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Filosofia do Direito: Pré-Socráticos e Sócrates OS PRÉ-SOCRÁTICOS Os pré-socráticos estão entre aqueles que primeiro pensaram criticamente. Se Aristóteles, Platão, Sócrates se notabilizaram na história da filosofia ocidental não foi sem consideração direta ou indireta ao trabalho de reflexão a que se entregaram estes primeiros que se dedicaram a conhecer a causa de todas as coisas. No entanto, apesar da contribuição dada por esses filósofos, poucos são os estudos retratam seus pensamentos. Eduardo Bittar aponta algumas razões para essa lacuna nos estudos da filosofia: a) as reconstruções histórico-filosóficas têm o paradigma socrático como ponto de partida, iniciando suas investigações a partir do período antropocêntrico do desenvolvimento da cultura helênica; b) as fontes de investigação são escassas, seja pela carência de textos conservados dos pré- socráticos, seja de comentadores; c) a filosofia pré-socrática não se ocupa sobremaneira do tema da justiça, sendo mais relevante sua pesquisa no que diz respeito a outras temáticas; d) a dificuldade de exegese, interpretação, leitura e reconstrução dos sistemas pré-socráticos gera certos embaraços na composição de discussões sobre o sentido da justiça neste período; e) a cultura grega do período não permite a distinção plena entre a filosofia racional, a crença religiosa e o misticismo sincrético; f) a civilização e a cultura gregas somente estariam preparadas para as questões do humanismo, do discurso (lógos), da ágora e da pólis, a partir do século V a.C. Escola Jônica A primeira das Escolas Pré-Socráticas advém de uma região chamada Jônia, e tem como principais expoentes Tales de Mileto, Anaximandro de Mileto, Anaxímenes de Mileto e Heráclito de Éfeso. “... Princípio dos seres... ele disse que era o ilimitado... Pois donde a geração é para os seres, é para onde também a corrupção se gera segundo o necessário; pois, concedem eles mesmos justiça e deferência uns aos outros pela injustiça, segundo a ordenação do tempo” (Anaximandro). A partir do fragmento acima, constata-se a tendência geral do pensamento grego pré-socrático, de busca de explicação das coisas a partir de um princípio único (os opostos em relação de contradição permanente); Percebe-se o quanto a ideia de uma unidade dos contrários é possível, desde a perspectiva em que ambos atuem num movimento permanente, no sentido da realização de uma espécie de lei que governa o kósmos, onde tudo se ordena de conformidade com este princípio, e nisto há ordem, há certeza, há regularidade, e, acima de tudo, há justiça (diké). Não há separação, portanto, entre a ordem dos fenômenos causais-naturais e a ordem dos fenômenos ético-sociais. Independentemente disto, a lei que vem colocada como ditame humano, servindo à cidade, esta deve ser respeitada e conservada, como instrumento para a conservação da ordem das coisas. Escola Eleata A segunda das Escolas Pré-Socráticas advém de uma cidade chamada Eleia (da antiga Magna Grécia e hoje localizada no sul da Itália), e tem como principais pensadores Xenófanes de Colofão, Parmênides de Eléia, Zenão de Eléia, Melissos de Samos; A escola eleata se abre com Xenófanes de Colofão, cuja crítica às tradições politeístas gregas, advindas da poética e da mítica, lhe faz deduzir a existência de um Deus único, onipotente, destituído de características humanas (principalmente das paixões humanas), o que cria uma contrariedade à forte tradição de culto antropomórfico dado aos deuses desde tempos remotos na cultura grega. Esta marca se transmitiu à escola eleata com Parmênides, que iniciou a chamada ontologia (estudo do ser - este que é considerado, por Parmênides, como eterno, uno, único, imóvel e indestrutível e pleno). Assim, segundo o pensamento desta escola, a visão dos homens confunde-se com a opinião que têm sobre os fenômenos que são capazes de ver, de enxergar, de descrever e de compreender, mas, ao verem, veem apenas parte do Ser. Esta permanência, esta estabilidade, esta segurança, esta inabalável estrutura que paira acima da compreensão vulgar e que, ao mesmo tempo, a tudo governa, na lisonjeira distância do que está acima do reino das coisas que são governadas pela vida e pela morte, é que descrevem a certeza do império do justo. Destino e justiça se somam como conceitos, como exigências lógicas da própria existência do Ser Escola Pitagórica A Escola Pitagórica recebeu este nome em razão do seu principal expoente Pitágoras de Samos. Além dele, outros grandes pensadores desta linha foram Alcmeão de Crotona, Filolau de Crotona e Árquitas de Tarento; Tal escola foi bastante influente, em primeiro lugar, sobre a cultura e a política locais, e, em segundo lugar, na cultura grega posterior, repercutindo até mesmo de modo direto sobre os pensamentos platônico e aristotélico. De acordo com a doutrina de Pitágoras, a justiça era entendida como a principal das virtudes, algo que será profundamente absorvido pela teoria platônica, além de ser concebida como igualdade. A teoria numérica pitagórica entendia que a ideia de justiça podia se expressar ou pela tríade (3) ou pela tetraktys (4), especialmente esta última. O próprio simbolismo do número quatro para a doutrina pitagórica incorpora-se à ideia de justiça (diké), uma vez que tanto pela multiplicação, como pelo somatório das díades (2+2=4 ou 2×2=4), obtém-se a tetraktys. Para a doutrina pitagórica, a perfeição desta equação numérica da justiça pode ser demonstrada em se considerando o somatório dos elementos que formam a primeira tetraktys (1+2+3+4=10), sendo que o número dez era considerado o símbolo da máxima perfeição na escala numérica decimal, símbolo do infinito. É este sentido de infinito que exprime a ideia de harmonia, seja para o todo do Cosmos, seja para a Cidade, que deve estar governada pelos mesmos princípios que fazem do Todo a Unidade que permite a existência e o resguardo da Pluralidade. A concepção de Justiça de Pitágoras também envolvia a consideração de que não há pacto social sem respeito à condição de cada um como livre e racional, o que coloca a condição do tirano no exílio das práticas políticas consentidas por esta filosofia grega. Assim, seguindo a tradição reinante à época, somente é livre aquele que se deixa governar não pela vontade do outro (tirano), mas pelo acordo construído pela palavra, no ambiente comum da ágora, através dos instrumentos da lei (nómos) e da política incorporada às instituições da pólis. Escola da Pluralidade Os pensadores da escola da pluralidade foram aqueles que se oporam à unidade originária do ser (o número de Pitágoras, água de Tales, nem a unidade de Parmênides), substituindo-a pela multiplicidade originária do ser (os átomos de Demócrito, os elementos de Empédocles, as sementes de Anaxágoras). “Ceder à lei, ao chefe e ao mais sábio é pôr-se em seu lugar” (Demócrito). Nesta frase estão consagrados três fundamentos da ideia de justiça para Demócrito: a) a ideia da conservação da lei (ética do respeito à lei) como sendo o cimento da cidade (pólis); b) a ideia de hierarquia que coloca cada um em seu próprio lugar, o que pressupõe o entendimento de que há um lugar dado a cada um e de que este lugar deve ser conservado; c) a ideia de superioridade do sábio e da sabedoria, ante a vulgaridade e a ignorância. “Quem comete injustiça é mais infeliz que o que sofre injustiça” (Demócrito). Da frase acima encontrava o ensinamento segundo o qual é melhor sofrer a injustiça do que praticá- la. De seu pensamento também se destaca o desapego material como força motriz do homem justo, na medida em que sua filosofia não convida à renúncia completa aos bens materiais, mas sim a um moderado comportamento de usufruto dos bens na condição de quem não os persegue a ponto de cometer por eles injustiça. Isso se lastreia na ideia de que toda submissão significa escravidãoe dependência, o que gera contradição à ideia de justiça (“Quem fosse totalmente submisso ao dinheiro jamais poderia ser justo”) Nesta concepção de justiça, a vingança participa do espírito de reconstrução da diké, da situação equilibrada, na medida em que não se vingar é dar alento àquele que injustiça comete. Assim, os atos injustos parecem merecer o desencorajamento e devem ser, quando possível, impedidos, senão vingados. É por isso que a atitude de justiça demanda resistência, demanda força, coragem. Sócrates A respeito de Sócrates (469-399 a.C.) pode-se dizer que sua vivência foi sua obra, e seu testemunho, grande contribuição ética e filosófica. Sócrates conviveu com o povo ateniense do século V a.C. (século de Péricles), em plena glória da civilização grega na Antiguidade, e nas praças públicas (ágora) e no solo da cidade (pólis) inscreveu seu método e suas preocupações. É, sem dúvida alguma, divisor de águas para a filosofia antiga, sobretudo pelo fato de situar seu campo de especulações não na cosmovisão das coisas e da natureza, mas na natureza humana e em suas implicações ético-sociais. Erigiu uma linha de pensamento autônoma e originária que se voltasse contra o despotismo das palavras que se havia instaurado nesse período da história grega, sobretudo por força da atuação dos sofistas. Seu método maiêutico, baseado na ironia e no diálogo, possui como finalidade a construção de ideias, e como inspiração a maturação da vida. Isso porque todo erro é fruto da ignorância, e toda virtude é conhecimento. Daí a importância de reconhecer que a maior luta humana deve ser pela educação (paideia), e que a maior das virtudes (areté) é a de saber que nada se sabe Sua abnegação pela causa da educação das almas, bem como pelo bem da cidade, representou, como testemunho de vida, um dos maiores exemplos históricos de autoconfiança e de certeza do que dizia: ele foi condenado a beber cicuta pelo tribunal ateniense, não se furtou à sentença e curvou-se ante a injusta decisão dos homens de seu tempo. A acusação que pendia sobre sua cabeça era a de que estaria corrompendo a juventude e cultuando outros deuses e, não obstante ter-se dedicado a vida inteira a pregar o contrário disso, resignou-se à injustiça de seus acusadores, em nome do respeito à lei que a todos regia em Atenas. Isso porque a obediência à lei era para esse pensador o limite entre a civilização e a barbárie; onde residem as ideias de ordem e coesão, pode-se dizer garantida a existência e manutenção do corpo social. Seu método maiêutico, baseado na ironia e no diálogo, possui como finalidade a construção de ideias, e como inspiração a maturação da vida. Isso porque todo erro é fruto da ignorância, e toda virtude é conhecimento. Daí a importância de reconhecer que a maior luta humana deve ser pela educação (paideia), e que a maior das virtudes (areté) é a de saber que nada se sabe Sua abnegação pela causa da educação das almas, bem como pelo bem da cidade, representou, como testemunho de vida, um dos maiores exemplos históricos de autoconfiança e de certeza do que dizia: ele foi condenado a beber cicuta pelo tribunal ateniense, não se furtou à sentença e curvou-se ante a injusta decisão dos homens de seu tempo. A acusação que pendia sobre sua cabeça era a de que estaria corrompendo a juventude e cultuando outros deuses e, não obstante ter-se dedicado a vida inteira a pregar o contrário disso, resignou-se à injustiça de seus acusadores, em nome do respeito à lei que a todos regia em Atenas. Isso porque a obediência à lei era para esse pensador o limite entre a civilização e a barbárie; onde residem as ideias de ordem e coesão, pode-se dizer garantida a existência e manutenção do corpo social. Para Sócrates, o respeito às normas vigentes, a vinculação do filósofo com a busca da verdade, o engajamento do cidadão nos interesses da sociedade, entre outros ensinamentos, aparecem como postulados perenes de seu pensamento, que haveriam de golpear fatalmente o relativismo e lançar os gérmens de novos sistemas filosóficos, como o platônico, o aristotélico e o estoico. o ensinamento ético de Sócrates reside no conhecimento e na felicidade. Em primeiro lugar, ética significa conhecimento, tendo-se em vista que, ao praticar o mal, crê-se praticar algo que leve à felicidade, e, normalmente, esse juízo é falseado por impressões e aparências puramente externas. Para saber julgar acerca do bem e do mal, é necessário conhecimento, este sim verdadeira sabedoria e discernimento. Em segundo lugar, a felicidade, a busca de toda a ética, para Sócrates, pouco tem a ver com a posse de bens materiais ou com o conforto e a boa situação entre os homens; tem ela a ver com a semelhança com o que é valorizado pelos deuses, pois parecem estes ser os mais beatos dos seres. Primazia da Ética Coletiva sobre o Indivíduo A ética socrática impõe respeito, seja por sua logicidade, seja por seu caráter. É certo que, se Sócrates desejasse, poderia ter fugido à aplicação da pena de morte que lhe havia sido imposta, e os discípulos a seu lado estavam para auxiliá-lo e acobertá-lo. No entanto, a ética do respeito às leis, e, portanto, à coletividade, não permitia que assim agisse. Sócrates, de fato, dedicou-se a um valor absoluto, e por ele lutou até o ponto de renunciar à própria vida. E isso porque a ética socrática não se aferra somente à lei e ao respeito dos deveres humanos em si e por si. Transcende a isso tudo: inscreve-se como uma ética que se atrela ao porvir (post mortem). A filosofia socrática prepara para o bem viver após a morte. Isso significa dizer que nem toda virtude proclamada como tal perante os homens há de ser considerada virtude perante os deuses. Isso ainda significa dizer que a verdade, a virtude e a justiça devem ser buscadas com vista em um fim maior, o bem viver post mortem. Para Sócrates, a morte representa apenas uma passagem, uma emigração, e a continuidade há de ensinar quais valores são acertados, quais são errôneos. A certeza socrática quanto ao porvir é a mesma que o movimentava para agir de acordo com a lei (nómos). Sócrates vislumbra nas leis um conjunto de preceitos de obediência incontornável, não obstante possam estas serem justas ou injustas. O direito, pois, aparece como um instrumento humano de coesão social, que visa à realização do Bem Comum, consistente no desenvolvimento integral de todas as potencialidades humanas, alcançável por meio do cultivo das virtudes. O ato de descumprimento da sentença imposta pela cidade representava para Sócrates a derrogação de um princípio básico do governo das leis: a eficácia. A eficácia das leis comprometida, a desordem social haveria de reinar como princípio, uma vez que cada qual cumpriria ou descumpriria as regras sociais de acordo com suas convicções próprias; mas, para Sócrates, o débito social é incontornável.26 Sua atitude serviria de exemplo para que outros também se esquivassem do cumprimento de seus deveres legais perante a cidade. Para Sócrates, a morte representa apenas uma passagem, uma emigração, e a continuidade há de ensinar quais valores são acertados, quais são errôneos. A certeza socrática quanto ao porvir é a mesma que o movimentava para agir de acordo com a lei (nómos). Sócrates vislumbra nas leis um conjunto de preceitos de obediência incontornável, não obstante possam estas serem justas ou injustas. O direito, pois, aparece como um instrumento humano de coesão social, que visa à realização do Bem Comum, consistente no desenvolvimento integral de todas as potencialidades humanas, alcançável por meio do cultivo das virtudes. O ato de descumprimento da sentença imposta pela cidade representava para Sócrates a derrogação de um princípio básico do governo das leis: a eficácia. A eficácia das leis comprometida, a desordem social haveria de reinar como princípio, uma vez que cada qual cumpriria oudescumpriria as regras sociais de acordo com suas convicções próprias; mas, para Sócrates, o débito social é incontornável.26 Sua atitude serviria de exemplo para que outros também se esquivassem do cumprimento de seus deveres legais perante a cidade. Se essa decisão foi salutar, do ponto de vista político e ético, não foram poucos os motivos que inspiraram Sócrates em sua decisão, podendo-se enumerar, entre outros, os seguintes: a) o momento histórico decadencial vivido pela mais célebre cidade-estado grega (Atenas) após haver sucumbido às forças espartanas na Guerra do Peloponeso, carecendo-se, portanto, de atitudes e posturas favoráveis à democracia e ao respeito às leis; b) a concatenação da lei moral com a legislação cívica; c) o respeito às normas que governavam a comunidade, no sentido do sacrifício da parte pela subsistência do todo; d) a importância e imperatividade da lei em favor da coletividade e da ordem do todo; e) a substituição do princípio da reciprocidade, segundo o qual se respondia ao injusto com injustiça, pelo princípio da anulação de um mal com seu contrário, assim, da injustiça com um ato de justiça; f) o reconhecimento da sobrevivência da alma, para um julgamento definitivo pelos deuses, responsável pelo verdadeiro veredito dos atos humanos.