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– 1 1. PERO VAZ DE CAMINHA Pero Vaz de Caminha teria nascido no Porto, onde certamente viveu desde a infância, uma vez que seu pai, Vasco Fernandes de Caminha, escrivão do rei D. João I (1356-1433), estabeleceu-se naquela cidade para exercer suas funções burocráticas. Provavelmente, Pero Vaz de Caminha herdou de seu pai sua afeição à escrita e, contrariando a vontade do pai, aceita o ofício de mestre da Balança, o qual teria adqui - rido do rei em plena batalha em Toro, Castela. Há regis - tros régios de 1476 que confirmam o exercício dessa função e sugerem boa índole de nosso missivista. Sabe-se que Pero, o escrivão marinheiro, estava na casa dos cinquenta anos quando foi nomeado escrivão da armada de Pedro Álvares Cabral. Morre em Calicute depois de um ataque inesperado dos árabes, em meados de dezembro do mesmo ano em que escreve nossa “certidão de nascimento”. 2. O RELATO Caminha inicia sua missiva ressaltando a Dom Manuel sua intenção de também “dar conta” de suas impressões em relação ao “achamento” da “terra nova”, embora não se considere tão competente para tanto. Seu intuito é de relatar fielmente o que viu e o que lhe “pareceu”. Retoricamente, justifica seu estilo simples e objetivo, uma vez que diz não ter o interesse de enfeitar seu relato. Seus apontamentos partem dos eventos em sucessão cronológica: a partida de Belém (9 de março), a chegada às Ilhas Canárias (14 de março); a passagem pelas Ilhas de Cabo Verde (22 de março); a perda misteriosa da nau de Vasco de Ataíde e o esforço inútil de Cabral para encontrá-la (23 de março); os primeiros sinais de terra depois de cerca de 670 léguas da última parada (21 de abril); a grande quantidade de ervas compridas, “bote - lhos” e “rabo-de-asno”; o aparecimento dos “fura-buxos” e o avistamento da terra e de um monte alto. À primeira, o capitão-mor dá o nome de “Terra de Vera Cruz” e, ao segundo, de “Monte Pascoal”, numa semana de Páscoa, aos 22 de abril de 1500. No dia seguinte, ao término da ancoragem “de fronte a boca de um rio”, são vistos pela primeira vez “homens que andavam pela praia”. Nicolau Coelho faz a inspeção do rio e, novamente, o aparecimento de cerca de vinte homens, “pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse as suas vergonhas”. Já era tarde e o estrondo das ondas acelera o término do primeiro contato. Mas há uma primeira troca: Nicolau lhes oferece um barrete vermelho, uma carapuça de linho, um sombreiro de penas e recebe em troca um “ramal de continhas brancas miúdas”. Seguem-se as intempéries climáticas, o vento e chuva fortes, a dificuldade em encontrar algumas “abrigadas de bom pouso” para o abastecimento de água e lenha. Quando fazem vela, os portugueses avistam cerca de sessenta nativos. O capitão envia pequenos navios à praia para que os portugueses achem pouso seguro. Depois de uma breve viagem pela costa, acham um pequeno recife. “Meteram-se dentro e amainaram”. Afonso Lopes, piloto da nau de Caminha, “homem vivo e competente”, sonda o porto e topa com “dois homens da terra, mancebos e de bons corpos”, que se encontram em uma jangada com arcos e flechas, mas “deles não fizeram uso em nenhum momento”. Já era noite e Afonso Lopes decide levar os dois jovens até o capitão. Quando chegam à nau, Cabral está bem vestido, usa um grande colar, está sentado e a seu pé um tapete por sobre o qual os outros se acomodam. As tochas iluminam o cenário. Os homens da terra descoberta não demonstram cortesia. Um deles fixa o olhar no colar do capitão e acena para a terra, o que dá a impressão de que também houvesse ouro lá. O mesmo faz o nativo em relação ao castiçal de prata. Os portu - gueses mostram a eles um papagaio do capitão. Os nativos pegam-no e apontam para a terra novamente. Pelo carneiro não demonstram interesse; da galinha sentem medo. CARTA DE ACHAMENTO DO BRASIL AULAS ESPECIAIS AS OBRAS DA UNICAMP PORTUGUÊS 2 – No jantar, do pão e peixe cozido, confeitos, bolos, mel e figos passados “se provaram alguma coisa, logo a cuspiram com nojo”. O vinho também não obteve sucesso, diferentemente de umas contas de rosário as quais um envolve no braço, acenando para a terra. Os anfitriões traduzem essa cena como se os nativos pudessem dar ouro em troca pelas quinquilharias. “Nós assim o traduzíamos porque era esse o nosso maior desejo...”. O jantar chega ao fim e os nativos deitam-se na alcatifa para dormir. Cabral ordena que se lhes ofereçam travesseiros e cobertas. Eles consentem e adormecem. No dia seguinte, os apontamentos marcam as atividades dos marinheiros para demandar a entrada em um ancoradouro. Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias, por ordem de Cabral, partem com os dois nativos, juntamente com Afonso Ribeiro, um degredado, para que este possa aprender os costumes e usos da “nova gente”. Os dois aborígenes foram presenteados com uma camisa nova. Caminha descreve os aspectos físicos e ornamentais dos homens da terra nova, “as moças, muito novas e muito gentis, com cabelos muito pretos e compridos... que de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha”. Seguem uma algazarra e a devolução do degredado, que, apesar de preterido, entrega presentes ao nativo que o acolhera, um homem “que parecia um São Sebastião cheio de flechas”. Depois o capitão-mor “a folgar” até a noitinha, o regresso à nau... No domingo de Páscoa, o capitão determina que todos se arranjem para ir ouvir a missa. Manda armar um pavilhão e levantar um altar. “Em voz entoada” e acompa nhado pelos outros sacerdotes, padre Frei Henrique celebra a primeira missa, que, segundo Caminha, “foi ouvida com muito prazer e devoção”. O capitão, com a bandeira da Ordem de Cristo, participa do evangelho. Depois de “proveitosa pregação”, o padre, diante dos observadores pelo areal, trata do achamento da terra, o qual é creditado à predestinação sob a qual se permitiu a chegada dos portugueses. Isso provocou “muita devoção”. Enquanto isso, na praia, está a outra gente “folgando”. Eles observam tudo sentados. Acabada a missa, tocam “corno ou buzina” e dançam. Os mari - nheiros vão até os nativos, que, ao verem o esquife de Bartolomeu Dias, entram na água e oferecem cabaças com água sem demonstrar qualquer intenção violenta. Em seguida, fala-se da busca por mariscos e do encontro dos camarões “curtos e grossos” como jamais vistos. Depois da ceia, Pedro Álvares Cabral ordena que os outros comandantes sigam até a sua nau. Cabral pergunta a todos se não seria “por bem” enviar a D. Manuel a “nova do achamento desta terra pelo navio dos mantimentos para melhor a mandar descobrir e saber dela mais”. Todos concordam e excluem a ideia de tomar à força alguns homens da terra para levá-los ao rei. Decidem deixar dois degredados, que dariam “melhor informação”. Após acentuar a vista de um ribeirão “de muita água e muito boa”, Caminha registra a diversão dos nativos, que “dançam e folgam” do outro lado do rio. Diogo Dias, que leva um gaiteiro até eles, participa da dança, “tomando-os pelas mãos”. O português dá um salto mortal e muitas “voltas ligeiras”, o que gera espanto e risos. “Eles folgavam e riam...” No dia seguinte, o encontro com os nativos é marcado por uma proximidade mais intensa, o que permite vê-los mais de perto. Diogo Dias, “por ser homem alegre”, é enviado ao grupo juntamente com Afonso Ribeiro e outros dois degredados. Os portugueses misturam-se com os nativos e descobrem uma povoação com cerca de dez ocas “tão compridas como a nossa nau capitânia”. Na terça-feira, o grupo de Caminha vai a terra para dar guarda aos recolhedores de lenha e para lavar roupa. Surgem cerca de duzentos nativos, que se misturam aos portugueses espontaneamente. Muitos ajudam no recolhi - mento e transporte da lenha. Dois carpinteiros trabalham na construção de uma cruz utilizando ferramentas de ferro, chamando a atenção dos nativos. “A conversação deles conosco era já tanta que quase nos estorvavam no nosso trabalho”. Seguem as impressões sobre a nova terra: os papagaios e as pombas-seixas são em grande quantidade, “os arvoredos numerosose grandes”. Na quarta-feira, são relatados o esvaziamento do navio de mantimentos; os trezentos homens da terra achada na praia, segundo Sancho de Tovar; a terceira recusa dos nativos em aceitar Afonso Ribeiro; o retorno deste com Diogo Dias trazendo à nau alguns papagaios verdes e outras aves pretas. Sancho de Tovar traz dois novos hóspedes, que comem e dormem bem. Na quinta-feira, derradeiro dia de abril, Sancho de Tovar chega à nau com seus dois hóspedes, que tomam a refeição da manhã sentados à mesa. Comem muito bem presunto cozido e arroz. Um recebe de um grumete um dente de javali, que tenta ajustar em seu lábio. Os portugueses lhe dão um pouco de cera para que ele possa ajustar seu adereço. Ele assim o faz e fica contente “como se tivesse uma grande joia”. Depois se vai e não mais aparece por lá. Um pouco depois aparecem na praia cerca de quatrocentos nativos com arcos e flechas, “que trocavam por carapuças ou por qualquer coisa que lhes davam”. Comem o que lhes é oferecido; alguns bebem vinho e “andam tão bem-dispostos, tão bem-feitos e galantes com suas tinturas” que agradam muito ao autor da carta. Já se mostram “mansos e seguros”. Segue mais um relato do descanso: a praia, a água, o arvo redo “tanto e tamanho”, os “bons palmitos”. Em seguida, a ordem do capitão para que os portugueses fossem à cruz, ajoelhassem diante dela e beijassem-na como demons tração de “acatamento” e exemplo aos homens da terra. Todos os nativos presentes foram beijá-la, o que leva Caminha a concluir que são “gente de tal inocência” que se houvesse entendimento na comunicação “seriam logo cristãos”, pois parece que “não têm nem entendem crença alguma”. Não obstante, Caminha aposta no aprendizado da fala dos nativos pelos degredados que ficarão como uma forma de fazê-los crer na “santa fé”, já que “certamente” a “gente é boa e de bela simplicidade”. Com efeito, comenta-se o “achamento” como missão cristã dada aos recém-chegados e sugere-se ao rei o dever de “cuidar da salvação deles”. Apontam-se mais algumas peculiaridades de seus costumes: “não lavram”, “não criam”; não há gado, ovelha ou galinha ou qualquer outro animal que conviva com o homem; não comem senão do inhame, das sementes e dos frutos que “a terra e as árvores de si deitam”. Apesar disso, são tão sadios, “rijos e nédios”, quanto os descobridores, que se alimentam de trigo. Os nativos dançam e bailam ao som de um tamboril português e se mostram mais amigos dos portugueses, “mais amigos nossos do que nós seus”. E, na derradeira noite da passagem, mais um convite a cinco nativos para que fossem à nau. Alguns deles já tomados por pajens. Nessa noite, foram “muito bem agasalhados, tanto de comida como de cama, de colchões e lençóis, para os mais amansar”. Na sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500, sai-se pela manhã em terra com a bandeira, planta-se a cruz em um lugar “para melhor ser vista”, os sacerdotes cantam na presença de “muitos deles”, que de joelhos assistem à missa de Padre Frei Henrique. Os observadores se comovem com a participação deles no ritual. Findada a comunhão, um nativo de aspecto senil acena para o altar e, em seguida, para o céu “como se dissesse alguma coisa de bem”. A pregação final do Evangelho segue ao olhar atento dos homens da terra achada. Nicolau Coelho oferece alguns crucifixos, os quais são colocados no pescoço deles pelo padre Frei Henrique, que está ao pé da cruz. Um nativo, que beija a cruz e eleva as mãos ao céu, é agraciado pelo capitão com uma camisa mourisca. Isso gera um consenso: o não entendimento da fala deles é o único impedimento para que sejam cristãos. Caminha, então, sugere ao rei que este “mande quem entre eles mais devagar ande”, “que todos serão tornados e convertidos ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar”. Não obstante, dois degredados ficarão para que os nativos tenham “mais conhecimento de nossa fé”. Conta-se o episódio de uma moça que esteve presente na missa e que aceitou “um pano para que se cobrisse”. A ingenuidade da mulher permite ao missivista a observação de que “a inocência dessa gente é tal que a de Adão não seria maior com respeito ao pudor”. Cabe então dar-lhes o ensinamento para a salvação. Registra-se o fato de dois grumetes que fugiram e não retornaram mais. Eles ficarão juntamente com os dois degredados. Caminha mais uma vez destaca os elementos naturais da terra cuja imensidão atinge “os limites da vista”. Os arvoredos, as águas infindas, o fato de não saberem da existência de “ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro”. “As águas são muitas e infindas”, “a terra em si é de muito bons ares”, mas o melhor fruto da nova terra, segundo Caminha, é a salvação dos nativos. “Esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza nela deve lançar”, deseja o missivista, para que a terra seja algo a mais que uma simples pousada para Calicute. É preciso também cumprir o “acrescentamento de nossa Santa Fé”. O pro - fessor Alfredo Bosi, em História Concisa da Litera tura Brasileira, afirma: “o espírito observador (de Caminha), a ingenuidade (no sentido de um realismo sem pregas) e uma transparente ideologia mercantilista batizada pelo zelo missionário de uma cristandade ainda medieval, eis os caracteres que saltam à primeira leitura da Carta”. Por fim, Pero Vaz de Caminha retoma a observação inicial da carta, frisando a fidelidade com que descreveu aquilo que viu e lhe pareceu. Pede perdão ao rei D. Manuel caso tenha-se alongado em seus aponta mentos, mas que seu intuito era o de pôr tudo “pelo miúdo”. Ressalta sua honra em servir ao rei e lança um pedido final: que o rei permita o retorno de seu genro, que se encontra na Ilha de São Tomé, a Portugal. Despede-se indicando um beijo nas mãos do rei, dando um ponto-final de um “Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz” numa “sexta-feira, primeiro de maio de 1500”. – 3 4 – 3. CONSIDERAÇÕES ACERCA DA CARTA DE ACHAMENTO DO BRASIL A Carta de achamento do Brasil pertence ao ciclo dos descobrimentos da literatura portuguesa do século XVI. Ao obedecer à mentalidade lusa do Quinhentismo, o missivista demonstra a intersecção de duas tendências que marcam esse período: 1) a literatura de viagens, pela qual se registram os roteiros náuticos, os relatos dos navegantes, a descrição da natureza e a do aborígene; e 2) a visão de mundo cristã, que imprime na terra achada “a expansão espiritual portuguesa” sob a crença de um paraíso terrestre (Cf. COUTINHO: 1980, p. 78). A literatura de viagens configura-se no início da Era Moderna a partir do imaginário criado em torno do mito do “Novo Mundo”. Essa narrativa otimista dada pelo Renascimento une o projeto científico representado pelo antropocentrismo com o espírito da cristandade e corrobora a ideia da existência de um novo momento histórico (CRISTÓVÃO: 1999, p. 191). As expansões marítimas, e todo o desenvolvimento científico que permitiu a realização da atividade náutica, colocam o homem ainda de mentalidade medieval em uma vivência agora fundamentada em motivos econômicos e comerciais. O olhar do homem culto, destarte, mostra-se híbrido ao participar dos interesses do ideal mercantilista atrelados aos deslumbramentos diante da nova terra a qual corresponde à fartura e à beleza indicadas pelo relato bíblico do Éden. Para os portugueses, que iniciaram suas expansões marítimas em 1415 com a conquista de Ceuta, o Novo Mundo, que, depois do feito heroico de Vasco da Gama, estaria além do Cabo da Boa Esperança, passa após a viagem de Pedro Álvares Cabral a estar também no Brasil. No entanto, Caminha, em sua descrição da “nova terra”, embora se aproxime em alguns momentos do mito do paraíso terrestre, demonstra um senso prático e objetivo que não só afasta sua escrita dos relatos fantasiosos medievais, mas também revela a experiência náutica lusitana. Os olhos do missivista português diante da nova descoberta promovem um relato de um espírito observador que, por meio de um “realismo ingênuo”, tenta apontar tudo o queé visto e o que lhe impressiona. Nesse intuito de não deixar escapar nada do que é vivenciado, Caminha constrói um relato que se configura ao sabor dos acontecimentos, como requer o melhor estilo vivo da narrativa de viagem portuguesa, ao mesmo tempo em que imprime em sua representação “a ideologia mercantilista batizada pelo zelo missionário de uma cristandade ainda medieval” (BOSI: 2006, p. 14). Do relato dos nove dias de permanência no Brasil, nota-se a precisão com que Caminha descreve os deta - lhes da nova terra, dos quais se destacam os elementos naturais e a gente nova. Associada ao maravilhamento diante da terra nova está a escrita objetiva e espontânea, por meio da qual se configura uma narrativa simples, dotada de um senso de exatidão que dá ao escrivão a possibilidade de cumprir com seu intuito de informar de maneira detalhada os elementos que lhe saltam aos olhos. Isso permite à missiva de Caminha um lugar fronteiriço entre a história e a literatura. Seu caráter documental e informativo dá-lhe valor historiográfico; a descrição fluentemente literária dada pelo deslumbra - mento diante dos elementos novos do novo mundo, por vezes insólitos, indica no escrivão traços de um ficcionista “ainda que primitivo e um tanto ingênuo” (MOISÉS, 2007, p. 18). Desse modo, não obstante a classificação tradicional da Carta de Caminha como literatura de informação do Quinhentismo ou do Período de Informação (1500-1601) restrinja-a puramente ao caráter docu mental, descredi - tando-lhe o valor literário por não ser uma obra de elaboração artística e ficcional dada pela imaginação, a partir da nova valorização oferecida pelo Modernismo, a crônica-carta do escrivão português deixa de ser um mero documento histórico. O impressionismo que subjaz à observação espontânea, às vezes humo rística, bem como o lirismo com que Caminha pinta os elementos naturais e com que relata a pureza da nova gente, suspendem os limites do texto meramente documental (Cf. CASTELLO apud BRAGA, p. 82). É possível entrever um cuidado do emissor no tratamento da linguagem ao usar imagens pelas quais tenta solucionar a difícil tarefa de comunicar o novo, isto é, traduzir o contato estabelecido entre duas culturas diferentes. Apesar da perspectiva cristã que norteia seu relato, Caminha promove a expressão daquilo que lhe é objeto de observação e análise. E talvez seja nessa capacidade de fotografar esse contraste que resida o elemento capaz de dar à carta o seu status literário (Cf. RONCARI apud BRAGA: 2009, p. 84). Com um estilo vivo, simples e objetivo, a escrita de Caminha não só reflete o senso de exatidão imprescindível ao escrivão, cuja missão é informar de forma detalhada os elementos que lhe “parecem”, mas também revela o espírito mercantilista, quando se tece um breve inventário das riquezas naturais e se aponta a possibilidade de existência de ouro. Além disso, há o elemento ideológico e cristão, ao indicar a inocência e a pureza da “nova gente”, as quais, associadas aos “bons ares” e às “águas infinitas”, permitem a interpretação teológica que permeia o caráter de missão de catequese, conforme sugere a comoção apontada pelo escrivão quando relata a participação dos homens da terra achada na missa e na simbologia cristãs. A Carta, desse modo, pendula entre o factual e o enigmático (ALMEIDA apud SOUZA: 2002, p. 48). Apesar do calendário que demarca os acontecimentos de forma sequencial e pormenorizada, como se fosse uma espécie de diário, os nove dias do tempo cronológico que marcam a permanência do escrivão dialogam com o imaginário de um tempo mítico, cuja representação narrativa revela os elementos adâmicos do índio e da natureza que o circunda. No entanto, na carta, é o realismo sóbrio que conduz o relato. Mesmo quando se nota a ênfase na descrição dos homens da terra achada, trata-se menos de uma apologia do homem primitivo, temática desenvolvida na era dos grandes descobrimentos e que mais tarde desabrochará nas teorias do bom selvagem, do que de um encan tamento em relação à inocência edênica do nativo como um elemento que faz que o autor comungue de certa forma do imaginário comum à literatura de viagens de seu tempo. A atitude paternal de Caminha diante do índio indica, no entanto, algo novo. Se considerarmos que o escrivão tem, em seu projeto de escrita, duas inten ções, a saber: 1) a objetividade de quem esteve presente e, por isso, é capaz de ser fiel na descrição de sua expe riência; e 2) assegurar a verossimilhança da informação, já que o conteúdo da missiva mostra-se como algo de difícil imaginação por parte de seu destinatário, compreende-se o destaque dado à nova gente. Isso faz com que o missivista empregue símiles ou comparações para que no contexto europeu se tenha ideia aproximada do que é descrito: “Esse que o agasalhou (= acolheu) era já de idade, e andava por galanteria, cheio de penas, pegadas pelo corpo, que parecia seteado como São Sebastião”. Os homens da terra de fato colocam-se como uma novidade, a qual permite desvelar o argumento ideológico do autor. O índio parece, pela inocência adâmica, colocar o observador entre o passado original e o futuro representado pelo dever da evangelização, cujo cumprimento cabe ao rei, conforme determinados momentos de proselitismo da carta. As reiteradas descrições de caráter amigável dos homens de “boa simplicidade” da terra nova traduzem essa concepção. Quando Caminha descreve os índios, termo que aliás não aparece no texto, já que não são orientais, como os pardos, ele diz que a nova gente foge às noções comuns dadas pelo homem exótico com o qual haviam tido experiência na costa africana do Atlântico. A acentuação da convivência pacífica, e muitas vezes lúdica, os detalhes da hospedagem gentil e, sobretudo, a participação dos nativos na missa, juntamente com os elementos que prenunciam sua conversão ao catolicismo, permitem uma configuração não só humanizadora, mas também espiritualizante do mundo descrito no texto de Caminha. Portanto, o novo homem da terra recém-descoberta não se mostra hostil. Pelo contrário, age afeito à troca simbólica, a qual catalisa a intenção catequizadora do missivista, que registra sua devoção ao ver o nativo elevar as mãos ao céu. Caminha não duvida de que a nova gente se fará cristã, uma vez que ela é o melhor fruto que se pode tirar da terra recém-achada, o que cria uma atmosfera messiânica a seu relato. Cumpre-se, assim, uma narrativa que, não obstante seu caráter informativo, parece colocar o escrivão marinheiro em uma viagem que lhe permite entrever um novo início no tempo, assim como permite o início do nosso tempo. Esse é o ato poético da Carta de Achamento do Brasil. – 5 6 – Texto para as questões 1 e 2. E hoje, que é sexta-feira, primeiro dia de maio, saímos pela manhã em terra com nossa bandeira. E fomos desembarcar rio acima, contra o sul, onde nos pareceu que seria melhor colocar a cruz, para melhor ser vista. E ali marcou o Capitão o lugar onde haviam de fazer a cova para a plantar. E enquanto a iam abrindo, ele com todos nós outros fomos recolher a cruz, rio abaixo, onde ela estava. E com os religiosos e sacerdotes que cantavam, à frente, fomos trazendo-a dali, a modo de procissão. Já se encontrava ali grande número deles, uns setenta ou oitenta; e quando assim nos viram chegar, alguns se foram meter debaixo dela para nos ajudar. (...) Ali disse missa o Padre Frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram conosco, assistindo a ela, perto de cinquenta ou sessenta deles, assentados todos de joelhos, assim como nós. E quando se chegou ao Evangelho, ao nos erguermos todos em pé com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as mãos, estando assim até se chegar ao fim; e então tornaram a assentar-se, como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram todos assim como nós estávamos, com as mãos levantadas, em tal maneira sossegados que certifico a Vossa Alteza que nos fez muita devoção. (CASTRO, Sílvio. A Carta de Pero Vazde Caminha. Porto Alegre: L&PM, 2017, p. 110.) 1. Assinale a alternativa que se aplica ao excerto da Carta, de Pero Vaz de Caminha. a) “Sexta-feira” e “primeiro dia de maio” ilustram as marcas do gênero diário. b) O termo “certifico” ilustra o caráter de testemunho que marca o relato de Caminha. c) O conectivo “e”, no início dos períodos, indica a elaboração poética do relato. d) O uso denotativo do termo “plantar” dá um tom lírico e elevado à Carta. 2. O caráter impressionista do escrivão diante da parti - cipação dos homens da nova terra na missa indica a) o senso de exatidão que marca a intenção textual do escrivão. b) o espírito mercantilista que sustenta as expedições marítimas. c) a ideologia cristã como elemento organizador da descrição da nova terra. d) a atitude poética do autor em sua representação da realidade. 3. Na Carta de achamento do Brasil, Pero Vaz de Caminha vale-se da descrição viva e simples para informar D. Manuel, rei de Portugal, sobre as características da “nova terra” e das “gentes” que nela vivem. Eles não lavram nem criam. Nem há aqui boi ou vaca, cabra, ovelha ou galinha, ou qualquer outro animal que esteja acostumado ao convívio com o homem. E não comem senão deste inhame, de que aqui há muito, e dessas sementes e frutos que a terra e as árvores de si deitam. E com isso andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos. (CASTRO, Sílvio. A Carta de Pero Vaz de Caminha. Porto Alegre: L&PM, 2017, p. 109.) Considerando os elementos dos quais o escrivão parte para tecer seus apontamentos, é correto afirmar que a) a referência a dados da cultura do observador serve de base para a analogia pela qual se mostram as peculiaridades do indígena. b) a comparação entre os costumes nutricionais do nativo e do europeu promove a supervalorização da cultura autóctone. c) a configuração exótica da natureza permite a caracterização fantasiosa dos hábitos agrícolas e pecuários do nativo. d) a enumeração dos animais presenciados na nova terra corrobora os caracteres adâmicos dos homens da terra. Texto para a questão 4. Na segunda-feira, depois de comer, saímos todos em terra para o abastecimento de água. Ali vieram então muitos deles, mas não tantos como das outras vezes. Já muito poucos traziam arcos e flechas. De início, mantiveram-se um pouco afastados, para depois, pouco a pouco, misturarem conosco. Abraçavam-nos e folgavam. Mas logo depois se esquivavam. (CASTRO, Sílvio. A Carta de Pero Vaz de Caminha. Porto Alegre: L&PM, 2017, p. 102.) Exercícios 4. Assinale a alternativa que não se aplica ao excerto da Carta, de Pero Vaz de Caminha. a) os nativos tiveram atitudes duais, antagônicas. b) a descrição pontual da vivência cotidiana mescla-se com elementos narrativos. c) as formas verbais “abraçavam” e “folgavam” dão um caráter conceitual ao relato. d) a repetição do termo “depois” atende ao senso de exatidão do autor. Texto para a questão 5. A feição deles é parda, algo avermelhada; de bons rostos e bons narizes. Em geral são bem-feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de cobrir ou mostrar suas vergonhas, e nisso são tão inocentes como quando mostram o rosto. Ambos os dois traziam o lábio de baixo furado e metido nele um osso branco realmente osso, do comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador. Metem-no pela parte de dentro do lábio, e a parte que fica entre o lábio e os dentes é feita à roque de xadrez, ali encaixado de maneira a não prejudicar o falar, o comer e o beber. (CASTRO, Sílvio. A Carta de Pero Vaz de Caminha. Porto Alegre: L&PM, 2017, p. 90.) 5. a) Indique dois recursos descritivos empregados pelo escrivão que ilustrem o senso de exatidão que marca o seu relato. b) Indique um termo que serve de estratégia para enfatizar a veracidade observada da realidade. Explique, à luz da situação em que o relato é produzido, por que tal recurso faz-se necessário. Textos para a questão 6. Texto 1 O principal intuito resumia-se em ser fiel à verdade observada, para que o relato desse conta exata da gente e da terra descobertas. E tal imperativo realizou-o cabalmente, a ponto de transformar a Carta numa espécie de diário de viagem, com toda a pormenorização que lhe é peculiar. (MOISÉS, Massaud. A literatura brasileira através dos textos. São Paulo: Cultrix, 2007, p. 18.) Texto 2 Senhor Posto que o Capitão-mor desta frota e assim igualmente os outros capitães escrevam a Vossa Alteza dando notícias do achamento desta Vossa terra nova, que agora nesta navegação se achou, não deixarei de também eu dar minha conta disso a Vossa Alteza, fazendo como melhor me for possível, ainda que – para o bem contar e falar – o saiba pior que todos. Queira porém Vossa Alteza tomar minha ignorância por boa vontade, e creia que certamente nada porei aqui, para embelezar nem para enfeitar, mais do que vi e me pareceu. Da marinhagem e singradura do caminho não darei conta aqui a Vossa Alteza – porque não saberia fazê-lo e os pilotos devem ter esse encargo. Portanto, Senhor, do que hei de falar começo e digo: (...) E assim seguimos nosso caminho por este mar – de longo – até que na terça-feira das Oitavas de Páscoa – eram os vinte e um de abril – estando da dita ilha distantes de 660 a 670 léguas, conforme dados dos pilotos, topamos alguns sinais de terra: uma grande quantidade de ervas compridas, chamadas botelhos pelos mareantes, assim como outras a que dão nome de rabo-de-asno. No dia seguinte – quarta-feira pela manhã – topamos aves a que os mesmos chamam de fura-buxos. Neste mesmo dia, à hora de vésperas, avistamos terra! Primeiramente um grande monte, muito alto e redondo; depois, outras serras mais baixas, da parte sul em relação ao monte e, mais, terra chã, com grandes arvoredos. Ao monte alto o Capitão deu o nome de Monte Pascoal; e à terra, Terra de Vera Cruz. (CASTRO, Sílvio. A Carta de Pero Vaz de Caminha. Porto Alegre: L&PM, 2017, p.86-7.) 6. a) Indique uma marca linguística que permita aproximar o fragmento da Carta de Caminha ao gênero “diário de viagem”. b) Indique uma característica do gênero carta. Em seguida, comente sobre a intenção do escrivão, levando em consideração o comentário de Massaud Moisés e a circunstância histórica pela qual se justifica a missiva. – 7 8 – 1. O termo “certifico” atesta o caráter informativo-re - ferencial do relato de Caminha. Trata-se de uma estratégia estilística que confere à escrita seu teor de fidelidade ao qual visa o escrivão. Resposta: B 2. Ao apontar que a participação dos indígenas na missa celebrada pelo padre Frei Henrique lhe causou muita “devoção”, Caminha imprime seu ideal cristão como premissa que lhe permite ajustar o fenômeno da “nova terra” e da nova gente à sua identidade narrativa, de homem católico e humanista, que participa do ideal cruzadista que ainda havia nas expansões marítimas mercantilistas. Resposta: C 3. A caracterização da realidade indígena pelo escrivão tem como base os elementos eurocên - tricos que, assim, dão uma mais fiel e entendível imagem da terra recém-descoberta ao rei D. Manuel. Resposta: A 4. As formas verbais no pretérito imperfeito do modo indicativo (“abraçavam”; “folgavam”) traduzem o caráter narrativo e descritivo que marca o excerto ao transmitir a ideia de continuidade das ações que representam. Resposta: C 5. a) A enumeração de predicativos (“pardas, “bons rostos”, “inocentes”) e o uso da analogia (“feita à roque de xadrez”; “como quando mostram o rosto”) ilustram o realismo do relato de Caminha. b) O advérbio “realmente”, em “realmente osso”, traduz a preocupação de se enfatizar a veracidade do que é relatado. À medida que o elemento singularidade do fenômeno obser - vado. Na medida que o elemento descrito se mostra exótico, cabe à habilidade detalhista do escrivão a tarefa de descrever a terra achada a partir de elementos referenciais de que participa seu destinatário. 6. a) A marcação da data (“vinte e um de abril”;“no dia seguinte – quarta-feira pela manhã”), bem como o registro e a descrição dos eventos vivenciados, permitem aproximar o relato de viagem de Caminha ao gênero diário. b) O emprego do vocativo (“Senhor”) e o do pronome de tratamento (“Vossa Alteza”) indicam marcas linguísticas do gênero epistolar. Além disso, esse estilo acaba tangenciando com o gênero de literatura de testemunho que se destaca no escrito do escrivão português. Seu senso detalhista e objetivo reflete a intenção de informar sobre os elementos encontrados na nova terra, sejam os homens, seja o elemento físico. Desse modo, a Carta pertence ao gênero literatura de viagens, que ilustra boa parte da produção literária da era dos descobrimentos. CARTA DE ACHAMENTO DO BRASIL GABARITO AS OBRAS DA UNICAMP PORTUGUÊS
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