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Desafios Contemporâneos 1

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Desafios Contemporâneos
1.1 Construção da Cidadania 
A palavra cidadania ou o que ela representa, nem sempre existiu ou teve o mesmo significado em diferentes lugares e ao longo do tempo. A concepção de cidadania a qual nos referimos é localizada no mundo ocidental e teve sua consolidação com o surgimento do mundo moderno, pautado nos ideais da razão, da ciência e da ampliação da participação política, que motivaram importantes revoluções, inicialmente, no contexto europeu, nos séculos XVIII, XIX e XX.
Outra ideia e valor importante, também surgido na modernidade, é o próprio conceito de indivíduo, entendido enquanto um sujeito de direitos e envolto aos ideais de igualdade e liberdade que configuraram os Estados democráticos e capitalistas, com a formação da sociedade civil e a proteção da propriedade privada. O antropólogo francês Louis Dumont (1911-1998) identifica o individualismo como a ideologia da modernidade, ou seja, o conjunto de ideias em que o indivíduo é colocado como um valor central, posto que a ideologia é o modo como diferentes grupos sociais atribuem sentido às suas experiências no mundo.
1.1.1 Breve história da cidadania
As possíveis origens da cidadania remetem à antiguidade e aos contextos de Roma e Grécia, posto que nas cidades-estados desses países foram identificadas as primeiras formas de participação da população nas decisões da cidade. Apesar de cada integrante ter direito de voz e voto, apenas os considerados como cidadãos tinham este privilégio. Cidadãos eram apenas os homens, livres e com propriedades. Mulheres, escravos, artesãos e comerciantes estavam excluídos dessa classificação.
Contudo, um conjunto de transformações ocorridas desde o século XV com a Expansão Marítima, Reforma Protestante no século XVI, além da Revolução Científica (século XVII), Independência dos Estados Unidos (1776), Revolução Francesa (1789), Revolução Industrial (final do século XVIII) e urbanização do mundo ocidental, provocaram mudanças profundas que promoveram o fim da Idade Média e o advento da Modernidade.
O momento que instaura a modernidade pode ser caracterizado pela consolidação da burguesia enquanto grupo central, pois além do poder econômico acumulado com a expansão marítima e a posterior compra de fábricas, este grupo também conquistou o poder político, antes concentrado na aristocracia rural e na igreja católica. A mudança de gestão e organização política trouxe o surgimento do Estado Moderno, que concentrou o aparato administrativo, jurídico e de segurança das novas Nações. E também os ideais de liberdade e igualdade para todos os indivíduos inseridos em cada território.
Então, desde a noção de cidadania que apenas abarcava homens abastados em Roma e Grécia, passando por quase nenhuma incidência no período feudal, é na modernidade, principalmente com a elaboração da Declaração de Independência dos Estados Unidos da América (1776) e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), elaborada na França, que a cidadania, na forma como é pensada e vivenciada por nós atualmente, foi inaugurada.
Juntamente às transformações políticas, a sociedade e a economia também foram bastante abaladas com a possibilidade de participação nas decisões que envolviam estados, regiões e países e com a industrialização e urbanização que o mundo ocidental experimentava a partir do século XVIII. O modo de produção capitalista, pautado pela formação de um grupo que vendia a sua mão de obra para os donos das máquinas e fábricas em troca de um salário, gerou a classe trabalhadora, primeiro grupo que passou a organizar-se coletivamente para a conquista de direitos visando melhorar suas condições de vida e trabalho. Portanto, praticando uma das dimensões da cidadania, que é a luta por direitos civis, políticos e sociais.
O sociólogo britânico Thomas Humphrey Marshall (1893-1981), em sua obra “Cidadania, classe social e status”, de 1950, (ARAÚJO, BRIDI e MOTIM, 2013), focada no contexto industrial inglês, defendia que a busca pela efetivação dos direitos era a condição principal para a cidadania, e os classificou em três grupos:
1. Direitos civis – Relacionados a liberdade de expressão, de pratica religiosa e direito de propriedade.
2. Direitos políticos – Relacionados a possibilidade de opinar e de ocupar cargos políticos. 
3. Direitos sociais – Voltados para garantia de dignidade de cidadãos à margem da sociedade.
Com isso, temos uma pequena contextualização da cidadania de modo global, mas e quanto ao Brasil?
1.1.2 Cidadania no Brasil
A cidadania no Brasil é um assunto bastante delicado, mas como em qualquer outro contexto, é importante saber a história de nosso país e os caminhos que foram e continuam sendo traçados a favor ou contrários à ampliação da cidadania dos brasileiros. Diferentemente do contexto europeu, em que as revoluções burguesas, a valorização da ciência e da razão e os movimentos operários contribuíram para a consolidação da igualdade e participação política de sua população desde o século XVIII, por aqui o percurso se deu posteriormente, influenciado pelos acontecimentos do além-mar, ou seja, pela expansão marítima europeia.
	Se a cidadania diz respeito à participação popular na vida política de um Estado- Nação e o exercício de direitos civis, políticos e sociais, nosso país esteve bastante aquém de alcançá-la. Primeiro, porque africanos e indígenas foram escravizados durante pelo menos três séculos, tendo a escravidão abolida apenas um ano antes da Proclamação da República, em 1888. Além disso, para ficarmos apenas no exemplo de direitos políticos, no Brasil, apenas em 1934 foi permitido às mulheres votar e somente com a Constituição de 1988 os analfabetos conquistaram este direito.
	Desde a primeira Constituição (1891) até a atual (1988), o Estado brasileiro assumiu várias feições, de ser sustentado e ocupado apenas por ruralistas, quando o voto era aberto e vigiado (“voto de cabresto”), passando pela Era Vargas (1930-1945), uma iniciante democracia, 20 anos de ditatura militar (1964-1984), até alcançarmos o retorno ao regime democrático de direito (1985). Nesse percurso, os direitos políticos foram conquistados por grande parte da sociedade, mas os direitos civis e sociais ainda se manifestam como um grande desafio para os movimentos sociais e os indivíduos que defendem uma ampla cidadania como condição para um mundo mais justo e igualitário.
Vamos tomar como exemplo a população negra. Apesar da liberdade de culto religioso ser um direito civil garantido pela Constituição de 1988, é comum as mídias registram casos de assassinatos e violências a líderes e casas de religião de matriz africana. Quanto aos direitos sociais, institutos de pesquisa, como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgam dados que comprovam o assassinato de grande parte da juventude, o encarceramento da população negra e a violência contra as mulheres, principalmente negras.
Na resistência a favor da vida e da dignidade da população excluída dos meios de subsistência e integração social, o Brasil conta com extenso número de movimentos sociais, sindicatos, associações e organizações não governamentais, que atuam questionando e pressionando projetos e leis aprovados e postos em prática pelos poderes legislativo, executivo e também judiciário, visando a efetivação de políticas públicas e sociais que de fato reconheçam a cidadania da maioria da população brasileira.
Ao longo do tempo, os movimentos sociais também foram mudando sua organização e forma de atuação. Se na metade do século XX se proliferou grande número de sindicatos representativos da classe trabalhadora, com forte estrutura hierárquica e práticas de panfletagem para a organização de passeatas e greves, atualmente, com o desenvolvimento de novas tecnologias, os movimentos encontram-se cada vez mais horizontais e abarcando maiores escalas via mídias digitais que tem capacidade para conectar pessoas nos mais distantes lugares do globo. As manifestações de junho de 2013, bem como outras da contemporaneidade, foram articuladase disseminadas de tal modo.
1.2 Os Direitos Humanos
Para entender o que são e como surgiu os direitos humanos, precisamos contextualizar historicamente de qual momento e local estamos falando. Vimos que o conceito de cidadão foi se transformando, pois nem sempre abarcou todas as pessoas que compunham determinada sociedade, já que durante muito tempo apenas eram considerados cidadãos os homens, livres e com propriedades.
A concepção de direitos humanos, que nos referimos com tanta naturalidade, foi desenvolvida na modernidade, quando as revoluções burguesas depuseram os regimes absolutistas e a democracia, caracterizada pela soberania popular, foi estabelecida. O surgimento dos Estados Democráticos, a partir do século XVII no contexto europeu, institucionalizou a sociedade civil e impulsionou o surgimento de direitos e deveres para a manutenção e organização da sociedade. A ideia de cidadania está atrelada a este cenário de ampliação da participação política e da conquista de direitos: “na sua acepção mais ampla, cidadania é a expressão concreta do exercício da democracia” (PINSKY; PINSKY, 2010, p.10).
Historicamente, os direitos foram associados e restritos aos grupos dominantes e a ampliação para o conjunto maior da sociedade está ligada à modernidade e suas transformações políticas, sociais e econômicas. Os direitos humanos da contemporaneidade se pretendem universais, indivisíveis, interdependentes e inter- relacionados.
1.2.1 Aspectos históricos e sociológicos dos Direitos Humanos
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, publicada originalmente em 10 de dezembro de 1948, pela Organização das Nações Unidas (ONU, 2009), é considerada o marco regulatório decisivo para a implementação e fiscalização dos direitos humanos no mundo ocidental moderno. A ONU surgiu em 1945, ano em que terminou a Segunda Guerra Mundial, com o intuito de incentivar o diálogo entre as nações e evitar novas catástrofes mundiais. Nesse sentido, a declaração dos direitos humanos foi um documento importante para enfatizar o caráter universal dos direitos, levando em consideração a pluralidade dos povos, bem como a sub- representatividade de determinados grupos nas esferas de poder e prestígio.
A defesa pela igualdade e liberdade dos indivíduos foi uma das principais bandeiras ainda nas revoluções liberais-burguesas nos séculos XVII e XVIII. Àquela época, o grupo que conseguiu acumular renda, mas que ainda era desprovido de poder e participação política, uniu-se ao povo, os desprovidos de privilégios, mas obrigados a pagar altos impostos para os nobres, para o rei e para a igreja, para ter mais forças e conseguir realizar tais revoluções. Ao garantirem sua vitória, a burguesia aos poucos foi agindo contrariamente à consolidação de direitos para o povo, posto que não mais precisava de seu apoio, mas agora da exploração de suas vidas e trabalho para desenvolver o sistema capitalista.
Nesse período, começaram a ser disseminadas as correntes do socialismo e do comunismo entre a classe trabalhadora, que passou a organizar-se na forma de partidos e sindicatos e lutar por melhores condições de trabalho A primeira metade do século XX foi marcada então pela divisão do globo entre países capitalistas e socialistas, culminando no surgimento de estados fascistas e totalitários e na Segunda Guerra Mundial.
Nas práticas de colonização promovidas pela Europa na América Latina, África e Ásia também podemos identificar a desumanização dos povos dominados, que tiveram sua cultura, língua, economia e religião negligenciados e combatidos em prol da ocidentalização do mundo. Outro exemplo de violência contra a universalidade da humanidade pôde ser observada no regime nazista alemão que, baseado em uma ideia de supremacia racial, também dizimou milhões de pessoas e implementou os campos de concentração. 
Outro desafio a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos é de que todos os indivíduos “são iguais perante a lei”, além de livres para expressarem suas opiniões e cultuarem a religião que escolherem. Bom, basta olharmos qualquer reportagem e/ou relato do cotidiano para percebermos que a justiça não se aplica de maneira igualitária, independente da cor/etnia, classe social, gênero, nacionalidade, orientação sexual, opção política-ideológica etc. Também temos os casos de “prisioneiros da consciência”, ou seja, pessoas que foram presas por se manifestarem contrariamente a governos totalitários, como durante a ditadura militar no Brasil. E quanto à religião, casos de repressão às suas manifestações, como o uso no véu na França por muçulmanas, que foi repreendido, ou os casos de depredação de casas de religião de matriz africana no Brasil.
Então, é pertinente nos determos na afirmação de John Dewey que o historiador Marco Mondaini (2009, p. 159) nos traz à tona: “Se você quer estabelecer a concepção de uma sociedade, descubra quem está na prisão”. Essa afirmação é importante para que possamos avaliar se os ideais de justiça social, paz, diversidade cultural e respeito aos direitos humanos estão sendo exercidos nos diferentes países.
1.2.2 Brasil Legal X Brasil Real
O caminho percorrido pelos Estados Unidos, Inglaterra e França, é de conquista de direitos civis – as liberdades individuais (século XVII e XVIII), depois direitos políticos – igualdade política (século XIX), e direitos sociais – igualdade social (século XX). No Brasil, houve inicialmente, alguns ganhos sociais, como a consolidação das leis trabalhistas (CLT), em 1943, durante o governo de Getúlio Vargas, para que posteriormente fossem conquistados direitos civis e políticos, principalmente após a ditadora militar, em 1984, quando foi (re)instituído no Brasil o Estado Democrático de Direito.
Em termos legais, o Brasil se coloca como um dos países com legislação mais avançada da América Latina, contudo percebemos grande contradição entre o campo “legal” e o “real”, ou seja, apesar de uma constituição e leis que garantem a igualdade, liberdade e dignidade de todos os cidadãos, os direitos fundamentais como saúde, moradia, segurança, transporte, lazer e educação são escassos a ampla parcela da população.
A dinâmica social contemporânea, ainda que imbuída em um cenário de direitos e normas jurídicas estabelecidas, se passa como se ainda vivêssemos na idade média, quando o poder econômico e político eram determinados pelo nascimento, já que mesmo com a igualdade presente nas leis, não há meios adequados para que pessoas de diferentes estratos sociais alcancem os lugares mais prestigiados da sociedade. Mesmo que a justificativa não seja mais os “desígnios de deus”, a estratificação ou desigualdade social é uma das características mais evidentes de nosso país.
Pessoas são tratadas de forma distinta conforme os marcadores de diferença, classe, cor e gênero, por exemplo. O aparato público é utilizado com fins privados e o coronelismo ainda se apresenta como uma das principais práticas políticas. Esse clientelismo que deveria ter acabado com a instituição da democracia e ampliação da cidadania ainda não foi exterminado, já que os políticos atuais são os mesmos ou, então, descendentes dos antigos coronéis. Assim, os direitos humanos ainda não conseguiram garantir a emancipação real da maioria da população brasileira.
É inegável que desde a abertura política já tivemos inúmeros avanços, mas infelizmente estes também chegam acompanhados por retrocessos. A reforma agrária que possibilitaria a permanência dos agricultores no campo, a manutenção de identidade e cultura de quilombolas e indígenas ainda não foi realizada. Ao mesmo tempo em que houve a universalização de crianças nas escolas, também enfrentamos uma taxa de mais de 10 milhões de brasileiros desempregados (GOMES, 2018). Vivemos, então, em um Brasil em que uns são mais humanos do que outros? Enfrentar essas disparidades se constitui como um desafio urgente para construirmos um lugar realmente plural e digno para todos, onde a paz, a segurança coletiva, o desenvolvimento e os direitos humanos sejam indissociáveis.
Agora, vamosapresentar a situação de grupos que permanecem à margem de parte ou integralmente dos direitos humanos.
1.3 Mulheres e minorias
Este tópico diz respeito aos avanços, desafios e entraves para o exercício da cidadania e do respeito aos direitos humanos de grupos subalternizados, também chamados de minorias. O primeiro ponto que precisamos elucidar se relaciona justamente a palavra minorias. Quando a ouvimos, a primeira ideia que nos vem a cabeça tem a ver com um número reduzido, ou seja, com quantidade. No entanto, essa imagem pode gerar equívocos quando a palavra minorias está associada a políticas públicas ou direitos humanos. Isso porque grupos compostos por milhões de pessoas – que, muitas vezes, podem constituir a maioria em termos numéricos da população de determinada sociedade -, mas que, contrariamente à sua presença numérica, estão sub-representações em espaços de poder, prestígio, educação, renda, saúde e lazer. Além disso, são hiper-representados entre o grupo com menor poder aquisitivo, ocupando os empregos menos valorizados e prestigiados, deficitários de saúde, educação, moradia, segurança, lazer e respeito aos direitos humanos.
Nesse sentido, as mulheres e outros grupos como homossexuais, transexuais e transgêneros, deficientes, idosos, jovens e crianças, são estratos da sociedade considerados minorias justamente por estarem mais vulneráveis a violências e carentes de respeito aos seus direitos humanos mais fundamentais. Em contraponto às minorias, está o grupo hegemônico, provido de privilégios e vantagens historicamente perpetuadas. Esse lugar é ocupado por homens, brancos, heterossexuais, que moram nos lugares mais caros das cidades, ocupam profissões bem remuneradas e respeitadas e estão menos sujeitos às violências criminosas e institucionais, fazendo com que pessoas que não correspondem a este perfil sejam vistas e tratadas como não tão “humanas” assim.
1.3.1 (Des)naturalização das desigualdades
Enquanto seres coletivos, vivendo em sociedade, nossa socialização desde a infância se dá por meio de instituições sociais, como família, escola, igreja e Estado, que, frequentemente, disseminam o modelo hegemônico sobre o que é normal ou anormal para a contribuição da ordem social. Entretanto, nesta “ordem”, normalmente alguns grupos são privilegiados, enquanto outros são inferiorizados.
Portanto quem detêm o poder político e econômico não pretende perder seus privilégios e, para isso, faze uso do aparato ideológico para manter a estrutura social no modelo que mantém sua posição de dominação sobre outros.
Isso acontece, por exemplo, em relação ao conceito, características e significados de mulher e homem em nossa sociedade. Somos ensinados que quem nasce com uma vagina é do sexo feminino e devem ser socializados como mulheres, enquanto quem nasce com pênis, devem aprender a ser homem. Essa associação, que durante tanto tempo foi vista como natural e disseminada pelas instituições sociais, atualmente começa a ser tensionada por estudiosos que irão defender que a própria biologia é uma construção cultural (MARILYN STRATHERN, 1992 apud CARVALHO, 2012), portanto não é natural ou imutável.
	Seguindo o modelo sexo-gênero (GAYLE RUBIN, 1975 apud CARVALHO, 2012), tão difundido ao longo dos tempos, a genitália determinaria o comportamento social das pessoas e também o papel que estas deveriam desempenhar nos seus contextos sociais. Podemos perceber que essa estrutura binária contribuiu para a dominação masculina e a opressão das mulheres.
	Alguns autores vão justificar que as mulheres estariam ligadas à natureza e à reprodução da família e do lar, enquanto os homens estariam atrelados à cultura, ao espaço público e ao sustento de suas famílias e lares, como se homens e mulheres estivessem limitados a apenas um destino estabelecido pela natureza.
Várias pesquisas em diferentes sociedades (MARGARETH MEAD, 2000 apud CARVALHO, 2012) contrapuseram este quadro, demonstrando que existem vários modelos sobre o que é ser homem ou mulher e nem sempre ligados à constituição biológica dos seres. Além disso, hoje se sabe que a maneira dicotômica de classificar o mundo em macho/fêmea, alto/baixo, mente/corpo, é apenas uma das possibilidades de entendimento, dentre várias outras, cada vez mais múltiplas.
Em relação especificamente às mulheres, que se constitui como uma minoria por não gozar de plena cidadania e respeito aos direitos humanos, foi justamente durante as revoluções liberais, que elas passaram a questionar sua ausência no grupo dos cidadãos. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, por exemplo, não incluía as mulheres. Desde o início da modernidade, as mulheres passaram a lutar por sua efetiva inserção na sociedade civil, reclamando seu direito de voto e também de poderem assumir cargos políticos.
A luta pelo direito do voto, quando da consolidação dos Estados democráticos no ocidente, se constituiu como a “primeira onda” na história oficial do feminismo – movimento acadêmico e ativista que atua em prol das mulheres. Posteriormente, com a industrialização e urbanização, as mulheres também passaram a se organizar para exercerem direitos iguais aos dos homens como o de ocupar o emprego que lhes desse vontade e ter a mesma remuneração que seus pares masculinos. Além disso, também passaram a questionar seus papéis sexuais enquanto apenas esposas, mães e responsáveis pelos afazeres domésticos, e a reivindicar por liberdade sexual, o que foi facilitado com a invenção da pílula anticoncepcional na década de 1950, a prática sexual não mais estaria atrelada somente à reprodução.
Enquanto ferramenta de produção de conhecimento científico, após o conceito de papéis sexuais, na década de 1980, a feminista estadunidense Joan Scott (1985) introduziu o conceito de gênero para estudar o caráter cultural dos papéis de homens e mulheres. Partindo dessa ferramenta analítica, muitas pesquisas foram desenvolvidas, mas  inicialmente  apenas chamando  atenção  para  as trajetórias sociais e dificuldades que as mulheres enfrentavam/enfrentam em seus cotidianos.
Depois, houve o entendimento de que a categoria gênero seria relacional, se trataria das relações sociais constituídas por homens e mulheres e suas peculiaridades. Nesse momento, surgem trabalhos que também interpelam e manifestam a existência de masculinidades e feminilidades no plural.
Isso significa que de categorias que antes foram determinadas biologicamente, homens e mulheres passaram a ser constructos sociais e, portanto, passíveis de mudanças, já que a cultura está em contínua transformação.
Além das recentes discussões sobre o caráter cultural da natureza, as perspectivas de feministas afro-estadunidenses, desenvolvidas pelos menos desde os anos 1960, juntamente com as abordagens de mulheres do “terceiro mundo”, passaram a ter maior visibilidade a partir dos anos 1990. Autoras como Angela Davis, Bel Hooks, Kimberlé Crenshaw, Chandra Mohanty e Lélia Gonzalez chamaram atenção para a heterogeneidade da categoria mulher, defendendo que as experiências e opressões variam de acordo com o lugar que determinada mulher ocupa e da sociedade em que está inserida. Desse modo, salientam que classe social, cor, orientação sexual e religião não podem ser entendidas de forma separada ou hierarquizada, pois, muitas vezes, atuam de forma simultânea nas trajetórias de diferentes mulheres. Então, levantaram críticas a respeito de apenas um discurso feminista, pautado nas experiências de mulheres, brancas, heterossexuais, norte-americanas e europeias.
Para enfrentar as desigualdades e violências que diferentes mulheres ainda enfrentam, os movimentos sociais, organizações não governamentais e partidos sensibilizam a opinião pública por meio de campanhas e protestos, visando o estabelecimento de leis de proteção e políticas afirmativas para que as mulheres possam ser respeitadas em seus direitos humanos e ocupem diferentes espaços sociais.
No Brasil, em 7 de agosto de 2006, foi sancionada a Lei Maria da Penha - Lei 11.340 (BRASIL, 2006) que visa criminalizar e punira violência contra as mulheres. Há também a Lei do Feminicídio – Lei 13.104 (BRASIL, 2015) – que classifica como crime os assassinatos cometidos em razão de serem mulheres.
1.4 A questão étnica racial
Para justificar a colonização, exploração e dominação de povos e países, os europeus ancoraram-se em teorias pseudocientíficas que abalizavam diferenças étnico-raciais enquanto desigualdades intelectuais e morais. Isto é, utilizaram a teoria da evolução das espécies desenvolvida por Charles Darwin (1809-1882) para explicar a manutenção e proliferação de certos tipos de animais e vegetais, e construíram a teoria da evolução social, pautando-se pelo argumento de que povos também deveriam passar por estágios evolutivos para progredirem. Iriam da selvageria, passando pela barbárie, até chegar na civilização, que seria a cultura ocidental europeia.
Assim, o argumento moralmente defendido para a colonização era de que os europeus iriam “civilizar” o novo mundo, enquanto uma “missão de ajuda humanitária”. Não é preciso adivinhar que para tal intento, no caso brasileiro, trataram como selvagens e bárbaros indígenas, africanos e seus descendentes. Era preciso tornar inferior estes grupos, juntamente às suas culturas e religiões, para que o projeto “civilizatório” desse certo. Com isso, foram aplicadas na sociedade brasileira teorias raciais que surgiram na Europa desde o século XIX, e pregavam a ideia de supremacia e pureza raciais. Então, além do genocídio da população indígena e a escravização de africanos, também foram postos em práticas políticas públicas para o embranquecimento da população, sob o argumento que o desenvolvimento da nação estaria diretamente relacionado com o fim da população negra e indígena.
Como você pode subentender, durante muitos séculos o conceito de cidadão brasileiro não incluía a população negra ou indígena. Por serem considerados “menos humanos” que os brancos, não eram reconhecidos como sujeitos dos direitos humanos, logo, o país vem perpetuando uma dívida com esses grupos, que podem ser considerados minorias, e que, infelizmente, apesar de alguns direitos já reconhecidos, continuam tendo que resistir aos efeitos da discriminação racial que estrutura a sociedade brasileira.
Surge, então, a pergunta: como consolidar a cidadania e a democracia plena em um país fundado na desigualdade social e no preconceito racial? A resposta passa por uma grande revolução em todas as esferas da vida social, com a prioridade dos direitos humanos universais. Com isso, poderemos pensar em nos desenvolvermos e constituirmos em um povo harmônico e miscigenado de fato, enquanto isso, ainda temos muita estrada pela frente.
1.4.1 Enxergando a sociedade brasileira
A década de 1930 ficou conhecida como o período em que surge a sociologia no Brasil. O início foi marcado por perguntas que buscavam entender a sociedade e a cultura brasileira, “afinal, o que faz o Brasil, Brasil?”. Nesse momento, surgiram obras importantes com o intuito de responder tal questionamento como “Casa Grande e Senzala” (FREYRE, 1992 [1933]), do pernambucano Gilberto Freyre (1900-1987), em que podemos perceber uma crítica à supremacia racial das teorias raciais do século XIX. O autor aborda a miscigenação entre europeus, africanos e indígenas como o traço central da sociedade brasileira, mas defende o que ficou conhecido como o “mito da democracia racial”, como se no Brasil não existisse conflitos raciais e todos os povos vivessem com respeito, igualdade e harmonia. Desse modo, o mito da democracia racial corresponde à ideia de que no Brasil não existem conflitos raciais e todos os segmentos sociais tem a mesma oportunidade de acesso a direitos, bens e serviços, ou seja, uma falácia.
Por décadas e mesmo nos dias atuais, o mito de que no Brasil não existem conflitos raciais ainda é disseminado quando se deseja discorrer sobre a sociedade brasileira. O problema é que ele mascara e invisibiliza a realidade de grupos brasileiros (negros e indígenas), contribuindo assim para a perpetuação de violências, desigualdades e segregações.
No Brasil, metade da população é negra ou não branca (SARAIVA, 2017), mas estes estão sub-representados nos locais de prestígio e poder da sociedade e hiper- representados nas profissões de menor valorização e remuneração, como o trabalho doméstico, de portaria e segurança. Ocupam os bairros menos valorizados, distantes do centro das cidades, muitas vezes, com falta de saneamento básico e serviços. Assim como as mulheres, a população negra ou não branca, sobretudo, mulheres negras, ganham menos que os homens brancos ao realizarem o mesmo serviço.
Os indígenas são os povos originários de nossas terras e bastantes heterogêneos, organizados em diferentes etnias, com língua e cultura próprias. De acordo com o censo de 2010 (BRASIL, 2012) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem aproximadamente 817.963 indígenas, falando 274 línguas distintas e divididos em torno de 305 povos.
É comum achar que eles fazem parte do passado, de uma cultura selvagem e que vivem apenas na Floresta Amazônica. Essas ideias etnocêntricas foram disseminadas durante a colonização justamente para colaborar com a exploração e dizimação dos povos indígenas e, atualmente, são usadas por empresários que visam o uso ilimitado das terras para fins privados e comerciais.
Como o número do censo em relação à diversidade nos mostra, os índios persistem e estão cada vez mais ocupando diferentes lugares na sociedade sem perderem suas identidades.
As culturas indígenas são parte constitutiva da sociedade brasileira, seja no vocabulário, nas práticas alimentares ou medicinais, e suas influências estão presentes no cotidiano de qualquer cidadão, bem como a influência das culturas africanas, europeias e, em menor medida, asiáticas. 
Como mecanismo para promover a igualdade de segmentos sociais historicamente discriminados, políticas públicas diferenciadas começaram a ser desenvolvidas, de ações afirmativas, com intuito de implantar mecanismo de cotas para que os grupos minoritários possam alcançar de maneira mais rápida igualdade de oportunidades nas sociedades.
	De acordo com a antropóloga Ana Paula Comin de Carvalho (2012), citando o etnólogo Carlos Moore Wedderburn (2005), diferentemente da ideia de que as políticas de ação afirmativa surgiram nos Estados Unidos, na década de 1960, no contexto da luta pelos direitos civis de afro-americanos, as ações afirmativas teriam sido originadas na Índia, já no pós-Primeira Guerra Mundial, quando as castas inferiores começaram a clamar por mais representatividade nas esferas de poder.
	Esse movimento teria se intensificado após a Segunda Guerra Mundial, com as lutas de independência dos países da África e Ásia, para então servirem como forte instrumento em busca de igualdade pelas mulheres norte-americanas e europeias, pelas populações negras diaspóricas (populações oriundas da África que se estabeleceram em outros lugares do globo), e também na América Latina.
Em especial no Brasil, as políticas de ação afirmativas, que visam resgatar a equidade de segmentos sociais de maneira rápida e eficaz, passaram a ter maior incidência a partir dos anos 2000, quando não apenas a representação feminina foi estimulada na esfera governamental, mas outras minorias organizaram-se na luta pela igualdade de direitos. Desse modo, atualmente existem cotas para diferentes grupos nas esferas da política, do trabalho e da educação. Porém, estão em risco quando grupos conservadores põem em cheque sua importância, como acontece em relação à política de cotas para negros e indígenas nas universidades brasileiras.

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