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Dissertação Mestrado Juliana II

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Universidade Estadual Paulista
 “Júlio de Mesquita Filho”
 Faculdade de Ciências e Letras de Assis
JULIANA PORTO VASCONCELOS
MARCAS DO “NOVO GÓTICO AMERICANO” EM WE HAVE ALWAYS LIVED IN THE CASTLE (1962), DE SHIRLEY JACKSON
ASSIS/SP
2022
Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho”
Faculdade de Ciências e Letras de Assis
JULIANA PORTO VASCONCELOS
MARCAS DO “NOVO GÓTICO AMERICANO” EM WE HAVE ALWAYS LIVED IN THE CASTLE (1962), DE SHIRLEY JACKSON.
Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras de Assis, para a Defesa de Mestrado em Letras (Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social)
Orientador: Prof. Dr. Francisco Cláudio Alves Marques
Assis/SP
2022
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar quero agradecer a Deus pela benção de ter conseguido forças para terminar essa dissertação em tempos tão difíceis.
Agradeço imensamente ao meu orientador, Prof. Dr. Francisco Cláudio Alves Marques, que além de um excelente amigo, foi de extrema importância para a realização desse sonho, antes mesmo da prova para ingresso na Pós-graduação. Obrigada por ter acreditado sempre na minha capacidade.
Aos meus pais, José e Margareth, por tudo que sempre fizeram por mim e pelos meus filhos, permitindo que eu chegasse até aqui.
Ao meu irmão Rafael e à minha irmã Giovana, agradeço o amor fraternal que nos une.
Aos meus filhos José Victor e Bárbara, agradeço o entusiasmo que eles demonstram em cada etapa vencida por mim e por serem pessoas do bem e tão especiais. Amo vocês além da vida.
Agradeço às minhas chefes e principalmente amigas, Cleide e Kelly. Não há palavras capazes de descrever a importância de vocês nesse caminho que percorri na pós-graduação, sem a amizade, a compreensão e os ensinamentos de vocês eu jamais teria chegado até aqui. Vocês são luz na minha vida.
Roberta Rosanelli, minha amiga querida e irmã postiça, muito obrigada por todo o apoio e pelas palavras de encorajamento sempre tão carinhosas.
Guilherme e Victoria, meus amados sobrinhos que só por existirem já fazem minha vida melhor.
José Maria, obrigada por acima de qualquer coisa ser meu amigo e me lembrar sempre da minha inteligência e capacidade. 
E por fim, obrigada a Shirley Jackson por ter sido uma mulher tão espetacular e ter escrito essa obra fantástica. Espero com este trabalho poder honrar seu nome.
(...) uma mulher bastante assombrada. Ela era uma senhora muito estranha e tinha todos os tipos de idéias muito estranhas. Ela viveu com muitos sonhos (...). Ela tinha todos os tipos de ideias sobre a vida e sobre as pessoas e sobre as coisas. 
 Roger Strauss on Shirley Jackson
A casa é o seu espaço, um lugar familiar e ao mesmo tempo fechado e protegido; (...) é o centro e o foco da ordem mundial. 
 
Yuri M. Lotman, Universe of the mind: A semiotic Theory of Culture.
VASCONCELOS, J. P. MARCAS DO “NOVO GÓTICO AMERICANO” EM WE HAVE ALWAYS LIVED IN THE CASTLE (1962), DE SHIRLEY JACKSON. Assis, 2022, p. 116. Dissertação (Mestrado em Letras) - Faculdade de Ciências e Letras, campus de Assis, UNESP- Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. 
Resumo
Nesta pesquisa pretendemos identificar e analisar as marcas do chamado “Novo Gótico Americano” na obra We have always lived in the castle (1962) (Sempre Vivemos no Castelo, Suma de Letras, 2017), da escritora americana Shirley Jackson (1916-1965). Além de procurar identificar as marcas do novo gótico presente no referido romance, procuraremos demonstrar que, embora seja herdeiro das produções góticas inglesas, geralmente fundadas no terror físico e no horror social, o gótico americano se diferencia daquele por centrar sua escrita no terror mental e no horror moral, segundo Frederick Frank (1968), especialmente por captar a irracionalidade e o caos de uma época ao desvelar o dark side da psique americana. Shirley Jackson escreveu diversas obras nas quais podemos encontrar elementos góticos, quase sempre histórias que, a priori, podem parecer algo do cotidiano de qualquer família americana da época. Mas esta obra surge particularmente quando Jackson havia retomado a escrita de romances, dando total ênfase ao papel da mulher na sociedade patriarcal do início dos anos 1960 na cultura dos Estados Unidos da América. Esta obra mostra, através dos elementos góticos, o que a dominação e alienação patriarcal podem fazer às mulheres.
Palavras-chave: We have always lived in the castle. Shirley Jackson. Novo Gótico Americano. Literatura Americana de Autoria Feminina. 
VASCONCELOS, J. P. MARKS OF THE SO-CALLED “NEW AMERICAN GOTHIC” IN THE WORK WE HAVE ALWAYS LIVED IN THE CASTLE (1962), BY shirley jackson. Assis, 2022, p. 117. Dissertation (Master´s degree in Comparative Literature -“Letras”) - Faculdade de Ciências e Letras, campus de Assis, UNESP- Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. 
Abstract
In this research we intend to identify and enumerate the marks of the so-called “New American Gothic” in the work We have always lived in the Castle (1962), by American writer Shirley Jackson (1916-1965). In addition to trying to identify the marks of the new gothic present in that novel, we will try to demonstrate that, although the work is heir to English Gothic productions, generally founded on physical terror and social horror, the American Gothic is different from that for centering his writing on mental and in moral horror, according to Frederick Frank (1968), especially for capturing the irrationality and chaos of an era by unveiling the dark side of the American psyche. Shirley Jackson wrote several works where we can find gothic elements, almost always stories that at first glance may seem like something from any American family of the time. But this work particularly arises when Jackson had resumed writing novels, placing full emphasis on the role of women in the patriarchal society of the early 1960s in US culture. This work shows through Gothic elements what patriarchal domination and alienation can do to women.
Keywords: We have always lived in the castle. Shirley Jackson. New American Gothic. American Literature Authored by Women. 
SUMÁRIO
	INTRODUÇÃO .................................................................................................
	
	CAPÍTULO I .......................................................................................................
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O GÓTICO ........................................
	
	1.1 Origens, características e principais autores.........................................
1.2 O romance gótico ..................................................................................
1.3 O Castelo de Otranto: o início da literatura gótica..............................
1.4 O gótico americano................................................................................... 
	
	
	
	CAPÍTULO II ...................................................................................................... 
	
	APRESENTAÇÃO DA ESCRITORA SHIRLEY JACKSON..............................
2.1 Nascimento e adolescência.......................................................................
2.2 A universidade.............................................................................................
2.3 O casamento e a maternidade....................................................................
2.4 Obras de Shirley Jackson..........................................................................
CAPÍTULO III......................................................................................................
WE HAVE ALWAYS LIVED IN THE CASTLE, A OBRA...................................
3.1 Sinopse da obra...........................................................................................
3.2 Recepção da obra........................................................................................
 
	
	CAPÍTULO IV………………………………………………………………………….
MARCAS DO “NOVO GÓTICO AMERICANO” EM WE HAVE ALWAYS LIVE IN THECASTLE……………………………………………………………… 
	
	4.1 A espacialidade e a casa como protagonistas....................................
4.2 A narrativa gótica e seus personagens................................................
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁGICAS.................................................................. 
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
INTRODUÇÃO
Uma escrita inquieta que internaliza as contradições sociais, psíquicas e morais da sociedade americana da década de 1960. Se essa constatação serve para caracterizar parte da produção literária da escritora norte-americana Shirley Jackson, concebida como pertencente ao “novo gótico americano”, esbarramos naquele pressuposto de Antonio Candido (2019) segundo o qual os fatores externos à obra acabam por influenciar os fatores internos, atuando sobre sua estrutura. Nessa esteira, entendemos, com Candido, que a obra literária se constitui como um fenômeno sociocultural, de modo que não pode ser percebida fora desse contexto.
Seguindo a mesma linha de raciocínio do crítico literário brasileiro, acreditamos que para uma compreensão da chamada escrita gótica de Jackson, faz-se necessário entrelaçar o texto com o contexto de produção da obra, haja vista que, segundo Candido, só podemos atingir a integridade da obra “fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra”, de modo que os fatores externos à obra sejam colocados ao lado da estrutura no processo interpretativo: “Sabemos, (...), que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno.” (CANDIDO, 2019, p. 13-14)
Partindo desses pressupostos apresentados por Candido, pretendemos demonstrar, ao analisarmos a obra We have always lived in the castle (1962), de Shirley Jackson, que fatores externos à referida obra, mais especificamente alguns aspectos sociais, morais e psíquicos da sociedade americana, acabam por se tornar elementos essenciais na construção da estrutura da escrita da autora, sem deixar de levar em consideração, é claro, o fato de que a autora parte de uma realidade que ela observa para criar outra realidade no plano da ficção, mas que não deixa de reverberar alguns ecos e reflexos daquela observada. 
Além disso, nesta pesquisa pretendemos inscrever o romance We have Always lived in the castle (1962) (Sempre Vivemos no Castelo), de Jackson, no denominado Novo Gótico Americano, bem como identificar e analisar as marcas desse gênero na obra objeto desta pesquisa. Pretendemos demonstrar ainda que, embora tenha recebido uma inegável contribuição das produções góticas inglesas, geralmente fundadas no terror físico e no horror social, o gótico americano se diferencia daquele por centrar sua escrita no terror mental e no horror moral, especialmente por captar a irracionalidade e o caos de uma época ao desvelar o dark side da psique americana, segundo Frederick Frank (1968).
Levando em consideração a afirmação de Martin e Savoy (1998), de que o Gótico Americano se apresenta como um campo discursivo em que o dark side americano se revela de modo recorrente, embora o otimismo do American Dream o mantenha por vezes reprimido, investigaremos possíveis fatores e acontecimentos históricos da década de 1960 americana que possam ter contribuído para a especificidade do gótico de Shirley Jackson. 
No Brasil ainda são escassos os estudos de crítica literária que contemplem a obra da escritora, no entanto, nossa pesquisa não pretende abarcar todo esse universo, de modo que focalizaremos muito especificamente a obra de 1962, na tentativa de associá-la ao novo gótico americano por meio da identificação e análise de suas marcas presentes na escrita da autora.
Para não dizer que não existem estudos sobre Jackson no Brasil, temos notícias de uma tese de doutoramento defendida em 2012 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, por Gustavo Vargas Cohen. Intitulada “Shirley Jackson´s legacy: a critical commentary on the literary reception”, a tese teve como objetivo central investigar a suposta invisibilidade de Jackson e seu status de escritora “esquecida”, acenando para o fato de que a alegada escassez de críticas avaliativas de seus trabalhos se constitui rótulos danosos porque contribuem para a falta de reconhecimento da autora pela crítica especializada. Como contraponto a tais incongruências, Cohen apresenta exemplos de intensa atividade cultural relativa à literatura de Jackson. Além da referida tese, Gustavo Cohen publica três artigos acadêmicos em 2011, tratando de algum aspecto específico da obra da autora: no n. 22 da revista Soletras, da UERJ, faz uma apresentação da autora no artigo “Shirley Jackson: uma apresentação necessária”; no n. 2 da revista Revell, da UEMS, publica “The vigil between literary life and death: the case of Shirley Jackson”, e procura apontar novos fatores que ajudaram a disseminar a crença no esquecimento da autora a partir de sua morte, em 1965; e por último, “Casting out demons: homage to Shirley Jackson”, no n. 43 da revista CadIL – Cadernos do Instituo de Letras da UFRGS, artigo em que procura destacar que a escritora continua, até hoje, influenciando outros autores em todo o mundo. Aqui, Cohen coloca que Jackson aceitou o rótulo de autora gótica e o levou adiante, “embora uma minoria de sua produção literária de fato traga elementos sobrenaturais ou temas góticos.” (COHEN, 2011, p. 201)
Além da referida tese e dos artigos publicados por Cohen, encontramos uma comunicação intitulada “A maldição da residência Hill – o protagonismo da Casa da Colina como organismo vivo: uma adaptação da obra de Shirley Jackson”, apresentada por Clarissa Paiva de Freitas no Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários, na UFC, em 2018, e publicada nos anais do evento naquele mesmo ano. Este foi o único trabalho acadêmico publicado no Brasil que mais se aproximou da nossa pesquisa, especialmente pelo fato de tratar de um aspecto do gótico na obra The Haunting of Hill House (A Assombração da Casa da Colina), da mesma autora. O trabalho pretendia analisar a construção da “personalidade” da residência Hill e como seu protagonismo influenciou e repercutiu diretamente na vida dos demais personagens envolvidos na trama.
Uma pesquisa mais demorada na internet nos levou a um último artigo que também explora aspectos do gótico na obra de Jackson: “O espaço e a assombração: o gótico de Shirley Jackson em The haunting of hill house”. Publicado por Isabelle R. de Mattos Costa em 2015, no n. 5 da revista Versalete, de Curitiba, o artigo se propõe a analisar os elementos góticos presentes no romance The Haunting of Hill House (2006), de Shirley Jackson, considerando que o estranhamento presente na obra parte principalmente de sua ambientação ameaçadora e dos acontecimentos sobrenaturais que ali se desenrolam.
Para o desenvolvimento desta dissertação, além da introdução, pretendemos elaborar quatro capítulos. No primeiro capítulo destacamos algumas das características gerais do gótico clássico, buscamos suas origens e enumeramos alguns dos autores mais prolíficos e obras representativas do gênero; listamos também a fortuna crítica sobre o gótico americano, elencando suas principais características; buscamos diferenciá-lo do gótico clássico inglês e listamos algumas obras que se destacaram no gênero. No segundo capítulo procedemos a uma apresentação da escritora norte-americana. No terceiro capítulo elaboramos uma sinopse da obra e no quarto e último procedemos à análise propriamente dita da obra We have always lived in the castle (1962), buscando nas entrelinhas características que nos permitissem inscrever a escrita de Shirley Jackson no chamado “novo gótico americano”. 
CAPÍTULO I
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O GÓTICO
1.1 Origens, características e principais autores
Uma das primeiras manifestações da arte gótica surgiu no Ocidente medieval por voltado século XII, e consistia em um movimento cultural e artístico predominantemente arquitetônico (Brasil Escola, 2021), a qual possibilitou a quebra de muitos paradigmas estilísticos e artísticos da época possibilitando, assim, muitas inovações nesse campo, como grande amplitude na altura das construções e novidades estruturais, como o arco quebrado (ogival), do contraforte e do arcobotante, fazendo com que o peso das paredes se tornasse menor, de modo a proporcionar maiores aberturas no interior das construções, deixando-as mais claras.
Existem várias versões para o surgimento do termo gótico tanto como estilo arquitetônico como gênero literário. De acordo com Julien Chapuis (2002), o termo gótico foi utilizado pela primeira vez por Giorgio Vasari, considerado o fundador da história da arte. Aos olhos desse autor e dos seus contemporâneos, a arte da Idade Média, especialmente no campo da arquitetura, se impunha como o oposto da perfeição, relacionando-a neste ponto com os godos, povo germânico que semeou a destruição na Roma Antiga em 410.
 Em seu Vasari Lives of the Artists (1568), Vasari destacou que a arquitetura gótica era “monstruosa e bárbara, completamente ignorante de toda e qualquer ideia vigente de razão e ordem” (VASARI apud GROOM, 2012, p. 13). Para o autor, qualquer obra posterior a Roma era gótica.
A opinião de David Punter, renomado estudioso do gênero gótico da Universidade de Bristol, apresenta, com relação à arte gótica medieval, muitas semelhanças com o pensamento de Vasari: 
Enquanto o clássico era bem ordenado, o Gótico era caótico; enquanto aquele era simples e puro, este era ornamentado e intrincado; enquanto os clássicos ofereciam um conjunto de modelos culturais a serem seguidos, o Gótico representava o excesso e o exagero, o produto da barbárie e do incivilizado. (PUNTER, 1996, p. 5 apud FRANÇA, 2016, p.2496)
A Catedral de Saint Gatien ou Catedral de Tours, na França, é um conhecido exemplo da arte gótica da Idade Média. Ao lado dessa catedral francesa, existe um rol de outras catedrais que ostentam esse mesmo tipo de arquitetura, embora muitas delas tenham sido construídas quando esse estilo já não mais se encontrava em voga. São elas: Basílica de Saint-Denis em Paris, França, Catedral de Sevilla, Espanha, Catedral de Colônia, Alemanha, Catedral de York, Inglaterra, Catedral de Milão, Itália, Catedral de Santo Estevão em Viena, Áustria, Catedral da Sé, em São Paulo. Mas, na verdade, quando esse gênero artístico era uma novidade, o termo gótico ainda não havia surgido e esse tipo de arte era chamada de “opus francigenarum” ou “obra francesa”.
Com o advento da Renascença e a retomada da admiração pela antiguidade clássica, a Idade Média passou a ser vista como a era da escuridão e por essa lógica a ligaram à barbárie, e como os bárbaros mais conhecidos que viviam na Europa naquela época eram os godos, cunhou-se o termo gótico como símbolo do obscuro, pejorativamente digno de desprezo.
Não só na arquitetura, como também em outros segmentos culturais, muitas vezes o gótico é considerado uma “arte menor”, não sendo levada em consideração a magistralidade com que reproduz a problemática de uma época. Talvez esse “preconceito” se deva ao fato de a arte em sua maioria aspirar pelo belo e, ao contrário disso, a marca do gótico é o grotesco, com doses de pura realidade, o que nem sempre agrada quem busca na arte ou na literatura, uma fuga.
O Gótico é um segmento bastante prolífico nas artes em geral, no entanto, muitos leitores leigos apreciam o gênero sem, contudo, se dar conta de que algumas obras literárias, e de que algumas produções das artes plásticas ou arquitetônicas pertencem ao gênero gótico.
1.2 O romance gótico
É impossível afirmar com certeza a data exata do surgimento dos primeiros textos com características góticas, e por isso nos baseamos em documentos históricos e nos acontecimentos que marcam o surgimento do primeiro romance considerado “puramente” do gênero gótico para termos uma ideia da gênese desse estilo.
O auge do gótico coincide com a Revolução Francesa, e o surgimento do romance gótico data da metade do século XVIII. Esse romance trazia inúmeras “novidades”, tanto na narrativa quanto nos temas abordados, o que fazia com que os romances góticos muitas vezes não fossem bem aceitos pelos admiradores da beleza da antiguidade clássica, uma vez que as mazelas humanas e sociais e o terror eram recorrentes nas tramas góticas.
Os temas eram quase sempre baseados no horror, no terror, nos desejos mundanos e no pecado; desnudavam o que a sociedade tinha de pior e para alguns leitores causavam repulsa face à possibilidade de a história narrada ser de alguma maneira real.
As características do romance gótico são bem peculiares. Nascido paralelamente ao neoclassicismo, o gótico alcançou seu objetivo primário que consistia em causar estranheza e até mesmo repulsa; o espaço físico das tramas era quase sempre o mesmo, o castelo, geralmente marcado pela presença de um “monstro
”. O elemento sobrenatural também se encontrava presente na maioria das tramas, seja na figura de um fantasma, do diabo, ou somente na imaginação das personagens. Segundo Michel Foucault (1980, p.65),
The language of terror is dedicated to an endless expense, even though it only seeks to achieve a single effect. It drives itself out of any possible resting place. Sade and the novels of terror introduce an essential imbalance within works of language: they force them of necessity to be always excessive and deficient
. 
Botting (1996) explica que o gótico significa uma escrita de excesso, a qual aparecia na terrível obscuridade que assombrava a racionalidade e a moralidade do século XVIII; assombrava os desesperados êxtases do idealismo romântico, o individualismo e as misteriosas dualidades do Realismo vitoriano decadente. Atmosferas góticas – sombrias e misteriosas - evocavam emoções de terror e risos. No século XX, de maneiras diversas e ambíguas, as figuras góticas continuaram a obscurecer o progresso da modernidade com contra narrativas, exibindo o lado negro do Iluminismo e dos valores humanistas. (BOTTING, 1996, p.1)
As narrativas góticas sempre tiveram características segmentadas e sinuosas, mas que se relacionavam entre si. No enredo, os elementos recorrentes, como a atmosfera de mistério, monstros, demônios, imagens horripilantes, e até mesmo monges e freiras, podiam ser imaginários ou reais, dependendo do estilo de cada autor.
No gótico do século XVIII os cenários eram compostos por castelos labirínticos e frios, geralmente afastados do povoado e amaldiçoados, estradas desertas ou florestas enfeitiçadas. Já no século XIX houve algumas mudanças nas características das personagens e na ambientação; os castelos deram lugar às casas abandonadas, bares com frequentadores violentos; as estradas deram lugar às ruas desertas e becos de bairros mal frequentados de cidades como Londres e Paris; as personagens passaram a ser mais “reais”: cientistas obcecados pela vida pós-morte, maridos abusivos e infiéis e algumas vezes com idade bem mais avançada do que a da esposa, pais violentos e dominadores, sinônimo da sociedade patriarcal e até mesmo irmãos ávidos pelo controle total de alguma grande herança.
Todas essas personagens descritas acima, facilmente podem se tornar protagonistas de um romance gótico, visto que a ganância e maldade humana também nos convertem em “monstros”. 
Para Botting (1996), o gótico, de alguma maneira, sempre refletiu a época histórica em que as obras desse segmento foram criadas, permitindo que a imaginação e a emoção excedessem a razão. Talvez tenha sido justamente por esse motivo que as obras góticas sempre encontraram certa resistência dos críticos e alcançaram tanto sucesso entre as pessoas mais “comuns”, pois mostravam a fragilidade humana, das instituições políticas e religiosas, colocavam em xeque as crenças e transgrediam as regras pré-estabelecidas.
“The Graveyard Poets
” ou "Churchyard Poets
", foi também, assim como o gótico, uma corrente literária indefinida,e pode se citada como uma fonte inspiradora do romance gótico, pois essa escola era composta por poetas pré-românticos e os temas recorrentes nas obras desses poetas era a morte, a solidão, a noite, a vida pós-morte, os mistérios do plano físico e do metafísico. Outra característica que esse movimento compartilha com o gótico é a questão de muitos críticos terem tecido poucos comentários positivos sobre tais poetas e seus poemas. Alguns críticos chegaram a afirmar que eles eram uma doença (REED, 1924), mas isso não era unanimidade, principalmente sobre Edward Young. Isabell St. John Bliss reconhece a capacidade de Edward Young de escrever sua poesia no estilo da Graveyard School e, ao mesmo tempo, incluir temas cristãos. Cecil V. Wicker chamou Young de um precursor do movimento romântico, descrevendo seu trabalho como original. Alguns outros nomes conhecidos desse movimento foram absorvidos intensamente pela escrita gótica (BOTTING, 1996, p.32).
Eric Parisot afirmou que o medo é criado como um incentivo à fé e que na poesia do cemitério, "(...) é somente quando restauramos a religião - para examinar as várias maneiras pelas quais a poesia do cemitério explorava o medo e a melancolia - que podemos compreender plenamente sua contribuição duradoura para o gótico...” (PARISOT, 2019). Há também críticos que suscitam a possibilidade desses poetas terem sido influenciados por Milton e seus versos meditativos, conforme observou WL Phelps (Apud. HUFF, 1912, p.65): “não tanto na forma como no pensamento que Milton afetou o movimento romântico; o amor pela melancolia confortável meditativa - que penetrou mais profundamente na alma romântica”. 
A grande diferença entre as obras dos Graveyard poets e os autores góticos, é que os primeiros escreviam sobre temas transcendentais ou até mesmo sobrenaturais, mas com o intuito de causar reflexão e não medo, enquanto os autores góticos cultivavam o grotesco, absurdo e assustador.
A teoria literária critica e cultural passou por reexame e as obras góticas passaram de obras marginalizadas, senão esquecidas pelos cânones como curiosidades na história da produção e do consumo literário, a mudança nos valores e nas perspectivas das teorias recentes, que alteraram significativamente as atitudes em relação aos textos góticos. Ao desafiar as hierarquias de valor literário e ampliar os horizontes do estudo crítico para incluir outras formas de escrita e validar diferentes questões culturais e históricas, a crítica recente moveu textos góticos de locais anteriormente marginalizados designados como ficção popular ou excentricidade literária. O questionamento dos limites da critica recente é altamente apropriado para estudos de textos góticos, segundo Botting. (1996, p.11).
No início do século XX, mais precisamente nos anos de 1920, o gótico era estudado como um subgênero, como parte de estudos do surgimento do romance e suas nuances, mas então Michael Sadleir, editor britânico, colecionador de livros e biográfo, se interessou mais profundamente pelo gênero ao tomar conhecimento da lista de “romances horríveis” que faziam parte do enredo da obra Northanger Abbey, de Jane Austen (1818). 
A obra de Austen foi muito bem aceita, mesmo à época de sua publicação, talvez pelo estilo utilizado pela autora em que parodia os romances góticos e também por ter sido classificada como romance de aprendizagem, quando a personagem principal passa pelo amadurecimento pessoal no decorrer da trama.
Como parte da ironia da escrita de Austen, a obra conta com uma lista dos “romances mais horríveis ou horripilantes” que a personagem Isabella indica à amiga Catherine. (BOTTING; TOWNSHEND)
Os romances em questão foram formalmente identificados em 1927 por Michael Sadleir e reeditados em 1968 The Folio Society sob o título The Northanger Set of Jane Austen Horrid Novels
. (AUSTEN; BENEDICT; LE FAYE). São eles: 
· The Midnight Bell (1798), de Francis Lathom;
· The Castle of Wolfenbach (1793), de Mrs Eliza Parsons;
· Clermont (1798), de Regina Maria Roche;
· The Mysterious Warning – que é chamado erroneamente de Mysterious Warnings por Isabella Thorpe (Waldron) – (1795), de Mrs Eliza Parsons.
· The Necromancer; or The Tale of the Black Forest (1794), de Karl Friedrich Kahlert;
· The Orphan of the Rhine (1798), d'Eleanor Sleath;
· Horrid Mysteries (1796), de Karl Grosse
Alguns outros estudiosos, como Edith Birkhead, JMS Tompkins, Montague Summers e Devandra Varma, se interessaram pelo estudo de textos góticos, mas não pelo conteúdo deles em si, mas pela possibilidade de comparação, já que os textos góticos eram vistos como oposição ao racionalismo e ao realismo. Dentre eles, foi provavelmente Devandra Varma (1923-1994) quem mais se aprofundou no estudo dos textos góticos ao ponto de ser reconhecido academicamente como um expert no assunto. Ficou muito conhecido por lançar The Gothic Flame
: uma história do Romance Gótico na Inglaterra e The Evergreen Tree of Diabolical Knowledge
, e por disponibilizar centenas de contos góticos. (SAXON, 1994). 
Enfim, há inúmeros trabalhos de pesquisa e crítica dos textos góticos, cada um com sua particularidade e forma, mas uma coisa é certa, o redescobrimento das obras góticas tem finalmente as colocado no seu devido lugar na história da literatura.
1.3 O Castelo de Otranto: O início da literatura gótica
Pode-se dizer que obra O Castelo de Otranto (1764), de Horace Walpole, inaugura a literatura gótica no século XVIII na Inglaterra. As características mais marcantes dessa literatura são: o arrependimento ou falta dele por algum ato macabro ou criminoso cometido no passado, deformidade física, sede de poder financeiro ou psicológico sobre os demais, fantasmas, monstros reais ou imaginários, bruxas, demônios, sexualidade deturpada, abusos físicos, diminuição da mulher a mero objeto de desejo e principalmente loucura extrema com perda da noção de realidade.
Ainda que a obra de Walpole tenha inaugurado a literatura gótica propriamente dita, podemos ponderar o que destaca Bakhtin (1982), que afirma que gênero, mais do que qualquer coisa é uma categoria sócio-histórica variável, assim muitas outras características devem ser levadas em conta a datação baseada em apenas uma obra para determinar o início ou o término de algo tão vasto. Como exemplo disso, podemos citar o fato de o termo gótico já ser conhecido desde a época de Shakespeare, mas não consolidado, ou que alguns estudiosos não consideram a obra Jane Eyre de Charlotte Brontë como do gênero gótico, a julgar pelo momento histórico, e sim romance de formação.
Uma das personagens marcantes do gótico é o vilão ou a vilã, que tem suas formas bem definidas, tornando seus atos na maioria das vezes impossíveis de redenção. Assim, podemos supor que o gótico já apresentou suas características peculiares em obras e em épocas em que não havia maneiras de classificá-las como tal, pelo fato de o termo ainda não ter ainda sequer surgido.
Segundo Arán (2014, p. 74-77), o gótico inicial contém as chaves para o desenvolvimento posterior que a narrativa da fantasia e outras formas de ficção inusitadas irão se desenvolver em múltiplas direções, como uma atitude diferente de perceber a realidade e suas leis.
Mas assim como Arán acredita que o gótico inicial gerou mudanças e perpetuou o gênero, é certo que a modernização dos temas não deixou de ser pautada no grotesco, no terror e no horror.
Ariovaldo Vidal, no prefácio da tradução brasileira de O Castelo de Otranto, fez a seguinte observação: “(...) como todo gênero, suas raízes estavam espalhadas pela história literária e social, esperando que alguém as recolhesse e criasse a nova forma” (VIDAL, 1994 p. 7).
Em um artigo de 2014 para a revista literária SOLETRAS, Aparecido Donizete Rossi faz considerações muito interessantes sobre o gênero gótico, baseadas na afirmação de Ariovaldo Vidal: O gótico se sustenta, contamina e se dissemina na literatura, nas demais artes, na cultura e na história por meio da atemporalidade das Trevas (ROSSI, 2014, p.12).
Rossi afirma ainda que provavelmentea obra literária gótica mais antiga que se tem conhecimento, possa ser encontrada no canto XI da Odisséia de Homero, denominado Nekyia, de Odisseu, apresentando elementos como rituais de necromancia, adivinhação, bruxaria e uma aura sobrenatural.
Levando em consideração que George E. Haggerty (1989, p.11) afirma que o termo gótico na sua primeira aparição no âmbito literário não se referia apenas ao espaço, mas também à configuração e trama central, podemos dizer que Rossi não está equivocado quando afirma que Nekyia poderia ser classificada como uma obra gótica se estivesse inserida em outro contexto histórico. 
Quando de seu surgimento, a literatura gótica foi alvo de críticas pesadas, especialmente por ser considerada como um tipo de leitura que desvirtuava seus leitores, dando espaço para pensamentos e ideias pouco apropriadas aos moldes da sociedade da época. Houve um período, no século XVIII, que chamar alguém de gótico poderia causar sérios problemas, pois muitas vezes a expressão era entendida com conotação negativa, pois remetia ao medo da Revolução Francesa, ao Jacobinismo, ocultismo, medo de sociedades secretas, nacionalismo conservador inglês, anticlericalismo, e tantos outros dilemas da sociedade da época que poderiam se fazer entender como favorável ou contrário quando alguém “xingava” o interlocutor de gótico.
Em seu livro Gothic, Fred Botting (1996) reproduz, em forma de epígrafe, um excerto de uma crítica publicada em 1796 no The British Critic, 7, p. 677, que define muito bem como a literatura gótica era e ainda é, muitas vezes, interpretada como “literatura marginal”:
Lust, murder, incest, and every atrocity can disgrace human nature, brought together, without the apology of probability, or even possibility for their introduction. To make amends, the moral is general and very practical; it is, “not to deal in witchcraft and magic because the devil will have you at last !!” We are sorry to observe that good talents have been misapplied in the production of this monster. 
 (BOTTING, 1996, p. 21)
Segundo Botting (1996), moralidade e monstruosidade são as marcas registradas do gótico do século XVIII, e justamente a falta do primeiro e excesso do segundo aos olhos dos críticos britânicos, fazia com que a literatura gótica fosse tão duramente “combatida”, mas ainda e apesar disso Horace Walpole e Ann Radcliffe receberam críticas favoráveis e aprovação popular, mas sendo minoria entre os autores desse gênero entre os anos de 1790 e 1810.
Grande parte da rejeição ao estilo gótico provinha do domínio que os escritores clássicos da cultura greco-romana ainda exerciam no século XVIII. A estilística dos autores dessa corrente literária prezava o belo e o harmônico, exaltando a beleza física acima do intelecto. As obras desse segmento literário eram tidas como uma espécie de fuga da vida cotidiana, sempre amparando suas tramas em feitos heroicos quase sempre irreais para seres humanos comuns. Já a literatura gótica vinha em sentindo contrário, mostrando o quanto os seres humanos podiam ser falhos e mesquinhos, que muitas vezes o belo exterior escondia uma alma suja e podre, que a vida real, diferentemente do que ocorre em um “conto de fadas”, às vezes punia os bons e premiava os maus. Esses aspectos, aliados ao fato de a personagem central não ser um herói, causava estranheza e repulsa pela literatura gótica por parte daqueles que buscavam nas obras literárias clássicas uma forma de alienação do seu mundo real.
Vários críticos do século XVIII tentaram descaracterizar as obras góticas produzidas no período, inclusive se utilizando de afirmações inverídicas para provar que as produções do gênero nada tinham de inovadoras e que não passavam de “cópias” obscuras de romances medievais de cavalaria, quando na verdade o que se tinha em mente era desqualificar tais obras impedindo que se tornassem populares, pois afirmavam que esses trabalhos eram sem serventia uma vez que eram fantasiosos demais e sem nenhum propósito útil ou moral.
Mesmo na contramão do Romantismo, o gótico não perdeu lugar como aparentava, mas foi relegado a espaços interiorizados seja no gosto de leitores bem particulares, como nas esferas em que se discutiam e analisavam as obras literárias. A verdade é que em nenhum momento o romance gótico deixou de perturbar, tanto pelas tramas e narrativas quase sempre obscuras da psique humana, como pelo público cativo que tinha arrebanhado e que os críticos romancistas não conseguiam persuadir a que enxergassem que a leitura desse tipo de romance era total perda de tempo.
Por mais que houvesse inúmeros e claros esforços para desmerecer e descaracterizar o movimento gótico como gênero literário, este passou a despertar cada vez mais interesse dos leitores amantes afeitos ao gênero terror. Em contrapartida, levantou-se certa corrente crítica por parte de estudiosos que tentava entender a real motivação dos escritores do gênero, algumas vezes até suscitando teorias da conspiração, afirmando que alguns sofriam de sérios problemas psiquiátricos e que as personagens criadas por eles eram fruto dessa loucura. Apesar dessas controvérsias, ainda que tenha havido períodos menos prolixos na literatura gótica, desde seu surgimento o estilo nunca deixou de ter escritores e obras que o representasse, em algumas épocas com mais e em outras com menos intensidade.
A literatura gótica é também chamada de “Art of Dakness”, haja vista que os aclamados escritores góticos possuem uma característica única de conseguir transpor para suas personagens a loucura tão palpável, mas, ao mesmo tempo, escondida da psique humana; até mesmo o “herói”, no âmbito gótico, é passível de atitudes pouco admiráveis, pois nas tramas do gênero ninguém é inteiramente bom ou mau; tais heróis acabam por enfrentar os mesmos fantasmas interiores e as mesmas lutas de todos.
O gótico inglês, ao contrário do gótico americano, sempre foi mais pautado na existência de um “monstro”, ou uma criatura sobrenatural que de alguma forma arrebatava o ser humano e o impelia a atos pouco respeitáveis ou aceitos pela sociedade, culminando às vezes até mesmo em crimes horríveis como desfecho das tradicionais tramas góticas.
No final do século XIX, mais precisamente nos anos de 1890, a literatura gótica retorna com força total ao criar a figura de um monstro que não era totalmente ruim e ao trazer de volta todo o fascínio que o ser humano sempre teve pela figura do vampiro. Naquela década surgiram duas obras góticas que marcaram o ressurgimento do gótico com força total: The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde (1886), de Robert Louis Stevenson, e Drácula (1897), de Bram Stoker.
Essas obras se tornaram grande sucesso de público, pois apesar de adotarem a ambiguidade do gótico, a eterna luta entre o bem e o mal, e a colocarem novamente em cena o tão característico monstro do gótico inglês, essas obras continham certa atmosfera moralizante, pois as duas personagens centrais dispunham de um lado bom e um lado mau. Apesar da atmosfera gótica, nas duas tramas, há uma lição de crime e castigo, como se no primeiro a transformação do protagonista em um monstro fosse uma espécie de castigo pela ambição moral desmedida e prepotência em pensar que pudesse aniquilar seu lado ruim e se tornar alguém melhor que qualquer outro ser humano que dispunha de bondades e maldades na alma e no coração, e no segundo, a personagem central, por mais aterrorizante que fosse seu poder e sua maldade, nutria um amor romântico pela personagem Mina, mas, ao final, o amor do casal central da trama acaba por vencer a maldade e o desejo insaciável do Conde Drácula. As referidas obras marcaram muito a literatura gótica pela grande repercussão que teve entre os críticos da época e até nos dias de hoje; no último século foram reproduzidas no teatro e cinema inspirando até mesmo personagens de grandes franquias cinematográficas.
Bram Stoker, autor de Drácula, não inventou o mito da criatura vampiresca, mas foi a sua obra que a popularizou. Apesar de sua imensa popularidade, o sucesso devendas não foi automático, mas o de críticas sim. O Daily Mail o classificou na época como superior a Mary Shelley e Edgar Allan Poe. Já no caso da obra The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, a narrativa se popularizou de tal modo na Inglaterra que ainda atualmente se usa a expressão Jekyll and Hyde, para descrever pessoas que reagem de maneira não habitual em certas ocasiões.
De acordo com Botting, o lugar de perpetuação dessas duas obras góticas foi o cinema, os vampiros da década de 1930, Jekylls e Hydes, Frankensteins e monstros tronaram-se populares nas telas em uma variedade de formas, desde o seriamente sinistro para o cômico e ridículo. Sua popularidade, assim como s forma como eles passaram a refletir as ansiedades culturais, os localiza fora do verdadeiro locus gótico. (BOTTING, 1996, p.8 e 9)
Ainda segundo Botting, na tela assim como em certos romances, as narrativas góticas exibem um aspecto literário ou autoconsciente mais sério, ecoam as preocupações sobre a narrativa embutida na escrita gótica desde seus primórdios, as preocupações sobre limites, efeitos e poder de representação na formação de identidades, realidades e instituições. Os dispositivos góticos são todos sinais da superficialidade, engano e duplicidade de narrativas e imagens verbais ou visuais. Em um século em que as pessoas se tornaram cada vez mais céticas sobretudo, essas poderosas ficções novas ou familiares, surgem para representar a dissolução de toda ordem e a impressão é de que não há saída do labirinto. (BOTTING, 1996, p.9)
A dicotomia tão recorrente em alguns segmentos literários não é característica da literatura gótica, haja vista que o gótico vai além. Nele, observa-se que as relações humanas são complexas e que não se restringem simplesmente ao bem e ao mal; a psique humana é muito mais complexa, pois o homem é ao mesmo tempo um ser social e solitário nos seus dramas interiores. Assim, na literatura gótica, assim como na realidade, nada é exatamente como parece ser.
Com o advento da psicanálise as tramas góticas tomaram força no século XX e passaram a ser vistas como um retrato da sociedade e não somente como um meio de entretenimento. Pode-se dizer que com esse avanço no entendimento do homem como ser social e emocional, a literatura gótica ganhou outra roupagem, dando suporte ao surgimento do Novo Gótico Americano.
Cronologicamente, a maior parte dos teóricos ignora o gênero gótico, tomando por certo a passagem da escola neoclássica para a romântica, ignorando o surgimento do movimento gótico, mas, apesar dessa tentativa de ignorar as produções do gênero, o movimento gótico continuou ganhando espaço cada vez mais na literatura, cinema e televisão. Ainda assim, alguns estudiosos afirmam, até os dias atuais, que o romance gótico é uma literatura reconhecível como tal, mas que não chega a constituir um gênero literário.
Eis alguns autores e obras da Literatura Gótica:
Romances Góticos (Clássicos)
Horace Walpole - The Castle of Otranto (1764) 
William Beckford - Vathek, an Arabian Tale (1786) 
Ann Radcliffe - The Mysteries of Udolpho (1794) 
William Godwin - Caleb Williams (1794) 
Matthew Gregory Lewis - The Monk (1796) 
Ann Radcliffe - The Italian (1797) 
Regina Maria Roche - Clermont (1798) e The Children of the Abbey (1796)
Percy B. Shelley - Zastrozzi (1810) 
Mary Shelley - Frankenstein (1820) 
Charles Robert Maturin - Melmoth the Wanderer (1820)
Romances Góticos (Segunda fase)
Jane Austen - Northanger Abbey (1818) 
Thomas Love Peacock- Nightmare Abbey (1818) 
Sheridan Le Fanu - Carmilla (1872) 
Robert Louis Stevenson - The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde (1886) Oscar Wilde - The Picture of Dorian Gray (1891) 
Bram Stoker - Dracula (1897) 
Henry James - The Turn of the Screw (1898) 
W.W. Jacobs - The Monkey's Paw (1902) 
Cronologia da crítica literária do gótico
Edith Birkhead (1921) The Tale of Terror.
Howard Philip Lovecraft (1935) The supernaturanl horror in literature.
Montague Summers (1938) Gothic Quest.
Devendra Varma (1957) The Gothic Flame.
Victor Sage (1985) Horror Fiction in the Protestant Tradition.
David Punter (1996) The Literature of Terror.
Maggie Kilgour (1995) The Rise of the Gothic Novel, Routledge.
Fred Botting (1996) Gothic, Routledge. Publicado no Brasil como O horror sobrenatural na literatura.
1.4 O gótico americano
Em 1930 o artista plástico Grant Wood pintou a obra American Gothic, apesar de a sua inspiração ter sido simplesmente uma janela em estilo arquitetônico gótico em uma casa bem simples, fazendo-o achar o fato curioso, esta obra se tornou seu maior sucesso profissional e representa muito bem, sem o uso de palavras, a essência da literatura gótica americana.
 DETALHE | American Gothic | Grant Wood | 1930
Nosso objeto de estudo são os textos literários góticos, mas Wood conseguiu capturar nessa tela a típica família americana. Se fôssemos analisar esta obra, teríamos talvez tantos elementos a descobrir quanto num romance gótico. A tela foi utilizada por nós como exemplo para esclarecer que assim como vamos discorrer sobre esta questão, o gótico americano encontra seu tropo de terror nos lugares mais inesperados.
Em um primeiro olhar, a tela de Wood pode até parecer plácida, calma, mas nos detalhes ela esconde o horror que não necessita de nada sobrenatural, além do que já está dentro de cada ser humano.
“Anna Williams propõe que em primeiro lugar o gótico é uma tradição poética, em segundo lugar, “gótico” e romântico” não são dois, mas um e terceiro “gótico” não é um, mas dois, como a raça humana, tem um gênero masculino e feminino (WILLIAMS, 1995, p.1)
A própria Anne Williams concorda que essas afirmações se contrapõem entre si, mas acredita ser um meio de se desvencilhar das premissas que a crítica profissional do gótico lançou há mais de um século. Nessa linha de raciocínio, pensarmos o gótico americano seria impossível saber em quantos ele se divide e com quantos outros gêneros se mescla, uma vez que os textos do gótico americano mostram suas características mais sutilmente que o tradicional gótico europeu. Segundo Williams, os críticos do gótico preferem fingir que o romance gótico é um “esqueleto” morto no armário; para os apologistas do realismo, essa estratégia é útil. (WILLIAMS, 1995, p.2)
Esses mesmos críticos continuam a ser atormentados por ocorrências com Stephen King permanentemente constando da lista de “best-sellers
”. E para minimizar o sucesso que o gótico continua fazendo fora dos muros onde residem os cânones, eles o descaracterizaram e passaram a nomeá-lo como ficção popular.
A definição de American Gothic
 parte do pressuposto de que existem diferentes declinações do gótico, concebido não só como gênero literário de acordo com o contexto geográfico, pois há estudiosos do gênero que o definem em termos nacionais, ou seja, com características distintas em cada país onde foi e tem sido cultivado. Desde o estudo de Richard Chase, The American Novel and its Tradition (1958), até uma das mais recentes pesquisas sobre o tema, especialmente a de Allan Lloyd-Smith, American Gothic: An Introduction (2004), a crítica vem pensando o gótico americano em termos comparativos, sublinhando as diferenças entre a literatura americana e a europeia, sobretudo a inglesa, chamando a atenção principalmente para as origens da literatura americana, fortemente enraizada em solo nacional; e ainda para suas características, claramente originais e nacionais. 
Em sua teoria do romance americano, Richard Chase (1958) compara a literatura americana clássica com o romance realista inglês de Fielding, Austen, Elliot, concluindo que o romance americano “is obviously a development from the English tradition” 
 (CHASE, 1958), no entanto, assevera que, enquanto o romance realista inglês é uma forma mimética de ficção que reflete a visão de mundo dominante, a narrativa clássica americana é marcada por “a profound poetry of disorder” 
, caracterizada por manifestações radicais de alienação e contradições, dominantes na cultura e na sociedade americana do século XIX.O gótico americano se caracteriza pelo Das Unheimliche (Sigmund Freud), o inquietante, o estranho familiar, o que causa repulsa, mas, ao mesmo tempo, atrai, é o racional vs o irracional, noção que remete ao medo do povo americano quanto à mistura de raças e ao mesmo tempo à culpa pela escravidão; ao medo da decadência urbana e social, culminado no sentimento pós-guerra que bem caracteriza as obras recentes desse segmento literário. Analisando etimologicamente o termo Unheimliche, Freud (2010) explica que o adjetivo composto, formado pelo prefixo de negação Um + Heim (casa, lar, doméstico), apesar do sentido ambíguo que encerra, pode coincidir com o seu contrário, Unheimlich, dando suporte à hipótese psicanalítica que relaciona o estranho àquilo que nos parece mais intimamente familiar. Em suma, em se tratando do gótico americano, o termo freudiano parece expressar as contradições da sociedade americana, os seus medos e complexos mais arraigados na psique e que a escrita do gênero em estudo dá conta de (des)organizar. 
Na base dessa poética da desordem e da estranheza, Chase enxerga o mito da história americana e de suas origens revolucionárias, que encontra reflexo na falta de ordem e de “normative reality” 
 nos personagens e na descrição dos ambientes, numa clara alusão ao caráter extraordinariamente imaginativo da empresa americana relativamente à conquista do território hostil e à construção de uma nação, de um sonho para o qual não basta uma estética realística e mimética como a inglesa, por exemplo. Assim, Chase destaca que a literatura americana se agarra firmemente a terra, “feels free to render reality in less volume an detail”, “tends to prefer action to character, and action will be freer in a romance than in a novel, encountering, as it were, less a resistance from reality” 
; suas personagens são “two-dimensional types” 
, com funções “abstract or symbolic” 
; seus “astonishing events” 
 têm “a symbolic or ideological, rather than a realistic plausibility” 
; enfim, a literatura americana prefere o fantástico, embora revele, em muitos aspectos, uma estreita ligação com o gótico europeu, como bem observou Lloyd-Smith (2004, p. 28): “because the first substantial American efforts coincided with the great period of British and European Gothicism, American fiction began in a Gothic mode” 
. 
Assim como Chase, Irvin Malin (1962) categoriza também essa corrente literária americana como “the poetry of disorder” 
, especialmente pelo fato de os escritores góticos centrarem suas escritas nas perturbações psicológicas e nas questões existenciais de personagens com identidades distorcidas, narcisistas, que vivem em um ambiente familiar instável que os faz se afastarem do mundo social.
O gótico, em sua essência, se alimenta da natureza paradoxal do ser humano, negando de certa forma os mitos sobre o qual a América foi fundada. Teresa Brennan (1991) caracterizou nossa época como “the age of paranoia”, o que de certo modo explica o crescimento do interesse pelas obras góticas, sejam elas as clássicas do gótico inglês, ou as mais contemporâneas do gótico americano.
Charles Brockden Brown (1998) constata que o gótico americano nasceu das condições reais do país (EUA), ou seja, o gótico se tornou um modo de entender e articular o mundo em que vivemos, não se restringindo simplesmente a um conceito de literatura.
À maneira de outros estudiosos do gênero em discussão, Maria Antónia Lima (2017, p. 11) sublinha que, embora tenha recebido influências do Gótico inglês, o Gótico americano não se limita a uma mera presença da Europa nos EUA, haja vista que sua escrita expressa as condições reais da sociedade americana. Em seu The Modern American Novel (1992), Malcolm Bradbury assinala que esta particularidade do Gótico americano pode ser caracterizada como “generally dark and destructive and, as in good Gothic, they impose terrible pressures on mind, logic, and human sensitivity” 
 (BRADBURY, 1992, p. 253). 
Maria Antónia Lima aponta como uma das principais obras deste gênero literário na América o Carpenter´s Gothic, de William Gaddis, o qual, segundo a autora, “demonstra ser o Gótico talhado em moldes genuinamente americano”, especialmente por se tratar de um romance “com uma estrutura que se poderá chamar home-made, e que o autor talhou, como um carpinteiro, a partir de materiais de origem nacional, captando a irracionalidade e o caos de uma época, ao desocultar o dark side da psique americana.” (LIMA, 2017, p. 11)
Partindo da premissa de que o Gótico americano reelabora no plano da ficção os desejos e anseios reprimidos da sociedade, Eric Savoy (2002) salienta que a grande maioria dos autores góticos (re)apresentam os anseios reprimidos de seus ancestrais negros, revelando “the enduring appeal of the Gothic to our most continuous fears, especially in an America haunted by the dark recesses of its own history.” 
 (SAVOY, 2002, p. 187)
Nesta mesma direção seguem os estudos realizados por Teresa Goddu, reunidos em Gothic America (1997):
American gothic literature criticizes America’s national myth of new world innocence by voicing the cultural contradictions that undermine the nation’s claim to purity and equality. Showing how these contradictions contest and constitute national identity even as they are denied, the gothic tells of the historical horrors that make national identity possible yet must be repressed in order to sustain it. 
 (GODDU, 1997, p. 10)
Goddu (1997, p.12) aborda ainda o gótico americano em termos sociais e não psicológicos, sublinhando o fato de que o gótico americano está assombrado pela ideia de “raça”, uma vez que o termo gótico reafirma raízes raciais dessa “blackness of darkeness” do romance americano. Goddu considera alguns grupos marginais e certas regiões como três categorias cruciais do gótico americano: o feminino, o Sul e o afro-americano, identificando, desse modo, dualidades de objetivos nesse gênero literário na América. No entanto, essa linha de raciocínio não se configura a única vertente do gótico americano. Maria Antónia Lima observa que a discussão em torno do Gótico americano é mais ampla, haja vista que o papel do Gótico na América tem sido predominantemente paradoxal, especialmente por ter surgido em um país “fundado pelos princípios de liberdade e felicidade recebidos do Iluminismo, ao passo que o seu objetivo foi o de dar expressão a impulsos irracionais reprimidos e a fatores violentos que determinaram a sua herança histórica.” (LIMA, 2017, p. 13)
Em um artigo intitulado “The face oh the Tenant”, constante de obra American Gothic: New Interventions in a National Narrative (1998), Eric Savoy concebe o Gótico americano como um iluminismo negativo fundado no poder das trevas, em oposição à luz, com vistas a transformar o regresso do reprimido diante do estranho, do “Outro”, o que, na sua monstruosidade, revela a autenticidade de um tipo de narrativa nacional, por oposição à literatura iluminista cultivada pela cultura dominante. (SAVOY apud LIMA, 2017, p. 16) O ensaio de Savoy aponta para essa falha na cultura oficial americana em tentar ocultar ou reprimir algo que resiste a qualquer tipo de repressão, como nos faz entender o referido autor:
The failure of repression and forgetting – a failure upon which the entire tradition of the Gothic in America is predicated – will be complete in those conscious eyes. Such a return is not merely monstrous and unthinkable, it is uncanny. And the writing of the uncanny is the field – or, more precisely, the multivalent tendency – of American Gothic. 
 (SAVOY apud MARTIN; SAVOY, 1998, p. 4)
                         
Com base nessas considerações de Savoy, Maria Antónia Lima salienta que o Gótico americano “funcionará, então, como negação dessa corrente iluminista que fomentou a ideia de progresso em que se baseava o American Dream.” (LIMA, 2017, p. 06) Esse “Outro”, mencionado por Savoy, que faz emergir algo reprimido no passado histórico da América, “seria portador de uma monstruosidade que a cultura dominante não podia assimilar,pois abalaria a sua fé na benevolência e perfectibilidade do ser humano, assim como sua crença no poder da racionalidade.” (SAVOY apud LIMA, 2017, p. 16)
Para o nosso recorte, haja vista que estamos analisando a obra We have always lived in the castle (Sempre vivemos no castelo), de Shirley Jackson, interessa o que salientou Horace Walpole (1996), numa linha mais psicanalítica de leitura do Gótico americano, relativamente às psicopatologias dos personagens e aos temas da família e da casa nos romances do gênero em discussão. Walpole destaca que muitas das psicopatologias típicas das personagens do Gótico americano se originam do que ele convencionou chamar de “the sins of the fathers” 
 (WALPOLE, 1996, p. xxiv) e que, por esse motivo, tanto o tema da família como os da casa assombrada por um passado reprimido são recorrentes. Seguindo essa mesma linha de raciocínio, Anne Williams destaca: “Gothic plots are family plots; Gothic romance is family romance”. 
 (WILLIAMS, 1995, p. 22) 
CAPÍTULO II
APRESENTAÇÃO DA ESCRITORA SHIRLEY JACKSON
 
A vida e a carreira da escritora Shirley Hardie Jackson são narradas em duas obras biográficas, distintas pela abordagem em si. A primeira bibliografia da autora, publicada em 1989, e escrita pela jornalista Judy Oppenheimer, discorre sobre a vida de Shirley da maneira mais tradicional, como quase todas as narrativas bibliográficas; baseadas em depoimentos, cartas e diários, afirma Oppenheimer (1989): “Private Demons is a penetrating analysis of the woman inside the author, and the genius inside the housewife”
.
A segunda escrita biográfica sobre a autora foi lançada em 2016, A Rather Haunted Life foi escrita por Ruth Franklin, e foi recebida com grande reconhecimento nos Estados Unidos, vencendo o Prêmio National Book Critics Circle Award (biografia), Prêmio Edgar (Crítico / Biográfico), Prêmio Bram Stoker (não ficção), A New York Times Notable Book, A Washington Post Notable Nonfiction Pick of the Year e ainda foi eleito um dos melhores livros do ano pela Entertainment Weekly, NPR, TIME, Boston Globe, NYLON, San Francisco Chronicle, Seattle Times, Kirkus Reviews e Booklist. Segundo Charles McGrath, do New York Times Book Review, “In this ‘thoughtful and persuasive’ biography, award-winning biographer Ruth Franklin establishes Shirley Jackson as a ‘serious and accomplished literary artist’
”.
As duas obras biográficas são complementares entre si e nos levam a conhecer a vida e a mente brilhante de Shirley Jackson, que, com tanta maestria, soube através de suas obras, mostrar como a simplicidade pode esconder mistérios aterrorizantes, seja através da maldade em si ou pela perda da sanidade mental. Para entendermos a escrita gótica e minimalista de Jackson, é preciso conhecer um pouco sua vida. 
As obras que narram a vida da autora poderiam facilmente ser confundidas com um romance gótico americano, dadas as vastas situações de problemas familiares, falta de aceitação do que não era considerado esteticamente belo, intolerância religiosa, gosto pela bruxaria e ocultismo, infidelidade matrimonial e muitos distúrbios psicológicos.
Os relatos que seguem são todos extraídos dessas duas obras biográficas fantásticas e que abrangem toda a vida da autora.
2.1 Nascimento e adolescência.
Shirley nasceu em 14 de dezembro de 1916 em São Francisco, na Califórnia, filha mais velha de Leslie Jackson e Geraldine Bugbee Jackson, uma família de classe média, sempre teve conforto, desejos atendidos e pais que nunca souberam como lidar com a personalidade dela.
Os avós maternos de Shirley eram Evangeline Field, Mimi, como gostava de ser chamada. Mantinha com orgulho a retórica de que sua árvore genealógica podia ser traçada de volta até o herói da Guerra Revolucionária Nathanael Greene. O lado do avô paterno também era muito proeminente: oriundos de Rhode Island, os Bugbees ajudaram a construir São Francisco.
Alguns dos edifícios mais importantes da cidade e as mansões Stanford, Crocker e Colton, foram planejados pelo tataravô de Shirley, Samuel Bugbee. Mas, infelizmente, a maioria das construções não resistiu ao terremoto de 1906 Certa vez Shirley explicou que o dinheiro da família vinha do fato de um de seus ancestrais ter construído somente mansões para milionários.
O bisavô de Shirley, John Stephenson Bugbee, após ir para Harvard, e passar três anos na Guerra Civil, foi nomeado pelo presidente Benjamin Harrison juiz distrital dos EUA no Alasca.
O avô de Shirley, Maxwell Greene Bugbee, filho de John Stephenson Bugbee e neto de Samuel Bugbee, reavivou o gene da arquitetura na família, nascido em 1865, e teve uma carreira longa e bem-sucedida.
Depois o gene da arquitetura se escondeu por mais uma geração, a de Geraldine, pois nem ela, nem o irmão Clifford se interessaram pelo assunto, reapareceu em Shirley, mas de uma maneira um pouco peculiar, já que o interesse de Shirley com construções antigas e suntuosas não era particularmente em como construí-las.
Evangeline Field descendia dos Field que podiam ser rastreados até a Inglaterra e tinha até mesmo um brasão próprio, mas ela acabou por ser criada em uma família de oito filhos, e nunca teve a sede por ascensão social que a filha Geraldine desenvolveu. Geraldine tinha um irmão mais velho, Clifford, tio de Shirley e provavelmente “protagonista” de algumas de suas obras futuras.
O casamente de Mimi e Maxwell, avós maternos de Shirley foi um total fracasso por muitos anos, mas o divórcio não era uma boa opção na época, então Maxwell, projetou uma grande e bela casa para a filha e o genro, alojou Mimi em um dos quartos e se foi, a avó materna era presença constante na vida de Shirley e do irmão, mas o avô ela o viu em uma única ocasião depois dele ter partido e deixado sua avó para viver com a família da filha.
Geraldine sempre soube muito bem o que desejava da vida e encontrou em Leslie Jackson o par perfeito para realizar seu sonho de status financeiro e social.
Leslie era louro, alto e muito dinâmico e assim como Geraldine, tinha muito bem traçado seus objetivos pessoais e profissionais. Ele nasceu na Inglaterra em 1891, o avô paterno de Shirley, Edward estudara junto com o primeiro-ministro Herbert Asquith, e era muito bem situado, mas algo ocorreu que fez com que ele perdesse todo os bens da família e trocasse seu sobrenome de Henchall para Jackson e partisse para os Estados Unidos da América abandonando a mulher e o filho e as duas filhas por conta própria e por vários anos na Inglaterra.
Barry o irmão de Shirley, certa vez relatou que lera uma carta da avó paterna onde dizia que ela contaria a Leslie o segredo tão bem guardado que fizera seu pai fugir da Inglaterra, mas ele morreu antes que isso acontecesse e o segredo morreu com ela.
Quando tinha 13 anos de idade, Leslie, a mãe e as duas irmãs vieram atrás do pai em São Francisco, chegando bem a tempo do terremoto em 1905, Leslie viu isso como bom presságio em vez de lamentar. Agora ele e a cidade teriam que começar do zero, juntos. E assim ele o fez, e obstinadamente, foi crescendo profissionalmente cada vez mais.
Leslie tinha vinte cinco anos e Geraldine tinha vinte anos quando eles se casaram em 15 de março de 1916, eles se davam super bem, pois ambos eram jovens tipicamente californianos, risos fáceis, adoravam se divertir, boa comida, boas roupas e principalmente frequentar lugares da alta sociedade, onde pudessem cultivar amizades influentes.
Mas então o pior aconteceu para Geraldine, antes mesmo do fim da lua de mel ela se descobriu grávida- de Shirley, essa notícia caiu como uma bomba para os recém-casados que tinham grandes planos para alavancar a vida social deles, curtir a vida a dois e, além disso, Geraldine não estava preparada para enfrentar o desafio de ser mãe e dona de casa.
Shirley nasceu exatamente nove meses e um dia após o casamento de seus pais, e muito a contragosto Geraldine de certa forma se resignou ao papel de mãe, mas desde o começo Shirley foi uma criança difícil para os padrões de Geraldine do que seria a filha ideal.
Shirleydesde muito pequena já era uma criança inquieta, criativa demais, brilhante, impossível de ser ornamentado como Geraldine desejava, e o inverso das “bonequinhas”, filhas das amigas do Country Club, lugar adorado pela sociedade classe média alta da Baía de São Francisco, e muito frequentado pela família Jackson.
Quando Shirley era adolescente, certa vez Geraldine lhe disse que certamente seria “uma criança obstinada”, mas não se tratava de um elogio, mas de um comentário irônico, e Shirley sabia disso. Geraldine era uma mulher forte e determinada, mas nem um pouco sutil com a filha, ela passaria a vida toda tentando moldar Shirley aos moldes do que ela achava que era o correto para uma mulher.
Shirley nasceu para ser escritora, não importando o quanto Geraldine tivesse que lutar contra essa realidade; a filha a desafiava, com seus cabelos ruivos e rebeldes, se recusando a usar as roupas escolhidas pela mãe e a frequentar o country club, fazendo caras e bocas para os rapazes, sem falar que para a mãe ela sempre aparentava estar acima do peso e não ter uma postura digna de uma moça de sua classe social.
Mas mesmo com toda a rebeldia e o enfrentamento, Shirley nunca conseguiu exorcizar por completo a figura da mãe, nem seus comentários a respeito de sua aparência. Talvez uma briga séria e definitiva entre mãe e filha, que a afastassem para sempre, tivesse sido mais benéfico a Shirley, mas isso nunca aconteceu, apesar dos embates e opiniões muito contrárias uma a outra, eles de certa forma sempre estiveram ligaram e passaram a vida toda enredada uma à outra, mesmo que nos últimos dezessete anos de vida de Shirley eles tivessem o país inteiro a separá-las.
“Quem está olhando por cima do meu ombro o tempo todo?” Shirley se perguntou pouco antes de morrer, provavelmente eram resquícios da eterna desaprovação por parte da mãe, de quem ela recebeu tantas críticas, principalmente pela aparência física.
Leslie Jackson, ao contrário de Geraldine, sempre consentiu a filha em todas as vontades, mas quando o assunto era feminino, ele não contrariava a mãe de Shirley, pois julgava que estas questões eram de responsabilidade das mães.
Shirley cresceu em Ashbury Park, um ótimo bairro de São Francisco, não lhe faltava nada material e mesmo com as desavenças entre ela e Geraldine, a mãe acabava por consenti-la em diversos aspectos, a começar pelo segundo maior e melhor quarto da casa, ficando atrás somente da suíte do casal, que era sempre destinado a Shirley.
Barry, o irmão mais novo de Shirley ficava sempre com o quarto menor e mais mal localizado da casa, normalmente ao lado do quarto de Mimi, mãe de Geraldine e avó materna de Shirley e Barry.
Geraldine nunca deixou de se esforçar ao máximo para que Shirley tivesse maneiras impecáveis no trato social, se vestisse com roupas notadamente caras e tivesse uma educação digna do que era adequado a uma futura esposa de algum rapaz de boa família da alta sociedade californiana.
E apesar do embate constante entre mãe e filha, os pais tinham muito orgulho da mente brilhante de Shirley, sempre astuta, embativa, e determinada, Geraldine reconhecia essas qualidades da filha, mas com certa inquietação, pois temia o futuro se ela continuasse assim.
Já Barry, vinte meses mais novo que Shirley, era o total inverso da irmã: um menino calmo, fácil de lidar e de dominar.
Shirley, com toda sua inteligência e sagacidade, percebeu logo que a mãe adorava compras e poder estar sempre ao lado do marido em eventos sociais, e se não houvesse problemas em casa seria ainda melhor. Assim, Shirley começou a tirar “vantagens” da mãe que acabava por comprar tudo que ela pedia desde que não houvesse contratempos quando ela e Leslie fossem atender compromissos sociais.
O bairro em que moravam era muito bom, mas os Jackson queriam mais, quando Shirley tinha seis anos eles se mudaram para Burlingame, um bairro elegante do subúrbio, Leslie construiu a casa projetada pelo pai de Geraldine, e uma vez mais Shirley ficou com o segundo melhor quarto da casa e Barry novamente foi dividir as paredes do quarto com o quarto da avó.
Os Jackson eram uma das famílias mais abastadas desse novo bairro e Geraldine fazia questão que os filhos soubessem, mas para Shirley essa questão era irrelevante e isso horrorizava a mãe.
A relação de mãe e filha continuou passando por problemas, pois Geraldine sentia que somente ela cedia aos caprichos da filha; Jackson passava mais tempo lendo e escrevendo do que se preocupando com moda ou eventos sociais, o que cada vez mais desagradava a mãe. Na adolescência enfrentou problemas com o peso e isso era mais um motivo de desgosto para sua mãe Geraldine, que era muito vaidosa e extremamente preocupada com a opinião alheia, se sentia ressentida pela filha não se esforçar em agradá-la e procurar se manter no peso e se arrumar elegantemente como faziam as outras adolescentes de seu convívio social.
Shirley Jackson nasceu com um dom terrível, a capacidade de ver e sentir o que outros não podiam, ela enxergava as coisas através das aparências, ela alcançava o lugar onde a realidade se desfazia e se tornava algo mais, crianças assim não nascem todos os dias, são raríssimos os casos, mas quando acontece, as mães são sempre as que mais “sofrem” diante de tal fato.
Ela conseguia perceber o que se escondia por trás da imagem que as pessoas mostravam ao mundo, por exemplo, ela conseguia perceber o ciúme que existia entre duas irmãs que dividiam a casa com o marido de uma delas, conseguia sentir o incomodo da professora de piano, provavelmente judia, para esconder sua origem dos vizinhos antissemitas, percebia a insegurança da garota que sempre estava acompanhada de crianças mais novas que ela.
E mais importante de tudo, Shirley enxergou a verdade sobre sua família e ela própria, a mãe egoísta, pretensiosa e esnobe; o pai distante dos problemas domésticos e focado somente na carreira de executivo, ambos pela extrema necessidade de sentirem-se aceitos por pessoas que eles próprios julgavam serem mais importantes devido à situação financeira superior à deles; pôr fim ao se enxergar ela se viu uma pré-adolescente ansiosa, acima do peso e deslocada da vida familiar a que pertencia.
Anos mais tarde ela escreveu sobre isso no seu primeiro romance “The Road through the Wall” (O caminho através da parede), uma escrita aparentemente suave, mas que desvelava toda sordidez que pode estar escondida em casas perfeitas de um subúrbio mais perfeito ainda. Classificado pela própria Shirley como ficção ela narrou todos os fatos que sua “visão” aguçada permitiu ver, enquanto para os demais passavam desapercebidos.
A maior lição que Jackson aprendeu nessa época foi que as pessoas são imperfeitas e carregam o mal dentro de si. Todo o esforço de Geraldine para que a filha voltasse seus esforços para as lições de etiqueta e de como fazer um bom casamento, foram tempo perdido.
Elizabeth Young, uma amiga de faculdade, dizia que a ensolarada Califórnia era o paraíso perdido de Jackson, mesmo nem tudo tendo sido bom na época em que viveu em Burlingame.
Anos mais tarde, Shirley contava histórias para os filhos sobre São Francisco e o lugar da sua infância como se fosse um conto de fadas, como se ela houvesse bloqueado tudo que não fosse bom, descrevia os pássaros exóticos, as árvores em flor, as frutas colhidas frescas, o sol constante no céu, mas ela nunca chegou a mostrar tudo isso aos filhos pessoalmente.
Jackson gostava do dom que tinha, mas isso não impedia que ela visse também a realidade suja sob a superfície. Mas a visão de Shirley foi além disso... e foi isso que deu a Geraldine mais problemas. Shirley tinha o que os irlandeses chamam de “a visão”, a capacidade de ver além da realidade, de perfurar o véu em outros reinos. Shirley era, na verdade, vidente; ela ouvia conversas, até mesmo música que ninguém mais ouvia; ela viu rostos que ninguém mais podia ver. Ela tinha plena consciência desde a infância, de que havia outras realidades muito diferentes, tão verdadeiras quanto aquela em que viviamsua família e vizinhos, existindo simultaneamente, talvez a apenas meia volta de distância
. (OPPENHEIMER, 1988, p.18)
Neste século, estamos acostumados a descartar completamente essas coisas – o desejo irresistível é recorrer à psiquiatria para obter a resposta. Uma criança que alucina e vê realidades alternativas está obviamente sofrendo de esquizofrenia. Ou, pelo menos, está desesperadamente infeliz e usando sua criatividade para girar outros mundos
. (OPPENHEIMER, 1988, p.18)
Jackson acreditava no seu dom, e aceitava isso como parte dela mesma, levou isso consigo até a morte, a vida dela não foi mais fácil por isso, ao contrário, mas ela simplesmente não podia escolher “não ver”.
Quando chegou à adolescência Shirley para de falar sobre seu dom com tanta frequência, por anos praticamente não falou sobre isso com ninguém e talvez tenha retomado esse assunto somente quando já havia casado e já era uma escritora de sucesso.
Geraldine se sentia amedrontada com as visões da filha e sempre deixou claro que não queria ter nada a ver com elas.
Mas ainda assim Geraldine, lia folhas de chá, gostava de adivinhações e ensinou Shirley e Barry a usarem a tábua Ouija, e por mais difícil que pudesse ser, se alguém lhe pedisse um trevo de quatro folhas ela o encontrava em instantes.
A avó materna, Mimi, frequentava a Christian Science Church
, religião que acreditava que a mente era o poder máximo do ser humano, qualquer que fosse o problema, estava na mão de cada um se curar com o poder da própria mente.
Barry levava tudo isso com leveza, como mais um absurdo da cabeça da mãe e da avó que ele aceitava para ser deixado em paz. Ele também contou que a avó costumava praticar a crença da cura pela mente nos netos, certa vez ele estava com febre e se lembra de a avó ter passado a noite toda sussurrando no ouvido dele que a cura só dependia da vontade de querer ficar bom.
Leslie, por outro lado, parecia viver numa outra realidade em que nenhum desses assuntos era tratado dentro de sua própria casa, Geraldine não deixava que o marido se preocupasse com problemas menores, de ordem doméstica e que deviam ser resolvidos pela esposa, como ela própria dizia.
Mimi e Geraldine passariam mal se houvesse a mínima chance das visões de Shirley terem sido causadas por elas, mas de qualquer maneira nunca pensariam nisso, porque Mimi acreditava ser seguidor de uma religião tão séria quanto qualquer outra e Geraldine usava as questões das folhas de chá e a tábua de Ouija para se desvencilhar da realidade cotidiana, já as visões de Shirley eram outro assunto.
No ano anterior à sua morte Jackson começou a escrever um romance intitulado “Come along with me” 
, o enredo era diferente de tudo que ela havia escrito anteriormente, a personagem protagonista tinha quarenta e quatro anos e vestia manequim quarente e quatro, assim com Jackson, mas ela não chegou a terminar, seu marido publicou o que havia sido escrito em 1968, três anos após a morte dela.
Como se fosse ficção ela escreveu coisas sobre sua infância que nunca haviam sido sequer contadas para o marido ou os filhos, no romance a fala a seguir é da personagem Angela Motorman.
No começo, tentei mostrá-lo às pessoas. Fui tola o suficiente no início para pensar que outras pessoas simplesmente não tinham notado; “Olhe para isso”, diria, “olhem, bem ali, é um homem engraçado”. Não demorou muito para que minha mãe me fizesse parar com isso. “Não há nenhum homem engraçado em nenhum lugar”, dizia ela, dando um puxão no meu braço, “que tipo de esgoto você tem na cabeça?” Uma vez tentei contar a um vizinho sobre isso; foi bem acidental, porque raramente dizia algo a alguém. Ele estava sentado em sua varanda uma noite no verão e eu estava deitada na grama em nosso jardim, vendo pequenas luzes irem e virem entre as folhas da grama e ouvindo uma espécie de canto – algumas vezes, especialmente no verão, eu vivia em um tipo de mundo agradável- e ele me ouviu rir. Ele me pediu para sentar-se em sua varanda e me deu um copo de limonada, e quando me perguntou o que eu estava fazendo, fui em frente e disse a ele. Eu disse a ele sobre ver e ouvir, e ele ouviu, o que foi mais do que qualquer outra pessoa fez. “Você é clarividente”, ele me disse…
Eu sabia muito sobre as pessoas, muito que eles nunca souberam que eu sabia, mas nunca parecia ter senso, provavelmente porque uma coisa que nunca soube realmente foi se o que estava fazendo era real ou não.
Quando eu tinha cerca de dezesseis anos, comecei a ficar constrangida sobre tudo isso; não era que eu me importasse com eles me perguntando e me seguindo aonde quer que eu fosse; a maioria das garotas de dezesseis anos gosta de ser seguida, mas então eu sabia que ninguém mais iria vê-los e às vezes me sentia uma idiota; você não sai por aí olhando para o vazio o tempo todo, não quando tem dezesseis anos, não sem que as pessoas comecem a notar. “Você precisa de óculos?” minha mãe costumava me perguntar: “Pelo amor de Deus, você não pode parar de ficar boquiaberta e calar a boca, pentear o cabelo e sair com outras garotas?”.
Essa não é uma boa maneira de uma menina crescer… Como alguém pode lidar com as coisas se sua cabeça está cheia de vozes e seu mundo está cheio de coisas que ninguém mais pode ver?
 (OPPENHEIMER, 1988, p.20 e 21)
Shirley aprendeu logo que quanto mais ela mantivesse segredo das suas visões e sentimentos, menos ela teria que enfrentar o julgamento alheio.
Ela passava a maior parte do tempo sob os cuidados da avó, já que Geraldine sempre tinha algum evento social para participar, com Mimi Shirley tinha mais liberdade porque a avó não conseguia controlá-la como fazia a mãe.
Mas ainda assim ela não podia dizer que a avó fosse uma espécie de aliada, ao contrário, certo dia, após a escola ela entrou em casa silenciosamente e flagrou Mimi revirando seus escritos na escrivaninha que supostamente estava trancada e a chave em poder de Shirley.
O quarto era o porto seguro de Jackson, depois desse episódio ela nunca mais teve certeza se seus escritos estavam seguros, ou se Mimi e Geraldine liam quando bem lhes apetecia.
Anos mais tarde ela contou aos filhos que quando ela saiu das casas dos pais de uma vez por todas ela fez questão de fazer uma fogueira e queimar todos os seus escritos bem em frente à mãe, e infelizmente as primeiras histórias e poemas também queimaram junto.
A primeira amiga de verdade que Shirley teve foi Dorothy, e isso só aconteceu quando ela já tinha doze anos. Apesar de ser filha do jardineiro do bairro e não ser propriamente a amiga desejada por Geraldine, ainda assim, ela ficou feliz por finalmente Shirley ter alguém com quem conversar e passear.
Dorothy relatou que era e o pai era bem pobre, principalmente se comparado aos Jacksons, e que apesar de Geraldine não ter feito oposição à amizade dela e Shirley, ela nunca, nem sequer foi convidada para entrar na casa deles.
Shirley era a líder na amizade, ela que sempre escolhia aonde ir, quando ir e o que fazer, inclusive Dorothy acredita que Geraldine tolerava a amizade das suas justamente porque ela mantinha Shirley distraída e se divertindo.
Se Dorothy se recusasse a alguma atividade planejada por Shirley ou quisesse que sua vontade se sobressaísse, elas discutiam e ficavam alguns dias sem se falarem, mas tudo sempre voltava ao normal. 
Shirley de certa forma mudou a vida de Dorothy quando inventou de aprender a tocar violino e praticamente obrigou a amiga a ir com ela, Dorothy escolheu violoncelo, Shirley logo desistiu, mas amiga continuou as aulas, tornou-se professora deste instrumento e isso acabou por tornar-se o centro da vida dela.
Dorothy também conta que ela sempre foi aluna de Bs e Shirley mal se esforçava para conseguir Cs.
Outro membro da família é lembrado por Dorothy com certa repulsa, Clifford Bugbee, irmão de Geraldine, muito dado a invenções, nunca inventou nada que fosse útil ou pudesse render ganho financeiro.
Mas Dorothy não esqueceu, mesmo após mais de 50 anos, o toque pegajoso e úmido das mãos dele, ao forçar toques desnecessários,

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