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S2P2-COMPLICAÇÕES CRÔNICAS DO DIABETES MELITO RETINOPATIA DIABÉTICA Pacientes diabéticos frequentemente desenvolvem complicações oculares, tais como instabilidade da refração, paralisias dos nervos motores oculares (3o, 4o e 6o nervos cranianos), úlceras de córnea, glaucoma, neovascularização de íris e catarata. Entretanto, a mais comum e a que mais cega é a retinopatia. A retinopatia diabética (RD) é a principal causa de casos novos de cegueira não reversível em pessoas entre 25 e 74 anos de idade em países desenvolvidos. Sua prevalência varia bastante entre os estudos, mas provavelmente afeta 35 a 40% dos diabéticos, sendo mais frequente no diabetes melito (DM) tipo 1 (DM1) que no DM tipo 2 (DM2). Quanto maior o tempo de evolução do DM e pior o controle glicêmico, maior o risco de RD. Nos estágios iniciais da RD, os pacientes são assintomáticos, mas, à medida que a doença progride, o paciente percebe manchas no campo visual, distorção da imagem e redução da acuidade visual. Os microaneurismas são o sinal mais precoce de RD. A avaliação da RD deve sempre levar em conta a dosagem da glicemia de jejum e da hemoglobina glicada (HbA1c). A doença renal do diabetes (previamente denominada nefropatia diabética), caracterizada por albuminúria e redução da taxa de filtração glomerular, também é um excelente preditor de RD; ambas as doenças são causadas pela microangiopatia diabética, e a presença e gravidade de uma reflete na outra. FISIOPATOLOGIA O mecanismo exato pelo qual o DM causa retinopatia não é totalmente compreendido, mas várias teorias tentam explicar a história natural da doença. A base da doença é a microangiopatia com danos relacionados direta e indiretamente com hiperglicemia. Microangiopatia (caracterizada por espessamento da membrana basal do capilar) e oclusão capilar, secundárias à hiperglicemia crônica, são a base da patogênese da RD. Juntas, essas anormalidades causam hipoxia retiniana, quebra da barreira hematorretiniana e aumento da permeabilidade vascular. Como resultado, ocorrem hemorragias, exsudatos e edema retinianos, bem como o desenvolvimento de edema macular. Além disso, oclusão e isquemia microvasculares favorecem o aparecimento de exsudatos algodonosos, alterações capilares, shunts arteriovenosos e neovascularização. Os efeitos da hiperglicemia crônica sobre a RD são explicados por diferentes mecanismos bioquímicos, como aumento da atividade da via dos polióis, formação de produtos finais de glicação avançada, estresse oxidativo, ativação da proteinoquinase C (PKC) e aumento de atividade da via da hexosamina. Dislipidemia também foi associada ao surgimento de RD e edema macular. HORMÔNIO DO CRESCIMENTO O hormônio do crescimento (GH) contribui para o desenvolvimento e a progressão da retinopatia. Mais recentemente, evidenciou-se que a deficiência de GH tem algum efeito protetor contra a retinopatia; contudo, RD grave já foi descrita em casos de hipopituitarismo. PLAQUETAS E VISCOSIDADE SANGUÍNEA A variedade de anormalidades hematológicas observadas no DM, como aumento da agregação plaquetária e diminuição da deformidade dos eritrócitos, predispõe a alentecimento da circulação sanguínea, dano endotelial e oclusão capilar. Isso provoca isquemia retiniana e contribui para o desenvolvimento da RD ALDOSE REDUTASE E FATORES VASOPROLIFERATIVOS Um aumento persistente na glicemia faz com que o excesso de glicose seja metabolizado pela via da aldose redutase em alguns tecidos, levando à conversão de açúcar em álcool (p. ex., glicose em sorbitol e galactose em dulcitol). Os pericitos intramurais dos capilares retinianos são afetados pelo nível elevado de sorbitol, prejudicando a autorregulação dos capilares. Isso predispõe ao enfraquecimento da estrutura da parede do capilar e favorece a formação de microaneurismas (o mais precoce sinal detectável de retinopatia). A ruptura dos microaneurismas provoca hemorragias retinianas superficiais (em chama de vela) e profundas (hemorragias puntiformes). O aumento da permeabilidade desses vasos resulta em vazamento de fluido e de material rico em proteínas e lipídios, correspondendo clinicamente ao espessamento retiniano e aos exsudatos, os quais, se ocorrerem na mácula, provocarão diminuição da visão central. PROTEINOQUINASE C A isoforma PKC-beta é ativada pela hiperglicemia e, experimentalmente, demonstrou-se que sua ativação está associada à quebra da barreira hematorretiniana pela ativação de fatores de crescimento vascular. EDEMA MACULAR O edema macular é a causa mais comum de baixa visual em pacientes com RD não proliferativa e também é um importante fator adicional para a baixa visual nos pacientes com a forma proliferativa. Uma das teorias para o surgimento do edema macular é que, na hiperglicemia, há aumento dos níveis de diacilglicerol, com aumento da PKC ativada, levando à modificação da permeabilidade e do fluxo sanguíneo. HIPOXIA Com a progressão da doença, pode ocorrer oclusão dos capilares retinianos, provocando hipoxia tecidual. O infarto da camada de fibras nervosas leva à formação de exsudatos algodonosos, os quais estão associados à estase do fluxo axoplasmático. A hipoxia retiniana eleva a expressão intraocular de moléculas que aumentam a quebra da barreira hematorretiniana e levam à proliferação vascular, tais como o fator de crescimento semelhante à insulina-1 (IGF-1), o fator de crescimento fibroblástico básico e, sobretudo, o fator de crescimento do endotélio vascular (VEGF). O VEGF é, certamente, um dos principais fatores angiogênicos implicados na patogênese da RD. Com a progressão da hipoxia, são ativados alguns mecanismos compensatórios. Surgem anormalidades do calibre venoso, como variação do calibre, tortuosidade e dilatação, as quais sinalizam aumento da hipoxia e quase sempre são próximas a áreas de não perfusão capilar. Também podem estar presentes anormalidades microvasculares intrarretinianas (IRMA), as quais representam crescimento de novos vasos ou remodelamento de vasos preexistentes por proliferação endotelial intrarretiniana, a fim de criar shunts em áreas de não perfusão capilar. NEOVASCULARIZAÇÃO A isquemia retiniana leva à produção de fatores vasoproliferativos que estimulam a formação de novos vasos. Primeiro, a matriz extracelular é quebrada por proteases e novos vasos são originados principalmente a partir de vênulas retinianas. Se estes ultrapassarem a membrana limitante interna, passarão a ser chamados de neovasos, definindo o estágio proliferativo da RD. Com o progredir da doença, esses neovasos formam redes capilares entre a superfície interna da retina e a face posterior da hialoide. Em pacientes com RD proliferativa, períodos de apneia noturna podem ser um fator de risco para neovascularização da íris e/ou do ângulo. A neovascularização é mais comumente observada nos limites entre a retina perfundida e a não perfundida e ocorre mais comumente ao longo das arcadas vasculares e da cabeça do nervo óptico. Os neovasos crescem ao longo da superfície interna da retina e face posterior da hialoide. Esses vasos frágeis podem ser rompidos facilmente por tração vítrea, o que pode provocar hemorragia vítrea e/ou sub-hialóidea. Os neovasos, inicialmente, são associadosa pequena quantidade de tecido fibroglial. Entretanto, à medida que aumenta a densidade de tecido neovascular, ocorre progressão do tecido fibroglial. Em estágios tardios, os neovasos podem regredir, deixando apenas o tecido fibroso avascular aderido tanto à retina quanto à hialoide posterior. Como o vítreo tende a contrair com o passar do tempo, podem ser criadas forças tracionais sobre a retina. Essa tração causa edema retiniano, descolamento tracional retiniano e formação de rupturas retinianas, com consequente descolamento regmatogênico da retina. FATORES DE RISCO DURAÇÃO DO DIABETES Isoladamente, a duração do DM é o fator de risco mais importante. Em pacientes com DM1, retinopatia é infrequente nos primeiros 5 anos após o diagnóstico. Depois de 10 a 15 anos, 25 a 50% dos pacientes vão apresentar algum grau de retinopatia. Essa prevalência aumenta para 57 a 95% após 15 anos e atinge aproximadamente 100% após 30 anos de doença. Embora rara na primeira década de vida, a RD proliferativa é encontrada em 14 a 17% dos pacientes com DM1 15 anos depois do diagnóstico, aumentando consistentemente após esse período. Em pacientes com DM2, 23% têm RD não proliferativa após 11 a 13 anos; 41%, após 14 a 16 anos; e 60%, após 16 anos CONTROLE DO DIABETES O controle rigoroso do DM pode prevenir o aparecimento ou a progressão da retinopatia. A HbA1c elevada aumenta o risco de progressão para RDP. Em contrapartida, agravamento da RD após uma rápida melhora do controle glicêmico pode ocorrer, como já relatado com a insulinoterapia e, mais recentemente, com o uso de semaglutida, um agonista do receptor do peptídeo semelhante ao glucagon 1 (GLP-1). HIPERTENSÃO ARTERIAL Hipertensão arterial sistêmica (HAS) é fator de risco para progressão da RD. No UKPDS, pacientes mantidos sob controle estrito da pressão arterial (< 150/85 mmHg) tiveram uma redução de risco de 34% nas alterações microvasculares em comparação com o grupo de controle da pressão arterial convencional (< 180/105). Para cada redução de 10 mmHg na pressão arterial sistólica, houve uma redução de 13% associada dos desfechos microvasculares, independentemente do hipotensor utilizado. DOENÇA RENAL DO DIABETES A maioria dos pacientes com doença renal do diabetes (DRD), caracterizada por albuminúria e redução da taxa de filtração glomerular, também apresentam RD. Em contrapartida, somente um terço dos casos de RD têm DRD. GESTAÇÃO A gravidez é sabidamente é um fator de risco para surgimento e, sobretudo, piora da RD, estando esse risco diretamente relacionado com a gravidade da RD pré-gestacional, bem como, durante a gestação, com mau controle glicêmico e hipertensão arterial (risco ainda maior em mulheres que desenvolvem pré- eclâmpsia). Felizmente, regressão da piora da RD ocorre em muitos casos dentro de 12 meses após o parto. As pacientes que iniciam a gravidez sem retinopatia têm um risco em torno de 10% de desenvolver algum grau de RDNP. Já nas pacientes com RDNP no início da gravidez, o risco de progressão é maior naquelas com as formas mais graves (até 55%) do que naquelas com as formas mais leves (cerca de 20%). Mulheres com RD proliferativa tendem a apresentar piora acentuada da doença em caso de gravidez, sendo muito importante a panfotocoagulação pré-gestacional, visando estabilizar o quadro ocular. Em contraste, não há surgimento de retinopatia em mulheres com diabetes gestacional. DISLIPIDEMIA Pacientes com dislipidemia não controlada têm maior tendência a edema macular e a acúmulo de exsudatos duros. OUTROS FATORES DE RISCO Tabagismo, cirurgia intraocular (especialmente catarata), obesidade e anemia também podem contribuir para a ocorrência de RD. DIAGNÓSTICO Nos estágios iniciais, os pacientes são assintomáticos. Com o progredir da doença, surgem sintomas variados, tais como escotomas, visão embaçada e distorção na imagem. A base da avaliação quanto à retinopatia é o exame oftalmológico completo, incluindo um detalhado exame da retina com a pupila dilatada. Uma alternativa de triagem de retinopatia em locais distantes ou pouco assistidos por especialistas é o uso de telemedicina por meio de retinógrafos de baixo custo e centros remotos para interpretação dos exames. Crianças e adolescentes com DM1 devem iniciar a avaliação oftalmológica após a puberdade ou ao completarem 5 anos de doença. Em adultos com DM1, tal procedimento deve ser iniciado após 5 anos de doença. Em pacientes com DM2, a avaliação oftalmológica deve ser realizada imediatamente após o diagnóstico, visto que a doença é muitas vezes diagnosticada com 5 a 10 anos de atraso. O intervalo entre os exames é anual, mas pode ser menor, dependendo do grau de retinopatia ou maculopatia encontrado. A RD progride mais rapidamente nos jovens com DM1 do que com DM2. Pessoas com mau controle do DM1 e transtornos alimentares são mais propensos a desenvolver RD antes do esperado. Após rastreamento inicial da RD, na ausência de RD ou em casos de RD leve, é RECOMENDADO acompanhamento anual. Em casos de RD moderada ou grave, recomenda-se maior frequência de revisões. CLASSIFICAÇÃO Uma classificação simplificada e bastante útil divide a RD em não proliferativa e proliferativa. Concomitantemente a qualquer uma delas, pode haver edema macular clinicamente significante. RETINOPATIA DIABÉTICA NÃO PROLIFERATIVA A existência de microaneurismas retinianos em diabéticos já caracteriza o diagnóstico de RDNP, mas pode também haver, em diferentes graus de comprometimento, presença de micro- hemorragias, exsudatos duros, manchas algodonosas, loops com ensalsichamento venoso e/ou IRMA. O estágio que chama mais a atenção por requerer tratamento de forma intensa é a RDNP grave, definida pela regra 4:2:1, ou seja, hemorragias e microaneurismas difusos nos 4 quadrantes, ou loops com ensalsichamento venoso em 2 quadrantes, ou anormalidades microvasculares intrarretinianas em 1 quadrante. RETINOPATIA DIABÉTICA PROLIFERATIVA A RP proliferativa (RDP) é classificada em dois tipos: a inicial ou a de alto risco. Na RDP inicial, os neovasos estão presentes, mas não preenchem os critérios de alto risco. Na RDP de alto risco, encontra-se NVD em ≥ 1/3 da área do disco óptico, ou há qualquer NVD associada à hemorragia vítrea ou sub- hialóidea, ou há presença de NVE ≥ 1/2 diâmetro de papila, associada à hemorragia vítrea ou sub-hialóidea. Classificação da retinopatia diabética (RD). • Ausência de retinopatia • RD não proliferativa (RDNP) ∘ RDNP leve → presença isolada de microaneurismas ∘ RDNP moderada → presença de microaneurismas e de outras alterações que não caracterizem a RDNP grave ∘ RDNP grave → presença de qualquer uma das 3 alterações a seguir: ■ Hemorragias graves e microaneurismas em cada um dos 4 quadrantes da retina ■ Dilatações venosas em pelo menos dois quadrantes ■ Alterações vasculares intrarretinianas (IRMA) em pelo menos um dos quadrantes • RD proliferativa → presença de neovascularização (no disco óptico ou em qualquer parte) e hemorragia vítrea. RESUMO A retinopatia diabética (RD) é a principal causa de casos novos de cegueira não reversível em pessoas entre 25 e 74 anos de idade em países desenvolvidos. No Brasil, é terceira causa mais frequente,após catarata e glaucoma. Sua prevalência varia bastante entre os estudos, mas provavelmente afeta aproximadamente 40% dos indivíduos com diabetes melito (DM), sendo mais frequente no DM tipo 1 (DM1) do que no DM tipo 2 (DM2). No DM1, a RD somente é encontrada após 5 anos de doença, mas pode já estar presente em até 20% dos pacientes com DM2 ao diagnóstico. A RD proliferativa (RDP) é a forma mais grave e se caracteriza pela presença de neovasos retinianos que podem facilmente se romper. A perda da visão pode resultar de hemorragia vítrea, descolamento de retina tracional ou edema macular. O principal fator de risco para a RD é a hiperglicemia crônica; assim, para sua prevenção, é fundamental um bom controle glicêmico desde o início do DM. O tratamento de escolha para a RDP e a RD não proliferativa grave ainda é a fotocoagulação com laser. A aplicação intravítrea de medicamentos antiangiogênicos é o tratamento de escolha para o edema macular diabético quando houver redução da acuidade visual e, como tratamento adjuvante em RDP, DOENÇA RENAL NO DM A doença renal do diabetes (DRD) é uma das complicações microvasculares mais frequentes do diabetes melito (DM) tipo 1 (DM1) e tipo 2 (DM2), acometendo 20 a 40% dos pacientes. É caracterizada pelo aumento da albuminúria e/ou redução da taxa de filtração glomerular estimada (TFGe) que geralmente se instala 10 anos após do início do DM1, mas pode ocorrer desde o momento do diagnóstico no DM2. A DRD foi descrita inicialmente por Kimmelstiel e Wilson como uma doença predominantemente glomerular e caracterizada por aumento da excreção urinária de albumina, anterior à redução da taxa de filtração glomerular (TFG). No entanto, estudos recentes demonstram que aproximadamente 20% dos casos apresentam redução da TFG sem elevação da albuminúria. Desde então, o termo doença renal do diabetes tem sido empregado, em vez de “nefropatia diabética” para se referir a esse espectro ampliado de apresentação clínica. A elevada prevalência de DM na população contribui para que a DRD seja a principal causa de doença renal crônica (DRC) em pacientes que ingressam em programas de diálise no mundo, e a segunda no Brasil. Aproximadamente 25 entre 10.000 adultos com diagnóstico de DM evoluem para DRC terminal (DRCT) anualmente. Além disso, a DRD se associa a aumento da mortalidade por todas as causas e, principalmente, mortalidade cardiovascular. Desta forma, evitar sua progressão é fundamental para reduzir a mortalidade cardiovascular e prevenir a perda de função renal. HISTÓRIA NATURAL A história natural clássica da DRD é caracterizada por hiperfiltração glomerular, albuminúria progressiva, queda da TFGe e, finalmente, DRCT. Este padrão clássico é mais frequentemente observado no DM1 e pode estar ausente tanto no DM1 como, sobretudo, no DM2. Neste último, sinais de doença renal, como anemia e alterações do metabolismo ósseo, desacompanhados de outras complicações microvasculares, podem ser detectados logo ao diagnóstico, podendo sugerir investigação complementar de outras causas para a lesão renal. Ademais, pode ocorrer a redução da TFGe sem albuminúria no DM1 e no DM2. De forma geral, a microalbuminúria costuma ser a primeira alteração clínica da DRD, e quando não ocorre uma intervenção precoce, a progressão para macroalbuminúria pode ocorrer em aproximadamente 50% dos casos. A macroalbuminúria, por sua vez, se associa a um risco dez vezes maior de progressão para DRCT comparada aos pacientes com albuminúria normal. Por outro lado, a progressão entre esses estágios de albuminúria não é regra, visto que cerca de 30% dos casos de microalbuminúria podem regredir de forma espontânea ou associada a intervenções terapêuticas. Estudos recentes demonstram que esse tipo de apresentação não albuminúrica se relaciona a uma redução menos acentuada da TFGe em comparação à forma albuminúrica, porém ambas se associam a maior risco de mortalidade e eventos cardiovasculares adversos maiores quando comparadas aos diabéticos sem alteração da função renal A queda da TFGe, por sua vez, é um processo unidirecional e que, uma vez iniciada, progride, na maioria das vezes, de forma linear até a DRCT, embora em taxas individuais diferentes. A progressão rápida da queda da TFG é definida como perda superior a 5 mℓ/min/ano. Na população diabética do estudo da Joslin Clinic, o declínio renal progressivo está presente em cerca de 10, 32 e 50% dos pacientes com normoalbuminúria, microalbuminúria e proteinúria, respectivamente. FATORES DE RISCO Nem todos os pacientes com DM apresentam DRD, uma vez que fatores ambientais, genéticos e epigenéticos contribuem para o desenvolvimento da doença. Tais fatores de risco podem ser divididos em fatores de suscetibilidade, de início ou de progressão. Suscetibilidade • Idade elevada • Sexo masculino • Etnia (negros hispânicos, asiáticos, nativos americanos) • História familiar de DRD • Hiperglicemia • Obesidade • Hipertensão arterial • Tabagismo • Alta ingesta proteica Início • Fatores genéticos • Hiperglicemia • Obesidade • Lesão renal aguda • Fármacos nefrotóxicos Progressão • Etnia (negros, hispânicos, asiáticos, nativos americanos) • Hiperglicemia • Obesidade • Hipertensão arterial • Lesão renal aguda • Fármacos nefrotóxicos • Tabagismo • Alta ingesta proteica FISIOPATOLOGIA O evento fisiopatológico que pode levar à DRD e à progressão para DRCT pode ser separado didaticamente em duas fases, uma precoce (na qual predominam as alterações hemodinâmicas e metabólicas) e outra tardia (com predomínio de alterações celulares e remodelação tecidual) A hiperglicemia apresenta um papel central no desenvolvimento e progressão da DRD. Em uma fase precoce, ela resulta no aumento da filtração glomerular de glicose com consequente aumento da reabsorção tubular, por meio dos cotransportadores de sódio e glicose (SGLT) tipos 1 e 2, localizados no túbulo proximal. Esta recuperação aumentada do sódio, além de aumentar o consumo de oxigênio com isquemia relativa e estresse oxidativo tubulointersticial, também reduz a concentração desse eletrólito no túbulo distal e mácula densa, com alteração do mecanismo de feedback tubuloglomerular, resultando na dilatação da arteríola aferente, ativação do sistema renina-angiotensina- aldosterona (SRAA) e vasoconstrição da arteríola eferente. Este efeito hemodinâmico leva a hipertrofia tubular, bem como hipertensão e hiperfiltração glomerular, contribuindo para a hipertrofia renal, que, eventualmente, em uma fase mais tardia, pode resultar em glomerulosclerose e atrofia tubular. A hiperglicemia persistente pode desencadear disfunção do endotélio glomerular com aumento da permeabilidade vascular, espessamento da membrana basal glomerular (MBG), proliferação de células mesangiais, lesão e apoptose dos podócitos, bem como um processo inflamatório com recrutamento de células imunológicas e liberação local de citocinas e quimiocinas, comremodelamento tecidual que contribui para atrofia e fibrose. DIAGNÓSTICO O diagnóstico da DRD é geralmente realizado pela presença de elevação de albuminúria e/ou redução da TFGe em indivíduos com diabetes na ausência de sinais ou sintomas de outras causas primárias para lesão renal. Dessa forma, a avaliação desses dois parâmetros é fundamental no rastreamento e monitoramento da DRD. As diretrizes atuais recomendam a avaliação anual da excreção urinária de albumina e da TFGe em todos os pacientes com DM. O rastreamento deve ser iniciado desde o diagnóstico do DM2 e após 5 anos do início no DM1. Em situações específicas, como indivíduos com DM1 de difícil controle ou na puberdade, o rastreamento deve ser feito de forma mais precoce. RESUMO A doença renal do diabetes (DRD) é uma das mais frequentes complicações microvasculares do diabetes melito (DM), acometendo entre 25 e 40% dos pacientes, e geralmente começa a se manifestar após 5 a 10 anos do início da doença. A elevada prevalência do DM na população contribui para que a DRD seja a principal causa de doença renal crônica no mundo, responsável por aproximadamente metade dos casos de falência renal nos países desenvolvidos. Tipicamente, a doença se manifesta inicialmente como aumento persistente da excreção urinária de albumina que, na ausência de tratamento, tende a se exacerbar e a evoluir com redução progressiva da taxa de filtração glomerular (TFG). No entanto, particularmente no DM tipo 2, a queda da TFG pode anteceder o aumento da excreção urinária de albumina. O principal fator de risco para o surgimento da DRD é o controle glicêmico inadequado, mas fatores ambientais adicionais (sobretudo, hipertensão) e fatores genéticos também desempenham um papel importante. NEUROPATIA DIABÉTICA As neuropatias diabéticas (ND) são as complicações crônicas mais prevalentes do diabetes melito (DM) e constituem um grupo de distúrbios heterogêneos que afeta partes diferentes do sistema nervoso. De um modo simples, ND são definidas como “presença de sintomas e/ou sinais de disfunção dos nervos periféricos em indivíduos com DM, após a exclusão de outras causas”. O diagnóstico requer “avaliação clínica cuidadosa, pois a ausência de sintomas não afasta a presença de neuropatia.” Caracteristicamente, a neuropatia periférica instala-se a partir de lesão neural em nervos longos que fazem a inervação dos dedos dos pés e progride de forma proximal. O Consenso de Toronto definiu a ND típica como distúrbio sensitivo-motor, simétrico e dependente do comprimento, decorrente de alterações metabólicas e microvasculares resultantes de exposição à hiperglicemia de longa duração e de distúrbios metabólicos. Ambos os tipos de DM (tipo 1 [DM1] e tipo 2 [DM2]) são afetados, com comprometimento de 50% dos pacientes com DM2 ao longo da vida. Indivíduos com pré-DM (glicemia de jejum alterada ou tolerância diminuída à glicose) podem desenvolver neuropatias semelhantes às ND. Dados recentes consolidam a necessidade de se investigar neuropatia, mesmo sem o diagnóstico de DM, no caso de sobrepeso e obesidade, condições presentes na síndrome metabólica (SM), a qual também se associa a neuropatia. Dentre as várias formas de neuropatia diabética, a polineuropatia distal simétrica (PNDS) e as neuropatias autonômicas diabéticas (NAD), particularmente a neuropatia autonômica cardiovascular (NAC), são as mais estudadas. As formas menos frequentes compreendem as denominadas atípicas e reversíveis. PNDS é a mais comum dentre as ND, presente em 75 a 90% dos casos, também denominada polineuropatia sensitivo-motora crônica, e por esse motivo atribui-se à PNDS a expressão de polineuropatia diabética (PND) ou neuropatia diabética periférica. Seguem-se a polineuropatia diabética dolorosa (PNDD), observada em 16 a 34% dos casos, com média de 25%; e as NAD, as quais resultam em comprometimento cardiovascular, gastrintestinal, geniturinário, retiniano, hipoglicemia não percebida, alterações na sudorese e em membros inferiores. Convém ressaltar que a prevalência das formas mais frequentes de PNDS (PND, PNDD) e NAD varia conforme os critérios diagnósticos que utilizam ferramentas para detectar alterações em fibras finas e grossas e a origem das amostras, se em hospitais/centros clínicos ou em comunidades– estas menos passíveis de viés. Os mecanismos fisiopatogênicos envolvidos na PND são complexos e compreendem a toxicidade da hiperglicemia e seus desdobramentos metabólicos intracelulares em ambos os tipos de DM (mais importante no DM1) que, em conjunto com a resistência à insulina (RI) e dislipidemia (DM2), por meio da oxidação lipídica, intensificam processos inflamatórios. O estresse oxidativo intracelular resulta em disfunção mitocondrial, sobrecarrega o retículo endoplasmático, promove danos ao DNA, com lesão celular funcional irreversível; a sinalização de insulina, comprometida no DM1 e também pela RI no DM2, é outro fator que se alinha para resultar na lesão da célula nervosa. A SM, associada na maioria dos casos de DM2, constitui fator modificável envolvido na ND; outros novos fatores e mecanismos metabólicos têm emergido, e obesidade é apontada como o segundo fator metabólico – DM é o primeiro – a partir de vários estudos observacionais recentes. A prevenção é a estratégia mais importante no cuidado das ND, com foco no controle da hiperglicemia, a qual demonstrou maior correlação com o dano neural em pessoas com DM1, e nas mudanças no estilo de vida, com resultados importantes para DM2, especialmente NAC. Além da influência do mau controle glicêmico, o estudo EURODIAB mostrou a associação de fatores de risco cardiovascular e sobrepeso. FATORES DE RISCO Vários fatores de risco metabólico e risco cardiovascular (RCV) têm sido apontados como contribuintes para a progressão das neuropatias no DM1 e DM2. Os componentes da SM são importantes fatores de risco modificáveis. Componentes da SM têm demonstrado papel importante na ND. Parâmetros como circunferência abdominal e a hipertrigliceridemia constituíram fatores de risco independentes para PND e dor neuropática, além de a hipertrigliceridemia ter influenciado a progressão da PND em outro relato. Os principais fatores de PND em pacientes com DM1 relacionam-se com idade, duração do DM, controle glicêmico e fatores de RCV (hipertensão, tabagismo, obesidade, dislipidemia – triglicerídeos e colesterol total elevados). O importante é estar ciente de que o dano neural é precoce e pode se apresentar com ou sem sintomas, sendo necessário proceder à investigação de PND antes do diagnóstico de DM e também diante de SM. FISIOPATOGÊNESE Os efeitos metabólicos da hiperglicemia crônica associada a estresse oxidativo no desenvolvimento das complicações microvasculares diabéticas estão bem estabelecidos. A hiperglicemia crônica atua no desenvolvimento da lesão e na disfunção neuroaxonal. De fato, mínimas alterações de glicemia podem lesionar fibras finas e causar dor neuropática, como observado em casos de pré-DM. No entanto, os mecanismos ainda não estão totalmente esclarecidos, e parece que a autoimunidade pode estar envolvida. O excesso intracelular de glicose resulta do fluxo aumentado da via poliolque acarreta aumento de sorbitol e frutose pela maior atividade das enzimas aldose redutase, sorbitol desidrogenase e aumento do estresse oxidativo. A glicólise excessiva sobrecarrega a cadeia de transporte mitocondrial de elétrons, com geração de espécies reativas de oxigênio e de nitrogênio. Há aumento da osmolalidade celular, redução do transportador NADPH, o que também promove estresse oxidativo. O fluxo aumentado da via hexosamina associa- se à lesão inflamatória; excesso de ROS induz alterações intracelulares no retículo endoplasmático e DNA, provocando danos e alterações funcionais da célula nervosa. O óxido nítrico (NO), potente vasodilatador, antagoniza trombose, tem propriedades anti- inflamatórias e pode inibir o crescimento de células do músculo liso vascular e a produção do peptídeo vasoconstritor, a endotelina-1 (ET- 1). A disponibilidade de NO está reduzida, uma vez que o superóxido se liga ao NO para formar o oxidante peroxinitrito, diretamente tóxico para as células endoteliais. A membrana basal das células endoteliais, glicosilada, contribui para diminuir a vasodilatação juntamente com o insuficiente NO, além de baixa resposta aos efeitos vasodilatadores da substância P, do peptídeo relacionado com o gene da calcitonina (CGRP), da bradicinina, da histamina e do polipeptídeo intestinal vasoativo (VIP). Produtos finais de glicação avançada aumentam e, ligados ao receptor extracelular, iniciam uma cascata inflamatória por meio de NADPH oxidases e de ativação de macrófagos, com produção de citocinas inflamatórias (interleucina-1, fator de necrose tumoral-alfa), fatores de crescimento (insulin-like, semelhante à insulina; derivado de plaquetas; e do nervo), moléculas de adesão intracelular (ICAM; e fatores vasculares, danificando a função biológica das proteínas. AGE interagem com receptores tipo Toll, com RAGE, fator de transcrição NFk-Beta e, ainda, citocinas pró- inflamatórias. Um elevado conteúdo intracelular de glicose também estimula a formação de diacilglicerol, ativando a proteinoquinase C (PKC),41 cujas isoformas PKC-α e PKC-β atuam nos nervos e nas artérias epineurais. A dislipidemia tem papel importante, sobretudo na PND do DM2. Os ácidos graxos livres (AGL) causam danos diretos às células de Schwann e promovem liberação de citocinas inflamatórias pelos adipócitos e macrófagos. Há oxidação ou glicação de LDL que se liga a receptores extracelulares (incluindo o receptor de LDL oxidada LOX1, TLR-4 e RAGE), desencadeando cascatas de sinalização que ativam a NADPH oxidase, promovendo estresse oxidativo intracelular. Adicionalmente, o colesterol pode ser oxidado a oxisterol, que provoca apoptose em neurônios. No DM2, a sinalização de insulina se altera devido à RI neuronal com inibição da via PI3K (fosfatidilinositol-3 quinase ou Akt), semelhante à RI no músculo e no tecido adiposo, e o rompimento dessa via resulta em disfunção mitocondrial e estresse oxidativo, lesão nas fibras nervosas e agravamento da PND. No DM1, há sinalização insuficiente pela deficiência do peptídeo C, causando disfunção nervosa pela reduzida atividade da Na-K- ATPase e da NO sintase endotelial (eNOS), diminuindo o fluxo sanguíneo com hipoxia endoneural. A SM também induz inflamação pelas adipocinas, mas o mecanismo é incerto. O sistema renina-angiotensina (SRA) encontra- se hiperativado e pode contribuir para o desenvolvimento do DM2, por meio de RI e secreção de citocinas pró-inflamatórias pelo tecido adiposo. Estudos experimentais com inibidores da enzima conversora de angiotensina (IECA) apontam melhora de PND pelo relaxamento vascular endotélio-dependente. A conexão de mecanismos (RI, dislipidemia, inflamação sistêmica e ativação do SRA) alimenta o ciclo de estresse oxidativo, sinais inflamatórios e dano celular, possibilitando que aspectos da SM, independentemente de DM, sejam suficientes para causar neuropatia. O envolvimento de fatores imunológicos foi detectado em biopsias de nervos na amiotrofia proximal (femoral): um infiltrado inflamatório linfocitário perivascular sugestivo de vasculite evidenciava a interação com os mecanismos metabólicos. Esse fato pode explicar a ativação da imunidade inata presente nas complicações diabéticas. Evidências emergentes sugerem que o metabolismo esfingolipídico alterado é importante fator neurotóxico. Os esfingolipídios são lipídios bioativos, componentes estruturais essenciais da membrana das células plasmáticas e importantes moléculas de sinalização, particularmente no sistema nervoso. Quando ocorre erro na biossíntese, surgem os 1-deoxi-5-hidroxiesfingolipídios, que são tóxicos para os neurônios e para as células beta pancreáticas. Os níveis desses componentes estão elevados em pacientes com SM, DM1 e mais acentuadamente em pacientes com DM2. As características anatômicas do sistema nervoso periférico explicam parte da patogênese da ND. O suprimento vascular dos nervos periféricos é esparso, e isso os torna mais sensíveis à isquemia. Além disso, os axônios são extensivamente longos e o corpo celular neuronal é relativamente pequeno; portanto, o suprimento de nutrientes e fatores tróficos torna-se prejudicado na parte distal dos axônios, deixando-os mais suscetíveis à lesão, o que explica o fato de PND se iniciar de forma distal. CLASSIFICAÇÃO E APRESENTAÇÕES CLÍNICAS Várias classificações têm sido propostas e adotadas ao longo dos anos, o Consenso de Toronto propõe uma subclassificação das ND em típica e atípica, assim definidas: ■PND típica: mais prevalente, de evolução crônica e relacionada com o tempo de exposição hiperglicêmica, fatores metabólicos e cardiovasculares. É simétrica, distal e sensitivo- motora. A presença de retinopatia e doença renal (DRD) assegura a etiologia pelo DM. Disautonomias e dor neuropática podem ocorrer ao longo do tempo. PND atípica: surge em qualquer época do curso do DM. A evolução é monofásica ou flutuante, com dor neuropática aguda ou subaguda. Disautonomias são comuns e aventam-se alterações autoimunes. Historicamente, as diversas formas de ND foram verificadas com 60% dos pacientes com DM apresentando: 50%, PND; 25%, mononeuropatias (focais); 7%, NAD; e 3%, outras formas. Assim, as ND compreendem três classes: difusas (típicas), mononeuropatias (focais e multifocais) e radiculopatias ou polirradiculopatias (ambas atípicas), além das neuropatias não diabéticas comuns em diabetes. A abordagem inicial, sucinta, será para as formas menos frequentes e atípicas, seguindo-se as formas mais frequentes e típicas – difusas. MONONEUROPATIAS | MONONEURITE MÚLTIPLA ■ NERVO PERIFÉRICO ISOLADO (COMPRESSIVAS) As mononeuropatias restringem-se à distribuição de um único nervo ou de múltiplos nervos (mononeuropatia múltipla). Essas formas são mais frequentes em pacientes com DM do que naqueles que não têm DM (sobretudo em pessoas idosas) e resultam de vasculite ou infarto perineural, agudo, doloroso e de evolução limitada. Há envolvimento do nervo fibular comum, mediano, ulnar e/ou radial. Os nervos peronealcomum, femoral lateral cutâneo e, mais raramente, sural e isquiático são acometidos no segmento inferior. Caracteristicamente, são assimétricas e reversíveis, com regressão espontânea, entre 6 semanas e 12 meses. Estudos eletrofisiológicos são mais úteis na identificação da redução da velocidade da condução nervosa (VCN) ou bloqueio da condução no local da compressão do nervo, que pode exigir a descompressão cirúrgica. A melhora na gravidade dos sintomas e no escore do estado funcional não é diferente entre os pacientes com e sem DM. Tratamento é sintomático e com fisioterapia. Em segmento superior. Compressão do nervo mediano, sob o ligamento transverso do carpo, constitui a clássica síndrome do túnel do carpo (STC), forma mais prevalente. A dor é intensa, em queimação e parestesias (dormência), com intensificação até estágios mais avançados (hipotrofia de eminência tenar – mais comum em homens), ou mão caída (pelo envolvimento ulnar e radial). O teste de Tinel, parestesia no território do nervo mediano, após a percussão do punho e da palma da mão, indica positividade. Em segmento inferior. Nervo peroneal é o mais comprometido e o sinal clínico típico é fraqueza de dorsiflexão do tornozelo (“pé caído”). Deve-se diferenciar da compressão de raiz de L5. A compressão das fibras motoras do nervo tibial anterior (impossibilitando eversão, inversão e dorsiflexão do pé) constitui a síndrome do túnel do tarso. O quadro de dor piora quando o paciente se levanta e caminha. A compressão do nervo femoral lateral da coxa acarreta meralgia parestésica, caracterizada por dor, parestesia e déficit sensitivo na face lateral da coxa. Lesões do nervo isquiático e obturador são mais raras. ■ Cranianas As neuropatias cranianas acometem os nervos cranianos III (oculomotor), IV (troclear), VI (abducente) e VII (facial), em ordem decrescente. A instalação é aguda, dolorosa e limitada. As manifestações de oftalmoplegia (ptose palpebral, diplopia) e dor periorbital requerem afastar isquemia cerebral, aneurisma e tumores intracranianos. Alterações pupilares são encontradas em 18% dos pacientes e em 25% pode haver recidivas; paralisia facial ocorre em 6 a 48%. Em geral, resolvem-se espontaneamente ao longo de vários meses. A melhora na gravidade dos sintomas e no escore do estado funcional não é diferente entre os pacientes com e sem DM. CLASSIFICAÇÃO DAS NEUROPATIAS DIABÉTICAS. Neuropatias difusas • PNDS ∘ Neuropatia de fibras finas ∘ Neuropatia de fibras grossas ∘ Neuropatia de fibras mistas: finas e grossas (mais comum) • Autonômica • Cardiovascular ∘ VFC reduzida ∘ Taquicardia de repouso ∘ Hipotensão ortostática ∘ Morte súbita (arritmia maligna) • Gastrintestinal ∘ Gastroparesia diabética (gastropatia) ∘ Enteropatia diabética (diarreia) ∘ Hipomotilidade colônica (constipação intestinal) • Urogenital ∘ Cistopatia diabética (bexiga neurogênica) ∘ Disfunção erétil ∘ Disfunção sexual feminina • Disfunção sudomotora ∘ Hipoidrose/anidrose distal ∘ Sudorese gustativa • Hipoglicemia sem sintomas • Função pupilar anormal Mononeuropatias (mononeurite múltipla) (formas atípicas) • Nervo craniano ou periférico isolado (p. ex., III nervo craniano, nervos ulnar, mediano, femoral, fibular) • Mononeurite múltipla (se confluente, é semelhante à polineuropatia) Radiculopatias ou polirradiculopatias (formas atípicas) • Neuropatia do plexo radicular (também chamada de polirradiculopatia lombossacral, amiotrofia motora proximal) • Radiculopatia torácica Neuropatias não diabéticas comuns em diabetes • Paralisias por pressão • Polineuropatia desmielinizante crônica inflamatória • Neuropatia do plexo radicular • Neuropatias agudas de fibras finas dolorosas (induzidas por tratamento) RADICULOPATIA OU POLIRRADICULOPATIA ■ Neuropatia do plexo radicular | AMIOTROFIA MOTORA PROXIMAL, POLIRRADICULOPATIA LOMBOSSACRAL Esta forma é também conhecida como amiotrofia diabética ou polirradiculoneuropatia lombossacral diabética, porque envolve o plexo lombossacral. A combinação de fatores metabólicos e vasculares (isquemia e infiltração inflamatória observada ao longo do nervo; microvasculite epineural autoimune) é o fator causal do comprometimento da raiz do nervo femoral. Há aumento de proteínas no liquor ou líquido cefalorraquidiano (LCR). Mais comum entre pacientes idosos com DM2, há dor intensa, em queimação, nas coxas, e fraqueza muscular significativa (dificuldade para subir escadas ou até se levantar de uma cadeira) devido à hipotrofia dos músculos dos quadris e da coxa, e perda ponderal substancial. A avaliação eletrofisiológica é necessária para documentar a extensão da doença e outras etiologias (p. ex., degenerações discal ou neoplásica, infecciosa e inflamatória da coluna). O distúrbio é autolimitante e há melhora com tratamento médico e fisioterapia. Não há evidências de ensaios clínicos randomizados para apoiar qualquer recomendação de imunoterapia. ■ RADICULOPATIA TORÁCICA As radiculopatias tronculares são raras. Há envolvimento das raízes nervosas torácicas, de provável origem vascular. Podem ser uni ou bilaterais, são mais comuns em pacientes idosos com DM2 e há perda ponderal importante. A dor intensa, em queimação e lancinante assemelha-se à neuralgia pós-herpética. O diagnóstico diferencial é com angina ou compressão radicular de outra origem. A parede abdominal também pode ser acometida, tornando-se enfraquecida, com herniação da musculatura, dificultando o diagnóstico diferencial com massas intra- abdominais. Padrões de apresentação diferentes de neuropatia diabética. A. Polineuropatia em “bota e luva”, com envolvimento de fibras finas e ou grossas. B. Radiculopatia (amiotrofia, radiculopatia truncal). C. Mononeuropatia (nervos radial e mediano no membro superior esquerdo; nervo ulnar em membro superior direito; nervo peroneal ou fibular na perna direita). D. Neuropatia autonômica (envolvimento cardiovascular, gastrintestinal, urogenital). Entre as paralisias dos nervos cranianos, a mais comum é a do III nervo, manifestando-se por ptose palpebral, com ou sem dilatação pupilar. Amiotrofia em paciente de 60 anos que tinha diabetes melito tipo 2 e apresentava dor intensa, em queimação, nas coxas. Notar a acentuada hipotrofia dos músculos das coxas. NEUROPATIAS NÃO DIABÉTICAS COMUNS EM DIABETES As principais são as paralisias por pressão, polineuropatia desmielinizante inflamatória crônica (PNDIC); neuropatia do plexo radicular; e as neuropatias agudas de fibras finas dolorosas (induzidas por tratamento). O foco será para a PNDIC, diante da necessidade de descartar sua presença e de se fazer o diagnóstico diferencial com polirradiculopatias. POLINEUROPATIA DESMIELINIZANTE INFLAMATÓRIA CRÔNICA Deve-se considerar PNDIC diante de predomínio de disfunção motora caracterizando a apresentação de polirradiculopatia. O diagnóstico de PNDIC frequentemente não é percebido e deve ser descartada a síndrome de Guillain-Barré. A evolução é rapidamente progressiva, com déficits motores mais graves (simétricos ou assimétricos) do que os sensitivos. O controle glicêmico não corresponde ao quadro clínicoe há importante aumento de proteínas no LCR. Os estudos de VCN estão alterados e a desmielinização é indicativa de inflamação induzida por macrófago, característica de PNDIC. O paciente deve ser encaminhado para um neurologista, pois a recuperação é rápida com o uso de imunoglobulina injetável; como segunda opção, plasmaférese ou uso de imunossupressores em combinação (azatioprina e glicocorticoide). A neuropatia induzida por tratamento do DM (também conhecida por neurite insulínica) é considerada uma neuropatia iatrogênica, rara, de fibras finas, causada por melhora rápida no controle da glicose diante de hiperglicemia crônica, especialmente em pacientes com controle glicêmico muito ruim (HbA1c > 9%). A prevalência e os fatores de risco dessa forma de neuropatia ainda não são conhecidos e estão em estudo. POLINEUROPATIAS DIFUSAS Compreendem a PNDS – que inclui as neuropatia de fibras finas, neuropatia de fibras grossas e neuropatia mista, de fibras finas e grossas (forma mais comum) – e as neuropatias diabéticas autonômicas (NAD). ■ POLINEUROPATIA DISTAL SIMÉTRICA (TÍPICA, PNDS) O Consenso de Toronto considera a PNDS como a “polineuropatia simétrica, sensitivo- motora, comprimento-dependente, decorrente de alterações metabólicas e microvasculares resultantes de exposição crônica à hiperglicemia, associada à retinopatia e DRD, além de fatores de RCV”. Os fatores de RCV foram inseridos na definição de neuropatia diabética, diante dos vários dados que apontam essa associação, sobretudo em pessoas com DM2.6 A PNDS, como mencionado anteriormente, é a forma mais prevalente e estudada dentre as ND e será também referida nas seções seguintes, como PND. FIBRAS NERVOSAS E DISFUNÇÕES ENVOLVIDAS As fibras finas representam aproximadamente 80 a 90% das fibras nervosas e são responsáveis por condução da dor, controle do fluxo sanguíneo periférico, temperatura, função sudomotora e funções autonômicas. Essas fibras não têm mielina, tipo C – fibras amielínicas, ou são finamente mielinizadas – A-δ (A-delta); seus respectivos diâmetros e velocidade de condução são 0,1 a 1,3 μm e 1 a 5 μm, 0,6 a 2 m/s e 5 a 30 m/s. As fibras C conduzem a transmissão sensitiva mais lentamente, enquanto as A-delta o fazem mais rapidamente, porém são mais lentas que as fibras grossas. As fibras grossas A-β (A-beta) controlam propriocepção, posição segmentar, proteção plantar, equilíbrio e mobilidade articular, enquanto as fibras Α-α (A-alfa) efetuam o controle muscular. As fibras grossas são mielinizadas, os diâmetros e velocidade são maiores – 5 a 12 μ m e 30 a 70 m/s, e 12 a 22 μm e 70 a 120 m/s, respectivamente. A lesão das fibras nervosas finas resulta em dor e disautonomias em fibras grossas, instabilidade com quedas, úlceras nos pés e amputações. As fibras finas são precocemente lesionadas e os nervos mais longos são inicialmente atingidos, explicando a relação comprimento- dependente característica da PND, com direção de instalação distal-proximal. O envolvimento dos membros inferiores se dá a partir dos dedos dos pés, até atingir segmentos proximais (pernas e coxa) e em membros superiores, dos dedos das mãos até antebraços e braços, caracterizando a clássica distribuição em bota e luva. As fibras motoras são atingidas em estágios avançados, com hipotrofia dos músculos interósseos dos pés e das mãos, além de deformidades características: dedos em garra e em martelo, proeminências das cabeças dos metatarsos. Outra manifestação atribuída ao comprometimento de fibras grossas é a limitação da mobilidade articular. CARACTERÍSTICAS DOS SINTOMAS E SINAIS NEUROPÁTICOS A dor é definida como experiência emocional desagradável relacionada a um dano tecidual real ou potencial, sendo dividida nos tipos “nociceptiva” e “neuropática”. A nociceptiva ocorre por ativação fisiológica de receptores ou da via dolorosa e está relacionada com lesão de tecidos ósseos, musculares ou ligamentares; enquanto a dor neuropática periférica (DNP) é iniciada por lesão ou disfunção do sistema nervoso, sendo compreendida como resultado da ativação anormal da via nociceptiva (fibras finas e trato espinotalâmico). As descrições mais comuns são de parestesia (sensação anormal, espontânea, como dormência), disestesia (sensação desagradável, pode ser dolorosa ou desconfortável, como formigamento, queimação, cãibras), alodinia (reação dolorosa a estímulos, como contato das roupas, cobertores, lençóis), hiperalgesia (resposta intensa a mínimo estímulo doloroso, como o toque pontiagudo do palito). Os sintomas tipicamente surgem em repouso, melhoram com os movimentos e as atividades diárias e exacerbam-se à noite (Quadro 67.2). A piora noturna decorre, provavelmente, da menor competição com outros estímulos dolorosos em relação ao período diurno e por alterações nas áreas centrais de processamento da dor. O envolvimento periférico autônomo altera a microcirculação e ocasiona respostas vasomotoras e de temperatura, referidas como sensação de esfriamento/congelamento e aquecimento. O comprometimento de fibras motoras traduz- se por cãibras e fraqueza muscular nos pés e pernas.5,6 A DNP é crônica quando a duração é > 6 meses e a intensidade não diminui à medida que a PND se agrava ou pela sua maior duração.18,19 A instabilidade postural deve ser valorizada, pois há maior frequência de quedas secundárias aos distúrbios na propriocepção. PÉ DIABÉTICO O International Working Group on the Diabetic Foot (IWGDF) definiu pé diabético como “infecção, ulceração e/ou destruição de tecidos moles do pé associadas a neuropatia e/ou doença arterial nas extremidades dos membros inferiores em pessoas com diabetes melito”.1 É uma das complicações mais impactantes do diabetes melito (DM) e sua incidência tende a aumentar à medida que a epidemia global do DM ascende, diante da maior longevidade da população e da associação com a obesidade. No Brasil, um estudo de 2010 com base em um modelo hipotético envolveu uma população de 7,12 milhões de pessoas com DM2 e estimou 484.500 UPD ao ano, 169.600 admissões hospitalares e 80.900 amputações, das quais 21.700 teriam desfecho de morte.10 Considerando-se o número estimado de diabéticos para o país em 2019 de 16,8 milhões,2 esses números potencialmente estariam mais que duplicados. O acompanhamento por mais de 10 anos de 247 pacientes diabéticos, com ou sem prévia amputação, comprovou mortalidade cumulativa com 1, 3, 5 e 10 anos de 15,4, 33,1, 45,8 e 70,4%, respectivamente. MECANISMOS DA ULCERAÇÃO As UPD são comumente causadas por estresse repetitivo em uma área sujeita a grande estresse vertical ou de cisalhamento em pacientes com neuropatia periférica, com ou sem a doença arterial periférica.14,15 Traumatismos externos, decorrentes, sobretudo, de calçados inadequados, objetos dentro dos calçados, caminhar descalço, quedas, acidentes e tipo de atividade, são responsáveis por 80 a 90% das UPD. Lesões pré-ulcerativas, como bolhas, pele macerada, micoses interdigitais e calosidades, podem ocasionar UPD, se não houver intervenção em tempo hábil. POLINEUROPATIA DIABÉTICA A exposição prolongada à hiperglicemia provoca danos às fibras nervosas finas (tipo-C e delta-A), acarretando insensibilidade e, em fases mais avançadas, acometimento das fibras grossas (beta-A e alfa-A), produzindo deformidades estruturais nos pés. Danos às fibras grossas também resultam em perda da propriocepção, do movimento articular e da noção de posição segmentar nas pernas e nos pés, e, em estágios avançados, em fraqueza muscular e alterações da arquitetura óssea. Observam-se, então, deformidades neuropáticas típicas como dedos em garra ou em martelo, proeminências de metatarsos e acentuação do arco plantar. Consequentemente, surgem áreas de pressão anormal (metatarsos; região dorsal e plantar dos dedos dos pés) e modifica-se o padrão normal da marcha ao caminhar. Assim, a tríade da UPD é a conjunção de polineuropatia diabética (PND), deformidade e traumatismo. O comprometimento das fibras simpáticas (finas) pela neuropatia autonômica periférica resulta em diminuição ou ausência de sudorese (anidrose) e pele ressecada, predispondo a rachaduras e fissuras. Além disso, alterações na microcirculação pela denervação dos receptores nociceptivos perivasculares e pelo espessamento da membrana basal dos capilares desequilibram os mecanismos reguladores da vasodilatação e vasoconstrição, com aumento do fluxo e surgimento de fístulas arteriovenosas que desviam esse fluxo dos tecidos profundos. O resultado clínico é um pé “quente”, veias dorsais distendidas e, algumas vezes, edema. A neuropatia autonômica causa diminuição ou ausência de sudorese (anidrose), cuja apresentação clínica é o ressecamento da pele, predispondo a rachaduras e fissuras, que podem resultar em úlceras e amputações. O processo de glicosilação não enzimática e a maior deposição de produtos avançados de glicosilação tardia (AGES) em fibras do colágeno, articulações e pele favorecem a limitação da mobilidade articular, com redução da amplitude articular, sobretudo na região subtalar. A incapacidade do hálux de realizar dorsiflexão e extensão (demonstrada pela goniometria), deformidades nos pés e alterações no padrão da marcha resultam em modificações na biomecânica e pressões plantares anormais. O traumatismo repetitivo do caminhar não é percebido, devido às perdas da sensibilidade protetora plantar e da sensibilidade dolorosa, surgindo hiperqueratose e calos, que aumentam a pressão local em até 30%. Caso a carga não seja removida e redistribuída, lesões se instalarão nas áreas de pressão das deformidades, com ruptura da pele e consequente infecção. Úlceras neuropáticas, com acentuada hiperqueratose (80 a 90% dessas úlceras são precipitadas por fatores externos, sobretudo o uso de calçados inadequados) Aspecto característico de úlcera plantar neuropática. PÉ DE CHARCOT Uma complicação grave e incomum é a neuroartropatia de Charcot ou pé de Charcot, considerada uma síndrome inflamatória que surge após lesão ou traumatismo leve despercebido, cirurgia, infecção, amputação menor ou úlcera prévia, ocorrendo um ciclo contínuo de inflamação. Apresenta-se frequentemente sem aviso e pode rapidamente evoluir para deformidade grave e irreversível do pé, e resultar em ulceração e amputação. A inflamação descontrolada do pé causa osteólise, deslocamento da fratura e desabamento dos ossos afetados. O sistema de sinalização do ligante do receptor do ativador do fator nuclear kappa B/osteoprotegerina (RANKL/OPG) tem papel relevante após o estabelecimento do ciclo inflamatório: a liberação de citocinas pró- inflamatórias, interleucina-1 (IL-1) e o fator de necrose tumoral alfa (TNF-α) induzem maior expressão do RANKL, o qual estimula a transcrição do fator nuclear kappa-beta (NF-κ B), o que favorece a maturação de osteoclastos e subsequente osteólise. O NF-κB estimula a produção da OPG a partir dos osteoblastos; a OPG modula a atividade do RANKL e a expressão do NF-κB, inativando a via, em uma autorregulação. Contudo, no pé de Charcot isso não ocorre e RANKL, NF-κB, atividade osteoclástica e citocinas pró- inflamatórias estabelecem um ciclo contínuo de osteólise local. A inter-relação de PND, neuropatia autonômica e atividade osteoclástica ainda não está totalmente esclarecida. Sabe-se que a denervação simpática associa-se a aumento do fluxo sanguíneo periférico e reabsorção óssea mediada pela ação do polipeptídeo relacionado ao gene da calcitonina um peptídeo secretado nos terminais nervosos, que regula a síntese do óxido nítrico (NO) em alguns tecidos. O NO pode modular tanto a formação quanto a reabsorção óssea in vitro. As exatas incidência e prevalência da neuroartropatia de Charcot (NC) são desconhecidas. Dados disponíveis apontam para uma prevalência que varia de 0,1 a 0,4% da população diabética. Outra revisão encontrou uma variação de 0,08 a 13% na prevalência da NC, evidenciando a heterogeneidade dos critérios diagnósticos. Em pacientes com DM tipo 1 (DM1), alterações típicas da NC tendem a aparecer mais precocemente de que no DM2. Aspecto usual do pé de Charcot, cujas deformidades resultam de destruição e deslocamento ósseos. B. Neuroartropatia do tornozelo, com graves osteólise e deslocamento talonavicular. A NC é unilateral em 80% dos casos, e as luxações articulares e fraturas comprometem o arco médio, com distribuição desordenada da carga no tarso, no metatarso e no tornozelo, sendo de pior prognóstico os danos em calcâneo e tornozelo. O risco de deformidades crônicas é elevado, porque nem sempre o paciente adere ao tratamento prolongado (6 a 12 meses), que é baseado na descarga do peso com gesso de contato total ou gesso de fibra de vidro. O diagnóstico diferencial com a osteomielite, na presença de ulceração, constitui um desafio clínico. A grave alteração da estrutura do pé, pelo desabamento ósseo no mediopé, resulta no chamado pé em mata-borrão, que evolui com altos riscos de UPD e amputação. DOENÇA ARTERIAL OBSTRUTIVA PERIFÉRICA A doença arterial obstrutiva periférica (DAOP) é definida como qualquer doença arterial obstrutiva aterosclerótica abaixo do ligamento inguinal, resultando em redução do fluxo sanguíneo para as extremidades inferiores. A sintomatologia tem baixa sensibilidade diagnóstica, visto que está ausente em 25 a 50% dos casos e pode ser atípica, principalmente se houver PND. Claudicação intermitente ocorre em apenas 30%.30 A DAOP influencia diretamente o desenvolvimento de UPD e determina sua evolução mediante o grau de gravidade da isquemia. As lesões surgem após traumatismo, mesmo de pequena intensidade, predominam nas faces lateral e medial dos pés, bem como nas extremidades digitais, e são dolorosas (na ausência de PND). A DAOP constitui um fator de risco independente para UPD e amputação, além de estar associada a maior risco cardiovascular. Em geral, existe concomitância de DAOP e PND, resultando em ulcerações neuroisquêmicas. IDENTIFICAÇÃO DOS PACIENTES EM RISCO Os principais fatores de risco para a ulceração são PND, deformidades neuropáticas, traumatismo, limitação da mobilidade articular, pressão plantar anormal, história de ulcerações, DAOP, retinopatia e doença renal do diabetes (DRD). Estudos populacionais prévios mostram que as úlceras neuropáticase neuroisquêmicas compreendem 90% das úlceras (40 a 60% puramente neuropáticas, 45% neuroisquêmicas), e as puramente isquêmicas são mais raras (10 a 20%). História prévia de úlcera representa risco 57 vezes maior de uma nova ulceração, enquanto calosidades e pressão plantar anormal propiciam risco 11 e 4 vezes maior, respectivamente. Retinopatia diabética e/ou DRD, déficit visual, tabagismo, questões psicossociais como depressão e isolamento social (morar sozinho) e inacessibilidade ao sistema de saúde, além da desinformação para autocuidado (educação terapêutica), são considerados importantes fatores de risco. Dados do Reino Unido verificaram que pacientes diabéticos de origem asiática têm menos úlceras e amputações, provavelmente por haver menos limitação da mobilidade articular nessa população e maior cuidado dos muçulmanos com os pés. “Paciente em risco de UPD” aquele indivíduo com DM, sem úlcera ativa, mas que apresenta perda da sensibilidade protetora plantar ou DAOP. AVALIAÇÃO CLÍNICA E RASTREAMENTO História e exame clínicos são cruciais para o diagnóstico e a classificação do risco, e envolvem testes neurológicos e vasculares simples, de baixo custo e boa sensibilidade. Sintomas, isoladamente, não são critérios importantes para confirmar PND ou DAOP, pois podem estar ausentes. O exame físico inicia-se por avaliação do calçado e sua remoção, além de remoção das meias, e deve ser realizado regularmente a partir do 5o ano de duração do DM1 e ao diagnóstico do DM2, e o acompanhamento do paciente deve ser feito de acordo com a estratificação de risco. Deve-se realizar inspeção da arquitetura dos pés, das condições e da coloração da pele e das unhas, além de verificar a presença de pelos e palpar os pulsos das artérias pediosas dorsais e tibiais posteriores. Estudo multicêntrico de pacientes com DM2 no Brasil verificou que apenas 58% dos atendidos em centros especializados e não especializados tiveram registro de exame dos pés efetuado no ano anterior, como também de fundoscopia (46,9%), microalbuminúria (38,9%) e tabagismo (54,5%). Em outro estudo nacional, relacionado ao DM1, o exame dos pés foi o que mais mostrou falha de registro. INSTRUMENTOS NEUROLÓGICOS, BIOMECÂNICOS E VASCULARES ■ Testes qualitativos Avaliam fibras grossas e finas, de modo qualitativo, com respostas subjetivas de presença ou ausência de sinais: diapasão 128 Hz (sensibilidade vibratória), martelo (reflexos aquileus), pino, palito ou neurotip (sensibilidade à dor), martelo de Buck (reflexos aquileus). ■ TESTES SEMIQUANTITATIVOS O monofilamento de 10 g avalia a sensibilidade protetora plantar, conduzida pelas fibras grossas mielinizadas.21,38 A recomendação da American Diabetes Association (ADA) e da American Association of Clinical Endocrinologists (AACE),36 também adotada pela Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD),21 é realizar o teste em quatro áreas plantares de cada pé – hálux (região plantar da falange distal) e primeira, terceira e quinta cabeças de metatarsos (Figura 68.9) –, embora o IWGDF recomende o teste em apenas três locais (hálux e primeira e quinta cabeças de metatarsos). O monofilamento requer um “repouso” de 24 horas após ser aplicado em 10 a 15 pacientes, e sua acurácia diminui após 500 testes.39 Qualquer área insensível é considerada anormal.32 A combinação do teste com monofilamento e um ou mais testes qualitativos alterados diagnostica perda de sensibilidade protetora plantar, uma modalidade de rastreamento de PND, e risco de UPD.36 O bioestesiômetro e o neuroestesiômetro têm maiores especificidades16,40 do que o monofilamento e quantificam o limiar da sensibilidade vibratória pela amplitude em volts: 0 a 50 e 1 a 100, respectivamente. O limiar > 25 volts indica 7 vezes mais risco de UPD e incidência de ulceração de 20%.40 Tem como limitação o custo bastante superior ao do monofilamento. Pressão plantar (PP) também deve ser valorizada como fator de risco para UPD e vários métodos a avaliam, desde simples plantígrafos sem escala de força (Harris Mat®) a plantígrafos com escala de força (Podotrack/PressureStat®), validados com relação ao pedobarógrafo,16 que, com plataformas e palmilhas dotadas de sensores, captam, por meio da pisada, a PP anormal. O ponto de corte indicativo de anormalidade varia segundo os sistemas empregados (Figura 68.10).6,16 A PP também norteia a confecção de palmilhas para aliviar a distribuição de carga.20,21 O PressureStat® possibilita uma abordagem educativa ao mostrar ao paciente a área mais escura, indicativa de maior PP. O Quadro 68.4 contém os parâmetros recomendados para a coleta de dados clínicos, visando ao rastreamento do pé em risco. Características do pé diabético: neuropático, isquêmico e neuroisquêmico. Pé neuropático Quente, bem perfundido, pulsos amplos, vasos dorsais dilatados • Anidrose, pele seca com tendência a rachaduras e fissuras • Arco médio elevado, metatarsos proeminentes, dedos em garra/martelo • Áreas de pressão plantar anormal (hiperqueratose), calosidades • Edema, hiperemia, alterações articulares graves (pé de Charcot) Pé isquêmico • Pé frio, má perfusão, pulsos diminuídos ou ausentes • Pele fina, brilhante • Cianose, rubor postural, palidez à elevação • Unhas atrofiadas, ausência/rarefação de pelos Pé neuroisquêmico • Combinação dos achados neuropáticos e vasculares, com ou sem deformidades. VASCULARES O diagnóstico clínico não provê valor confiável por várias limitações: ■Polineuropatia coexiste em vários pacientes e mascara os sintomas de DAOP (claudicação intermitente e dor isquêmica em repouso) ■O exame físico não assegura DAOP nem identifica sua gravidade ■A coexistência de edema, PND e infecção pode dificultar o desempenho de testes ■Calcificação da camada média arterial limita a compressibilidade das artérias na insuflação do manguito durante a tomada do índice tornozelo- braquial (ITB), fornecendo valores elevados. A palpação dos pulsos deve ser sempre efetuada, porém há grande variação intra e interobservadores, mesmo em mãos experientes. O ITB é a relação da maior pressão sistólica das artérias distais de ambos os pés (artérias tibiais posteriores e pediosas), aferida com Doppler manual (transdutor de 8 a 10 MHz), pela maior pressão sistólica aferida nas artérias braquiais. O ponto de corte do ITB normal é > 0,9 e < 1,15 a 1,3 (Figura 68.11). Um valor < 0,9 é indicativo de isquemia (sensibilidade de 95% e especificidade de quase 100%) e impõe um acompanhamento constante do paciente, inclusive por cirurgião vascular. É importante ressaltar que, em função de insensibilidade, pacientes diabéticos podem não se queixar de claudicação intermitente, sintoma mais precoce da DAOP. Dados do United Kingdom Prospective Diabetes Study (UKPDS) indicam que, para cada três indivíduos claudicantes, há um “silencioso”. Por outro lado, mesmo considerando-se as limitações impostas pelos shunts arteriovenosos e/ou calcificações, que podem falsamente elevar o ITB (> 1,15 a 1,3), a tomada da pressão das artérias distais pode estimaro potencial de cicatrização de uma úlcera.2,12,17 ■ Termometria e termografia Detecção precoce e monitoramento da inflamação/infecção têm sido descritos há vários anos, por meio da temperatura da pele com termometria a laser, objetivando diagnosticar UPD aguda ou recidiva precoce de lesão crônica, bem como monitorar a evolução do pé de Charcot.41 O ponto de corte ≥ 2°C de diferença entre áreas ou no pé contralateral indica inflamação e/ou infecção. A termografia infravermelha na superfície do pé é também utilizada para identificar potenciais pontos quentes (hotspot). A combinação de termometria com termografia foi validada e surge como uma ferramenta mais eficaz, com melhores sensibilidade (> 60%) e especificidade (> 79%),42 contornando o problema de falso-positivos. ULCERAÇÕES Definição e classificação A definição de úlcera no pé diabético, segundo o glossário do IWGDF, é “ruptura da pele do pé que inclui pelo menos a epiderme e parte da derme”. Gangrena é definida como morte de tecido devido a suprimento insuficiente de sangue, infecção ou lesão. Sem infecção, geralmente resulta em tecido seco e enegrecido, frequentemente chamado de gangrena seca; quando o tecido é infectado, acompanhado de putrefação e celulite circundante, é chamado de gangrena úmida. A determinação causal da UPD, com base nos fatores de risco, é o primeiro passo para o diagnóstico de UPD neuropática, isquêmica ou neuroisquêmica. As UPD devem inicialmente ser classificadas pelo sistema SINBAD, que gradua área, profundidade, infecção, DAOP, PND e localização. Cada item pontua 0 ou 1, com escore máximo de 6 pontos. O sistema SINBAD é simples, rápido, não requer especialista ou equipamentos, contém todas as informações necessárias para triagem e permite linguagem única e fácil comunicação entre profissionais de qualquer localidade. Ademais, é uma classificação validada para predizer cicatrização e amputação com elevado grau de confiabilidade.
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