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1 O Protestantismo de Missão no Brasil. Inserção e estagnação. Sílvio Murilo Melo de Azevedo 2017 O Protestantismo de Missão no Brasil. Inserção e estagnação. 2 Resumo O texto em seguimento trata da difícil análise do Protestantismo brasileiro, que no decorrer de pouco tempo de existência foi de um crescimento considerável à estagnação, demonstrando haver chegado precocemente a um estado senil. Tentaremos demonstrar os fatores que desencadearam sua inserção e a estagnação, com ênfase especial no quadro teórico da História e da Sociologia da Religião. A primeira parte que trata dos fatores de inserção terá como ênfase a história, por meio de uma classificação dos fatores de inserção; a segunda, que trata da estagnação, será sociológica, porque por meio de uma análise das crises do Protestantismo brasileiro. A tese principal desta investigação é que o que lhe ocasionou a atual estado foi uma falta de adaptação aos novos contextos sociais do Brasil, bem como um envelhecimento teológico precoce, produzido, primeiramente, pela adoção de uma plataforma ideológica incôngrua com sua teologia original durante o regime militar; depois, pela rigidez institucional. O objetivo é construir um quadro analítico mais amplo possível do Protestantismo de Missão, demonstrando sua ascensão e queda, à medida que a sociedade brasileira transitou de um contexto moderno para um pós- moderno. A conclusão não é das mais agradáveis. O Protestantismo de Missão encontra-se em uma situação deveras desconfortável. Nesta transição da persuasão para a presentificação (que estão ligados respectivamente à Modernidade e à Pós-modernidade) sua missiologia fica entre dois processos de desrelevância. Se se mantém atrelado à persuasão e ao dogmatismo que o pressupõe, perde a capacidade de se comunicar com o ouvinte contemporâneo; se migra para a presentificação e para o relativismo que o pressupõe, perde a capacidade de ser teologicamente coerente (pois sua teologia foi construída sobre os fundamentos do modelo persuasivo). De nosso ponto de vista, esta é a maior crise, de todas que já tenha enfrentado o Protestantismo Histórico. Palavras-chave: Protestantismo Histórico, Modernidade, Pós-modernidade, Pentecostalismo e Neopentecostalismo e Secularização. Mission Protestantism in Brazil. Insertion and stagnation. 3 Abstract The following text deals with the difficult analysis of Brazilian Protestantism, which in the course of a short time of existence was a considerable growth to stagnation, demonstrating that it had arrived early to a senile state. We will try to demonstrate the factors that triggered insertion and stagnation, with special emphasis on the theoretical framework of History and Sociology of Religion. The first part that deals with the factors of insertion will emphasize history, through a classification of the insertion factors; the second, which deals with stagnation, will be sociological, because through an analysis of the crises of Brazilian Protestantism. The main thesis of this investigation is that what caused the current state was a lack of adaptation to the new social contexts of Brazil, as well as an early theological aging, produced, first, by the adoption of an ideological platform that was not consistent with its original theology during the military regime; later, by institutional rigidity. The goal is to build a broader analytical framework for Mission Protestantism, demonstrating its rise and fall, as Brazilian society shifted from a modern to a postmodern context. The conclusion is not the most pleasant. Mission Protestantism finds itself in a very uncomfortable situation. In this transition from persuasion to presentiment (which are linked respectively to Modernity and Postmodernity) its missiology lies between two processes of irrelevance. If he keeps himself tied to the persuasion and dogmatism that presupposes him, he loses the ability to communicate with the contemporary listener; it migrates to the presentiment and to the relativism that presupposes it, loses its capacity to be theologically coherent (for its theology was built on the foundations of the persuasive model). From our point of view, this is the greatest crisis, of all that has already faced Historical Protestantism. Key Words: Historic Protestantism, Pentecostalism and Neopentecostalism, patronage, secularization and Post-modernity. Prefácio Este estudo nasceu de um artigo escrito para satisfazer as exigências da disciplina História do Cristianismo na América Latina, na Pós-graduação da UMESP, ministrada pelo Prof. Dr. Lauri 4 Emílio Wurth. Eu, muito simploriamente, depois de haver lido alguns clássicos da Historiografia evangélica e católica sobre a América Latina, escrevi um artigo de 20 páginas achando que havia descoberto a roda sobre as causas da inserção do Protestantismo no Brasil. Lauri me ouviu pacientemente e me disse ao final, com aquele seu jeito de quem ‘não sabe de nada’: “Mas esta ideia não é do Mendonça?”. Ele se referia a Antônio G. de Mendonça, um dos papas da Sociologia do Protestantismo do país. Na minha ignorância, até aquele momento nunca tinha ouvido falar, mesmo porque minha área de concentração era outra, Teologia e História. Tomei a crítica como desafio e fui me alfabetizar na área da Sociologia do Protestantismo. Depois de uns bons anos de leitura finalmente me atrevo a escrever de forma mais profissional sobre o tema de então: a inserção do Protestantismo no Brasil. Agora já sou capaz de reconhecer os créditos de tanta gente boa que dedicou uma existência ao magistério e ao estudo de uma importante e ignorada parte da história deste país e está relacionada com a chegada dos protestantes históricos. Não sei se Lauri aprovaria esta minha nova tentativa. De qualquer modo, agora pelo menos, posso pretender contribuir de forma mais consciente para a discussão de um tema que me tem enquizilado desde aqueles dias. O que se passou com o Protestantismo brasileiro que o tenha feito vir de tão longe para encontrar-se perdido em Terra Brasilis? E que meio atordoado com a perda de fiéis para os pentecostais e com o insucesso de suas missões tenta se recompor nos novos tempos. Não tenho a pretensão de dar uma resposta definitiva a esta pergunta, apesar do alentado volume que saiu como resultado destas investigações e lucubrações. Apenas quis elencar de maneira mais sistemática os motivos que o levou a esta situação. Talvez possa fazer outras perguntas, quiçá oferecer outras possibilidades interpretativas para o fenômeno da inserção e da estagnação protestante no Brasil. Parece não ser muito o que pretendo. Mas, o que pode ser mais importante do que olhar para trás e para frente e poder perceber melhor o lugar onde nos encontramos, como nos quer ensinar o que há de mais elementar na história? Talvez este conhecimento só seja inferior à percepção de se saber para onde se está indo, que é a pretensão da Teologia. A Sociologia, porém, nos recomenda a rezar para que se estejamos realmente indo para algum lugar, e não meramente repetindo o que outros já fizeram antes de nós. 5 Escrevi este estudo porque gostaria de saber algo assim, conjugando estas três grandes ciências do espírito para chegar às perguntas mais essenciais, que ademais, são indispensáveis em se tratando do Protestantismo Histórico e sua trajetória. Estas perguntas e suas respectivas ciências não são, necessariamente, irênicas, pois as dimensões institucionais a que se referem não são fixas e estanques, mas conectadas. Ou seja, não é necessário interpretá-las de forma determinística, o que é totalmente descabido nas ciências humanas. A teologia pode ser interpretada de maneira ideológica quando, por exemplo, legitima-se como instituição; os modelossociológicos de comportamento individual e das organizações podem ser alterados por concepções teológicas, as quais podem influir nos processos de institucionalização. Por isto a sociologia permanece congruente com sua crítica e a teologia, com sua esperança. E a história será o fiel da balança que poderá contradizer tanto uma como a outra. O equilíbrio será o resultado teórico mais desejável de uma abordagem deste tipo, à medida que trata de um objeto que não pode ser mutilado de quaisquer destas dimensões, sem que seja comprometida sua verdade. Espero que esta obra mantenha este equilíbrio, pois assim terá cumprido seu papel. Silvio Murilo Melo de Azevedo, Manaus Outubro de 2017. Sumário Capítulo I 1.Introdução....................................................................................................................7 6 Capítulo II 2. Fatores de inserção do Protestantismo de Missão...............................................17 2.a. Introdução..............................................................................................................17 2.b. Fatores Sociais......................................................................................................20 2.c. Fatores Históricos.................................................................................................23 2.c.1. Inserção protestante: pré-ocorrências axiais.................................................. 2.c.2. O padroado régio na administração eclesiástica brasileira...........................26 2.c.3. O Protestantismo de Imigração.........................................................................34 2.c.4. Liberdade de Imprensa...................................................................................... 2.c.5. O progresso material dos países protestantes............................................... 2.c.6. As escolas protestantes.................................................................................... 2.c.7. Conclusão...........................................................................................................39 2.d. Fatores Político-ideológicos................................................................................39 2.d.1. O projeto Liberal.................................................................................................40 2.d.2. A Franco-maçonaria...........................................................................................48 2.d.3. O regalismo......................................................................................................... 2.d.4. O Positivismo...................................................................................................... 2.d.5. Conclusão........................................................................................................... 2.e. Fatores Religiosos.................................................................................................59 2.e.1. Expulsão dos Jesuítas.......................................................................................59 2.e.2. Jansenismo.........................................................................................................63 2.e.3. Número insuficiente de bispos e párocos.......................................................66 2.e.4. Romanização e enfraquecimento do Catolicismo cultural.............................74 2.e.5. Conclusão...........................................................................................................80 Capítulo III 3. A decadência e a estagnação do Protestantismo de Missão...............................84 3.a. Introdução..............................................................................................................84 3.b. Envelhecimento precoce do Protestantismo......................................................89 3.b.1. Congresso Missionário do Panamá (1916) .....................................................99 3.b.2. Congresso Missionário de Montevideo (1925) .............................................102 3.b.3. Presbiterianos...................................................................................................107 7 3.b.4. Metodistas.........................................................................................................110 3.b.5. Batistas..............................................................................................................110 3.b.6. Período entre-guerras e pós-guerra...............................................................111 3.c. Excesso de mobilidade populacional................................................................113 3.d. Secularização e pluralismo religioso................................................................125 3.e. O ethos pós-moderno.........................................................................................131 3.f. As tensões do Protestantismo Histórico brasileiro..........................................136 3.f.1. Entre o conformismo e o não-conformismo...................................................140 3.f.2. Entre o conservantismo político e a responsabilidade social......................154 3.f.3. Entre o confessionalismo e o Ecumenismo...................................................178 Capítulo IV 4. Conclusão...............................................................................................................192 4. Uma crise em curso...............................................................................................192 Referências.................................................................................................................199 CAPÍTULO I Introdução 8 Pelo final da década de setenta Rubem Alves observava em um de seus artigos: “o Protestantismo histórico não chama a atenção nem dos setores eclesiásticos nem dos setores acadêmicos [...]. O Protestantismo está estagnado” (ALVES, 1979, 46). Desde que Alves escreveu estas palavras o quadro de estagnação protestante até piorou, passando a apresentar um crescimento negativo. Contudo, ao contrário do que Alves estimou, penso ser justamente por isso que o caso do ‘Protestantismo Histórico brasileiro’ deve ser colocado sob exame. Por sua atual importância para a religiosidade brasileira, coisa que ele nunca imaginou viesse a ocorrer, e pela rapidez de sua decadência. O Protestantismo deixou uma profunda marca em sua formação. Seus princípios fundamentais: o conversionismo, a importância da Bíblia, a ética puritana, compõem um legado transmitido e assimilado pela cultura religiosa brasileira como um todo. Por último, o próprio fato de a população que se autodeclara católica no Brasil estar cada vez menor também é resultado da atuação protestante neste mercado religioso, por meio do Pentecostalismo. É inegável que o Protestantismo de Missão esteja em seus estertores, mas não deixa de ser digno de nota a avaliação das causas e fatores que começam a desfavorecê-lo passados apenas um século e meio de atividade no Brasil. Mas quem são os protestantes de que fala esta pesquisa? Não é fácil a definir. Qualquer classificação já nasce sob o signo da controvérsia, dada a própria interconexão que liga vários movimentos em uma história comum. Primeiro, porque sua ambiência originária, o denominacionalismo norte-americano, fez com que os protestantes de missão exercessem influência mútua entre si e entre si também reagissem. Trasladado para o Brasil, o Protestantismo mais uma vez diferenciou-se, adquirindo características próprias em relação àquela ambiência originária norte-americana, por aqui ter sofrido novas influências e ter se desenvolvido em um contexto social diferente; por exemplo, em um quadro social marcado pela hegemonia católica, enquanto o contexto deles, originariamente,era o da religião civil. Correntemente, existem diversas classificações das subdivisões do Protestantismo em contexto sul-americano. Há a classificação de Christian L. D’Épinay, que a meu ver peca pelo excesso de elementos: (a) igrejas imigrantes transplantadas (capelas anglicanas do século XIX, por exemplo), (b) protestantes de migração enxertados (luteranos e reformados), (c) “Protestantismo tradicional” (metodistas e presbiterianos), (d) “seitas conversionistas estabelecidas” ou 9 “Protestantismo de santificação” (batistas), (e) seitas conversionistas pentecostais (WESTMEIER, 1999, 16). Há vários problemas com esta classificação. Além do excesso de distinções, baseia-se em uma terminologia que remonta a Troeltsch, como se pode perceber pelo uso do conceito de seita (TROELTSCH, 1992, 442)1. Outra distinção inadequada é o fato de os batistas aparecerem separados dos presbiterianos e metodistas, embora não haja uma diferença marcante entre eles; não no contexto brasileiro. Orlando E. Costas prefere uma tipologia mais simples, pela qual O Protestantismo latino- americano estaria dividido em três grandes grupos: (a) o Protestantismo “Troncal”, relacionado às igrejas de imigração (luteranos, morávios, etc.); (b) o Protestantismo Evangélico, igrejas livres, ou seja, sem relação com a territorialização das confissões que era prática na Europa; (c) o Protestantismo Pentecostal, relacionado às igrejas de matriz pentecostal em geral (DEIROS, 1997, 43). David Stoll aceita a separação entre Protestantismo Europeu e Protestantismo Evangélico, mas depura o conceito criando uma nova subdivisão que ele chama de “igrejas livres”: (a) “protestantes da linha principal” (presbiterianos, metodistas, batistas, etc.) e (b) missões de fé (Faith missions) originárias de novas denominações fundamentalistas, fundadas no começo do século XX (Christian and Missionary Aliance; Church of the Nazarene; missões de pentecostais originários e igrejas renovadas), tipologia que coincide com a de Samuel Escobar (ESCOBAR, 2015, 15) até este ponto; e, por último, movimentos não institucionais2, que é sua contribuição (STOLL, 90, 5). Agrada-me mais as tipologias de Costas e Stoll, pela simplicidade e pela maleabilidade dos elementos. Apenas ressalte-se que no contexto brasileiro a palavra “evangélico” tem um espectro muito largo, incluindo um número demasiado de entes, produzindo mais confusão do que clareza, 1 O conceito de Troeltscht, herdado de Weber, é histórico evolutivo, segundo o qual toda Igreja ou denominação começa como seita e depois evolui. Diversos autores já questionaram este modelo apontando outros caminhos na progressão de instituições religiosas. J. Milton Yinger, por exemplo, reconhece estados intermediários entre seita e denominação, como é o caso das seitas institucionalizadas. Para Yinger o que define uma seita não é só seu grau de institucionalização, mas também a forma como ela se relaciona com o mundo que a circunda. Se for excludente é seita institucionalizada; se não for excludente, é denominação (YINGER, 1970, 257). 2 Uma destas organizações foi a Campus Crusade for Christ, de Bill Bright, que no Brasil chamava-se Cruzada Estudantil e Profissional para Cristo, atuando com objetivo de atrair estudantes universitários para o evangelho. Outras similares, atuando na mesma direção, foram Aliança Bíblica Universitária, Palavra da Vida, Vencedores por Cristo, etc. (MENDONÇA, 65, 2005). 10 por isto deve ser substituído por protestantes. É preferível falar de um Protestantismo Histórico ou de Missão e incluir neste grupo metodistas, presbiterianos e batistas3. Embora a palavra missão tenha um significado um pouco diferente em cada um deles, aquilo que os une é mais importante do que o que os separa. De fato, eles compartilham vários pontos comuns: (a) no campo teológico, a teologia conversionista, a ética puritana, uma tradição avivalista, etc.; (b) no campo missiológico, iniciaram suas missões no Brasil mais ou menos na mesma época; (c) historicamente, sua ascensão e decadência transcorreram também na mesma época, e mais ou menos pelas mesmas causas, embora não na mesma medida. Outra questão pendente na consideração do Protestantismo refere-se à curva negativa de seu crescimento. É um fim de linha ou uma transformação? Está o Protestantismo de Missão se transformando em Pentecostalismo ou são duas ramificações que correm paralelas e independentes? Pergunta que naturalmente aflora diante do espetacular crescimento pentecostal que transcorre coetaneamente ao declínio do Protestantismo tradicional. Há alguma relação entre estes dois fenômenos? Sim e não. Não há como negar que o crescimento pentecostal alimentou-se do declínio protestante, sendo boa parte de sua membrezia proveniente dos últimos. Porém, não há uma relação direta entre eles e a melhor abordagem é mesmo a dissociativa. 3 Há outros grupos de protestantes que se enquadram nesta tipologia, como é o caso do congregacionalistas e episcopais, os quais chegaram no Brasil mais ou menos ao tempo da inserção ou até antes dos demais como os congregacionalistas, cuja missão começou a ser desenvolvida pelo casal Kalley ainda pelo ano de 1855. Os episcopais chegaram depois, por volta de 1889, após duas tentativas que abortaram em 1853 e 1859-1894 (FARRA, 1960, 69). Estas não serão incluídas na discussão por causa de uma irrelevância quantitativa. É difícil quantificar a Igreja Congregacionista brasileira. Sua ênfase no governo autônomo faz com que as igrejas trabalhem de forma muito dissociada e sem controle. Tanto assim que foi somente em 1913 que elas se uniram numa associação chamada União das Igrejas Evangélicas Congregacionais do Brasil (UIECEB) (Igreja Congregacional do Brasil). Pelo ano de 1930 tinha 31 congregações no Brasil, reunindo quatro mil comungantes (FARRA, 1960, 69). Atualmente existem muitas congregações que levam este nome na portada, mas a diversidade teológica entre elas é muito grande, existindo, inclusive aquelas que sequer são igrejas missionárias, como é o caso Igreja Evangélica Congregacional do Brasil, de origem alemã e pietista, e, portanto, ligada ao Protestantismo de Imigração. A Igreja Episcopal do Brasil traz em si tanta ambiguidade, posto estar entre o Catolicismo e o Protestantismo (via média) que é melhor deixá-la fora do Protestantismo Histórico. Originalmente os anglicanos formavam uma Igreja étnica, praticada por comerciantes, engenheiros e marinheiros que operavam no Brasil desde a abertura dos portos brasileiros em 1810. Há, entretanto, uma outra data de fundação que remonta a um período mais recente de nossa história, ligada à Igreja Episcopal norte- americana, quando os missionários Lucien Lee Kinsolving e James Watson Morris chegaram em 1890 a cidade de Porto Alegre no Rio Grande do Sul e ali estabeleceram uma missão. O primeiro culto em português dos anglicanos foi em Junho deste mesmo ano (Wikipédia). Atualmente existem 120 mil episcopais no Brasil, concentrados mais na região centro-sul e especialmente na região Sul (Rio Grande do Sul) onde primeiro se estabeleceu (World Council of Churches). Apesar do número de membros ser compatível com o dos protestantes de missão mencionados, preferimos deixá-los fora deste quadro porque o lado católico de sua teologia e de sua missiologia revelam que sua vocação não é missionária, ou pelo menos, não é conversionista. 11 Considerando o Pentecostalismo originário, os fatos demonstram que, do ponto de vista histórico, o movimento pentecostal no Brasil não está diretamente relacionado ao Protestantismo que aportou no Brasil no século XIX. O Pentecostalismo brasileiro não tem nenhuma raiz neste Protestantismo (BASTIAN, 1992, 330); diferente do que ocorreu em outros países latino- americanos, como o Chile,onde teria nascido e se desenvolvido em simbiose com congregações metodistas (D’ÉPENAY, 1968), os missionários sueco-americanos fundadores da Assembleia de Deus não contaram com ajuda de protestantes de missão quando chegaram ao Belém do Pará em 1911. Estiveram algum tempo entre os batistas, mas logo foram expulsos, e daí em diante estiveram por sua própria conta. Os batistas brasileiros nunca apoiaram sua iniciativa; pelo contrário, fizeram-lhes dura oposição. O mesmo ocorrendo à Congregação Cristã do Brasil, fundada pelo ítalo-americano Luigi Francescon em 1910, na capital de São Paulo e interior do Paraná. No caso da Congregação Cristã houve o concurso de ideias presbiterianas, por a predestinação ser uma marca doutrinária comum. Contudo, isto é originário da comunidade ítalo- americana de Chicago e não tem nada a ver com a missão presbiteriana no Brasil. Além disto, sociologicamente os dois movimentos desenvolveram-se em estratos sociais bem distintos. O Protestantismo brasileiro nasceu em ambientes mais bem-afortunados. Fossem os elitizados, como originalmente era a clientela presbiteriana, reunindo elementos que compunham a intelligentsia nacional; fossem os meios burgueses, como era comum entre metodistas, cuja obra missionária estava voltada para a alta burguesia que formava a clientela de suas escolas; fossem os profissionais liberais, como entre batistas, os quais tinham como principais adeptos à baixa burguesia profissional. Ou seja, nenhum dos de missão trabalhou primordialmente com as camadas mais populares da sociedade como aquela que foi o substrato de onde originou- se o movimento pentecostal no Brasil (ROLIM, 1985; FONSECA, 2011, 764). O Protestantismo histórico envolve denominações com ênfase literária e educacional de características civil e racional, partidárias de valores liberais; ao passo que os pentecostais estão mais orientados para a oralidade e para “modelos caudilhistas de religião e controle social” (BASTIAN, 1992, 332 e 344). 4 Fonseca enfatiza que no momento da inserção do Pentecostalismo no Brasil a partir do trabalho da Assembleia de Deus, havia no entorno de Belém uma grande massa de desocupados, órfãos do débacle da borracha e foi entre estes que o trabalho pentecostal começou (FONSECA, 2011). 12 Em suma, tanto a Assembleia de Deus como a Congregação Cristã tiveram como ponto de partida o movimento da rua Azuza, em Los Angeles, no início do século XX5 e nenhuma relação com o Protestantismo de Missão que se instalou no Brasil. Sabe-se, entretanto, pelo que há de mais rudimentar em missiologia, que não há colheita sem semeadura, e nem semeadura sem preparação do solo. Assim, se não foram os protestantes históricos que semearam o que os pentecostais estão colhendo, como de fato parece ser verdade, pelo menos foram eles que preparam o terreno, colocando a Escritura no coração dos brasileiros, forjando a ideia da necessidade religiosa da conversão, criando uma expectativa de a ética religiosa estar relacionada com a santificação. Em suma, os protestantes de missão criaram necessidades espirituais que os brasileiros educados pelo Catolicismo nem conheciam, as quais mais tarde se tornariam a base de um ethos religioso compartilhado com os pentecostais. Conforme os últimos censos revelam, hoje o Protestantismo Histórico oferece um quadro de decadência complexo em que qualquer análise do que lhe esteja acontecendo torna-se uma tarefa teórica de grande dificuldade e ao mesmo tempo de grande importância. A primeira hipótese de trabalho para explicá-lo é a incapacidade de adaptação dos protestantes às profundas transformações sociais experimentadas pelo Brasil nos últimos anos, as quais fizeram com que fossem preteridos como opção religiosa, sofrendo até rejeição, como indicam as pesquisas (mais adiante a isto tornaremos). A inserção e a estagnação do Protestantismo funcionariam, assim num perfeito paralelo, em que os mesmos elementos teológicos e eclesiológicos, em diferentes contextos, teriam gerado resultados diametralmente opostos. Ora, isto não chega a ser uma novidade no campo religioso, dada a relação que, na maioria das vezes, a religião tem com as estruturas políticas de uma dada sociedade. O que espanta foi a rapidez com que, em relação ao Protestantismo, a balança inclinou-se para o outro lado; bons e maus anos separados por apenas meio século, em um quadro que nos leva a concluir de três maneiras: a) as transformações sociais brasileiras foram rápidas e profundas demais, b) o envelhecimento do protestantismo foi rápido e profundo demais (ALVES, 1982, 131), c) as duas coisas podem ter acontecido em concomitância, uma provocando a outra, como em um ciclo vicioso. É claro, que a terceira conclusão parece mais plausível. Mas, qual a parcela de contribuição de cada um destes fatores e como se deu a articulação entre eles? Estas são algumas das perguntas que intencionamos responder. 5 Congregação Cristã na América do Norte. Site oficial. “Nossas raízes”. 13 Sendo nosso objetivo traçar um paralelo entre os fatores de inserção e de estagnação do Protestantismo, o presente trabalho organiza-se obedecendo esta estrutura, e está dividido em dois grandes capítulos: um que trata da inserção, em que são apresentados os fatores de adaptação dos missionários protestantes à sociedade e às aspirações religiosas dos brasileiros6; o outro que se ocupa de sua estagnação, com os respectivos fatores que geraram o descompasso religioso e ideológico nascido de sua missão no Brasil contemporâneo. Essa aparente pobreza estrutural que o divide em apenas dois capítulos retrata conspicuamente nossa pretensão inicial. No fim ela, deixar sua estrutura desta forma, pois tal como numa imagem refletida por um espelho a estagnação do Protestantismo de Missão no Brasil é uma imagem invertida de sua inserção. O que era no início em relação à sociedade circundante é o exato oposto do que depois se tornaria. A princípio, aliado às forças progressivas, depois aliado às forças reacionárias, valendo-se do mesmo discurso para legitimar uma e outra coisa. Visto não poder secundar minhas intuições com demonstrações empírico-quantitativas mais específicas, pois não foi feito nenhum trabalho de campo nas periferias e favelas do Brasil com amplitude suficiente e partir de uma amostragem significativa, ater-me-ei a uma abordagem bibliográfica, tentando indicar como a evolução do Protestantismo aponta para a correção destas intuições iniciais. A pretensão do projeto, portanto, não vai além de uma sistematização e de uma organização do objeto referido, tendo em vista as mudanças que o ambiente religioso protestante vem sofrendo no Brasil atualmente, com objetivo de oferecer uma nova panorâmica, que quiçá ajude a pensar o que aconteceu e o que pode estar por acontecer neste novo cenário pós-moderno. A ambição do trabalho é, como se pode notar, um pouco alentada para os instrumentos disponíveis, a modéstia nos recomenda chamá-lo ensaio alargado. Ademais, muita coisa que vem dita especialmente em sua primeira parte já foi sobejamente tratada por autores que hoje são 6 A primeira parte de nossa pesquisa inspira-se em um tópico da obra de Pablo A. Deiros, A história do Cristianismo na América Latina, onde o autor faz uma breve lista de fatores que favoreceram a inserção do Protestantismo (DEIROS, 1992, 663 a 669). Embora ele trate mais da América espanhola do que da lusitana, como os componentes históricos e sociopolíticos das duas Américas são similares, essa estrutura pode ser emulada. Exceto, talvez, por um menor grau de fanatismo e centralização do Catolicismo em Portugal e no Brasil (esteve ausente de nossa história um tribunal do Santo Ofício, por exemplo)e por outras características específicas das terras brasílicas, como, por exemplo, o pluralismo ideológico do século XIX (o liberalismo, o positivismo, o jansenismo, o Josefismo, etc.). No mais, nossas histórias são compatíveis: o padroado régio, o conflito do liberalismo com o Catolicismo, a articulação do Protestantismo histórico com estas novas forças políticas; e mais recentemente, a evolução das igrejas protestantes e de organizações paraeclesiásticas, as ditaduras de extrema direita, etc. 14 clássicos da sociologia e da história do Protestantismo Histórico. Não tenho como não repetir o que disseram, já que faço uma comparação entre os fatores de inserção e os de estagnação. A interpretação é que será diversa, tendo em vista que me amparo em fatos e fontes mais atuais. Minha ênfase, entretanto, serão os fatores de estagnação, no tocante a que julgo poder contribuir com a discussão. Quanto a nossos referencias teóricos, valemo-nos do trabalho de grandes estudiosos do campo religioso brasileiro e sul-americano, hoje considerados clássicos. Com efeito, Ari Pedro Oro aponta para três maneiras fundamentais de abordá-lo: um approach marxista, outro dukheimiano e um último weberiano (ORO, 2008, 12), todos eles já explorados: respectivamente: Francisco Cartaxo Rolim (ROLIM, 1985), Christian Lalive D’Épinay (D’ÉPINAY, 1968) e Emílio Willems (WILLEMS, 1967). Tanto quanto sejam a complexidade e a transitoriedade as marcas mais essenciais das ciências humanas, todos estes estudiosos fizeram análises pertinentes do fenômeno, resta saber em que sentido e em que medida. A pura e simples aplicação de suas conclusões ao campo religioso brasileiro demonstra-se inconsistente, seja porque muito tempo já passou desde que esses estudos foram feitos, seja porque isolados sua abordagem é parcial e incompleta ante a complexidade do objeto em discussão. Francisco C. Rolim, por exemplo, está certo ao associar aos pentecostais um incremento de alienação política, contudo hoje é incorreto atribuir isto à própria condição socioeconômica do adepto pentecostal, por ver nele “um dominado e dominado porque expropriado” (ROLIM, 1985, 68). Vários motivos tornam esta conclusão questionável. Primeiramente, porque avulta nesta passagem uma visão marxista e opiácia da religião, pela qual a religião seria apenas mais um instrumento ideológico de dominação. Vitório Lanternari já demonstrou que essa é uma visão unilateral e ultrapassada da religião; a religião tem um potencial revolucionário do ponto de vista social, especialmente as religiões de salvação (LANTERNARI, 1963). Em segundo lugar, a alienação e a dominação não podem mais ser meramente atribuídas ao patrimonialismo; os tempos são outros. O fácil acesso à informação e o ambiente multirreligioso dos dias atuais tornam a estrutura social mais porosa, enfraquecendo o controle social das oligarquias. Nesse caso a alienação pode resultar da origem escatológica do movimento pentecostal e da substituição de uma estrutura de poder político-patrimonialista por uma outra de natureza simbólica, embora não isenta de patrimonialismo por causa da teologia da prosperidade. Os pastores pentecostais encarnam hoje 15 um caudilhismo simbólico, revelado em seu crescente poder político, cujo reflexo mais imediato é o crescimento da bancada evangélica (mormente pentecostal) no Congresso Nacional brasileiro e pela eleição de mandatários evangélicos também para o poder executivo. Christian L. D’Épinay corretamente explora a capacidade interpretativa dos processos anômicos de Durkheim para explicar o atual contexto religioso. Para ele, a desorganização social promovida pela urbanização e pela industrialização ensejou a necessidade de uma reorganização da ordem pré-existente, por meio de uma reestruturação dos espaços e instituições com base na religião. No Chile onde a sociedade é muito mais coesa e onde o processo de perda de nomização teve um efeito menos devastador do que no Brasil, a transformação do país foi de rural para urbano- rural, por isto faz sentido falar de um retorno à ordem “pré-existente” e de uma recuperação do “tradicional” como se apresentava na sociedade estancieira (D’EPINAY, 1968, 228). Contudo, aplicar estas categorias sociais ao Brasil não é completamente pertinente. Em nosso caso o retorno ao “pré-existente” e ao “tradicional” é impossível porque nossa urbanização foi muito mais desestruturante. O novo converso evangélico brasileiro é preponderantemente urbano e pouco articulado aos movimentos sociais camponeses; portanto, a identidade classista não exerce nenhuma influência neste domínio, a exemplo do próprio Pentecostalismo chileno e mexicano, ligados à causa indígena. Desde a sua primeira expansão na metade do século passado, o Pentecostalismo brasileiro esteve mais relacionado a motivos idiossincráticos e personalistas dos novos conversos do que aos conflitos e à identidade de classe (ORO, 2008, 13). Deve-se lembrar que o fiel evangélico brasileiro é principalmente oriundo de grandes cidades e, portanto, é mais individualista e, portanto, menos conectado comunitariamente. Haja vista ser personalista a maior causa de defecção da Igreja Católica, na medida que seus conversos dela saem por motivos pessoais (alcoolismo, problemas financeiros, uma maior conexão com Deus) (PEW, 2014, 38); por outro lado, suas ideias religiosas estão marcadas pela fluidez doutrinária e ética. Entretanto, os processos sociais anômicos estão presentes e são potencialmente mais destrutivos. O que ocorre no Brasil é que à medida que as antigas estruturas sociorreligiosas são destruídas pela urbanização explosiva, vão se formando simultaneamente novas estruturas, das quais o Pentecostalismo é parte importante. Por fim, Emílio Willems, o qual baseando-se no pensamento de Weber, promove uma interpretação “compreensiva” do Pentecostalismo, à medida que o adepto, segundo sua percepção, 16 usa estas novas categorias religiosas para se adaptar às mudanças sociais que tiveram lugar durante o rápido processo brasileiro de urbanização e industrialização. Willem acredita que o Pentecostalismo ajudou a vincular o brasileiro desenraizado, originalmente adepto de um Catolicismo Popular, a este novo ambiente urbano e industrial; já que muitas categorias religiosas do Pentecostalismo são compartilhadas com este tipo de Catolicismo: possessões, milagres, feitiçarias, etc. (WILLEMS, 1967, 134-135). A memória católico-popular certamente exerceu uma influência importante na adesão ao Pentecostalismo, servindo, como sugere Willems, de pedra de espera para o Pentecostalismo. Contudo, em nossa opinião, hoje em dia o elemento da sociologia weberiana mais útil à compreensão do crescimento e evolução dos pentecostais é o processo de secularização, especialmente em sua ligação com o surgimento de um ambiente plurirreligioso. Como é evidente pelos nomes e pelas obras citadas, o atual Protestantismo de Missão brasileiro não pode ser dissociado do Pentecostalismo, sobretudo porque as transformações que provocaram o surgimento do segundo, também produziram a retração do primeiro; e à medida que o atual ambiente social favorece um e desfavorece o outro, comprova-se a tese inicial desta investigação, de que o Protestantismo envelheceu rapidamente, porquanto o ambiente social foi modificando-se e transformando-se em algo cada vez mais difícil e imprevisível aos seus métodos e práticas missiológicas. No contexto contemporâneo, por sua complexidade e pelo estado ainda formativo que atravessa, a tentativa de interpretar o ambiente religioso brasileiro de forma relevante afasta-se do campo da história social e inclina-se mais para um projeto de constituição de uma sociologia do Protestantismo brasileiro. Um campo difícil, onde discutem diversos nomes já consagrados. A pretensão dos novatos tornou-se um pouco mais tolerada depois da recentepublicação de pesquisas empíricas sobre a atual situação religiosa do Brasil (IBGE, Pew Research Center, etc.). De qualquer modo as dificuldades só se atenuaram. O estado de formação e transformação de que se revestem os fenômenos analisados oferecem uma opacidade que resiste a interpretações fáceis e prontas sobre os agentes sociais em ação, tanto no campo religioso como no campo político. As igrejas e denominações, são empurradas pelos concorrentes a assumir posições que inicialmente sequer cogitavam, pela necessidade de diferenciação e de formação identitária. Interpretar estes movimentos e suas motivações oferecem muitas possibilidades plausíveis e simultaneamente 17 corroborativas, como sói ocorrer nas ciências humanas, tal como demonstra a confluência das três abordagens acima. Por último deve-se dizer que o presente estudo não nasce em nenhuma medida sob o signo desta ou daquela confessionalidade, como soem ser muitas sociologias religiosas. Até porque preocupa-se mais em descrever a evolução do Protestantismo brasileiro do que lhe prescrever uma trajetória ideal que não foi a sua. Há nesta abordagem uma ponta de pessimismo, porque parece ser impossível o que os movimentos religiosos buscam como projeto institucional: a instauração do reino de Deus. A lógica institucional será sempre a preservação do status quo, portanto, propenderá para a imobilidade, enquanto a sociedade a seu redor vai se transformando. Contudo, não se deve admitir que um determinismo inexorável acabe justificando o excesso de ética institucional dos administradores eclesiásticos do passado e do presente, esta que geralmente tem objetivos opostos à ética do reino. Ou seja, como o reino de Deus é algo impossível, lutemos pela instituição. Se a utopia do reino ainda é possível hoje, como a esperança nos recomenda, podendo- se tirar lições dessa história trágica de decadência para os que hoje lutam por uma Igreja mais humana e missionária, bem como para os que se debatem para abandonar o caminho que leva à irrelevância. Fica aí o incentivo à formulação de uma estratégia de revitalização adequada a igrejas decadentes. O papel deste trabalho é apenas fornecer o diagnóstico; o remédio, peçam-no aos teólogos. O tema bem merece uma obra específica relacionada às matérias de uma disciplina comumente chamada na teologia de Crescimento de Igreja. Mas isto, por ora, está além das minhas forças. CAPÍTULO II Fatores de inserção do Protestantismo de Missão 18 2.a. Introdução Falar do Protestantismo no Brasil não é fácil. Em sua história tem sido atravessado por contradições internas que sempre o mantém tensionado entre ideais contraditórios: o conservantismo político e a responsabilidade social, o confessionalismo e o ecumenismo, o Fundamentalismo e o Modernismo teológicos. Além disto, a se respeitar o rigor das ciências sociais, por não ser um bloco monolítico como a Igreja Católica, mas um mosaico formado por diversas denominações, nem se deveria falar de forma tão genérica do Protestantismo. Como vimos, para dar conta desta complexidade houve várias tentativas de tipologizar os protestantes que vieram para o Brasil. A que me pareceu mais útil é aquela que divide os protestantes em três grupos: o Protestantismo de Imigração, formado por todos os que estiveram envolvidos na Reforma do século XVI; o Protestantismo Histórico ou de Missão, que surgiu cem anos depois, grupo que inclui batistas, metodistas, presbiterianos e congregacionalistas (BASTIAN, 1993); e o Pentecostalismo que ficou latente durante boa parte do século XX e deslanchou após o início do processo de industrialização, a partir de seus meados. O Protestantismo que nos interessa nesta investigação, aportou no Brasil XIX e é primeiramente filho da Reforma. A Reforma que colocou a Bíblia nas mãos dos crentes e lhes deu autonomia para entender o texto por si mesmos, estabelecendo a sede da autoridade religiosa na consciência do leitor e no próprio texto, que, de então, passaria a ser autônoma e não heterônoma, como nos dias do Medievo. Os presbiterianos estão especialmente assinalados por esta marca, o que não é de admirar dada sua maior proximidade cronológica com a reforma do século XVI. Depois há o individualismo ainda mais marcado do Pietismo que procurava atenuar a excessiva ênfase doutrinária da ortodoxia superveniente aos protestantes de primeira geração, construindo em lugar disto uma fé baseada em uma experiência religiosa peculiar, com conteúdos subjetivos e existenciais (AMESTOY, 2010, 16): “a vida cristã era mais importante do que fórmulas teológicas” (ESCOBAR, 2015, 19). Os metodistas, batistas7 e congregacionistas, são mais afins a esta linha. 7 Os batistas rejeitam a designação de protestantes, preferindo ligar-se diretamente à Igreja cristã do primeiro século. Nisto não estão sozinhos. Todas as seitas institucionalizadas têm esta mesma pretensão de negar sua própria 19 O próprio denominacionalismo norte-americano, onde tantas denominações interagiam em uma convivência tão próxima, produziu no longo prazo transformações doutrinárias, como é o caso da espetacular mutação dos puritanos originais em unitarianos na Nova Inglaterra do século XIX, e por fim em universalistas nos dias atuais; ideologias compartilhadas, nascidas de lutas comuns pela liberdade religiosa, contra o alcoolismo e o tabagismo, contra a escravidão; diferenciações em práticas litúrgicas, como por exemplo, a questão do batismo infantil, que dividiu presbiterianos e batistas. E tudo isto junto, produziu uma infindável lista de novas denominações e movimentos religiosos, gerando tantas transformações e desdobramentos que o Protestantismo viu-se transformado em um fenômeno “tão complexo que confunde historiadores, teólogos, sociólogos” (MENDONÇA; VELÁSQUEZ, 1990, 108). Levando em conta a classificação acima, o Protestantismo brasileiro, pelo modo que foi constituído, é ainda mais difícil. Ele não nasceu, como nos Estados Unidos de congregações inteiras transplantadas para o novo mundo, fugindo à perseguição na Inglaterra, e por isto mais propendentes a conservar suas características originais. No Brasil as primeiras congregações protestantes resultaram ou de iniciativas particulares (o casal Kelley), ou de missionários que trabalhavam isolados (Simonton, Spaulding, Kidder, etc.), dispondo de parcos recursos e com pouco contato com as agências comissionadoras. Além disto, pelo modo como foram recebidos no Brasil, sofreram influência da religiosidade brasileira e de outras singularidades do contexto de inserção, tudo isto fez as denominações instaladas no Brasil, com o passar do tempo, apresentarem distinções em relação àquele Protestantismo que desatracou dos portos americanos em demanda ao Sul do continente. Apesar de sua natureza anti-sincrética, por cauda da ênfase doutrinária que os caracteriza, não houve como evitar o compartilhamento inter-denominacional. Como minorias insignificantes em face do Catolicismo hegemônico e onipresente, nos primeiros tempos, estas denominações acabaram desenvolvendo-se em um ambiente simbiótico em que as fronteiras denominacionais não eram tão rígidas quanto em sua origem (nem quanto agora), criando uma matriz básica, responsável pelos fundamentos do Protestantismo brasileiro: historicidade e sua relação com outros movimentos afins. Mas, a bem da verdade, embora não tenham relação direta com os anabatistas, protestantes mais radicais abominados tanto por Calvino como por Lutero, sua teologia coincide parcialmente com a deles, principalmente quanto à negação do paradigma pós-constantiniano, por não aceitarem o conceito territorial da fé, por defenderem em lugar do batismo infantil o batismo adulto; e por rejeitarem qualquer vinculaçãoda política com a Igreja. 20 O que têm em comum estas denominações? Na prática são arminianas, embora alguns presbiterianos afirmem crer na dupla predestinação. São puritanas em seu comportamento, exigindo, umas mais que outras, o cumprimento de uma disciplina moral caracterizada pelo negativismo dos costumes: não beber, não fumar, não dançar – o isolamento total da mundanidade. São pietistas, enfatizando o contato direto do crente com Deus, a experiência pessoal de conversão e santificação ou perfeição cristã. São também anticatólicas, embora algumas, como a metodista, participem de projetos comuns com a Igreja Católica e mantenham, pelo menos em nível de cúpula, relações muito estreitas com bispos e autoridades católicas. Como ocorria no começo do século, o Catolicismo romano continua sendo visto como a besta do Apocalipse. Finalmente, estas denominações são avessas aos projetos de mudança profunda das estruturas sociais. Defendem, quando muito, reformas sociais, de modo que a miséria não seja acentuada. (MENDONÇA; VELÁSQUEZ, 1990, 109). Obviamente muitos desses desenvolvimentos foram posteriores, como por exemplo, a não mencionada influência do Pentecostalismo na teologia e na adoração dos protestantes. Mas isto cabe discutir mais adiante. Por ora cabe considerar o Protestantismo de inserção, que por sua ênfase mais e menos denominacional teria deixado o processo de diferenciação em segundo plano; não faltando exemplos de pessoas de confessionalidades diferentes compartilhando o mesmo espaço sagrado, como atestam os relatos dos primeiros missionários. Esta percepção pode induzir à conclusão de que o ambiente religioso se configurava como uma bipolarização simples entre protestantes e católicos. Nada mais errôneo. À época da inserção o ambiente ideológico era muito complexo, talvez mais do que nos dias atuais. A sociedade brasileira sofria diversas influências culturais e políticas vindas da Europa e dos Estados Unidos, o que nos permite a conclusão de que havia à parte de um monopólio religioso institucionalizado do Catolicismo, já que oficialmente era a religião nacional, uma certa lassidão no emprego da palavra, que variava ao sabor de diversas matrizes culturais: Positivismo, Galicalismo, Regalismo, Liberalismo, Ultramontanismo, etc., as quais disputavam entre si qual tinha-lhe a melhor interpretação. O Protestantismo certamente favoreceu-se deste ambiente plural e de outras transformações decorrentes da modernização do Brasil. Destacamos a seguir os principais fatores que concorreram para a inserção do Protestantismo Histórico no Brasil. Não foi possível evitar completamente as repetições pela razão de estarem estes fenômenos sociais e históricos interligados, especialmente em se tratando de um contexto político-religioso monolítico como pode-se dizer era constituída a sociedade brasileira antes da Constituição de 1891, que separou as esferas do Estado e da Igreja. Entretanto, não faço distinções arbitrárias; respeito a preponderância dos agentes à medida que se manifestam na história, 21 conquanto saiba que é mesmo difícil separar o político do religioso, o ideológico do religioso, em uma sociedade que funcionava quase como uma teocracia. 2.b. Fatores Sociais A origem norte-americana do Protestantismo aponta para um contexto em que o denominacionalismo colocava católicos e protestantes em situação de igualdade, algo que não poderia ocorrer ao Brasil, estando este país ligado a um Catolicismo hegemônico e tri-secular, instalado em consórcio com o poder colonial, imposto pela força das armas e das leis, e não longe indo o tempo em que a única condição para se entrar neste país era não ser herege, ou seja, protestante ou judeu (FREYRE, 2001, 90). Outra diferença em relação ao contexto norte-americano era a falta de mobilidade originária da sociedade brasileira, a qual se constituiu como um dos fatores mais fundamentais para a longevidade da hegemonia católica. Nos Estados Unidos a intensa e extrema mobilidade populacional, primeiro pela vinda dos imigrantes europeus e depois pela marcha para o Oeste, favoreceu a proliferação de denominações e seitas, dificultando qualquer tentativa de estabelecimento de relações hegemônicas por parte das denominações mais antigas. A sociedade brasileira, ao contrário, era extremamente estratificada e herdara sua estrutura do feudalismo tardio português (mais patrimonial do que feudal)8, para cá transplantando-a em toda sua rigidez hierárquica, em uma quase separação em castas, cujo gradiente de classificação estava pré- determinado pelo fenótipo do indivíduo, por sua educação, por sua relação com a coroa e a burocracia da metrópole, e pelo número de escravos que possuía. Especialmente nas regiões onde a atividade econômica era mais intensa e lucrativa, onde imperava uma nobreza de terra, uma pequena fidalguia, funcionando desde os primórdios quando o Brasil foi dividido em capitanias, fazendo com que a colonização se transformasse em um empreendimento mercantilista, baseado em investimentos de ricas famílias portuguesas porque a coroa não tinha recursos suficientes para explorar nossos recursos (FREYRE, 2001, 79 e 80). E foi assim que se instituiu no Brasil o 8 De acordo com a conhecida tese de Raymundo Faoro, segundo a qual em Portugal nunca se instalou um feudalismo genuíno, pois a propriedade das terras e dos patrimônios não eram fundamentais na economia mercantilista portuguesa e nem obedeciam à lógica rígida do feudalismo, onde nobres e escravos estavam atados à terra desde o tempo da queda do Império Romano. As terras em Portugal, e, portanto, a fidalguia, eram resultado de doação régia, uma vez que estas tinham sido arrancadas aos mouros e leoneses, pelo que pela espada do rei e sob sua autoridade existiam. Este mesmo modelo econômico teria sido usado na exploração do Brasil (FAORO, 2012). 22 patrimonialismo, baseado na distribuição de privilégios aderidos ao exercício do domínio em nome do rei. Os fidalgos foram os instrumentos utilizados pela coroa portuguesa para organizar o Brasil de forma que produzisse rendas para o rei de Portugal e para aqueles que empreendiam nestes domínios (FAORO, 2012). Completando este estamento de privilegiados, havia uma nobreza eclesiástica de bispos e abades que atuavam também na esfera político-religiosa, conforme o padroado régio assim o estipulava. O governo da Igreja permaneceu nas mãos dos monarcas de Portugal e dos imperadores do Brasil durante a maior parte de nossa história, de sorte que o Estado português tanto cobrava os impostos eclesiásticos como os administrava, pagando também aqueles que deles viviam (AZZI, 1977, vol. II, 163). “Os bispos eram considerados nobres vinculados à coroa real” e não raro atuavam em função administrativa, “exercendo função supletiva de cargos públicos” (AZZI, 1977, vol. II, 172), em especial no governo das províncias e na ausência de seu titular (AZZI, 1977, vol. II, 167). Eles, portanto, faziam parte do estamento que governava e comandava os destinos da nação portuguesa e do mundo colonial. Além deste estamento privilegiado e contrariando a decantada dicotomia senhor/escravo, havia uma rica fauna de classe no mundo colonial. Ao redor destas duas classes giravam os demais atores sociais de menor envergadura: “ A classe proprietária [...]: senhores de rendas advindas de imóveis, escravos, bancos, valores e créditos [...]; a classe lucrativa [...]: comerciantes, armadores, industriais, empresários agrícolas, banqueiros, financistas e profissionais liberais com vasta clientela [...]; a classe média abarca as camadas intermediárias do grupo de proprietários e especuladores e mais setores de expressão própria, a pequena burguesia antiga e a nova classe média dos empregados com status quase autônomo; [na base da pirâmide], os escravos,os déclassés, os pobres e os devedores (SOUZA, 1999, 340 e 341). Estas categorias sociais fixadas em um complexo sistema burocrata e escravocrata, ditado pela lei, pela religião e pelo sangue9 (CASIMIRO, 2006, 20-21) perdurarão também no Brasil 9 A estrutura social do mundo hispânico da América não era muito diferente da realidade no lado luso do continente: “A sociedade colonial estava composta por diversas classes sociais que se distinguiam tanto por suas funções como pelo grau de cultura, poder econômico, e pela raça. As classes eram as seguintes: (1) peninsulares (colonos nascidos na Espanha) que ocupavam as posições mais destacadas do governo e da Igreja, na fidalguia das cortes, e na maior parte do episcopado. (2) Os crioulos (filhos de espanhóis nascidos na América) que controlavam as cidades e por vezes ganhavam posições de responsabilidade como administradores governamentais. Entre eles havia muitos que eram bem ricos, a alguns receberam títulos nobiliárquicos da coroa. Como na Europa, as mais prestigiosas profissões 23 Império, com a diferença de que no período imperial entra em cena uma nova casta: uma nobreza militar, nascida das revoluções que o Brasil enfrentou durante o período de regência e pela acomodação territorial da América do Sul, pela guerra do Paraguai e outras conflagrações bilaterais. A república velha não trouxe grande alteração a esta estrutura, senão pela introdução de um baronato do café e da indústria no acume dessa pirâmide. A posse de terras permaneceria o passaporte para uma cidadania plena no Brasil. No império, só tinham direitos políticos, ou seja, podiam votar e ser votados, os cidadãos que possuíssem uma certa quantidade de terras agricultáveis (GUMBRECHT, 2016, 30). A educação superior, outra forma de alterar os marcos pétreos de classe no Brasil, era precária e só acessível aos favorecidos por privilégios de nascimento, à exceção de alguns apadrinhados de poderosos (BOSI, 1992, 13), geralmente filhos ilegítimos desses. Em nenhum momento de sua história a mobilidade social no Brasil foi suficiente para romper a estrutura sociorreligiosa hegemônica imposta pelo Estado-Igreja luso-brasileiro, de sorte que, tornar-se protestante no Brasil colonial era impossível, e no imperial significava “perder sua posição” na sociedade (CCLA, 1917b, 25) e descer muitos degraus na escala social, perdendo direitos de uma já reduzida cidadania. Não admira que os primeiros brasileiros convertidos ao Protestantismo tenham vivido numa província onde a influência da sociedade portuguesa era mais difusa e por isso menos efetiva, região não requisitada pelos interesses da coroa portuguesa porque nunca se destacou como geratriz de grandes riquezas; habitada por mestiços, não sendo cultivadas nela a cana-de-açúcar e tampouco achadas nelas ouro e pedras preciosas. Fosse porque fosse, já por pobreza em recursos naturais, já por estar longe das principais rotas comerciais, a província de São Paulo foi a primeira sede da inovação e da brasilidade, entregando-se seus habitantes ao apresamento de bugres e à caça de minérios na hinterlândia brasileira, em vez de trabalharem no amanho da terra, como era comum no resto do Brasil. As entradas e bandeiras paulistas foram as criadoras da identidade nacional, como escreve Darcy Ribeiro. Foi lá entre uma gente mestiça e subversiva às estruturas do feudalismo patrimonial português, que se moldou a matriz da brasilidade (RIBEIRO, 1995). Foi em São Paulo criado o partido republicano (1873) que se tornou um forte oponente aos monarquistas e aos militares dos primeiros anos da república (SCHIMIDT, 2015, 31). Em São neste grupo eram os advogados e o jurisprudentes. (3) Os mestiços que pouco a pouco tornaram as grandes massas urbanas. (4) Os índios que eram e permaneceram principalmente as massas rurais. (5) Os negros e mulatos que conseguiram sua independência depois da revolução”. (DUSSEL, 1974, 172). 24 Paulo estouraram as revoluções que derrubaram regimes ou pelo menos abrandaram o despotismo dos ditadores. Foi lá também que o trabalho escravo foi mais rapidamente substituído pelo assalariado, e igualmente deu nascimento às ocupações industriais. E foi lá também, por tudo isto, que o Protestantismo histórico encontrou terra fértil para seu primeiro florescimento. A lavoura do café foi a grande responsável por isto, pela mobilidade populacional que produzia um ir e vir incessante de trabalhadores pobres e transumantes vagueando de fazenda em fazenda, em busca de trabalho, na limpa do café, na colheita; muitas vezes, estrangeiros ou forasteiros, portanto, sem laços com a sociedade local. Os primeiros protestantes brasileiros de ascendência lusa e mestiça foram batizados nesta região cafeeira do interior de São Paulo. Como escreve Leonildo S. Campos citando A. G. Mendonça, o crescimento do Protestantismo histórico no Brasil “seguiu a rota do café” (CAMPOS, 2017, 100; MENDONÇA; VELÁSQUEZ, 1990, 103). No resto do país a urbanização também foi avançando, corroborando para as transformações estruturais da sociedade brasileira. Com o advento da industrialização e o crescimento das cidades no último quartel do século XIX, a inserção do Protestantismo também foi favorecida pela mesma razão: as populações desenraizadas geradas pelo processo. Os novos territórios que nasceram deste crescimento, nas bordas das cidades, e ainda intocados por um Catolicismo mais institucionalizado tornam-se terrenos importantes para a semeadura protestante, tal como ocorrera nos Estados Unidos. Os novos conversos nestas áreas encontram pouca resistência social para aderir ao Protestantismo10. 2.c. Fatores Históricos Sob este tópico põem-se a lume acontecimentos históricos específicos que de alguma forma concorreram para a inserção do Protestantismo de Missão no Brasil. Obviamente, estes fatores não podem ser dissociados dos sociais, dos político-ideológicos ou dos religiosos, pois os acontecimentos-chave aqui descritos não surgiram por geração espontânea, mas foram despertados por certas ideias. Contudo, o destaque se justifica porque se quer identificar acontecimentos axiais 10 Repetiu-se a mesma situação mais recentemente com o crescimento pentecostal, especialmente a Congregação Cristã do Brasil, que fez bom número de conversos entre os imigrantes italianos no interior e entre os nordestinos na grande São Paulo. 25 e sua influência direta para gerar circunstâncias ambientais favoráveis à esta inserção, como por exemplo a criação de leis e tudo o que alterasse a conformidade social brasileira ao Catolicismo. 2.c.1. A presença protestante: pré-ocorrências axiais Durante seus primeiros séculos de existência do Brasil, o contato dos brasileiros com outras formas de culto foi sempre episódico. O primeiro desses episódios foi a chegada de huguenotes franceses ainda durante o século XVI, com a tentativa fracassada de estabelecimento de um empreendimento colonial francês, a França Antártida, na Bahia da Guanabara. Juntamente com alguns protestantes que os acompanharam Villegaignon e Jean de Léry implantaram o culto protestante entre os colonizadores da efêmera colônia francesa no Rio. Sua chegada fez-se acompanhar daquilo que sempre foi marca das mais vitais do Protestantismo: o divisionismo teológico. Thomas Ewbank em seu livro Vida no Brasil, não se sabe a partir de que fontes (o relato de Ewbank foi escrito em meados do século XIX), descreve as dissenções teológicas sobre o batismo e a santa ceia, que perturbaram a incipiente colônia francesa logo em seus primeiros dias, havendo um grupo mais tradicional nas práticas calvinistas e outro mais displicente, criando um ambiente de contendas e discussões que só facilitoua retomada de suas benfeitorias pelos lusos (EWBANK, 1856, 81). Ao fim e ao cabo, o Calvinismo no Brasil virou um abortivo, embora estivesse já planejada uma leva de cerca de dez mil huguenotes franceses que estavam prontos a virem da França colonizar o Brasil (FARRA, 1960, 16). Mais tarde, tendo os holandeses invadido parte do Nordeste (Bahia e Pernambuco) ao tempo quando faltaram herdeiros à dinastia portuguesa (Sebastião desapareceu sem deixar descendentes), governava a cada espanhola, além da própria Espanha, a Portugal e às colônias. Os holandeses estando em guerra com a Espanha, resolveram invadir o Brasil. E não tiveram dificuldade para expandir seus domínios e conquistar lealdades em quase toda a costa atlântica do Nordeste, porque na percepção dos brasileiros, o Brasil naquela época já estava dominado por estrangeiros (Espanha). Os neerlandeses ficaram no Brasil por mais tempo do que os franceses, e, por isso, a princípio, obtiveram sucesso em desconverter Judeus e outros que viviam sob o jugo do Catolicismo português. Contudo, quando Maurício de Nassau assumiu o governo do Nordeste holandês sua visão tolerante e religiosamente descompromissada com a Igreja Reformada custou- lhe o desagrado de ministros deste culto que já estavam no Brasil há mais tempo e sonhavam com proscrição do Catolicismo e a exaltação da fé reformada em seu território (FARRA, 1960, 17). Daí 26 não se sabe se por inveja ou por pura intolerância, Nassau foi chamado à metrópole para explicar- se e logo os portugueses que neste meio tempo haviam novamente assumido as rédeas do país, aproveitaram as disputas internas suscitadas por sua ausência, puderam retomar o Nordeste para as cores lusitanas. Expulsos os invasores, a repressão portuguesa voltou e se encarregou de desconverter os poucos calvinistas que restavam, mais uma vez varrendo para longe do Brasil a fé protestante. É enigmático que no Brasil os territórios não afeitos à presença Protestante bem recebessem os missionários e aqueles afeitos, não. Isto se conclui pela penetração protestante no século XIX ter ocorrido mais ao Sul e Sudeste, enquanto no Nordeste ficou circunscrita ao litoral. O interior nordestino sempre resistiu muito ao Protestantismo. Não só porque ali vociferava um “Catolicismo Medieval” (FARRA, 1960, 102), com suas superstições e relíquias, fanatismo, festas, ladainhas, aufragelações e penitências11 e uma grande ignorância da Escritura, melhor dito, de qualquer escritura, pelo colossal contingente de analfabetos que ali sortia à espera de pregadores, homens santos, praticantes de algum tipo messianismo e/ou taumaturgia itinerante. Foi o Nordeste também onde primeiro houve manifestações de um espírito nativista, contrário aos invasores holandeses e hereges. E daí em diante sempre houve a manifestação de figuras religiosas não-conformistas e revolucionárias que alimentavam as esperanças de um povo abandonado pelo governo central do Brasil12. Contrariamente a estes protestantismos, cujo efeito sobre a religiosidade brasileira foi inócuo, houve um Protestantismo, que embora igualmente não fossem missionários, favoreceu enormemente a inserção do Protestantismo no Brasil por vias indiretas, sobre isto falaremos a seguir. 11 “O Catolicismo de nosso povo era profundamente marcado por um caráter penitencial”. Isto no Nordeste era ainda mais acentuado por causa das calamidades que castigavam a região, onde secas periódicas, epidemias e doenças que traziam miséria e morte a um povo já maltratado pela pobreza e o abandono. Estes flagelos eram em geral interpretados como “castigo” de Deus e motivavam grandes procissões de penitência (HAUCK, vol. II/2, 1980, 219). 12 No Nordeste o Estado só chegava às cidades litorâneas, no interior imperava a figura do coronel e de jagunços a seu serviço, que espoliavam os pobres, roubavam-lhes as terras, dando origem ao cangaço a à religião revolucionária. Eram a estas lideranças leigas ou do baixo clero que a população recorria na hora do desespero. Duas das maiores figuras da religiosidade do Nordeste tiveram este caráter. Uma delas, o messiânico conselheiro Antônio Mendes Maciel, que na Bahia arrebanhou um exército contra a República recém instaurada, construiu uma capital no meio do nada (Canudos), terminando sua revolta sufocada com muito derramamento de sangue e com a destruição de Canudos. Outra grande liderança assaz importante foi o taumaturgo padre Cícero Romão Batista, que virtualmente governou o interior do Ceará (de Juazeiro do Norte) até morrer, com a aquiescência do governo brasileiro, em reverência à ubíqua influência do religioso na região (FARRA, 1960, 101-102). 27 2.c.2. O Protestantismo de Imigração O primeiro contato da civilização brasileira com uma cultura religiosa não católica no século XIX começou a desenhar-se com a celebração do Tratado de Comércio e Navegação (1810), que abria os portos brasileiros ao comércio com o mundo. Esse foi firmado entre ingleses e o governo português, estando o governo da Lusitânia temporariamente estabelecido no Brasil desde 1808. O próprio rei e sua corte, desde que pressionados pelas tropas napoleônicas em Portugal (porque seu governo não havia aderido ao bloqueio continental imposto à Inglaterra), tinham vindo fugidos refugiar-se no Rio de Janeiro. Este tratado dava aos britânicos o direito de terem capelas e a liberdade de celebrarem seu culto em território brasileiro 13, o que como já vimos, foi uma mudança radical em relação à política colonial de intolerância, quando a principal condição para se pôr os pés no solo brasileiro era ser católico e não ser herege. Em 1820 era inaugurado o primeiro templo Protestante no Brasil (AZZI, vol. II, 1985, 237). Quatro anos depois, o Protestantismo começa a provocar mudanças estruturais na sociedade brasileira. Neste ano iniciaram-se as massivas imigrações alemãs para o Brasil, alentadas pela constituição imperial de 25 de março de 1824, que nesse mesmo ano proclamava a liberdade religiosa e proibia as perseguições por motivo religiosa, embora ainda conservasse o Catolicismo como religião de Estado (BASTIAN, 1990, 82 e 83). Naquele ano começaram a chegar Nova Friburgo (RJ) e São Leopoldo (RS) os primeiros protestantes, totalizando 4.800 pessoas até 1830. Foram fundadas nestas localidades as primeiras igrejas luteranas (HAUCK, vol. II/2, 1980, 239). E este número foi aumentando a cada ano chegando a totalizar 61 congregações em 1864, a maior parte delas no meio rural, visto serem agricultores seus frequentadores. Pastores ordenados havia poucos, alguns até tinham sido agenciados pelo governo e recebiam seus salários pagos pelo erário público brasileiro (HAUCK, vol. II/2, 1980, 239). A partir de 1861 a Sociedade Missionária da 13 Houve tratados semelhantes na América espanhola. Por exemplo, em 1825, ano em que a Inglaterra finalmente reconheceu a independência de vários países latino-americanos, talvez até como entendimento prévio para que isto acontecesse, A Argentina e a Inglaterra firmaram um tratado de Livre Comércio que garantia também a liberdade de culto para que cidadãos britânicos pudessem, em seus lares e em igrejas (DUVE, 2008, 228). O processo de abertura religiosa na Argentina sofreria ainda um retrocesso com a nova Constituição de 1826, que simplesmente ab-rogou as disposições anteriores, ratificando na Constituição de 1829 o Catolicismo como Igreja oficial do Estado (DUVE, 2008, 229). Com o México ocorreu algo semelhante, foi protelado seu reconhecimento pela Inglaterra até o México assinar finalmente seu primeiro acordo em 1825, pelo qual garantia a liberdade religiosa, o qual, à semelhança da Argentina, foi revisado no ano seguinte e, hesitantemente, passou a garantir apenas o direito à liberdade religiosa em privado,nas residências dos britânicos (CRUZ, 2011, 138-139). 28 Basileia começou a enviar pastores para as províncias de Santa Catariana, Espírito Santo, Rio de Janeiro e Minas Gerais (HAUCK, vol. II/2, 1980, 240). A vinda destes imigrantes não podia ser de nenhum modo dificultada, pois isto fazia parte de uma política de Estado, sob a chancela do selo imperial, que, motivado por ideias racistas do século XIX (a ideologia do branqueamento) (TELLES, 2004, 26), desejava aumentar o percentual de caucasianos na composição da população brasileira, que naquela época era mínima. Daí que o esforço do governo era a todo custo tornar o Brasil um lugar atrativo para o imigrante europeu, outorgando aos estrangeiros que vinham viver no Brasil, além da cidadania, ainda outros direitos, como por exemplo, a propriedade de terras e a liberdade para viverem a fé de seus ancestrais. A população brasileira era esmagadoramente negra e parda e havia nos meios ‘científicos’ a ideia prevalente de uma superioridade racial branca em relação às raças não brancas (pior ainda como no nosso caso, como se tratasse de uma população miscigenada, ou seja, enfraquecida naquilo que restava de bom na genética dos inferiores) (TELLES, 2004, 29). Arthur Gobineau, cientista francês, visitando o Brasil nestes dias, deu o terrível veredito de que o Brasil desapareceria caso não fosse melhorado o patrimônio genético de sua população, porque a excessiva miscigenação estava destruindo o que havia de melhor nas raças. Além disto, havia o problema da falta de vocação industrial do país, então predominantemente agrário, estando as inciativas industriais restritas ao Centro-Sul, inspiradas nos sonhos de um único homem, Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá. Obviamente, não era suficiente para o desenvolvimento do Brasil. Este foi outro motivo que levou o imperador a dar início a uma política nacional de imigração, tendo como objetivo a rápida europeização do Brasil. A entrada do Protestantismo de imigração em nosso país foi um efeito colateral desta política. Em 1848 ocorreu um grande surto migratório por causa da contrarrevolução na Alemanha, portanto, predominando neste tempo a vinda de imigrantes os liberais, que fugiam da reação monarquista e conservadora que, retomando o poder, fez aumentar a repressão e a cassação de liberdades civis. Uma vez no Brasil estes liberais lutariam por mais mudanças na legislação brasileira e pela conquista da cidadania plena do imigrante alemão, que até então só tinha sido cidadão de segunda categoria. Até 1871, entraram no sul do Brasil cerca de 300 mil imigrantes de 29 origem alemã, a maior parte proveniente do norte do país onde a população é predominantemente protestante. Com efeito, mais da metade dos adventícios eram mesmo protestantes (BASTIAN, 1990, 82 e 83). Claro que um contingente destas proporções tornaria necessárias algumas adaptações legais e políticas da sociedade brasileira para a recepção e acomodação dos recém-chegados. Nos primeiros anos, como dito, os imigrantes eram cidadãos de segunda classe; porém, à medida que o tempo foi passando e suas reivindicações foram sendo atendidas, esta condição foi se alterando. Um bom exemplo foi o casamento protestante. A princípio a união protestante legalmente não existia porque as leis brasileiras só reconheciam o casamento religioso e este católico. Devido a este fato havia um grande número de famílias alemãs vivendo em concubinato, as quais como uniões ilegítimas, criavam uma prole considerada bastarda, ou seja, sem direitos em caso de sucessão por morte ou na transmissão de legados; sem falar do problema do preconceito dirigido a estas famílias. Havia também as arbitrariedades de sacerdotes católicos que anulavam os casamentos protestantes, situação que provocou até uma legação do Império alemão ao Brasil (REILEY, 1984, 49). Finalmente o governo imperial brasileiros regulamentou em 17 de Abril de 1863 por meio de um decreto a lei que autorizava os pastores protestantes devidamente registrados a realizarem casamentos com efeito civil em suas próprias congregações (REILEY, 1984, 49). Um dos episódios mais dramáticos que exemplificam as vicissitudes dos protestantes no Brasil foi um incidente envolvendo o núncio apostólico Gaetano Bedini, adido à corte brasileira. Em visita à Petrópolis, onde havia uma importante colônia alemã e onde a liberdade de culto constitucionalmente estabelecida era respeitada rigorosamente, o núncio provocou enorme desconforto diplomático, destemperando-se ao saber de casamentos inter-religiosos entre luteranos e católicos, afirmando em um sermão que estes casamentos eram destituídos de valor legal e que as crianças nascidas deles eram ilegítimas perante a lei e a Igreja. O núncio do papa Pio IX logo foi desautorizado pelo imperador, pois, embora ignorasse, já havia um consentimento papal para a realização destes casamentos, uma concessão especial ao Império do Brasil, até àquela altura, não concedida a nenhum outro país da América espanhola (FARRA, 1960, 33). Outra contribuição do Protestantismo de imigração para o início das missões protestantes no Brasil foi tornar mais familiar o culto acatólico aos brasileiros que de todo os ignoravam desde a primeira missa rezada por ocasião do ‘descobrimento’. Com efeito, quando em 1810, era celebrado 30 o Tratado de Comércio e Navegação entre Portugal e Inglaterra inaugurou-se uma nova era de liberdade religiosa no Brasil, havendo sido concedido o direito aos protestantes ingleses poderem viver sua fé em solo brasileiro; não sendo poucos os cidadãos ingleses que naquele tempo viviam no Brasil, trabalhando no comércio e na indústria. Em função disto, alguns clérigos anglicanos foram convocados a assisti-los, sendo em 1820 inaugurado o primeiro templo protestante no Brasil (HAUCK, II/2, 1980, 237). Esta familiarização pode ter se repetido ainda com mais intensidade no testemunho de muitos brasileiros quando chegavam a conviver com protestantes. A conversão do ex-padre José Manoel da Conceição, o primeiro pastor brasileiro, responsável pela conversão de muitas pessoas no interior de São Paulo à Igreja Presbiteriana, também ocorreu por este motivo. Como ele mesmo relata. Ele foi atraído ao Protestantismo pela forma de vida dos protestantes de migração que conhecia. Esta familiarização inicial com eles serviu para quebrar as barreiras que séculos de Catolicismo criaram às religiões não católicas: Eu ia com frequência a uma fundição de ferro em Ipanema (em Sorocaba na minha região) onde visitava a família Goldwin, cujo pai, mr. Goldwin era superintendente da casa de máquinas. Eu me comovi profundamente ao observar o completo silêncio que lá reinava aos domingos. Mais tarde, quando fui admitido na comunidade eu vi a totalidade das famílias a ler a bíblia e livros devocionais. Mais tarde, eu visitei quase todas as famílias alemãs e em todas encontrei o mesmo quadro de devoção e religião. Comecei a pensar. Quem sabe estes estrangeiros têm tanta religião como nós? Será a religião deles igual a nossa? Ou ainda quem sabe se eles não são mais religiosos que nós? (HAHN, 1989, 189). A importância deste Protestantismo de imigração na inserção do Protestantismo no Brasil, não está, portanto, no número de brasileiros evangelizados. Mesmo porque tratam-se de religiosidades étnicas que não fazem proselitismo, e que em seu caso fica ainda mais impossibilitado pelas características exógenas da cultura e língua alemã em relação ao resto da sociedade brasileira; naquela época eram poucos os imigrantes que falavam português e seus cultos eram por isso todos em língua alemã. De sorte que a importância deste Protestantismo decorre de haver sido um dos vetores para a formação de uma conjuntura macropolítica favorável à diversidade religiosa, e a criação no ordenamento jurídico da época de dispositivos legais