretanha há mais ou menos 6 mil anos. Estendeu-se também em direção sul através da África, embora alguns estudiosos acreditem que a Agricultura possa ter-se originado de forma independe em um ou mais centros (BLAUSTEIN, 2008). Muitas plantas tornaram-se culturas primeiramente na África, inclusive o inhame (Dioscorea sp.), o quiabo (Hibiscus esculentus), o café (Coffea arabica) e o algodão (Gossypium sp.), que foi domesticado de forma independente nas Américas e, pro- vavelmente, na Ásia. Nesse continente, desenvolveu-se uma Agricultura baseada em alimentos básicos, como o arroz (Oryza sativa) e a soja (Glycine max) e, bem ao sul, os cítricos (Citrus sp.), a manga (Mangifera indica), a taioba (Colocasia esculenta) e a banana (Musa paradisiaca), entre outras culturas (LEWINGTON, 1990). 14 15 No continente americano, a Agricultura iniciou-se há pelo menos 9 mil anos, no México e no Peru. Os vegetais cultivados primeiramente nessa região foram o milho (Zea mays), o feijão-comum (Phaseolus vulgaris), o tomate (Solanum lycocarpum), o tabaco (Nicotiana tabacum), a batata-inglesa (Solanum tuberosum), a batata-doce (Ipomoea batatas), a abóbora (Curcubita sp.), o abacate (Persea americana), o cacau (Theobroma cacao) e, também, o algodão (Gossypium sp.). Para o Brasil, achados arqueológicos microscópicos, relatam que a região do Alto Rio Madeira, no Sudeste da Amazônia, foi um importante polo de domesticação de plantas, como, por exemplo, a abóbora (Curcubita sp.), o piqui (Caryocar sp.) e a goiaba (Psidium sp.) (WATLING et al., 2018). Durante os últimos 500 anos, as importantes culturas têm sido usadas em todo o mundo. O trigo (Triticum sp.), o arroz (Oryza sativa) e o milho (Zea mays), que fornecem 60% das calorias que consumimos, são cultivados em todos os locais em que podem crescer. Além delas, um número bem limitado de outras culturas conseguiu uma situação de comércio mundial (SIMPSON; OGORZALY, 2001). Utilizamos diretamente os alimentos, como frutos, folhas, raízes, caules e sementes. E também indiretamente, como na forma de aromas e condimentos de vários pratos da culinária. Atualmente, somente 20 espécies de plantas provêm 90% da necessidade mun- dial de alimento, com a distribuição da maioria dessas espécies em apenas duas famílias de plantas Poaceae (arroz, milho e trigo) e Fabaceae (feijão, soja, ervilha). Outras famílias importantes incluem Rosaceae (maçã, ameixa, cereja, pêssego, pera etc.), Brassicaceae (couve-flor, brócolis, mostarda), Arecaceae (coco, óleos, pal- mitos) e Solanaceae (batatas, tomates,beringelas, pimentas e pimentões). Como alimentos derivados de plantas, podemos citar o pão, as massas em geral, os sucos de frutas, o açúcar (cana-de-açúcar, Saccharum officinarum), o café (Coffea arabica), o chocolate (derivado do cacau, Theobroma cacao) e os chás, entre outros (RAVEN et al., 2018). Síndromes de Domesticação das Plantas As plantas cultivadas que conhecemos, atualmente, originaram-se a partir de ancestrais selvagens nos seus centros de origem. Com a Agricultura, iniciou-se o processo de domesticação das plantas, que distingue as selvagens das espécies cultivadas. Dentre as principais características, destacam-se o hábito herbáceo, o ciclo de vida curto, o crescimento rápido, estrategistas-r (alocação de recursos para o crescimento reprodutivo), sementes maiores com tegumentos mais finos, frutos agrupados em infrutescências. O resultado foi o aparecimento de novas variedades de diferentes espécies de plantas ou até mesmo o surgimento de novas espécies (VEASEY et al., 2011). 15 UNIDADE Agricultura e a Domesticação de Plantas Os principais processos evolutivos que atuaram durante a domesticação de plan- tas cultivadas foram: mutação, hibridação e fluxo gênico, dispersão, migração e colo- nização, seleção e deriva genética. Vamos conhecer esses processos? Mutação A mutação – entenda-se como qualquer alteração na sequência de nucleotídeos bem como na estrutura e no número de cromossomos – pode ter facilitado a domesticação, principalmente, em gramíneas (Poaceae). A partir de seguidas mutações gênicas, essas plantas adquiriram maior capacidade de reter os grãos na infrutescência, tornando-as mais dependentes da ação humana para sua dispersão (LADIZINSKY, 1998). Além das gramíneas, outras plantas também sofreram mutações, mas com a in- serção de genes: a uva (Vitis vinifera) passou a exibir em seus frutos, além da cor verde, a coloração roxa, a cebola (Allium cepa) também teve a alteração da colo- ração de seus bulbos, antes só brancos e, após a mutação, começaram a formar bulbos de coloração dourada, e a laranja (Citrus sinencis), cujos frutos começaram a apresentar quantidade menor de sementes. Hibridação e Fluxo Gênico A hibridização natural é tida como o evento de maior importância no processo evolutivo. A partir da reprodução sexuada natural entre indivíduos de duas ou mais populações, há um constante fluxo gênico entre as espécies selvagens e as cultivadas. Uma das respostas mais comuns em plantas cultivadas, após o fluxo gênico, é a possibilidade de sobrevivência desses indivíduos em ambientes extremos, como altitudes e temperaturas elevadas. No entanto, quando ocorre o inverso, o fluxo gênico da planta domesticada para o parental selvagem, pode ocorrer a redução da capacidade e do comprometimento da sua persistência em seu habitat, como ocorre no milho (Zea mays). Dispersão, Migração e Colonização O processo de dispersão dos organismos é formado por dois fenômenos: a mi- gração e a colonização. Em plantas cultivadas, algumas mudanças adaptativas podem ocorrer devido à pressão de seleção, quando são submetidas a diferentes práticas de cultivo ou quando introduzidas em áreas com condições edafoclimáticas diferentes daquelas apresenta- das em seus centros de origem. Pressão de seleção é qualquer conjunto de condições ambientais que origina o favorecimen- to de determinados genes em relação a outros em determinada população. 16 17 Quando se trata de dispersão e migração de espécies, não podemos esquecer que a ocupação e o deslocamento humano pelos continentes também resultaram no surgimento das espécies domesticadas. Se avançarmos um pouco no tempo, em casos mais recentes de dispersão, algumas culturas foram levadas a outros continentes, principalmente, pelos coloni- zadores europeus. Nos séculos 16 e 17, ocorreram dispersões com diversas culturas originadas na América, tais como o feijão-comum (Phaseolus vulgaris), páprica e pimentões (Capsicum annuum), amendoim (Arachis hypogaea), algodão (Gossypium hirsutum) e abacaxi (Ananas comosus), sendo este último originário da América tro- pical e subtropical e, muito provavelmente, do Brasil. Seleção Entendemos por seleção a ação natural ou artificial exercida em uma determinada população. Essa ação é capaz de alterar frequências de alguns genes alelos, quando apenas alguns indivíduos contribuem para a formação das gerações seguintes. As populações tornam-se mais adaptadas ao ambiente na qual estão inseridas, quando é resultado do processo de seleção natural. Já a seleção artificial pode ser realizada de forma intencional ou inconsciente, com objetivo de melhoria das características vegetais para os interesses e as necessi- dades humanas. É o que conhecemos por domesticação. As espécies domesticadas possuem várias modificações, resultantes da seleção, dentre as quais se destacam as genéticas, as morfológicas, as fisiológicas e as feno- lógicas. Entre essas modificações, conhecidas como síndromes de domesticação, destacam-se a perda de dormência e aumento no tamanho das sementes, mecanis- mo de dispersão ineficiente, hábito de crescimento determinado, arquitetura mais compacta, bem como redução de substâncias tóxicas, entre outros (FULLER, 2007). Exemplos clássicos são o milho (Zea mays) e o arroz (Oryza sativa), que possuem maior dificuldade em dispersar seus grãos, pois estão aderidos às infrutescências. Destaca-se, também, o tomate (Solanum lycopersicum), cujos frutos aumentaram consideravelmente seu tamanho ao longo do processo de domesticação. Deriva Genética A imprevisibilidade de variação nas frequências alélicas em uma população de tamanho reduzido, é conhecida como deriva genética e em plantas cultivadas pode se apresentar na forma de efeito do fundador e gargalo da garrafa. Quando amostras de poucos indivíduos são levados para colonizar outra região e a domesticação ocorre fora do centro de origem da planta, chamamos de efeito do fundador. Já o gargalo da garrafa (bottleneck) ocorre quando o tamanho de uma população é muito reduzido pelo processo de seleção artificial, e a sua recomposição 17 UNIDADE Agricultura e a Domesticação de Plantas é feita a partir de poucos indivíduos com uma quantidade restrita de alelos (VEASEY et al., 2011). Sabe-se que os efeitos da deriva genética são mais acentuados quando a domesti- cação de uma planta ocorre fora do seu centro de origem, pois a troca de alelos com espécies selvagens é inexistente. O tomate (Solanum lycopersicum), originário da América do Sul e domesticado no México, tornou-se vulnerável ao ataque de pragas e doenças, além da fragilidade a ambientes estressantes. Observa-se processo semelhante na soja (Glycine max), originária da Ásia e tra- zida para a América do Norte. Sistemas Agrícolas e os Impactos Ambientais Atualmente, a Agricultura é uma das atividades humanas mais importantes, pois além de garantir a sobrevivência da Humanidade, tornou-se uma das práticas econô- micas mais lucrativas do mundo. A produção agrícola foi se transformando ao longo dos anos, assim como o tamanho da área cultivada e sua produtividade. No entanto, a utilização de recursos naturais para a produção agrícola se tornou uma crescente preocupação. Para aumentar a produtividade da cultura e diminuir as perdas por fenômenos naturais, ocorreu a modernização das técnicas produtivas, a mecanização das etapas da produção e o aumento no uso de insumos, com o custo de efeitos significativos no ambiente e sobre os recursos naturais. Você sabia que o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, baseado nos dados do IBGE, noticiou que, mesmo durante a pandemia de Covid-19 em 2020, o PIB (Produto Interno Bruto) do Setor Agropecuário brasileiro teve aumento de 2,5%? O mesmo ocorreu com a produção de grãos: estimada em 251 milhões de toneladas, com volume 3,6% superior ao colhido na safra anterior! Fonte: https://bit.ly/2CaKhLH Agricultura Extensiva É o Sistema de ProduçãoAgrícola tradicional que utiliza técnicas rudimentares e de baixa tecnologia. Há o uso predominante de mão de obra humana e é muito comum em pequenas e médias propriedades (Figura 6). A produtividade depende da fertilidade do solo e, por não usar insumos agríco- las, é necessário ocupar grandes áreas de cultivo. Por necessitar de menos recursos 18 19 financeiros para a produção, acaba sendo utilizada em países em desenvolvimento, como Brasil, África e parte da Ásia. Figura 6 – Colheita da cana-de-açúcar para a produção de etanol com o uso de mão de obra humana Fonte: Getty Images Principais características da Agricultura Extensiva • Produção agrícola realizada de forma tradicional, com pouco ou nenhum uso de Tecnologia; • Dispõe de poucos recursos para investimento e se encontra a utilização de ara- do animal; • Uso de elevado número de trabalhadores como mão de obra; • As sementes utilizadas são as da colheita anterior e não há padrão de seleção para a semeadura; • Baixa produtividade diminui a competitividade no Mercado interno e externo; • Por ter uma baixa utilização de técnicas, mecanização e insumos agrícolas, pode estar presente em pequenas, médias e grandes áreas. Agricultura Intensiva É caracterizada por utilizar, em suas práticas diárias, intensivamente, Tecnologia de ponta e insumos agrícolas para obter maior produtividade em menor tempo de cultivo (Figura 7). Esse modelo de Agricultura é muito utilizado em países desenvolvidos, mas essa prática também foi incorporada nos países em desenvolvimento, como, por exem- plo, em parte do Brasil, pelo incentivo à modernização da Agricultura proporcionada pela Revolução Verde. 19 UNIDADE Agricultura e a Domesticação de Plantas Figura 7 – Trator pulverizando pesticidas em campo de soja com pulverizador, na primavera Fonte: Getty Images Principais características da Agricultura Intensiva • Mecanização de todas ou da maior parte das etapas do processo produtivo, má- quinas e equipamentos são desenvolvidos especificamente para cada etapa do processo produtivo; • Utilização de mão de obra qualificada para prestar assistência técnica e manu- tenção e também operacionalização de equipamentos; • Uso intensivo de insumos, fertilizantes químicos, agrotóxicos, sementes e mu- das geneticamente modificadas; • Incorporação de muitas técnicas e Tecnologias simultâneas, com resultados ob- jetivando a alta produtividade e, consequentemente, maior lucro. Os Principais Tipos de Agricultura Presentes no Brasil Sabemos que o Brasil é uma grande potência na Produção Agrícola mundial e pode ser destacada a presença de quatro diferentes tipos de Agricultura, sendo elas: Agricultura de Subsistência ou Familiar, Agricultura comercial, que são as duas de presença mais marcante no país, e Agricultura Orgânica e a Permacultura, que vem ganhando espaço nos últimos anos. Agricultura de Subsistência ou Agricultura Familiar O cultivo agrícola baseado na policultura, por meio de técnicas rudimentares e tradicionais, sem o uso de muitos recursos tecnológicos. A especificidade dessa Agricultura é que ela utiliza a mão de obra familiar para todo o processo de produção, desde o preparo da terra até a colheita (Figura 8A). Agricultura Comercial ou Convencional A Agricultura Comercial/Convencional, conhecida também como Agricultura Moderna/De Mercado ou Agronegócio, desenvolve sua atividade agrícola por 20 21 meio da monocultura, produzida em larga escala em grandes propriedades rurais com a utilização de técnicas modernas de cultivo, tais como adubos, fertilizantes químicos, agrotóxicos, inseticidas, sementes transgênicas, máquinas e mão de obra especializada (Figura B). Agricultura orgânica Esse tipo de Agricultura tem ganhado cada vez mais espaço no Brasil, com o au- mento do número de propriedades rurais (com diferentes tamanhos), cujos principais objetivos são o equilíbrio ambiental e o desenvolvimento social dos produtores, com elevada demanda de mão de obra. Possui um modo de produção sustentável que respeita o meio ambiente e é mais saudável para o consumo humano por não ter utilização de agrotóxicos e agroquímicos. Nesse tipo de Agricultura, só se pode realizar o controle biológico e o manejo das pragas que aparecerem no cultivo (Figura 8C). Permacultura A permacultura é um tipo de Agricultura na qual o processo de produção agrí- cola está integrado ao meio ambiente, de forma a desenvolver a produção de plantas semipermanentes e permanentes, considerando, sobretudo, os aspectos energéticos e paisagísticos (Figura 8D). A B C D Figura 8 – Principais tipos de Agri cultura no Brasil: A – Agricultura de Subsistência; B – Agricultura Comercial; C – Agricultura Orgânica; D – Permacultura Fonte: Adaptado de Getty Images O uso elevado da terra para a Agricultura também deixa seus impactos negativos. 21 UNIDADE Agricultura e a Domesticação de Plantas Para quem deseja plantar, é necessário, primeiramente, retirar a cobertura vegetal da área a ser utilizada e, em várias regiões do mundo, esse desmatamento é feito por meio de queimadas – somente pelo fato de ser um método rápido e de baixo custo. Há o aumento considerável de processos erosivos, pois, com a retirada da vegetação, há a retirada da proteção do solo. Além disso, pode ocorrer o assoreamento dos rios quando a retirada da cobertura vegetal acontece nas matas ciliares (nas margens dos rios). O uso de insumos agrícolas (corretores de pH do solo, adubos químicos e pestici- das) contamina não só o solo, mas também a água. A contaminação é intensificada com a época das chuvas ou quando o cultivo é irrigado, escoando essas substâncias para os rios. Há um desperdício elevado de água potável, no qual uma parte é perdida pelo processo de evaporação e a outra é escoada superficialmente, sem se infiltrar no solo. A água que escoa de forma superficial vai parar em muitos mananciais e, como carre- ga consigo os insumos agrícolas, acaba poluindo os reservatórios naturais de água doce. A Agricultura, como parte das atividades humanas, é a responsável pelo maior consumo de água potável, bem como por sua perda. Você tem ideia de que a Agricultura mundial consome quase 70% da água potável? Leia uma reportagem da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) sobre o desa- fio do uso da água na Agricultura brasileira. Acesse: https://bit.ly/3eB7mVb Os pesticidas utilizados para o controle de pragas nos cultivos, também chama- dos de lavouras, podem ser pulverizados por aviões e podem atingir as áreas vizi- nhas, interferindo no desenvolvimento de outras espécies de plantas e de animais. Além disso, a retirada da cobertura vegetal também contribui para a diminuição da biodiversidade, deslocando os animais de seu habitat. A Agricultura pode vir acompanhada da Pecuária, em uma mesma propriedade. Nesse outro tipo de atividade, também se pratica o desmatamento para a estrutu- ração da pastagem. Os animais, ao se alimentarem do pasto, durante o processo de digestão, eliminam muitos gases, especialmente o gás metano, que contribui para o aumento do efeito estufa local e regional. Por maior que seja a necessidade da produção de alimentos e dos produtos indi- retos da Agricultura e da Pecuária, não se justificam os impactos nocivos causados ao meio ambiente. No entanto, não faltam estudos para o encontro de técnicas alternativas de irriga- ção para a Economia e o reuso da água, o incentivo à produção de alimentos e de matéria prima por meio da Agricultura Orgânica, além do incentivo à utilização de fertilizantes e defensivos biológicos. 22 23 Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Sites Pé no Parque O Movimento Pé no Parque, é uma iniciativa de valorização dos Parques Nacionais brasileiros que utiliza o poder transformador do audiovisual como ponto de partida para engajar mais pessoas a visitarem e a entenderem a importância dessas áreas para sua qualidade devida e para o desenvolvimento do país. Você encontrará vídeos mostrando os povos tradicionais e seu modo de vida. https://bit.ly/2DI1lZW Vídeos Segurança alimentar: produtores investem em Agricultura orgânica Cada vez mais produtores decidem investir em Agricultura Orgânica para conquistar o consumidor com a maior garantia de segurança alimentar. https://youtu.be/u-Twl8p4VAw Leitura Agrotóxicos no Brasil: uma visão relacional a partir da articulação Freire-CTS Este artigo discute algumas dimensões sobre o uso de agrotóxicos no contexto brasileiro para ampliar a discussão do tema em uma perspectiva mais ampla em sala de aula. Especificamente, pautado na articulação dos pressupostos do movimento CTS e da perspectiva educacional de Paulo Freire, são discutidos alguns dos aspectos envolvidos nesse tema mediante a construção de uma rede de relações, baseada na proposta da Rede Temática, tendo como referência dimensões relacionadas com a Economia, o meio ambiente e a Saúde pública e Políticas Públicas e participação social. https://bit.ly/2WjFqP2 Os Caminhos do Milho Um grupo internacional de pesquisadores detalha um pouco mais a história de 9 mil anos da domesticação do milho e mostra um papel proeminente das populações humanas pré-colombianas da Amazônia, de acordo com estudo publicado em dezembro em 2018 na revista Science. https://bit.ly/30bkTgU Visita ao Museu de História Natural Os cientistas do Museu de História Natural de Londres estão na vanguarda da pesquisa sobre migração, características e capacidades dos nossos primeiros parentes humanos, bem como a origem e o desenvolvimento cultural de nossa espécie, Homo sapiens. https://bit.ly/304hHUc 23 UNIDADE Agricultura e a Domesticação de Plantas Referências ABBO, S.; LEV-YADUN, S.; GOPHER, A. Agricultural origins: centers and noncenters – a Near Eastern reappraisal. Critical Reviews in Plant Sciences, Londres, v. 29, n. 5, p. 317-328, set. 2010. BLAUSTEIN, R. J. The green revolution arrives in Africa. BioScience, Uberlândia, v. 58, n. 1, p. 8-14, jan. 2008. FULLER, D. Q. Contrasting patterns in crop domestication and domestication rates: recent archaeobotanical insights from the Old World. Annals of Botany, Reino Unido, v. 100, n. 5, p. 903-924, out. 2007. Disponível em: <https://acade- mic.oup.com/aob/article/100/5/903/136060>. Acesso em: 10/06/2020. LADIZINSKY, G. Plant evolution under domestication. London: Kluwer Academic, 1998. LEWINGTON, A. Plants for people. London: The Natural History Museum, 1990. RAVEN, P. H.; EVERT, R. F.; EICHHORN, S. E. Biologia Vegetal. 8.ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2018. (e-book) SIMPSON, B. B.; OGORZALY, M. C. Economic Botany: plants in our world. 3.ed. Nova Iorque: McGraw-Hill, 2001. VEASEY, E. A. et al. Processos evolutivos e a origem das plantas cultivadas. Ciência Rural, Santa Maria, v. 41, n. 7, p. 1218-1228, jul. 2011. WATLING, J. et al. Direct archaeological evidence for Southwestern Amazonia as an early plant domestication and food production centre. PLoS ONE, Califórnia, v. 13, n. 7, jul. 2018. Disponível em: <https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/ journal.pone.0199868>. Acesso em: 15/06/2020. 24