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EA D Descoberta Permanente: Uma Possível Interface Entre a Diversidade Cultural e o Espaço Escolar 5 1. OBJETIVOS • Mapear o tema da diversidade cultural com base nos Pa- râmetros Curriculares Nacionais como elemento de refle- xão na formação de professores para fazer face aos desa- fios que se mostram recorrentes. • Contribuir com conhecimentos que ajudem e estimulem a participação no processo de transformação da escola e da sociedade. 2. CONTEÚDOS • Cultura, diversidade cultural e educação escolar: uma re- flexão sobre a pluralidade cultural. • Escola e diversidade cultural: um desafio para a educa- ção. © Sociologia da Educação128 3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Observe, a seguir, algumas orientações para o estudo desta unidade: 1) Nestas orientações iniciais para o estudo da diversida- de cultural, fazemos uma inversão, porque, na verdade, apresentamos aqui a indicação de três livros que não são mencionados no corpo de texto, mas que trazem inte- ressantes questões para ampliar nossa reflexão sobre o tema, além de filmes que contribuem para desenvolver- mos um olhar crítico por meio da linguagem cinemato- gráfica. 2) O primeiro desses livros é A questão indígena na sala de aula, organizado por Aracy Lopes da Silva e editado pela Brasiliense em 1987, antecipando, portanto, uma problemática que entraria no campo da discussão edu- cacional formal apenas uma década depois, em 1997. Trata-se de uma obra que tem como objetivos fazer uma advertência: será que estamos imunes à ideologia do- minante? Além disso, ela ensina uma difícil lição: só a ótica dos oprimidos nos aproxima da verdade histórica. Além da questão indígena tão atual – basta observar as notícias sobre a posse de terras indígenas em Roraima –, ela aborda, também, a questão racial – em um país que, embora seja uma das maiores "nações negras" do mundo, ainda continua ensinando cada um a "reconhe- cer seu lugar". 3) O segundo livro é Diferenças e preconceito na escola: alternativas teóricas e práticas, organizado por Julio Groppa Aquino e editado pela Summus em 1998. É uma coletânea que traça, grosso modo, a trajetória do século 20 como um século de conquistas e embates, sobretudo no cotidiano, no interior das diversas instituições civis. Ela apresenta a conquista do direito básico à escolariza- ção como um dos motes principais da democratização, uma condição sine qua non para a existência humana e social. 129 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Descoberta Permanente: Uma Possível Interface Entre a Diversidade Cultural e o Espaço Escolar 4) Como o projeto de democratização escolar é um proje- to inacabado, há exigência política para todos diante da multiplicidade de diferenças humanas – físicas, sexuais, raciais, religiosas, sociais, econômicas, culturais – que permeiam o "tecido social contemporâneo". Com rela- ção a essa questão, o livro citado no item anterior traz na base de seus textos a palavra de ordem de todas as ins- tituições civis e particularmente da escola: "inclusão", sem a qual toda a legitimidade dos princípios democrá- ticos está irremediavelmente ameaçada. 5) A educação para além do capital, do pensador húngaro István Mészáros, publicado pela Boitempo Editorial em 2005 e também disponível em espaço virtual (disponível em: <http://www.revista-theomai.unq.edu.ar/nume- ro15/ArtMeszaros.pdf>. Acesso em: 21 jan. 2011), é o terceiro livro que indicamos. Seu conteúdo traz um aler- ta para o fato de que "o simples acesso à escola é condi- ção necessária mas não suficiente para tirar das sombras do esquecimento social milhões de pessoas cuja existên- cia só é reconhecida nos quadros estatísticos"; é uma tarefa educacional que exige uma "revolução cultural" (MÉSZÁROS, 2005, p. 52). 6) Sugerimos o documentário Olhos Azuis, produzido em 1999, o qual aborda o trabalho de uma antropóloga americana que insiste na denúncia do preconceito con- tra os negros. 7) Indicamos, também, o documentário Camelos também choram, produzido em 2003. Esse documentário oferece possibilidades de uma reflexão abrangente sobre diver- sidade, apresentando um modo de vida bastante diverso do ocidental. 8) Há, também, o magnífico documentário Xingu: 20 anos depois, produzido no Brasil pelo jornalista Washington Novaes. Vale a pena conferi-lo. 9) Dentre as inúmeras possibilidades de filmes, indicamos Diários de motocicleta, um filme de Walter Salles (2004) que narra uma viagem de Che Guevara pela América La- tina, apresentando a diversidade de culturas pelos luga- © Sociologia da Educação130 res por onde passou, o que permite o debate sobre a relação de cada um com o ambiente em que vive. 10) Por fim, indicamos A encantadora de baleias, que é um filme dirigido por Nikki Caro (2002), no qual se discute a sobrevivência cultural de uma comunidade maori me- diante a personagem de uma menina que deseja partici- par das tradições reservadas somente aos meninos. Seu avô procura um sucessor para que a cultura do grupo não se perca, mas encontra apenas na neta as qualida- des necessárias para isso. 4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Desde a Antiguidade, comunidades, grupos e povos procura- ram afirmar suas identidades em contraposição aos demais; sendo assim, podemos inferir que a questão da diversidade cultural não é nova. Ela perpassa a história da humanidade. Para Telmo Marcon (2006), em suas reflexões sobre a diver- sidade cultural, parece paradoxal, mas um dos elementos funda- mentais para pensarmos em identidade é a diferença, que se expli- ca por meio dos processos históricos com as inúmeras experiências de dominação: fazer o outro assumir a identidade dominante. Dentre os exemplos de dominação, pensemos nos portugue- ses chegando ao território de uma "miríade de povos tribais", na expressão de Darcy Ribeiro (1997, p. 29), e utilizando a diferença como justificativa para a dominação. Isso ocorreu porque a dife- rença se constituiu como ameaça, e a diversidade passou a ser pre- texto para a imposição de valores, de costumes e culturas, para a subordinação daqueles que possuíam menos poder. Telmo Marcon (2006, p. 1) indica-nos que "ainda restam evi- dências desses processos nas muralhas, nas guarnições militares, na delimitação de espaços, na formação de guetos, na constituição de campos de concentração". As barreiras são sinais que se levan- tam para dar visibilidade às relações de dominação e de exclusão do outro. 131 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Descoberta Permanente: Uma Possível Interface Entre a Diversidade Cultural e o Espaço Escolar Nas sociedades contemporâneas do século 21, a centralida- de da cultura tem sido uma marca constante, como ressaltam as análises de Stuart Hall (1997), Homi Bhabha (1998) e Elizabeth Ma- cedo (2004). A explicação para a existência dessa marca aparece quando se entende a globalização além da economia, na sua com- plexidade e imprecisão, como um processo que engloba fenôme- nos, mudanças em curso, realidades e tendências muito diversas que afetam diferentes aspectos da cultura, das comunicações, da economia, do comércio, das relações internacionais, da política, do mundo do trabalho, da forma de entender o mundo e da vida cotidiana. Todas essas são circunstâncias que ressaltam as dimensões sociais, religiosas, jurídicas e culturais e que provocam alterações na significação dos valores, dos comportamentos, nas formas como as práticas social e cultural são produzidas e inscritas diante da intensidade dos fluxos culturais globais. Como a globalização não pode ser ignorada como um fenômeno de grande intensificação, sobretudo a partir de meados do século 20, interpretá-la como um fenômeno multifacetado e interligado de modo complexo, como propõe o sociólogo português Boaventura Souza Santos (2002), parece ser uma alternativa coerente e viável. Quanto ao conceitode cultura, embora existam divergên- cias, posto que ele envolve questões fundamentais a respeito da organização das sociedades e do desenvolvimento humano, há pontos de convergência no que se refere à cultura como conheci- mento do mundo como "um legado cumulativo fundamental para interpretar a realidade e agir sobre ela", explica a professora Cristi- na Costa (2007, p. 13). Para Laraia (1993), uma compreensão exata do conceito de cultura significa a compreensão da própria nature- za humana, tema perene da incansável reflexão humana. Embora os gestos, as atitudes, os protocolos e os sinais se- jam construções culturais prenhes de tradições, valores e simbo- logias, a cultura precisa renovar constantemente seu estoque de © Sociologia da Educação132 respostas. Dada a sua dinâmica, segundo Geertz (1989), ela preci- sa criar e recriar a cada instante e, ao mesmo tempo, comunicar-se com todos os indivíduos de um grupo, a fim de que seja eficiente no processo de explicar, de significar e de avaliar o espaço físico e social. No Brasil, estudiosos como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Fernando de Azevedo e, depois, Florestan Fernan- des, Darcy Ribeiro, Roberto da Matta, Alfredo Bosi e Renato Or- tiz se preocuparam em definir e compreender a cultura brasileira em suas múltiplas dimensões, e, embora representem diferentes posicionamentos teóricos, eles concordam com o fato de que a característica marcante de nossa cultura é a sua diversidade, re- sultado do processo histórico-social e das dimensões continentais do território nacional. Nesse sentido, o mais correto seria falarmos em "culturas brasileiras", dada a pluralidade étnica que contribuiu para a sua formação. O povo brasileiro surgiu da confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor português com índios silvícolas e campi- neiros e com negros africanos, uns e outros aliciados como escra- vos, como afirma o antropólogo Darcy Ribeiro (1997). A sociedade e a cultura brasileiras são conformadas como varian- tes da versão lusitana da tradição civilizatória européia ocidental, diferenciadas por coloridos herdados dos índios americanos e dos negros africanos. [...]. No plano étnico-cultural, a transfiguração se dá pela gestação de uma etnia nova, que foi unificando, na língua e nos costumes, os índios desengajados de seu viver gentílico, os negros trazidos de África, e os europeus aqui querenciados. Era o brasileiro que surgia, construído com os tijolos dessas matrizes à medida que elas iam sendo desfeitas (RIBEIRO, 1997, p. 20 e 30). Renato Ortiz (1994) observa que, no mundo contemporâ- neo, e não apenas no Brasil, os particularismos e os regionalismos convivem e entram em conflito com a cultura mundializada. Iden- tidades locais, minorias étnicas, raciais, religiosas e tantas outras diferenças culturais constroem suas próprias subjetividades em sociedades multiculturais, em espaços culturais organizados pela 133 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Descoberta Permanente: Uma Possível Interface Entre a Diversidade Cultural e o Espaço Escolar lógica da diferença que determina não tanto a riqueza de convi- vência no pluralismo de significados, mas, antes, as diferenças de posições sociais. Inseridas nesse contexto de vida atual, no interior desse complexo de significações e sentidos, de diferenças e pluralidades que fazem parte das organizações sociais modernas, estão, tam- bém, a escola e a sua cultura. 5. CULTURA, DIVERSIDADE CULTURAL E EDUCAÇÃO ESCOLAR: UMA REFLEXÃO SOBRE A PLURALIDADE CULTURAL No livro Diversidade cultural e educação, o educador brasi- leiro Moacir Gadotti (1992) apresenta três conferências proferidas por ele no decorrer de 1991, as quais têm como eixo de reflexão a relação entre a diversidade cultural e a educação para todos. Tratava-se de um tempo histórico em que estavam sendo gestadas a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação e as demais políticas educacionais dela decorrentes. As reflexões de Moacir Gadotti (1992) baseiam-se no princí- pio de que o papel da educação é potencializar os indivíduos para que, o mais cedo possível e a maior parte do tempo possível, eles possam tomar suas próprias decisões, estabelecer seus próprios caminhos, dirigir suas vidas, aumentar sua capacidade de compre- ender os outros e o mundo, desenvolver sua capacidade de aten- ção, de observação – tudo isso para serem mais felizes, como tam- bém queria o educador Paulo Freire. Diante desse quadro, Gadotti (1992) defende a tese da re- novação dos conteúdos culturais da escola, entrelaçando o seg- mento formal (escolar) com o segmento informal (não escolar) da educação. Embora a proposta dessa prática não seja nova, ela ain- da constitui um grande desafio que, para ser vencido, precisa levar em consideração a diversidade cultural. © Sociologia da Educação134 Uma teoria da educação que leva em conta a diversidade cultural deve ter como princípios básicos o pluralismo e o respei- to à cultura do aluno (GADOTTI, 1992). Essa é uma educação que tem como valor básico a democracia e que se propõe a instaurar a equidade e o respeito mútuo superando preconceitos de raça e de pobreza – os excluídos da escola são, principalmente, os negros e os pobres. Sem esses princípios, não se pode falar em melhoria educacional. Segundo Sueli Carneiro (2006), diretora do Geledés – Insti- tuto da Mulher Negra, é preciso que surjam novos atores sociais que intermedeiem, antes de mais nada, um dos fundamentos da democracia, que é o princípio de igualdade para todos. Ela estabe- lece cinco manifestações universais de desigualdades que devem ser vencidas para que esse princípio se instale. Sem vencê-las, não se pode falar em melhoria educacional, muito menos em demo- cracia. Por um multiculturalismo democrático ––––––––––––––––––– [...] algumas das ideologias conspiram contra a consolidação da democracia e o pleno gozo dos direitos de cidadania para maioria da população em nosso país, tornando o homem branco, de classe superior e heterossexual, no único tipo humano a desfrutar plenamente do exercício de direitos e poder em nossa sociedade. Por isso, eles, embora se constituam uma minoria, estão em absoluta maioria nas instâncias de mando e de poder da sociedade. A imposição de um sujeito universal ao qual todos os seres humanos seriam redutíveis fortaleceu as ideologias que promovem as desigualdades entre os se- xos, as raças, as classes sociais, as religiões. São elas: a) O patriarcalismo que, ao instituir como natural a hegemonia do sexo masculino, justifica todas as formas de controle, violência e exclusão social da maioria dos seres humanos que pertencem ao sexo feminino; o elitismo classista determinado por modos de produção que instituem classes minoritárias abastadas, que submetem e exploram maiorias despossuídas; b) A homofobia decorrente da imposição da heterossexualidade como forma exclusiva de relacionamento afetivo e sexual e condenação arbi- trária, muitas vezes violenta, do relacionamento entre pessoas do mes- mo sexo; c) O fundamentalismo religioso responsável por grande parte dos mar- tírios ocorrido na história da humanidade, em que cada denominação 135 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Descoberta Permanente: Uma Possível Interface Entre a Diversidade Cultural e o Espaço Escolar religiosa, ao buscar impor o seu Deus aos outros, transformam-no, pa- radoxalmente, em uma das principais fontes de intolerância do mundo; d) O racismo que, ao eleger que um grupo racial é superior ao outro, pro- voca a desumanização de grupos humanos, justificando as formas mais abjetas de opressão, tais como a escravidão, os holocaustos e genocí- dios e de discriminação étnica e racial [...] (CARNEIRO, 2006). –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– No plano educacional nacional, uma proposta que emana doMinistério da Educação, os Parâmetros Curriculares Nacionais pu- blicados em 1997 e que suscitaram grandes controvérsias quanto à sua concepção, ao processo de construção e à estruturação in- terna, incorporaram, entre os Temas Transversais, o da pluralidade cultural. Essa opção não foi pacífica, e, sim, objeto de controvér- sias, de negociações sob a pressão dos movimentos sociais, de re- estruturação da equipe responsável. O próprio documento assim justifica, na sua introdução, a presença da temática da pluralidade cultural no currículo escolar: É sabido que, apresentando heterogeneidade notável em sua com- posição populacional, o Brasil desconhece a si mesmo. Na relação do País consigo mesmo, é comum prevalecerem vários estereóti- pos, tanto regionais quanto em relação a grupos étnicos, sociais e culturais. Historicamente, registra-se dificuldade para se lidar com a temática do preconceito e da discriminação racial/étnica. O País evitou o tema por muito tempo, sendo marcado por "mitos" que veicularam uma imagem de um Brasil homogêneo, sem diferenças, ou, em outra hipótese, promotor de uma suposta "democracia ra- cial" (BRASIL, 1997a). Para Gimeno Sacristán (2004, p. 82), no texto Currículo e di- versidade cultural, discutir a construção de um currículo multicul- tural é a manifestação particular de uma questão mais ampla: "a capacidade da educação para acolher a diversidade". O ponto de partida do autor para essa afirmação é que a cultura escolar não poderá, em seus conteúdos e práticas, considerar e fazer que os membros de uma minoria cultural se sintam acolhidos se toda a cultura escolar não trata adequadamente o problema mais geral do currículo multicultural ao qual não se poderá chegar se não se discute a questão da diversidade cultural. © Sociologia da Educação136 Sacristán (2004) exemplifica a questão com a cultura cigana, uma cultura delimitada, que apenas poderá ser acolhida na escola quando os mecanismos dominantes forem modificados mediante uma estrutura curricular diferente, não desenvolvida apenas para ciganos, mas para fazer da escola um projeto aberto, no qual caiba uma cultura que seja de diálogo e de comunicação entre grupos sociais diversos. Um currículo multicultural atenderia a essa de- manda, na medida em que ele exige um contexto democrático de decisões sobre os conteúdos de ensino, no qual os interesses de todos estejam representados. É interessante destacar que, com relação ao acolhimento das diferenças, as instituições escolares, guardadas as exceções, continuam apegadas a tradições fortemente arraigadas na práti- ca pedagógica. Com relação a essa questão, durante a observação sistemática do cotidiano de diferentes escolas, chamaram atenção da professora Vera Maria Candau (2000) a homogeneidade e a pa- dronização. Candau (2000) verificou que a escola brasileira não tem e não se dispôs a criar espaços para sintonizar-se com as novas de- mandas. Acrescidas a essas novas demandas, há, também, a difi- culdade que ela (a escola) tem de absorver as novidades do campo da cultura, sobretudo as formas de novidades tecnológicas e os novos códigos de linguagem, como os diversos ethos dos diferen- tes grupos sociais. Em contrapartida, no interior desse mesmo es- paço escolar, algumas das diferentes culturas vão afirmando seus valores e conteúdos ou resistindo às imposições de uma domina- ção cultural (TURA, 2000). No documento dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs para a educação, o conteúdo relativo à Pluralidade Cultural (BRASIL, 1997b) demonstra que há consciência da existência de uma "zona de sombra" (desigualdade social) na estrutura social brasileira, apontada como um dos seus pontos nodais. No entan- to, o mesmo documento registra que essa "zona de sombra" não 137 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Descoberta Permanente: Uma Possível Interface Entre a Diversidade Cultural e o Espaço Escolar pode encobrir o fato de que é no jogo das diferenças que se po- dem reconhecê-las nos inúmeros grupos sociais e culturais que dão sentido à pluralidade cultural existente no Brasil. Homi Bhabha (1998, p. 227) reforça essa afirmativa ao res- saltar que "a diferença cultural não pode ser compreendida como um jogo livre de polaridades e pluralidades no tempo homogêneo e vazio da comunidade nacional". Cabe aqui mais um esclarecimento de Homi Bhabha (1998, p. 228): [...] a diferença cultural nos confronta com uma forma de saber ou com uma distribuição de práticas que existem lado a lado, desig- nando uma forma de contradição ou antagonismo social que tem que ser negociado em vez de ser negado. No âmbito das políticas educacionais brasileiras, as cate- gorias "cultura" e "diversidade cultural" tornaram-se recorrentes após a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB, que é a Lei n. 9394, sancionada em 1996. A partir de então, mul- tiplicaram-se pesquisas tratando da diversidade cultural como rei- vindicação dos movimentos e das organizações sociais, das esco- las, das comunidades, dos grupos étnicos etc. Mas como os conceitos propostos pela LDB foram e continu- am sendo compreendidos? Podemos exemplificar contando que alguns elementos pre- sentes na LDB que geraram os Parâmetros Curriculares Nacionais e que se referem à diversidade cultural deram origem à Lei n. 10.693/2003, que obriga à inclusão no currículo da temática "his- tória e cultura afro-brasileira". São esses elementos: • O Parecer n. 003/2004 do Conselho Nacional de Educa- ção, que trata das "diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana". • A Resolução n. 1 de 17 de junho de 2004 do Conselho Nacional de Educação, que institui as "diretrizes curricula- © Sociologia da Educação138 res nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e afri- cana". No Brasil, foi a partir da década de 1980 que as discussões sobre cultura começaram a ganhar força com a organização de movimentos sociais. Num primeiro momento, foram discussões que se entrecruzaram e que, depois, na década de 1990, constitu- íram identidades próprias e reivindicações mais centradas em fins específicos. Telmo Marcon (2006) explica-nos que é nesse contexto que ganham forte impulso as discussões sobre questões de gênero, de cultura e de religiosidades incorporadas da Constituição de 1988, a qual reconhece a diversidade cultural, especialmente no Capítulo 3, quando trata da educação, da cultura e do desporto, o que fica mais claro com a aprovação da emenda constitucional número 48, de 2005, que incorpora ao Art. 215, Inciso V, a "valorização da di- versidade étnica e regional". O Artigo 215 da Constituição reconhece como dever do Es- tado garantir "o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará a valorização e a difusão das manifestações culturais". Nesse mesmo artigo, o parágrafo 1º es- tabelece como dever do Estado proteger as "manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional". Foi esse contexto brasileiro de redemocratização que criou as condições para que os debates sobre etnia, raça, cultura, diversidade cultu- ral, multiculturalismo e educação intercultural ganhassem espaços significativos e as propostas e para que ideias fossem incorporadas à legislação educacional. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação estabelece, em seu Artigo 1º, que a educação envolve, entre outros aspectos, "as ma- nifestações culturais". No Artigo 26, estabelece que os currículos devem contemplar uma parte diversificada das regiões, própria 139 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Descoberta Permanente: Uma Possível Interface Entrea Diversidade Cultural e o Espaço Escolar de cada sociedade, e, também, das "culturas, da economia e da clientela". Por sua vez, o Artigo 36, § 4º, define que "o ensino de história do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro especialmen- te das matrizes indígenas, africana e européia". A diversidade sociocultural reconhecida pela Constituição e pela LDB foi compreendida e incorporada na legislação educacio- nal subsequente e aparece citada na introdução dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs da seguinte forma: Por sua natureza aberta, configuram uma proposta flexível, a ser concretizada nas decisões regionais e locais sobre currículos e so- bre programas de transformação da realidade educacional empre- endidos pelas autoridades governamentais, pelas escolas e pelos professores. Não configuram, portanto, um modelo curricular ho- mogêneo e impositivo, que se sobreporia à competência político- executiva dos Estados e Municípios, à diversidade sociocultural das diferentes regiões do país ou à autonomia de professores e equipes pedagógicas (BRASIL, 1997a, p. 13). Diante do tema da pluralidade cultural, os Parâmetros Cur- riculares Nacionais – PCNs deixam em aberto a compreensão de diversidade e de como ela precisa ser enfrentada metodológica e pedagogicamente, mas reconhecem que o Brasil é um país diverso e plural culturalmente. Daí a orientação para que seja valorizada: [...] a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro, bem como aspectos socioculturais de outros povos e nações, posicionando-se contra qualquer discriminação baseada em diferenças culturais, de classe social, de crenças, de sexo, de etnia ou outras características individuais e sociais (BRASIL, 1997b, p. 9). Esses são recortes que deixam transparecer o reconhecimen- to de que a sociedade brasileira é diversa e plural e que a educação tem de lidar com essa diversidade. No entanto, não fica expressa a forma de como realizar a análise da diversidade e de como ela se efetiva nas práticas históricas e, também, nas práticas cotidianas. Estaria aí subentendida uma visão de que a escola e os professo- res estariam em condições de dar conta desse desafio? Treze anos passados e a realidade parece estar longe desse horizonte, situa- © Sociologia da Educação140 ção que se agrava por se tratar de temas complexos, como cultu- ras, pluralidade cultural, religião, gênero, sexualidade, articulados como temas transversais. 6. ESCOLA E DIVERSIDADE CULTURAL: UM DESAFIO PARA A EDUCAÇÃO Os Parâmetros Curriculares Nacionais: Pluralidade Cultural mencionam que a escola tem um desafio importante a vencer na discussão de temas e questões vinculadas à pluralidade cultural e à diversidade. Reconhecem esse desafio quando fazem referência à necessidade de "valorizar as diversas culturas que estão presen- tes no Brasil", porque essa condição propicia à comunidade es- colar a compreensão do seu próprio valor e promove a elevação da autoestima, cooperando na formação de autodefesas diante de expectativas indevidas que "poderiam ser prejudiciais" (BRASIL, 1997b, p. 10). Um impulso nessa direção foi dado com o Tema Transversal da pluralidade cultural, que abre a possibilidade para se mergu- lhar no Brasil em toda a sua rica variedade, de conhecer o outro, desfazendo ideias preconcebidas e discriminação, bem como de ver a heterogeneidade como um acervo precioso a ser preservado – assim escreve Betty Mindlin no texto A Verdadeira Descoberta (1998, p. 12), para quem a imagem de um Brasil homogêneo, bran- co e católico não corresponde à realidade e para quem descobrir "o Brasil como ele é significa formar cidadãos orgulhosos de suas múltiplas raízes, atentos para os direitos humanos, os direitos dos povos, o direito à diferença". Com relação à pluralidade cultural, Mindlin (1998) propõe que tomemos como exemplo a questão do índio, um dos temas que deve ser aprofundado e que pode abrir caminho para o estudo de outros campos, como o dos negros e das religiões africanas, o 141 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Descoberta Permanente: Uma Possível Interface Entre a Diversidade Cultural e o Espaço Escolar dos imigrantes, o dos ciganos, o dos budistas, judeus ou muçul- manos, o dos quilombos, o dos trabalhadores sem-terra e tantos outros segmentos da população. É normal que os professores tenham dúvidas, pois os cami- nhos são vários e o mundo indígena não é bem conhecido. Como apresentar aos alunos, então, os dramas dos índios, os seus direi- tos, as suas características, o seu modo de vida na aldeia ou na cidade? Na escola, é fundamental insistir na diferença, nas inúmeras formas possíveis de ver o mundo, de organizar a sociedade e de criar artística ou tecnologicamente, nos muitos sistemas de valo- res, bem como na relação diferenciada com o ambiente e a natu- reza. Para Betty Mindlin (1998), as cerca de 500 áreas indígenas do Brasil, com suas línguas e seus povos devem tornar-se um dado na escola. Somos muito mais do que imaginamos se formos de fato averiguar quem é o povo brasileiro. "Luta-se, assim, contra a prepotência e o autoritarismo: nenhum país do mundo valoriza ou reconhece os povos que massacrou ou marginalizou" (MINDLIN, 1998, p. 12). O melhor meio para combater o racismo e a discriminação é conhecer o outro desde os primeiros anos de formação; daí ser fundamental na escola a crítica documentada ao racismo. É preciso percorrer continuamente a imensa distância que vai de jesuítas que viam animalidade nos índios até alguns jesuítas que defendiam e aqueles que atualmente os defendem. É necessário, também, que os índios sejam vistos como detentores de direitos específicos, que não sejam escorraçados de suas terras no mundo todo, que não sejam excluídos, mas que também não sejam obri- gados a se integrar às sociedades nacionais: nem integração, nem exclusão, alerta Betty Mindlin (1998). Para a autora, na escola, uma abertura para contrapor os di- reitos humanos à desigualdade na distribuição de renda e riqueza © Sociologia da Educação142 passa pelos debates sobre a afirmação do direito dos índios à ter- ra, à demarcação, enfrentando interesses contrários de minerado- ras, criadores de gado, plantadores de soja, madeireiras, estradas e hidrelétricas. Passa, também, pelo cotidiano, pela comunidade, pela magia, pela família extensa poligâmica ou não, pelas formas de cooperação no trabalho, na roça, na casa, pela afetividade, pelo erotismo das relações humanas na aldeia. Passa, ainda, pela sexu- alidade, pelas relações amorosas, pelos padrões feminino-mascu- lino. Os mitos indígenas constituem uma fonte inesgotável de ele- mentos para reflexão; por exemplo, o mito de uma época em que supostamente os homens é que menstruavam, ou sobre o incesto, involuntário ou não, entre irmãos, ou, ainda, sobre meninas impú- beres que engravidavam misteriosamente. A introdução a esses conteúdos pode interessar a crianças e adolescentes, sendo um atrativo para analisarem, inclusive, os padrões familiares, indagan- do e questionando sobre muitos outros assuntos. Mindlin (1998) indica que é importante pensar na possibi- lidade de que crianças e jovens não tenham os índios associados apenas a tragédias e denúncias, que sejam apresentados, também, à perspectiva atraente, admirável, envolvente dos índios. Temos no Brasil uma mitologia tão fascinante como a da Grécia ou da Índia, e viva ainda, contada e cantada nos campos e florestas. Para a escola, tal relação entre o oral e o escrito, a música e a fala, o enredo, a narrativa e o improviso é um manancial. É o mesmo tecido de forma e fantasia, de sagrado e cotidiano que faz a Bíblia ou a Odisséia – transmitidas oralmente durante muito tempo – perdurarem. Os mitos fundamentam a coesão interna de povos e comunidades, tradição e histórias sagradas conferindoidentidade coletiva (MINDLIN, 1998, p. 14). Entre os índios brasileiros, há histórias sobre o começo do mundo, sobre a vida depois da morte, sobre o caminho que as almas devem percorrer ao deixar o corpo, sobre o início do mun- do, sobre a explicação do aparecimento das plantas, do tabaco, da mandioca, das estrelas, do sol, da lua, dos animais. Observe, a seguir, uma dessas histórias: 143 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Descoberta Permanente: Uma Possível Interface Entre a Diversidade Cultural e o Espaço Escolar A força do vento e do sol – Xunáko Ihunovoty Yoko Kaxé ––– O vento e o sol são fortes. Uma vez, quando se encontraram, um ficou provocando o outro para uma dis- puta. — Eu sou mais forte que você, dis- se o vento ao sol. Certamente a sua força não se compara à minha, com- pletou o vento. Olhando para a terra, o sol disse ao vento: — Você está enxergando aquele ho- mem andando? — Vejo, disse o vento. — Ele está de paletó, não é? Aquele que conseguir tirar-lhe a roupa vai ser considerado o mais forte, com- pletou o sol. — Comece você, disse o sol. E assim começa o vento a soprar. Foi soprando devagar e depois au- mentando a força do sopro. Mas ne- nhum efeito fez sobre o homem. Não conseguiu tirar-lhe a roupa. — Agora é a minha vez de experi- mentar minha força, disse o sol. E começou a soltar o seu calor e quanto mais intenso o calor, aquele homem não suportou o calor do sol tirando o paletó. E assim o vento foi vencido pela força do sol. Ihunovoty yoko Kaxé, aínavo xúnati. Topokákoko opósikoane hunéokokoya xunako. —"Undí’oxo xuna’a ya itíke; ako’omea itépana njunako"; koenehi Ra Kaxé. Komómo poke’é ra Kaxé, Iná kixó Ihunovoty. —"Nexoane rako hóyeno yonoti poke’éke"? —"Nonjoa, kapalitoná ko’yé, hainá?"; koene ra Ihunovoty. —"Ènemone; koekumo veyeati ne ípovo ene xuina’á xunako"; koenehi ra Kaxé. —"Tiríxapu Ihunovoty". Kixoane Kaxé. Turixovoné ápikea ra Ihunovoty. He’ó kixoa inúxotike ápikea. Koeku xu’ikea ápikea, inamá’axo koxunekea ne ápikea. Itea ako kixoaku neko hóyeno. Ako ita vey’ea ípovo. —"Undí’iko hixopo’o xunako"; koenehí ra Kaxé. Yane’ e turíxovone opukea. Xunane’é opuné, ákone ita kotuko kaxé neko hóyeno. Avo axu’ikene eópea opune neko kaxé, kúrihikoné ípovo neko hóyeno. Itoane Kaxé neko Ihunovoty ya xunáko (OLIVEIRA, 2003, p. 27-29). –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– A questão indígena é uma das muitas questões que devem ser introduzidas com vigor no sistema educacional brasileiro. Há, ainda, outra diferença, com outros componentes até mais numerosos, que compõe o Brasil e, também, precisa ser in- troduzida com força: a questão dos afrodescendentes. Essa é outra vertente da pluralidade cultural que precisa ter seu lado positivo apresentado, pois, quando se trata de abordar essa cultura, ela é vista de forma folclorizada e pitoresca. 0.0 sq in © Sociologia da Educação144 Uma proposta educativa com uma perspectiva de cidadania tem de discutir e incorporar a diversidade sociocultural em sua atuação cotidiana. A LDB de 1996 enfatiza a necessidade de os currículos darem conta das diferentes manifestações culturais, e essa preocupação foi mais bem contextualizada pela Lei n. 10.693 (BRASIL, 2003), que incorporou três novos artigos à Lei de Diretri- zes e Bases, os quais tratam do estudo de história da África e dos africanos, da luta dos negros no Brasil, bem como da cultura negra brasileira e do negro na formação da sociedade nacional, resgatan- do a contribuição do negro nas áreas social, econômica e política da História e do Brasil. A partir dessa lei complementar, o Conselho Nacional de Educação elaborou e instituiu as "Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de His- tória e cultura afro-brasileira e africana" (BRASIL, 2004, p. 1). Que questões são destacadas nesses documentos? Eles tratam de várias questões, mas duas delas parecem ser centrais: a educação das relações étnico-raciais e o ensino de his- tória e cultura afro-brasileira e africana. Um dos objetivos é: [...] oferecer uma resposta, entre outras, na área da educação, à demanda da população afrodescendente, no sentido de políticas de ações afirmativas, isto é, de políticas de reparações, e de reco- nhecimento e valorização da sua história, cultura e identidade [...] (BRASIL, 2004, p. 2). Eles também propõem a implementação de uma política curricular que combata o racismo e as discriminações, contribua para uma cidadania democrática, que, para se constituir, precisa assegurar o direito de que os negros se reconheçam na cultura nacional, expressem visões de mundo próprias, bem como mani- festem com autonomia, individual e coletiva, seus pensamentos. Devem ainda ser reconhecidas: [...] iniciativas e organizações negras, incluindo a história dos qui- lombos, a começar pelo de Palmares, e de remanescentes de qui- lombos, que têm contribuído para o desenvolvimento de comuni- dades, bairros, localidades, municípios, regiões (BRASIL, 2004, p. 2). 145 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Descoberta Permanente: Uma Possível Interface Entre a Diversidade Cultural e o Espaço Escolar É preciso levar sempre em consideração que, assim como as culturas, os grupos étnico-culturais se desenvolvem e coexistem em contextos dos quais as contradições fazem parte. Elas com- põem a totalidade social, cultural, econômica e política, no entre- cruzamento de relações que se articulam e que se confrontam com valores da cultura dominante. As experiências que os diferentes grupos étnico-culturais realizam são resultantes da imbricação de elementos objetivos e subjetivos: duas dimensões amalgamadas nos processos sociais concretos que as ciências humanas e sociais precisam dar conta. O tema pluralidade cultural permite, por meio da vida es- colar, esclarecer eventuais preconceitos, colaborando para um convívio democrático. De acordo com os PCNs, ao "repudiar toda discriminação de raça/etnia, classe social, crença e sexo", é possí- vel ensinar aos alunos o desenvolvimento de atitudes de empatia para com aqueles que sofrem qualquer tipo de preconceito (BRA- SIL, 2000, p. 59). Para que uma escola se perceba num contexto multicultural, para que não seja racista, nem elitista, nem machista, nem etno- cêntrica, a professora Azoilda Loretto da Trindade (2000, p. 11) não apenas nos alerta no texto Olhando com o coração e sentindo com o corpo inteiro no cotidiano da escola que é essencial percebermos a dimensão disso tudo, como também amplia o questionamento: O que nós, como educadores, faremos? E como faremos? Como nosso currículo se configurará? Como serão e deverão ser nossas aulas, nossa avaliação, nossa sala de aula? Como será nossa postu- ra? Como não sermos tão individualistas e julgarmos que os outros são muito diferentes de nós, a ponto de nos transformarmos numa ilha cercada de ilhas por todos os lados? Como não ser tão univer- salistas a ponto de apagarmos as singularidades culturais, políticas, sexuais, sociais, intelectuais? Como levar em consideração todos os segmentos da escola? Como enfrentar que nossas mais belas inten- ções e ações são ainda incipientes, que são muito poucas, embora necessárias? Por exemplo, trabalhar o multiculturalismo na escola não é apenas colocar imagens de todas as etnias que compõem nossa escola nos murais, festejar o Dia do Índio e o Dia Nacional da Consciência Negra. Não é apenas debater as políticas de cotas e © Sociologia da Educação146 outras ações afirmativas. Nem ter a imagem de uma Virgem negra como padroeira do Brasil. Tampouco ter o atleta do século como um ícone nacional (TRINDADE, 2000, p. 11-15). Educação e diversidade cultural dizem respeito a um campo delicado, sobretudo em um mundo que assiste ao recrudescimen- to do racismo, do conservadorismo, da intolerância, que assiste às guerrasreligiosas e vê a violência expandir-se. Trata-se de um mundo em que precisamos nos reconhecer como eternos apren- dizes, na medida em que estamos no momento de invenção da roda de um trabalho multicultural na educação. Invenção porque não existirá um trabalho único que deverá ser seguido ou copiado pelos demais. Cada grupo, cada coletividade, cada comunidade escolar de- verá "inventar sua roda", lembrando que não se trata de "ilhas de pessoas", uma vez que o conhecimento é construído em coletivi- dade; daí que palavras-ações básicas devem ser fortalecidas, como afirma Azoilda Loretto da Trindade (2002), que sugere quatro pon- tos que, se considerados, favorecem a educação para a diversida- de cultural: 1) a autonomia como capacidade de cada um tomar suas próprias decisões, mas a partir da interação e diálogo com pontos de vistas diferentes e diversos dos nossos; 2) o diálogo, que implica ouvir o outro, escutar e se deixar preencher com a palavra, com a ideia, com a perspectiva do outro; 3) o movimento, que concretiza a ação, que realiza a mu- dança, a criação; 4) o contato: não se desenvolve uma educação multicultu- ral apenas no gabinete, na sala de estudo individual, no computador, por meio dos textos, da palavra escrita. O outro e nós temos um cérebro, uma mente, produzimos palavras, poesia, virtualidade, distanciamentos. Mas te- mos, também, um corpo que tem cheiro ou cheiros, cor, texturas, odores, sabores, expressões corporais. E essa percepção só acontece realmente como contato, com o encontro. 147 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Descoberta Permanente: Uma Possível Interface Entre a Diversidade Cultural e o Espaço Escolar Para encerrar a explanação, tomamos as palavras da profes- sora Ana Lúcia Valente (1999), para quem a diversidade cultural é o desafio para a educação no século 21 e que, tal como Azoilda Loretto da Trindade (2002), também considera que há uma ten- dência fundamental que parece indicar que o reconhecimento da diversidade das culturas, inclusive no contexto escolar, tem sus- tentado a intolerância e o acirramento de atitudes discricionárias quando a diferença passa a justificar um tratamento desigual. Ana Lúcia Valente (1999) exemplifica a questão avaliando a situação na França, país em que a escola é responsável por uma parte não negligenciável da formação para a cidadania, mas que continua a viver em um universo monocultural, onde apenas a cul- tura dominante tem o direito de expressar-se. O texto exposto a seguir é um exemplo que ilustra melhor esse pensamento. Senado da França proíbe uso de símbolos religiosos em escolas ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– O Senado francês aprovou em março de 2004 a lei que proíbe do uso de véus muçulmanos e a presença de outros símbolos religiosos nas escolas estatais do país. A proposta, que recebeu 276 votos a favor e 20 contra, agora segue para sanção do presidente Jacques Chirac, que terá 15 dias para fazê-lo. A maior parte dos partidos políticos franceses e cerca de 70% da população aprovam a nova lei, mas alguns líderes muçulmanos do país disseram que sua aprovação pode ser interpretada como uma manifestação de intolerância dos franceses. Além dos véus, usados por mulheres muçulmanas, a presença de cruzes cristãs e turbantes usados pelos seguidores da religião Sikh também devem ser banidos quando a lei passar a vigorar, em setembro. [...] O primeiro-ministro francês, Jean-Pierre Raffarin, disse a senadores antes da votação que a lei não tem o objetivo de promover discriminação contra grupos religiosos, mas "dar um sinal poderoso e rápido". "Nossa visão de secularismo não se opõe a religiões. Todos têm o direito de expressar sua fé, desde que respeitem as leis da República dentro das escolas da República", disse. Entretanto, ele reconheceu que as autoridades francesas "não sentem nem di- zem acreditar que tudo foi resolvido com esta lei". Figura 1 Garota com shador (véu). © Sociologia da Educação148 A proposta havia sido aprovada pela Câmara baixa do Parlamento francês no mês anterior. Alguns parlamentares franceses disseram que, além de poder ser considerada intolerante, a nova lei também prejudica os esforços de integração dos muçulma- nos franceses na sociedade do país (BBC BRASIL, 2010). –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– 7. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Realize, a seguir, as questões autoavaliativas, a fim de que você perceba se o seu estudo desta unidade foi satisfatório ou se é preciso retornar ao texto para sanar possíveis dúvidas. 1) O que é diversidade cultural? 2) Segundo Sueli Carneiro (2006), quais são as manifestações de preconceito e discriminação que devem ser superadas para termos uma sociedade de- mocrática? 3) Quais são os desafios que a escola precisa vencer para implantar a educação democrática, livre de preconceitos e discriminações? 8. CONSIDERAÇÕES O que podemos depreender do texto sobre o tema diversi- dade cultural, neste caso específico, numa correlação com os de- safios que a escola brasileira precisa vencer para concretizar uma educação que seja democrática, é que ela deve organizar ações educativas que permitam eliminar os preconceitos e as discrimi- nações que pairam sobre diversos grupos étnicos e comunidades, dentro ou fora da escolas. Um ponto que chama a atenção é o significativo número de medidas legais traduzidas em vários documentos organizados pelo Ministério da Educação e que são regidos pela Carta Magna, a Constituição Brasileira. São leis que precisam sair do papel. Conhecer, principalmente, a Constituição e, também, os do- cumentos oficiais que administram a conduta educacional do país pode ser uma ação adequada como instrumento de reivindicações para a efetivação de direitos. 149 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Descoberta Permanente: Uma Possível Interface Entre a Diversidade Cultural e o Espaço Escolar Outra questão que vale a pena destacar se refere à desigual- dade social que prevalece no país. Por essa razão, como aponta Moacir Gadotti (1992), temos de admitir que não é possível dis- cutir a diversidade cultural sem reconhecer que, inegavelmente, a população brasileira é constituída por uma maioria de pobres, ne- gros e mestiços e, de acordo com uma das tendências do mundo contemporâneo, apenas com a democracia da diversidade cultural teremos traduzido o respeito e a valorização das diferenças socio- culturais. Caso a diversidade cultural seja realmente entendida como a riqueza da humanidade, como propõe Gadotti (1992), à escola cabe propiciar aos alunos a vivência e a convivência com outras culturas além da sua, com a compreensão de que apenas esse tipo de ação educacional é humanista. Há um longo caminho a percorrer para que a escola repre- sente, de fato, o espaço de afirmação de uma identidade pluricul- tural. O primeiro desafio a ser vencido é eliminar a ausência de índios, negros e imigrantes dos currículos escolares, um dos ele- mentos que contribui fortemente para a formação de preconcei- tos e estereótipos que se generalizam pelo Brasil afora. Quando se trata de exclusão, preconceito, discriminação, são muitos os desafios a serem superados, pois trata-se de povos, de grupos étnico-culturais e de comunidades que são isoladas porque adotam práticas e valores étnico-culturais distintos. Trazer a temática da diversidade cultural para o centro do debate educacional é urgente e necessário, bem como é necessá- rio o reconhecimento dos bens culturais de nosso multifacetado e rico patrimônio cultural. Apenas assim conviveremos com uma escola plural e cidadã, que prepara as pessoas para serem sujeitos históricos e agentes de transformação social. Para concluir, registramos que o Parâmetro Curricular Nacio- nal da Pluralidade Cultural, em 1997, abriu uma perspectiva para uma "nova descoberta do Brasil, desde a infância", segundo as pa- © Sociologia da Educação150 lavrasde Betty Mindlin (1998, p. 12), uma descoberta permanen- te, não restrita às datas comemorativas do calendário e extensiva não apenas aos profissionais da educação, mas também aos bra- sileiros em geral, que devem se sentir estimulados a conhecer e a reafirmar as nossas raízes étnicas e culturais. Isso sem perder de vista que a pluralidade cultural, por meio de suas redes de signifi- cação, no movimento dos fluxos econômicos e culturais, tenta, de um lado, fazer a conformação da diferença e, de outro, relutar em aceitar a diferença cultural como um híbrido cultural inexorável. 9. E-REFERÊNCIAS Figura 1 Garota com shador (véu). Disponível em: <http://www.bbc.co.uk/portuguese/ noticias/story/2004/03/040304_veurg.shtml>. Acesso em: 21 mar. 2010. Sites pesquisados BBC BRASIL. Senado da França proíbe símbolos religiosos em escolas. Disponível em: <http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/story/2004/03/040304_veurg.shtml>. Acesso em: 21 mar. 2010. CARNEIRO, S. Por um multiculturalismo democrático. In: Jornal de Debates. 20 nov. 2006. Disponível em <http://jornaldedebates.uol.com.br/debate/como-viver-junto/artigo/ por-um-multiculturalismo-democratico-0>. Acesso em: 21 jan. 2011. BRASIL. Estatuto da Igualdade Racial. 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