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Unidade 4 Livro Didático Digital Rodrigo Gonçalves Tópicos Avançados da Teoria Literária Diretor Executivo DAVID LIRA STEPHEN BARROS Gerente Editorial CRISTIANE SILVEIRA CESAR DE OLIVEIRA Projeto Gráfico TIAGO DA ROCHA Autor RODRIGO GONÇALVES O AUTOR Rodrigo Gonçalves Olá. Meu nome é Rodrigo Gonçalves. Sou graduado em Letras já há quase 20 anos, com uma experiência técnico-profissional na área de ensino de língua e literatura. Já ministrei aulas para diversos públicos, do infantil ao infanto-juvenil, tendo passagens por cursinhos e Educação para Jovens e Adultos. Sou apaixonado pelo que faço e adoro transmitir minha experiência de vida àqueles que estão iniciando em suas profissões. Por isso fui convidado pela Editora Telesapiens a integrar seu elenco de autores independentes. Estou muito feliz em poder ajudar você nesta fase de muito estudo e trabalho. Conte comigo! ICONOGRÁFICOS Olá. Esses ícones irão aparecer em sua trilha de aprendizagem toda vez que: INTRODUÇÃO: para o início do desenvolvimento de uma nova compe- tência; DEFINIÇÃO: houver necessidade de se apresentar um novo conceito; NOTA: quando forem necessários obser- vações ou comple- mentações para o seu conhecimento; IMPORTANTE: as observações escritas tiveram que ser priorizadas para você; EXPLICANDO MELHOR: algo precisa ser melhor explicado ou detalhado; VOCÊ SABIA? curiosidades e indagações lúdicas sobre o tema em estudo, se forem necessárias; SAIBA MAIS: textos, referências bibliográficas e links para aprofundamen- to do seu conheci- mento; REFLITA: se houver a neces- sidade de chamar a atenção sobre algo a ser refletido ou dis- cutido sobre; ACESSE: se for preciso aces- sar um ou mais sites para fazer download, assistir vídeos, ler textos, ouvir podcast; RESUMINDO: quando for preciso se fazer um resumo acumulativo das últi- mas abordagens; ATIVIDADES: quando alguma atividade de au- toaprendizagem for aplicada; TESTANDO: quando o desen- volvimento de uma competência for concluído e questões forem explicadas; SUMÁRIO O Narrador ...................................................................................................... 10 Antes de Tudo um Exercício ................................................................................................... 10 Análise do Discurso Narrativo .............................................................................................. 13 O Tempo ..........................................................................................................20 O Espaço .........................................................................................................29 Os Personagens ...........................................................................................40 Tópicos Avançados da Teoria Literária 7 LIVRO DIDÁTICO DIGITAL UNIDADE 04 Tópicos Avançados da Teoria Literária8 INTRODUÇÃO Nesta unidade, nossa última, vamos iniciar nossa despedida dessecando quatro elementos da narrativa, são eles: o Narrador, o Tempo, o Espaço e os Personagens. Embora, tenhamos flertado sobre esses conceitos durante todas as nossas unidades, aqui vamos estudar pontos específicos desses elementos. Propositalmente, eles foram deixados por último, posto que são os que os leitores tendem a se afeiçoar primeiro. São esses elementos que irão fazer com que uma narrativa literária cada vez mais seja um texto singularizado, são os detalhes constantes que farão do enredo do autor cada vez mais rico e complexo. Entendeu? Ao longo desta unidade letiva você vai mergulhar neste universo! Tópicos Avançados da Teoria Literária 9 OBJETIVOS Olá. Seja muito bem-vindo à Unidade 4. Nosso propósito é auxiliar você no desenvolvimento das seguintes objetivos de aprendizagem até o término desta etapa de estudos: 1. Compreender o que é um narrador e sua importância na trama. 2. Entender as concepções modernas de tempo na narrativa. 3. Identificar, usando o conceito de cronótopo, as relações e definições de tempo e espaço. 4. Estudar a importância dos personagens, suas características e algumas de suas categorizações. Então? Preparado para uma viagem sem volta rumo ao conhecimento? Ao trabalho! Tópicos Avançados da Teoria Literária10 O Narrador INTRODUÇÃO Ao término deste capítulo você será capaz de entender como funciona um narrador no texto literário. Isso será fundamental para o exercício de sua profissão. As pessoas que tentaram fazer uma interpretação textual sem a devida instrução tiveram problemas para ministrar suas aulas e para fazer críticas literárias consistentes. E aí, motivado para desenvolver esta competência? Então vamos lá. Avante! Antes de Tudo um Exercício Antes de iniciar de fato nossos primeiros estudos deste capítulo, gostaria de propor a ti, aluno, um exercício: tente recordar sua vida antes da leitura ou no início de seu ingresso nela. Quando ouvíamos as histórias contadas pelos nossos pais ou pessoas mais velhas, iniciávamos um contato sensorial e de intimidade com aqueles que nos transmitiam suas narrativas. Quando crianças, regularmente tomamos os adultos como referências e, por intermédio deles, queremos buscar todo um conhecimento que parece ser infindável. Ouvíamos as histórias narradas pelos adultos, personificando seus conteúdos na figura humana ali presente. Para nós, naqueles instantes, o cérebro infante creditava a autoria daquelas histórias aos adultos, posto serem eles as figuram palpáveis do teor de todo aquele conteúdo literário. REFLITA Basta lembrarmos de situações em que era muito comum a pergunta: “— quem te contou isso, menino (a)?”. A criança responde: “— Foi vovó!”. Aqui o “foi vovó!” não quer dizer somente a origem de onde se escutou o texto narrado, mas, muitas vezes, quando crianças, atribuímos a autoria da propriedade intelectual a quem nos contou a história. Tópicos Avançados da Teoria Literária 11 Isso é muito importante, pois, em termos de narrador, reside um conceito literário profundo. Até antes da década de 70, os estudos literários apontavam para um tipo de corrente em que a voz do narrador se confundia com a voz do autor, porém, com o avanço dos estudos, hoje podemos constatar que o narrador é um elemento. Dessa forma, Luís Miguel Cardoso (2003) afirma que: O narrador é considerado como o agente, integrado no texto, que é responsável pela narração dos acontecimentos do mundo ficcional, sendo, por este motivo, distinto do autor empírico e mesmo das personagens desse mundo ficcional, pela amplitude narrativa. (CARDOSO, 2003, p. 57) EXPLICANDO MELHOR Explicamos da seguinte maneira: nem sempre o autor, por meio de suas vias artísticas é aquilo o que escreve, embora possamos ter as duas coisas juntas, autor e narrador, operando sobre as mesmas falas e mesmos temas, isso não quer dizer que o autor tenha um posicionamento e esteja necessariamente inserido como o narrador. O narrador é apenas um instrumento de condução da história. Exemplo O narrador pode ser cristão e em sua obra literária ser um narrador ateu, ou ele pode ser homem, mas ser um narrador mulher, isso não há óbice nenhum. Para melhor entendermos essa relação, é preciso compreender o eu-lírico do texto. Este termo, “eu-lírico”, apesar de ser usualmente empregado quando se trata de estudos sobre poemas, é muito abrangente e pode ser usado nas prosas também, sem nenhum impedimento. Podemos afirmar que o eu-lírico é a voz pela qual fala o texto, nesse sentido, nem sempre essa voz equivale à voz do autor, pois, se assim fosse, estaríamos ceifando os limites poéticos. Tópicos Avançados da Teoria Literária12 Um dos grandes nomes que demonstram isso bem é o músico e compositor Chico Buarque de Hollanda, especialmente na canção “Olhos nos olhos”, que inicialmente fora gravada por Maria Bethânia (1976) no registro constante no disco Pássaro Proibido. Leia e observe os detalhes,mas, caso possa, escute-a para melhor compreender a carga a dramática: Olhos nos olhos Quando você me deixou, meu bem Me disse pra ser feliz e passar bem Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci Mas depois, como era de costume, obedeci Quando você me quiser rever Já vai me encontrar refeita, pode crer Olhos nos olhos, quero ver o que você faz Ao sentir que sem você eu passo bem demais E que venho até remoçando Me pego cantando Sem mas nem porque E tantas águas rolaram Quantos homens me amaram Bem mais e melhor que você Quando talvez precisar de mim ‘Cê sabe que a casa é sempre sua, venha sim Olhos nos olhos, quero ver o que você diz Quero ver como suporta me ver tão feliz EXPLICANDO MELHOR A música fala de uma mulher que se sente abandonada após um relacionamento, porém, ela toma para si forças para superar o rompimento do enlace, afirmando que irá se recompor de suas lástimas e seguir sua vida sem o companheiro. Note que a bela canção fora composta por um homem, mas seu eu-lírico é feminino. Tópicos Avançados da Teoria Literária 13 Quando ouvimos uma voz feminina, tomamos para si a carga dramática e o eu-lírico feminino nessa situação. Mas lembramos, nessa música em especial, o autor é um homem. Então, podemos afirmar que, em princípio, o narrador não é o autor, mas é o autor quem faz as vezes de narrador, ou seja, de um contador. Análise do Discurso Narrativo Assim que tivemos a evolução do entendimento de narrador, estudiosos de vários lugares iniciaram uma celeuma com a finalidade de individualizá-lo e categorizá-lo. Quando estamos no colegial, é comum analisarmos o narrador de duas perspectivas, duas nomenclaturas. A primeira é quando se encontra o narrador num estado de primeira pessoa do singular ou plural e a segunda é quando o narrador está na terceira pessoa do singular ou plural. Embora não estejam totalmente erradas, os estudos acadêmicos apontam para certa limitação destes conceitos, motivos pelos quais tendemos a expandir essas questões. Para analisar melhor, precisamos ter como ponto de referência a posição do narrador. É comum pensarmos, quando crianças ou não engajados na leitura, que o narrador em primeira pessoa do singular é sempre o protagonista, porém, este é um campo de visão limitado e um tanto preliminar sobre o tema em comento. DEFINIÇÃO Os estudiosos como Gérard Genette (1995), um dos maiores expoentes nesse assunto, em O discurso da narrativa, estabelece conceitos contemporâneos atribuindo o nome de “narrador intradiegético” para aquele que é simultaneamente narrador e personagem na trama. Este, por sua vez, se subdivide em homodiegético e heterodiegético. Note que o prefixo “intra-” quer dizer que está dentro, inserido na história. Tópicos Avançados da Teoria Literária14 O narrador homodiegético é aquele que é personagem e narrador da sua própria história. O narrador aqui, geralmente, é um personagem ativo na história. Se o narrador é heterodiegético, quer dizer que ele é um personagem-narrador, porém, não é um personagem ativo. É um figurante, um coadjuvante ou qualquer personagem sem muita expressão na história que está a narrar. Noutra banda, há o “narrador extradiegético”, o qual posiciona, por sua vez, de forma exterior à narrativa. Esse tipo é facilmente identificado, pois, frequentemente, faz registos regulares sem intervir no enredo, apenas e tão somente narrando os eventos. NOTA Há quem ainda postule uma terceira categoria, a do “narrador autodiegético”, deliberado por Carlos Reis (1996, P. 118) como “[...] a entidade responsável por uma situação ou atitude narrativa específica: aquela em que o narrador da história relata as suas próprias experiências como personagem central da história”. Fundamentado nos dizeres de Aristóteles e Platão, o já mencionado Genette firma neste arcabouço que devemos focar no narrador tal como ele se afixa na obra. Nesse sentido, ele nos propõe a fazer o que chamou de “focalização do narrador”. A focalização está para o conhecimento que o narrador apresenta acerca da história, comparando com o conhecimento ao que o personagem apresenta ter. Nesse sentido, Genette recomenda que a focalização “[...] nem sempre se aplica ao conjunto de uma obra, portanto, mas antes a um segmento narrativo determinado, que pode ser muitíssimo breve” (GENETTE, 1995, p. 189). Trata-se, portanto, de um ponto importante, pois o narrador pode ser elencado em outros níveis, além de ser de primeira pessoa ou de terceira pessoa. Tudo irá depender da obra. Tópicos Avançados da Teoria Literária 15 EXPLICANDO MELHOR Como exercício, proponho a leitura de um trecho de Memórias Póstumas e Brás Cubas, já comentado em outras unidades, do autor Machado de Assis. Leia: Que me conste, ainda ninguém relatou o seu próprio delírio; faço-o eu, e a ciência mo agradecerá. Se o leitor não é dado à contemplação destes fenômenos mentais, pode saltar o capítulo; vá direito à narração. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo que é interessante saber o que se passou na minha cabeça durante uns vinte a trinta minutos. Primeiramente, tomei a figura de um barbeiro chinês, bojudo, destro, escanhoando um mandarim, que me pagava o trabalho com beliscões e confeitos: caprichos de mandarim. Logo depois, senti-me transformado na Suma Teológica de São Tomás, impressa num volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampas; ideia esta que me deu ao corpo a mais completa imobilidade; e ainda agora me lembra que, sendo as minhas mãos os fechos do livro, e cruzando-as eu sobre o ventre, alguém as descruzava (Virgília decerto), porque a atitude lhe dava a imagem de um defunto. Ultimamente, restituído à forma humana, vi chegar um hipopótamo, que me arrebatou. Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou confiança; mas, dentro em pouco, a carreira de tal modo se tornou vertiginosa, que me atrevi a interrogá- lo, e com alguma arte lhe disse que a viagem me parecia sem destino. (ASSIS, 1997, p. 25 ) Como já bem dissemos, nessa obra o narrador está morto e conta ao leitor as memórias de sua vida. Aqui, portanto, o narrador é um personagem predominantemente intradiegético na modalidade homodiegético. Tópicos Avançados da Teoria Literária16 EXPLICANDO MELHOR Continuemos o exercício usando agora um trecho da obra Lendas do Sul, de João Simões Lopes Neto: Era eu que cuidava dos altares e ajudava a missa dos santos padres da igreja de S. Tomé, do lado ao poente do grande rio Uruguai. Sabia bem acender os círios, feitos com a cera virgem das abelheiras da serra; e bem balançar o turíbulo, fazendo ondear a fumaça cheirosa do rito; e bem tocar a santos, na quina do altar, dois degraus abaixo, à direita do padre; e dizia as palavras do missal; e nos dias de festa sabia repicar o sino; e bater as horas, e dobrar a finados... Eu era o sacristão. Um dia na hora do mormaço, todo o povo estava nas sombras, sesteando; nem voz grossa de homem, nem cantoria das moças, nem choro de crianças: tudo sesteava. O sol faiscava nos pedregulhos lustrosos, e a luz parecia que tremia, peneirada, no ar parado, sem uma viração. Foi nessa hora que eu saí da igreja, pela portinha da sacristia, levando no corpo a frescura da sombra benta, levando na roupa o cheiro da fumaça piedosa. E saí sem pensar em nada, nem de bem nem de mal; fui andando, como levado... Todo o povo sesteava, por isso ninguém viu. (LOPES NETO, 1976, p. 26) Agora, temos uma outra modalidade de narrador, o qual notavelmente não participa dos feitos, sendo uma mera testemunha dos fatos, diferente do anterior, está na modalidade extradiegético. Outras classificações de narrador caberão dentro Genette. Por exemplo, há quem goste de classificar como “narrador personagem”, “narrador onisciente” e “narrador observador”. Só a título de informação, o “narrador onisciente”, também chamado de onipresente, seráaquele narrador que tudo conhece, não Tópicos Avançados da Teoria Literária 17 só os detalhes da trama, como também os pensamentos mais íntimos dos personagens. Esse será o tipo de narrador que frequentemente se apresenta em terceira pessoa. Ele se subdivide em “onisciente intruso”, pois, além de narrar a história, pode criticar personagens e até inserir juízos de valor. É muito comum na obra de Machado de Assis: Mas já são muitas ideias, — são ideias demais; em todo caso são ideias de cachorro, poeira de ideias, — menos ainda que poeira, explicará o leitor. Mas a verdade é que este olho que se abre de quando em quando para fixar o espaço, tão expressivamente, parece traduzir alguma coisa, que brilha lá dentro, lá muito ao fundo de outra coisa que não sei como diga, para exprimir uma parte canina, que não é a cauda nem as orelhas. Pobre língua humana! Afinal adormece. Então as imagens da vida brincam nele, em sonho, vagas, recentes, farrapo daqui remendo dali. Quando acorda, esqueceu o mal; tem em si uma expressão, que não digo seja melancolia, para não agravar o leitor. Diz-se de uma paisagem que é melancólica, mas não se diz igual coisa de um cão. A razão não pode ser outra senão que a melancolia da paisagem está em nós mesmos, enquanto que atribuí-la ao cão é deixá-la fora de nós. Seja o que for, é alguma coisa que não a alegria de há pouco; mas venha um assobio do cozinheiro, ou um gesto do senhor, e lá vai tudo embora, os olhos brilham, o prazer arregaça-lhe o focinho, e as pernas voam que parecem asas. (ASSIS, 1957, p. 53) DEFINIÇÃO O “narrador onisciente neutro” tem esse nome por se opor a ao intruso anteriormente falado, ele narra tudo, sabe de tudo, porém, não faz intervenções: Depois de casado viveu dois ou três anos da fortuna da mulher, comendo bem, levantando-se tarde, fumando em grandes cachimbos de porcelana, só voltando para casa à noite, depois Tópicos Avançados da Teoria Literária18 do espetáculo, e frequentando os cafés. O sogro morreu e deixou pouca coisa; ele indignou-se com isso, montou uma fábrica, perdeu nela algum dinheiro e retirou-se para o campo, onde pretendeu desforrar-se. Mas, como não entendia mais de agricultura do que de chitas, e porque montava os cavalos em vez de os pôr a trabalhar, bebia sidra às garrafas em vez de a vender em barris, comia as melhores aves da capoeira e engraxava as botas de caçar com o toucinho dos porcos, não tardou a aperceber-se de que mais valia abandonar toda a especulação. (FLAUBERT, 1973, p. 3) DEFINIÇÃO O “narrador onisciente múltiplo” será aquele em que podemos observar opiniões e visões diferentes sobre os fatos. Ele irá influenciar o leitor para que este venha a tomar alguma posição ou juízo de valor. Faz uso frequente do discurso indireto livre: Realmente para eles era bem pequeno, mas afirmavam que era grande - e marchavam, meio confiados, meio inquietos. Olharam os meninos, que olhavam os montes distantes, onde havia seres misteriosos. Em que estariam pensando? zumbiu Sinha Vitória. Fabiano estranhou a pergunta e rosnou uma objeção. Menino é bicho miúdo, não pensa. Mas Sinha Vitória renovou a pergunta - e a certeza do marido abalou-se. Ela devia ter razão. Tinha sempre razão. Agora desejava saber que iriam fazer os filhos quando crescessem. (RAMOS, 2005, p. 123) DEFINIÇÃO O “narrador observador” é aquele que se atém a narrar os fatos sem participar como personagem na história. Tópicos Avançados da Teoria Literária 19 “Narrador personagem” é, portanto, aquele que faz as vezes de narrador e personagem regularmente na história. RESUMINDO O narrador, embora frequentemente confundido com o autor, atualmente é entendido como um instrumento da narrativa à serviço da obra literária para que possa impulsioná-la. Conquanto tenha várias formas de se catalogar os narradores, no contexto hodierno, as formas acadêmicas admitidas são em intradiegético e extradiegético, uma vez que essas categorizações abarcam muitas outras conhecidas. Tópicos Avançados da Teoria Literária20 O Tempo INTRODUÇÃO Neste capítulo, iremos nos aprofundar nos conceitos de tempo formulados por Bakhtin e aplicados na Literatura. Entenderemos o tempo de uma forma mais ampla e relativa tal qual a física moderna assim o entende. Então? Vamos lá?. No nosso curso, ou seja, no transcorrer de nossas unidades, fomos flertando vagarosamente com as noções de tempo. A forma como o tempo é usado pelo autor de uma obra literária é, sem dúvidas, um dos elementos mais integrantes das narrativas. Isso é constatado em Bakhtin (2003) quando este afirma que existe uma relação entre o autor e o leitor, o que concretiza uma das coisas mais fabulosas na organização psíquica humana, haja vista que nessa relação reside uma formação psicológica por meio de signos sociais. EXPLICANDO MELHOR Quando um leitor se propõe a imergir no universo de uma obra, ele não somente sem atém aos conteúdos textuais, mas, cada vez mais, vai alcançando a obra literária na sua dimensão mais abrangente. Segundo Bakhtin (2003), essa dimensão revela formas para organizar a experiência estética e moral no tempo e no espaço. Compreender as relações entre tempo-espaço aplicados na literatura é abarcar também as formas de disposição dos processos psicológicos em sua característica contextual e situacional. Em seus estudos, Amorim (2006) se ateve nessa composição de significados historicamente instalados que conjecturam na relação entre tempo e espaço, chamando-os de “cronótopo”. Tópicos Avançados da Teoria Literária 21 Aqui neste capítulo, trataremos somente da faceta temporal da teoria do cronótopo, falando da faceta espacial em um outro capítulo específico. Por tais razões, esse será o nosso assunto e nele nos prenderemos agora. NOTA É importante destacar que o conceito de cronótopo já existia, e era usado vastamente na física, mas foi Bakhtin quem primeiro aplicou esses conceitos na Literatura. Bakhtin, analogamente, aplicou o conceito de “evento” usado pelos físicos relativistas para inferir uma análise acerca do tempo enquanto dimensão do espaço. Portanto, o cronótopo significa a relação indissociável entre tempo e espaço na vida humana, formando uma dimensão constitutiva das narrativas e definindo os rumos da trama literária que levará o leitor a uma ligação intratextual e extratextual. Assim, será criada uma conexão entre o texto e seu tempo. Exemplo A fim de entendermos melhor essa situação, vamos usar o exemplo aplicado por Bakhtin, pegando por base uma trama romântica grega. Nesse tipo de enredo é comum ocorrer algum acontecido que interrompe um relacionamento, separando os enamorados. Geralmente, a donzela é raptada para outro reino o que faz com que o guerreiro tenha que percorrer desafios até recuperá-la. Nesse tipo de trama, obviamente, existe a passagem de tempo, porém, ela não fica tão definida, pois não é considerada a distância até o outro reino, nem o tempo despendido para o translado dessa distância, ficando a experiência de tempo e de espaço de alguma forma prejudicada. Por isso, frequentemente, iremos sentir que o foco narrativo está pautado nas experiências dessas jornadas e não pela experiência do personagem sobre o tempo e o espaço, ou seja, o personagem não sofre com o tempo e espaço. Muitas vezes, veremos que a velhice chega. Tópicos Avançados da Teoria Literária22 Isso é mais perceptível quando, hoje, assistimos a um filme. Suponhamos que um personagem tenha que sair de Campina Grande, no estado da Paraíba, para Salvador, na Bahia. Na vida real, de carro, seria uma viagem de um dia inteiro. Num filme, como o tempo deve ser encurtado para um faixa de público, vemos a passagem de uma cidade para outra em alguns quadros. Ou seja, o que se vai fazer em Salvador é mais importante do que o percurso até a mesma cidade. REFLITA Se você reparar, isso é muito comumnas experiências mais curtas. Nos três livros da saga O Senhor dos Anéis, clássico romance épico da língua inglesa, toda a travessia de tempo no enredo durou por volta de um ano, do início do chamado da aventura até o término dela. Já nas telas, foram feitos três filmes, que deixam uma sensação mais curta de tempo transcorrido, como se toda trama tivesse sido em poucos meses ou poucos dias, exatamente por causa dos filmes todos contabilizarem cerca de 10 horas ao todo. Isso demonstra toda relatividade do tempo no conceito de cronótopo aplicado à Literatura. Se formos levar outras considerações de tempo para o leitor, podemos observar outros critérios. Conquanto na obra a aventura tenha descrito o tempo por volta de um ano, quem acompanhou a publicação dos livros pode ter lido e ter tido a experiência de tempo real, já que a diferença de publicação do primeiro livro para o último teve mais ou menos um ano; porém, se você iniciou a leitura e parou no decorrer dos anos, sua experiência temporal será diferente. Assim como é diferente a experiência de escrita do autor. É comum os autores iniciarem uma obra, parar e recomeçar indefinidas vezes até a data de publicação final. O leitor certamente nota as mudanças de estética do momento em que o livro foi iniciado até sua publicação, pois o autor foi inserindo suas novas experiências na rota de planejamento. Isso é muito comum. Tópicos Avançados da Teoria Literária 23 Exemplo Por exemplo, o clássico do romantismo brasileiro de 1844, A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, era publicado nas páginas das folhas semanais do Jornal do Comercio. Seu sucesso fez com que houvesse mais capítulos do que esperado, sem falar que há relatos que o autor sofreu bastante influência de cartas dos fãs pedindo que o enredo fosse encaminhado de acordo como eles queriam. Isso mostra que existe um diálogo indireto, mas concreto, entre o leitor e o autor. E nos ensina que o tempo cronológico pode ser expresso ou implícito. O autor pode omitir o tempo para deixar que a criatividade do leitor diga em qual tempo se passam os eventos, ou pode deixar claro, no transcorrer das páginas, para usar como recurso por algum motivo relevante. O tempo é assim, uma questão de manifestação. Numa poesia concreta, por exemplo, o tempo não é transmitido para o leitor, porém, a poesia é marcada pelo tempo porque é uma manifestação artística que tem um pouco mais de 60 anos, isso faz com que tenhamos a reflexão de que ela é uma novidade aos nossos olhos. Diferente de quando lemos uma poesia lírica que irá soar, muitas vezes, como uma coisa velha. Da mesma forma, se lermos uma obra literária como a própria A Moreninha, se tivermos acesso a obra, na variante em que ela foi inicialmente escrita, poderemos ter a sensação de velha. No entanto, tivermos acesso a uma versão com alguma adequação linguística, a obra terá se atualizado, ganhando uma sensação de novidade. REFLITA Note, é a mesma obra, o que mudou foi apenas a variante da língua. https://pt.wikipedia.org/wiki/Joaquim_Manuel_de_Macedo Tópicos Avançados da Teoria Literária24 Com isso, podemos entender que o tempo cronológico de uma obra é algo maior do que a manifestação do tempo do nosso calendário ou do relógio. Com essas conclusões, Macêdo e Vieira (2015) afirmam que: Assim, os marcadores para visualizar o tempo são convenções dialógicas e não arbitrariedades orgânicas; ou seja, o tempo passa para o corpo, mas a experiência de passagem de tempo é um ato de produção de sentidos discursivos; construída e vivida discursivamente. (MACÊDO; VIEIRA, 2015, p. 124) Nessa esteira, não podemos negar a existência de um tempo psicológico, cujo exemplo inaugural são as Confissões, de Santo Agostinho, nascendo, assim, um dos primeiros romances autobiográficos. REFLITA Isso nos coloca numa nova questão temporal, teriam os romances biográficos e os autobiográficos o mesmo tratamento temporal? No romance biográfico existe um personagem, um “Eu” como elemento central, além disso, reside aqui um narrador e o autor que não são a mesma pessoa; e mais, um narrador e um protagonista que não são necessariamente a mesma pessoa. Ou seja, é um autor, que se configura num tipo de narrador que trará elementos de uma história de uma pessoa, um “Eu”. Portanto, uma noção do tempo pautada pelo discorrer do narrador, e não necessariamente do “eu”. Isso diverge de um romance autobiográfico, pois pressupõe que o “Eu”, o narrador e o autor possam ser até a mesma pessoa. Reside aqui uma espécie de intimidade, uma experiência diferenciada sobre o outro. Diferentemente do primeiro gênero, o leitor realmente é colocado na esfera íntima dos pensamentos do “Eu”, sendo, logo, uma narração intradiegética. Tópicos Avançados da Teoria Literária 25 Leia o trecho a seguir: Detesto ainda agora essa gente depravada e corrupta, mas amo-a também para corrigi-la e ensinar-lhe a dar preferência à doutrina que aprendem mais do que ao dinheiro, e para que te apreciem, meu Deus, mais a ti do que à própria doutrina, a ti que és a verdade, a abundância de felicidade segura e de paz puríssima. (AGOSTINHO, 1987, p. 132) Ou seja, a pendência entre biografia e autobiografia está na forma de conceber um sujeito em “si mesmo”. Neste arcabouço, precisamos dizer que, em termos de narrativa literária, sobretudo no que tange ao tratamento do tempo, devemos aqui ter alguma cautela, pois o autor não pode trabalhar referenciais temporais inexistentes, ou pelo menos inexplicáveis a tal ponto que seja incompreensível. Existem determinadas leis sobre o tempo e elas devem ser respeitadas. O ser humano, por exemplo, é capaz de, por meio de seus conhecimentos de mundo, identificar novos espaços, novas formas, pois sua mente irá procurar referenciais já vistos ou sabidos para imaginar e compreender o que o autor descreve. Porém, o tempo funciona diferente, pois nossos olhos alcançam uma gama de eventos temporais, e precisam de referenciais sólidos para que o leitor consiga compreender o que se pede. Isso se dá porque, como tempo é algo relativo, nosso cérebro precisa nutrir-se de algumas informações simples para nos dar alguma noção sobre o tempo, por isso ele faz uso dos cinco sentidos. EXPLICANDO MELHOR Para entender melhor, vamos exemplificar com uma situação: se formos mantidos num quarto escuro por muito tempo, nosso cérebro começa a perder suas noções de tempo de forma tão plena, que se torna impossível saber quantas horas ou dias se passaram. Tópicos Avançados da Teoria Literária26 Um outro exemplo: algumas pessoas costumam despertar de manhã ao ouvirem o barulho na cozinha dos pais fazendo o café da manhã. Embora o barulho faça uma pessoa despertar de imediato, no dia em que aquela pessoa que cozinha logo cedo perde a hora, a outra não desperta. Ou seja, o cérebro habituou-se em despertar com o barulho da cozinha. Também, depois de alguns dias com o despertador disparando na mesma hora, há quem passa a acordar habitualmente nas mesmas horas, mesmo sem o despertador. Isso se dá porque o cérebro é treinado para isso. São noções do tempo que, de certa forma, fogem do controle cronológico e começam a entrar na esfera do controle psicológico. REFLITA Todos esses exemplos foram aqui demonstrados para que você, aluno, entenda que o tempo deve ser descrito com referenciais terrenos ou similares. Nada impede que num conto de ficção científica o tempo seja demonstrado em mais horas do que as 24 h conhecidas. Mas necessitamos que a nossa métrica de horas terrenas sejam um parâmetro. Dessa forma, o autor, por intermédio de seu narrador, irá levar sua narratividade organizando uma diferenciação de fenômenos, asseverando sentimentos com o apoio temporal, constituindo uma nova experiência de mundo levando o leitor para uma experiência de si. Os fenômenos naturais formam, no leitor, uma experiência defronteira temporal. Ao dizer que os eventos começam a ser narrados no raiar do dia e terminados no cair da noite, inicia-se um processo, no leitor, de delimitação temporal, embora abstrata, mas com solidez suficiente para que ele entenda toda a ambientação. Entretanto, os fenômenos naturais não são os únicos marcadores do tempo, apenas são uma única modalidade entre várias. O tempo pode ser marcado pela ordem psicológica, como vimos, assim como por elementos linguísticos dos mais variados, sendo responsáveis por dar aporte ao leitor para limitar as fronteiras temporais. Tópicos Avançados da Teoria Literária 27 Leia atentamente o texto abaixo: Nunca amei ninguém. O mais que tenho amado são sensações minhas – estados da visualidade consciente, impressões da audição desperta, perfumes que são uma maneira de a humildade do mundo externo falar comigo, dizer-me coisas do passado (tão fácil de lembrar pelos cheiros) -, isto é, de me darem mais realidade, mais emoção, que o simples pão a cozer lá dentro na padaria funda, como naquela tarde longínqua em que vinha do enterro do meu tio que me amara tanto e havia em mim vagamente a ternura de um alívio, não sei bem do quê [...] É esta a minha moral, a minha alma ou o eu: Transeunte de tudo – até de minha própria alma, não pertenço a nada, não desejo nada, não sou nada – centro abstracto [sic] de sensações impessoais, espelho caído sentiente [sic] virado para a variedade do mundo. Com isto, não sei se sou feliz ou infeliz, nem me importa. (PESSOA, 2006, p. 218) EXPLICANDO MELHOR Aqui, observamos um resgate de uma recordação compondo, além do espaço, o tempo. Vê-se que o autor- personagem nos coloca os sentimentos sobre um desenho de um lugar, isso fica nítido em vários momentos como em “na tarde longínqua em que vinha do enterro do meu tio”. Mas ao dizer “nunca amei ninguém”, o narrador colocou um limite temporal usando o pretérito perfeito do verbo amar. Aqui, o tempo não está cravado como um evento temporal físico, externo, mas como um evento temporal interno, psicológico. Essa associação entre interno-externo reflete, portanto, uma dicotomia. Do lado externo, deparamo-nos com as representações temporais absorvidas pelo indivíduo por meio de seus conhecimentos de mundo; do lado interno, encontramos uma realidade testemunhada nas palavras do personagem, representando, de tal modo, uma extensão de sua experiência interna construída dialogicamente com o leitor. Tópicos Avançados da Teoria Literária28 Sendo assim, a realidade externa e interna são variantes mútuas do tempo, as quais criam no leitor uma sensação que ele pode trafegar num mundo material de eventos naturais, num mundo imaterial, numa jornada em si mesmo, dialogando com o narrador. RESUMINDO Logo, na caracterização do cronótopo sugerida por Bakhtin, estabelecem-se reflexões acerca dos elementos que extrapolam o universo literário formal, desenvolvendo uma demanda que carece de uma análise de dois vetores, quais sejam, intratextuais e extratextuais. Reforçamos que o texto é uma manifestação cultural e, como tal, é visto nas esferas discursiva, social e histórica. Levando-se em conta que a obra literária é uma construção fictícia, ela funciona como uma poderosa de metáfora para a vida real. O tempo, sendo objeto de grande relatividade, precisa ser regido por leis físicas conhecidas pelo homem dentro de seus conhecimentos de mundo. Sendo assim, é impossível para nós extrapolarmos as leis físicas do tempo, podendo incorrer o autor num forte pecado, que é deixar sua obra incompreensível. O tempo, então, guarda duas manifestações, a psicológica e a cronológica, que vivem em mutualismo, sem necessidade de uma excluir a outra. Destarte, as orientações aqui constituídas revelam mais do que nunca a necessidade de organização das experiências formadas na narratividade pelo do cronótopo, fazendo-se claro, como um girassol ao sol, que a discursividade tão demostrada por Bakhtin deve traduzir uma experiência paralela da realidade. Os constructos teóricos sobre cronótopo, como veremos a frente, não são exclusivos do tempo, mas também do espaço, assunto este que iremos abordar mais a fundo no próximo capítulo. Tópicos Avançados da Teoria Literária 29 O Espaço INTRODUÇÃO Neste capítulo trataremos em específico do espaço, suas características e como regularmente ele é apresentado na Literatura acadêmica. Também vamos entender os motivos de ele manter uma relação indissociável com o tempo, objeto do capítulo anterior. . Agora que identificamos alguns apontamentos possíveis e relações viventes entre o tempo e a obra narrativa, resta-nos, portanto, fazer imperativas considerações sobre o cronótopo em sua vertente espacial. Considerando então o tempo como algo relativo, que está num plano intratextual e extratextual, aqui, quando trataremos de espaço não será tão diferente. EXPLICANDO MELHOR Para seguirmos, precisamos quebrar um paradigma. Muitas vezes, quando estamos nas cadeiras escolares, é comum que alguns professores apontem que existam três grandes gêneros textuais, a narração, a descrição e a dissertação. Na verdade, isso é uma imprecisão técnica. Enquanto um gênero textual é, em poucas linhas, um formato textual que limita uma tendência de texto para um determinado fim social. Porém, a narração, a descrição e a dissertação são formatos textuais que servem para discorrer determinados circunstâncias. Hoje, são chamados de tipos textuais. Um tipo textual segue uma vertente de entendimento mais aberta, pois irá ser um instrumento estrutural que irá conduzir um discurso. De um ponto de vista estruturante, a narração, a descrição e a dissertação guardam mais afinidades que diferenças. Isso pode ser bem avaliado Tópicos Avançados da Teoria Literária30 quando nos debruçamos num romance, por exemplo, e constatamos que é comum termos elementos dos três tipos textuais. Nesse sentido, uma narração, descrição e dissertação não formam um gênero, pois elas não formam por si só um texto direcionado para um grupo textual. Eles são instrumentos de uma instalação de um discurso. EXPLICANDO MELHOR Para que fique ainda mais claro, miremo-nos no gênero textual carta, por exemplo: é comum narramos eventos pretéritos (narração), fazermos descrição de pessoas (descrição) e lançarmos alguma opinião (dissertação). Nesta esteira, tipos textuais são os principais instrumentos para descrever um cronotópo numa obra literária. Veja o trecho abaixo: Ficara sentada à mesa a ler o Diário de Notícias, no seu roupão de manhã de fazenda preta, bordado a sutache, com largos botões de madrepérola; o cabelo louro um pouco desmanchado, com um tom seco do calor do travesseiro, enrolava-se, torcido no alto da cabeça pequenina, de perfil bonito; a sua pele tinha a brancura tenra e láctea das louras; com o cotovelo encostado à mesa acariciava a orelha, e, no movimento lento e suave dos seus dedos, dois anéis de rubis miudinhos davam cintilações escarlates. (QUEIROZ, 1994, p. 11) No texto de Eça de Queiroz, descreve-se: uma moça bela, cedo da manhã, em seus trajes, seu penteado e a posição em que se encontrava. O espaço, aqui, é demonstrado por intermédio da descrição. Embora o espaço seja para nós dissociado, para fins acadêmicos, do tempo, no plano prático, eles estão mutuamente aglutinados. Isso fica bem demonstrado no enxerto acima, pois além de ser possível definir o lugar onde se passa a ação, as condições temporais estão lá expostas. Note que a descrição da mulher não veio dissociada de tempo, que era de manhã. Tópicos Avançados da Teoria Literária 31 Portanto, podemos dizer que os eventos são marcados por estados numa camada temporal, inevitavelmente, eles ocorrem numa camada espacial, em algum lugar. Dessa forma, podemos concluir que, em uma narrativa, que o espaço é o elemento ilustrativo, visível, já o tempo é, muitasvezes, invisível. DEFINIÇÃO Nesse sentido, enquanto para Cardoso (2001, p. 40) “[...] o espaço é também aspecto intrínseco do texto narrativo, visto que nele se situam os eventos e os personagens”, Gancho, não se contentando com essa assertiva, amplia esse dizeres afirmando: O espaço tem como funções principais situar as ações dos personagens e estabelecer com eles uma interação, quer influenciando suas atitudes, pensamentos ou emoções, quer sofrendo eventuais transformações provocadas pelos personagens. Assim como os personagens, o espaço pode ser caracterizado mais detalhadamente em textos descritivos, ou as referências espaciais podem estar diluídas na narração. De qualquer maneira é possível identificar-lhe as características, por exemplo, espaço fechado ou aberto, espaço urbano ou rural, e assim por diante. (GANCHO, 2004, p. 23) Porém, mesmo diante disso, Cardoso (2001) assevera que é impossível espelhar qualquer espaço em sua integralidade em uma obra, visto que muitos detalhes eventualmente seriam esquecidos. Mesmo assim, estamos diante de uma obra poética em que apenas o que é dito é relevante para a obra, e o que é omitido foi propositalmente assim feito, por não ter relevância. Destarte, espaço é a ambientação visível que nos é entregue pelo narrador. Nos termos de Cardoso (2001), vemos que ele tem uma vastidão semântica, pois: Tópicos Avançados da Teoria Literária32 [...] espaço não se restringe a uma localização identificável no mapa, pois, ao elemento físico, articula o social, com suas características, tais como tradições, usos, costumes, valores morais, artísticos e sentimentais, aspecto econômico e político articulados ao contexto histórico que os modificou e continua a modificá-los. (CARDOSO, 2001, p. 40) Alguns autores vão, inclusive, caracterizar espaço e ambiente como algo diferente. Gancho (2004) afirma que: O termo espaço, de um modo geral, só dá conta do lugar físico onde ocorrem os fatos da história; para designar um “lugar” psicológico, social, econômico etc., empregamos o termo ambiente. (GANCHO, 2004, p. 23) EXPLICANDO MELHOR Embora esse debate seja, de certa forma, irrelevante, parece- nos sensato manter, ao menos pela finalidade didática, uma separação ideológica entre espaço e ambiente. Teríamos, assim, uma separação desse elemento do cronótopo operando em duas frentes, uma interna e outra externa, assim como fizemos quando tratamos do tempo. Os elementos externos do espaço seriam tudo que os olhos do leitor alcançam, ou tudo que o narrador permite que o leitor veja. Ao descrever uma sala, por exemplo, o narrador estaria demonstrando fisicamente as paisagens relevantes para a construção de um cenário. Já em sede interna, o leitor iria se debruçar em outras características socioculturais direcionadas pelo cenário construído. Imaginemos uma narrativa em que um imigrante, ao chegar em terra firme após dias numa embarcação, recai num ponto de comércio. Lá, ele irá observar as vestes das pessoas, as coisas novas ali nunca vistas, iria observar os costumes, as línguas faladas, as moedas trocadas, enfim, toda essa sensação não topográfica, mas geográfica suficiente, que irá nutrir a curiosidade do personagem e, por sua vez, do leitor a querer conhecer mais daquela região. Isso é, portanto, a ambientação. Tópicos Avançados da Teoria Literária 33 IMPORTANTE Esses processos funcionam de forma simultânea, assim como a relação tempo e espaço, tornando-os indissociáveis. Vejamos, se o espaço de uma narrativa é deliberado como sendo o lugar onde se passa a ação, assim, todos eventos que ali se passam têm uma duração de tempo. O local, portanto, só é relevante porque há nele alguma intervenção, caso contrário ele não seria narrado. Desse modo, todos os estados ali transformados sofreram uma intervenção temporal. Imagine você, em sua casa, assistindo sua caneta caindo da mesa de estudos em direção ao chão, veremos a mesa, seus outros materiais, a trajetória, o piso e o entorno de tudo isso, criamos a sensação de tempo transcorrido durante esta ação. O tempo, aqui invisível, preenche o espaço que é a matéria visível. Assim como o tempo é cronológico e psicológico, o espaço, por ser preenchido por ele, irá permitir estas duas modalidades de percepção: “Há um espaço físico (externo) e outro psicológico (interno) no texto. O espaço físico é o ambiente em que o conflito se desenrola” (GANCHO, 2004, p. 23). Para além do espaço e do ambiente, alguns autores irão caracterizar o cronótopo espacial por outras formas, incluindo o que chamam de clima: É o espaço carregado de características socioeconômicas, morais, psicológicas, em que vivem os personagens. Neste sentido, ambiente é um conceito que aproxima tempo e espaço, pois é a confluência destes dois referenciais, acrescido de um clima. (GANCHO, 2004, p. 23, grifo do autor) IMPORTANTE Alguns autores entendem por clima “[...] o conjunto de determinantes que cercam os personagens, que poderiam ser resumidas às seguintes condições: socioeconômicas; morais; religiosas; psicológicas” (GANCHO, 2004, p. 24). Tópicos Avançados da Teoria Literária34 Nessa corrente, o ambiente é uma formação entre o espaço e o clima entornados pelo tempo. Exatamente por entenderem que o ambiente não é precisamente um componente estruturante ativo para a narrativa, sendo, desse modo, um componente de apoio, um resultado da “mútua permeabilidade” de espaço e tempo. EXPLICANDO MELHOR Para entendermos os dizeres até que proferidos, proponho um exercício narrativo. Numa situação hipotética, imaginemos uma narrativa em que um candidato a prefeito de uma cidade interiorana da década 50 inicia seu discurso num sol de céu limpo ao meio-dia, ele trajava vestes típicas daquela época. Usava um terno e gravata em tons sóbrios de verde, que combinavam com seu chapéu panamá bege. Ele inicia seu discurso à frente do microfone para uma plateia com cerca de cem pessoas. Porém, conforme as palavras iriam sendo proferidas, as pessoas iam se afastando do comércio ali perto para ouvir aquele homem falar. Diziam, enquanto ele discursava, que era um homem do povo, entretanto, nem todos os presentes entendiam as palavras ali pronunciadas. Quase todos eram agricultores, sem escolaridade em sua maioria. Estavam do lado ao candidato: sua esposa, com quem ele tivera três filhos varões, contudo, diziam que o filho do meio era proveniente de uma relação extraconjugal com bancário da única instituição financeira daquela cidade; e seus confrades de partido. Num momento de exaltação, o candidato leva a mão ao microfone, e dele toma uma descarga elétrica o que faz com que ele morra instantaneamente. Todos ali presentes ficaram sem entender o que ocorrera. Perguntavam para si o porquê de um homem tão bom orador ter interrompido sua dicção. A mulher, sua esposa, gritava consternadamente, seus amigos ficaram perturbados, foi quando José do Pastor Miguel, que era metido a consertar as coisas, ofício que estava aprendendo com seu tio, foi observar a razão daquilo, e, cuidadosamente seguindo a fiação, descobriu que o fio do microfone teria sido manipulado de forma criminosa. Tópicos Avançados da Teoria Literária 35 EXPLICANDO MELHOR Como é de costume, existe a inserção dos personagens em todo início de narrativa, aparentemente o candidato até onde se mostra, é o personagem principal. O tempo está caracterizado de várias formas, como em “sol de céu limpo ao meio-dia” e “Porém, conforme as palavras iriam sendo proferidas, as pessoas iam se afastando do comércio ali perto para ouvir aquele homem falar”. O espaço é caracterizado pelo lugar, aparentemente público, próximo ao comércio. O clima é caracterizado pelo burburinho dos comentários daqueles que ouviam o discurso como em: “Diziam, enquanto ele discursava, que era um homem do povo, entretanto nem todos os presentes entendiam as palavrasali pronunciadas. Quase todos eram agricultores sem escolaridade em sua maioria”. Todos os outros elementos podem ser entendidos como ambiente. Alguns outros elementos narrativos, como o que foi falado sobre mulher, filhos e possível relacionamento extraconjugal, apenas servem para entregar detalhes que futuramente poderiam ser explorados. O ambiente é a confluência mútua entre o tempo e o espaço, será dele a responsabilidade, na obra, de estabelecer as personagens nas condições em que vivem, não só apresentando traços do tempo, espaço, mas do grupo social e cultural em que estão insertas. Além disso, é no ambiente que podemos ver as projeções dos conflitos jazidos pelas personagens. Dessa forma, é nele que iremos ter um reflexo das características das personalidades das personagens ou dos acontecimentos que sucedem. Também não é incomum vermos o ambiente apresentar hostilidade e ele mesmo ser o centro do conflito com as personagens, fazendo oposição a estas, sendo o ambiente o antagonista ou rival. Tópicos Avançados da Teoria Literária36 NOTA Nas unidades passadas falamos da versão recente do filme Robcop. Lembram-se que falamos que o sistema era o antagonista? Pois bem, é sobre esse fenômeno que estamos falando. EXPLICANDO MELHOR Num enredo de aventura, o herói precisa achar o tônico místico que irá salvar sua dama que fora envenenada acidentalmente. O tônico está num castelo, num reino longínquo e sombrio. A edificação em tela é feita de inúmeras armadilhas e labirintos, além disso, dentro dela circulam os espíritos malignos dos que tentaram adquirir o artefato mágico e não conseguiram. Na descrição acima de um possível enredo, toda a ambientação será a antagonista do herói. Note, não falamos aqui que houve um antagonista personificado. Toda a situação imposta faz oposição, porém, é de se poder imaginar que será na ambientação do castelo onde o herói irá enfrentar seus desafios. O tempo cronológico entre o fato gerador até o castelo torna-se irrelevante, deixando para o leitor imaginar e complementar as lacunas. Uma vez que o espaço e o clima entre o fato gerador ficam prejudicados por não terem descrição do narrador, fica a critério do leitor imaginá-los. Ou seja, o ambiente foi prejudicado. Mas uma coisa interessante disso tudo, é que, hoje, vivemos numa era muito visual, em que filmes, séries e telenovelas habitualmente são vistas, embora possamos afirmar que em nível intratextual o cronótopo resta-se prejudicado, já que muitos detalhes foram omitidos pelo autor, em nível extratextual, o cronótopo restou-se suficiente, haja vista que o leitor irá complementar as lacunas espaço-temporais com seu imaginário ou conhecimento de mundo. Tópicos Avançados da Teoria Literária 37 IMPORTANTE Desse modo, o ambiente pode ser preenchido pelos conhecimentos de mundo ou ser totalmente imaginário, o que não irá comprometer o corpo do texto, ou seja, o tema do enredo. Isso se dá, muitas vezes, porque o leitor irá se imaginar como cocriador da história, mesmo que não seja ele quem a conduz. Isso nos faz voltar ao sistema de significante e significado de Saussure. É comum, quando lemos uma obra, tentar prever os próximos passos da trama, uma vez que já estamos habituados a certos níveis de previsibilidade. Exemplo Por exemplo, é comum numa narrativa de história em quadrinhos termos dois finais elementares que partem da premissa que o super- herói irá vencer o embate final. Assim, ao término da história, ou o vilão morrerá ao final, ou fugirá para retornar numa possibilidade de vingança. Todos que leem uma história desse tipo já aguardam regularmente esse final. Esse ato de aguardar o final, esperar o que irá acontecer, está para a esfera do significante, e a concretização do final está para o significado. Por estarmos cada dia mais com a conduta visual mais ativa, isso dá ao leitor um olhar de câmera, e o faz ser indiretamente um narrador, construindo com o autor uma história, na medida em que as lacunas do cronótopo irão sendo preenchidas. A “espacialização do tempo” ou a “temporalização do espaço” empreendidas pela câmera há mais de cem anos permitem que hoje, nas narrativas contemporâneas, as realidades ficcionalmente representadas não sejam únicas, mas plurais, incluindo “mundos possíveis” no tempo e no espaço — como fizeram Borges e Calvino, maravilhosamente —, construídos pela memória, pelo sonho ou pelo desejo (daí seu parentesco com o fantástico e a ficção científica). (PELLEGRINI, 2003, p. 24) Tópicos Avançados da Teoria Literária38 REFLITA Ainda sobre o ambiente, podemos apontar que esse elemento pode fornecer indícios para o fluxo do enredo ou até mesmo para o final dele. Isso é mais comum em narrativas policiais/investigativas, ou ainda, de suspense ou de terror. O ambiente irá fornecer pistas para o desfecho de forma que só alguns leitores mais proficientes irão detectar esses elementos singulares. É claro que quanto mais pobre narrativamente o texto, mais pobre será o ambiente. Isso se dá geralmente em narrativas breves, transmitindo um enredo impreciso em questões de tempo e espaço. É claro que, apesar de a riqueza de detalhes ser algo extremamente necessário para uma construção narrativa, é verdade que para os leitores da era digital essa prática descritiva não seja tão relevante. EXPLICANDO MELHOR Em nossa prática em sala de aula, por exemplo, notamos que embora os filmes inspirados em histórias em quadrinhos sejam um sucesso atual nos cinemas, percebemos que poucos são os espectadores que vão para as bancas adquirirem os exemplares, e os que o fazem, contrastam os aspectos narrativos e audiovisuais querendo, em princípio, a sensação do texto transmitido nos cinemas nas páginas da revista. Isso não se dá de forma inversa. Em regra, o público de quadrinhos tem a curiosidade de ter uma experiência melhorada da que tinha nas revistas, uma vez que com o audiovisual aflorado nas telas de cinema, os movimentos e sons ganham mais contorno, mais forma. Isso ocorre justamente porque a ambientação no cinema é mais real que os traços do quadrinho. Tópicos Avançados da Teoria Literária 39 Nas narrativas curtas, como um conto, por exemplo, podemos observar que apenas poucos traços temporais e espaciais são delineados; já em um romance, a passagem temporal e as transições espaciais são mais bem elaboradas. RESUMINDO Assim como o tempo, o espaço permite uma compreensão intratextual e extratextual. Ele é definido por uma relação geográfica e outra social. Tempo e espaço são indissociáveis e sua conjunção é chamada de ambiente por alguns autores e, por outros, o ambiente será composto pelas características socioambientais do espaço. Tópicos Avançados da Teoria Literária40 Os Personagens INTRODUÇÃO Aqui, neste último capítulo, iremos nos despedir tratando os últimos elementos da narrativa, os personagens nas histórias ficcionais, trazendo toda sua importância e suas categorizações acadêmicas.. Como se sabe, para a consolidação de um texto narrativo são imperativos elementos como, espaço, tempo, enredo, entre outros. Esses são, academicamente falando, denominados de elementos da narrativa. Como já se pode perceber, o personagem é um ser fictício, construído para ser uma representação narrativa da atividade humana. Nesse sentido, temos: A construção de personagens obedece a determinadas leis, cujas pistas só o texto pode fornecer. Se nos dispusermos a verificar o processo de construção de personagens de um determinado texto e, posteriormente, por comparação, chegarmos as linhas mestras que deflagram esse processo no conjunto da obra do autor, ou num conjunto de obras de vários autores, temos que ter em mente que essa apreensão é ditada pelos instrumentos fornecidos pela análise, pela perspectiva crítica e pelas teorias utilizadas pelo analista. (BRAIT, 1987, p. 68) Neste arcabouço, para Brait (1987),o personagem deve ser qualificado a partir de sua afinidade com o narrador, pois, para ela, o personagem pode aparecer no texto como o ser que vive a história. Para entendermos seus dizeres, devemos fazer uma reflexão, voltando aos conceitos de narrador anteriormente propostos nesta unidade. Tópicos Avançados da Teoria Literária 41 NOTA Independente da forma adotada pelo autor, o narrador é o elemento narrativo que vai mostrar inteira intimidade com enredo, ele é quem tudo sabe. Como já vimos, ele acompanha e conhece a história dos personagens. No caso de um narrador intradiegético, independentemente de ser homodiegético ou heterodiegético, ele é um personagem, é inserido no enredo, pouco ou muito participa da ação. Para tal, ele necessita de uma intimidade com aquilo que se e narra, e mais, só sabe da história pois teve acesso a ela ou porque a viveu, ou porque um outro personagem o contou. Isso faz com que o primeiro personagem que mereça ser analisado neste capítulo seja exatamente o narrador-personagem. Esse narrador é a câmera que falávamos no capítulo anterior, ele é quem porta o olhar de quem participa da trama. Diferente do narrador extradiegético, que apenas posiciona a câmera e registra os eventos somente mantendo-se contando a ação. [...] a condução da narrativa por um narrador em primeira pessoa implica, necessariamente, a sua condição de personagem envolvida com os ―acontecimento que estão sendo narrados. Por esse processo, os recursos selecionados pelo escritor para descrever, definir, construir os seres fictícios que dão a impressão de vida chegam diretamente ao leitor através de uma personagem. (BRAIT, 1987, p. 60) Portanto, o narrador intradiegético é o que vive as ações que ocorrem na narrativa e, ao mesmo tempo, é aquele que nos descreve a história, apresentando os fatos que incidem pouco a pouco no transcorrer das linhas e ao passo que vive os sentimentos com intensidade e propriedade. Esse é um personagem que poucos atentam. Muitos estudiosos o estudam como narrador, mas poucos o olham como personagem, o que é um erro, pois independente de qual forma ele possa vir a ter na narrativa, é ele quem tem a visão mais próxima de todos os eventos. Tópicos Avançados da Teoria Literária42 De forma geral, o personagem é tradicionalmente o elemento da narrativa que permite mais alegorias. São investidos de bichos, homens ou até coisas. São definidos no enredo pelo que dizem ou fazem. São marcados pelo exame e ações que têm, e estão suscetíveis ao alvitre do narrador e dos outros personagens. VOCÊ SABIA? Na antiguidade clássica, os personagens geralmente gozavam de uma única personalidade, de um único destino, de uma única faceta. Embora esse ideário ainda persista, ele é pueril comparado as narrativas modernas que apresentam personagens cada vez mais multifacetados. Isso posto, podemos ir à frente e verificar que a marcha do romance moderno (do século XVIII ao começo do século XX) foi no rumo de uma complicação crescente da psicologia das personagens, dentro da inevitável simplificação técnica imposta pela necessidade de caracterização. 1) como seres íntegros e facilmente delimitáveis, marcados duma vez por todas com certos traços que os caracterizam; 2) como seres complicados, que não se esgotam nos traços característicos, mas têm certos poços profundos, de onde pode jorrar a cada instante o desconhecido e o mistério. (CANDIDO, 1995, p. 9) Por ter havido uma mudança de arquétipo dos personagens, os estudiosos passaram a dividi-los em dois grandes grupos: os “personagens de costumes” e os “personagens de natureza”. Os personagens de costumes se habituam a ser muito divertidos e ganham tratamento superficial, ao passo que os personagens de natureza são aqueles em que podemos imergir em seus sentimentos, são mais densos e requerem uma caracterização mais robusta. Tópicos Avançados da Teoria Literária 43 DEFINIÇÃO Analisando de forma mais acurada, Candido (1995) assim afirma sobre “personagens de costumes”: As “personagens de costumes” são, portanto, apresentadas por meio de traços distintivos, fortemente escolhidos e marcados; por meio, em suma, de tudo aquilo que os distingue vistos de fora. Estes traços são fixados de uma vez para sempre, e cada vez que a personagem surge na ação, basta invocar um deles. Como se vê, é o processo fundamental da caricatura, e de fato ele teve o seu apogeu, e tem ainda a sua eficácia máxima, na caracterização de personagens cômicos, pitorescos, invariavelmente sentimentais ou acentuadamente trágicos. Personagens, em suma, dominados com exclusividade por uma característica invariável e desde logo revelada. (CANDIDO, 1995, p. 57) DEFINIÇÃO Com a mesma presteza, Candido (1995) pondera sobre “personagens de natureza”: As “personagens de natureza” são apresentadas, além dos traços superficiais, pelo seu modo íntimo de ser, e isto impede que tenham a regularidade dos outros. Não são imediatamente identificáveis, e o autor precisa, a cada mudança do seu modo de ser, lançar mão de uma caracterização diferente, geralmente analítica, não pitoresca. Traduzindo em linguagem atual a terminologia setecentista de Johnson, pode-se dizer que o romancista “de costumes” vê o homem pelo seu comportamento em sociedade, pelo tecido das suas relações Tópicos Avançados da Teoria Literária44 e pela visão normal que temos do próximo. Já o romancista de “natureza” o vê à luz da sua existência profunda, que não se patenteia à observação corrente, nem se explica pelo mecanismo das relações. (CANDIDO, 1995, p. 57) Há quem traga outra dicotomia dentro da caracterização dos personagens. Neste arcabouço, existem os personagens planos, esses são mais monótonos aos dias de hoje, por serem instituídos de uma única ideia ou qualidade. A partir do momento em que passam a ter mais ideias, vão ganhando mais contornos, portanto, são chamados de personagens esféricos. Ante a essas tentativas de caracterização, isso nos levará a uma antecipação de nossas conclusões, pois passamos a notar que o personagem cada vez mais aparenta que está vivo ou que é como um ser vivo. Coadunando com o que vimos na primeira unidade, na qual trouxemos à baila o jargão aristotélico “a arte imita a vida”. Embora toda narrativa seja uma imitação da realidade, é com os personagens que o público terá sua maior afeição. Forster (1974) brilhantemente exemplifica essa questão: Se a personagem de um romance é, exatamente, como a rainha Vitória, (não parecida, mas exatamente igual), então ela é realmente a rainha Vitória, e o romance, ou todas as suas partes que se referem a esta personagem, se torna uma monografia. Ora, uma monografia é história, baseada em provas. Um romance é baseado em provas, mais ou menos x; a quantidade desconhecida é o temperamento do romancista, e ela modifica o efeito das provas, transformando-o, por vezes, inteiramente. (FORSTER, 1974, p. 44) Todavia é extremante imperativo dizermos que os personagens aqui ditos são fictícios, ou seja, produzem alguma verossimilhança com a realidade. Contudo, de forma curiosa, Mauriac (1952) irá propor uma classificação dos personagens pelo grau de verossimilhança deles. Todavia, seu trabalho limitou-se aos personagens de romance, mas merecem aqui sua menção honrosa. Tópicos Avançados da Teoria Literária 45 DEFINIÇÃO São elas: • Disfarce leve do romancista – em poucas palavras, é a categoria que o autor minimamente recobriu de elemento fictício o personagem. • Cópia fiel de pessoas reais – aqui, como o nome já diz, não houve retoques fictícios, esses personagens são comuns em romances retratistas. • Inventadas – são as personagens realmente fictícias, criadas a partir de elementos humanos. Com isso, Mauriac (1952) nos coloca um impasse, pois o que seria realidade, ficção ou cópia da realidade? Embora possa parecer uma questãoparadoxal, Candido (1995) se mostra bem resoluto em muitas de suas falas quanto a isso, como em: A personagem é um ser fictício, — expressão que soa como paradoxo. De fato, como pode uma ficção ser? Como pode existir o que não existe? No entanto, a criação literária repousa sobre este paradoxo, e o problema da verossimilhança no romance depende desta possibilidade de um ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica a impressão da mais lídima verdade existencial. Podemos dizer, portanto, que o romance se baseia, antes de mais nada, num certo tipo de relação entre o ser vivo e o ser fictício, manifestada através da personagem, que é a concretização deste. (CANDIDO, 1995, p. 62) Nesse sentido, ao transpormos uma personagem com relativa fidelidade, ela se torna uma prospecção do escritor na obra literária, de forma que ela incorpora a sua vivência, aos seus sentimentos. Porém, há personagens transpostas de modelos anteriores, feitas de arquétipos anteriormente pré-moldados ou já preconcebidos, dos quais o autor foi buscar como modelo. Tópicos Avançados da Teoria Literária46 Por fim, existem personagens construídas em torno de um modelo, nesse caso, a partir das vivências e movimentos criativos, o autor cria uma personalidade, dando vida a um personagem original, inédito. Difere, ainda, de personagens construídas a partir de um modelo real, aqui inspirado por um único arquétipo, uma pessoa real, o autor irá criar um enredo e nele propor um ideário fictício. Pode acontecer que, ao invés de ser um único arquétipo, o autor resolva iniciar a construção de um personagem a partir de um eixo geral e preenchê-lo com modelos secundários, ou ainda fragmentar vários arquétipos em um personagem sem deixar um sobressalente. EXPLICANDO MELHOR Para entender melhor nossos dizeres, vamos produzir um exercício prático. Vamos tomar por base uma narrativa do pré-renascimento e, hipoteticamente, vamos construir um personagem da região da Escandinávia, o que se convencionou a chamar de Viking. O Autor tem as seguintes possibilidades de construção desse personagem: 1. Numa esfera normal, o nosso Viking seria alto, provavelmente de cabelos longos, tatuagens, austero e impiedoso. 2. Havia muitos Vikings famosos, então, o autor poderia construir um personagem a partir de uma coletânea de informações desses Vikings em comento. 3. O autor também poderia construir um personagem Viking de acordo com relatos de histórias do que ouvira de seres humanos reais, isso poderia levá-lo a ter alguma deturpação da concepção, mas ainda assim, poderia fazer um personagem fictício baseado num ser humano real. 4. O autor poderia construir um personagem por meio de moldes padronizados de um Viking a partir de costumes, mas não necessariamente com base numa pessoa ou pessoas escandinavas específicas. Tópicos Avançados da Teoria Literária 47 5. O autor poderia ter um molde dominante, o que se tem como um homem Viking médio, não sendo um herói de guerra, apenas um guerreiro padrão, e dele criar um personagem. 6. O autor poderia coletar amostras, e delas extrair comportamentos padrões e secundários e tomar duas decisões. Ou caracterizar o seu personagem com todos esses elementos. 7. Ou escolher as características mais preponderantes para fazer o seu personagem. Por fim, mesmo após essas decisões em sua coleta de dados, se o autor entender que houve perecimento ou lacunas, ele pode ainda preenchê-las criando outros traços. DEFINIÇÃO Drácula é um exemplo de como essas eleições conseguem caracterizar um personagem. Não há relatos precisos sobre a figura real, mas os mitos foram criados sobre o príncipe romeno Vlad III Dracul. Ele era um guerreiro destemido e extremamente cruel com seus oponentes, aplicando penas severíssimas, daí sua fama de sanguinário. Fundamentado nas lendas que contavam acerca do romeno, associado a fama do Castelo de Bran, na Transilvânia, construído em 1211, Bram Stoker criou um personagem, o Drácula, e inaugurou um novo tipo de romance, um gênero de terror em 1897. De lá para cá, muitos adotaram o personagem de Bram Stoker como padrão, a imagem que hoje temos associada no imaginário coletivo só começou a ser moldada graças aos filmes de terror que surgiram após 1920. Do terror, Drácula já foi adaptado para aventuras, comédias, romances românticos, e muitos outros gêneros. Além do mais, também foi fonte de inspiração para personagens fictícios inverossímeis, como o Batman. Tópicos Avançados da Teoria Literária48 Isso mostra o quanto um personagem, mesmo criado a partir de uma figura real, permite uma gama imensa de possibilidades, sendo capaz de atravessar gerações. Tal aspecto nos faz trazer uma nova conclusão antecipadamente, ou seja, que a natureza da personagem irá depender da concepção da qual se presta a obra, bem como das intenções do autor. EXPLICANDO MELHOR Voltando ao exemplo do Drácula. Uma obra de terror, em regra, não terá alívios cômicos, nesse sentido, todos os personagens serão cobertos de sobriedade. Numa obra cômica, os estereótipos são jocosos, a ponto de que, muitas vezes, até as personagens sérias têm seus momentos divertidos. Numa trama de aventura, em regra, todos as características dos personagens são elevadas para favorecer algum ponto da aventura, é comum nesse tipo de enredo personagens com sede por novas descobertas, com conhecimento elevado em história e dominando algum tipo de luta marcial. Isso faz com que cada personagem ali colocado tenha alguma razão. Por isso, vamos revisar como os personagens se posicionam no enredo. O protagonista é aquele que terá o papel principal. Todos os eventos irão se passar em torno dele, geralmente ele está do início ao fim na obra, embora isso não seja uma regra. O protagonista, geralmente, aparece como o herói. Entre outras grandes características, esse tipo de protagonista sempre vai ter algum tipo de superioridade sobre uma coletividade, mostra-se como o mais bonito, o mais bravo guerreiro, o líder respeitável. Hodiernamente, tem ficado muito comum um protagonista como anti-herói. Neste caso, ele não é uma figura opositora ao herói na trama. O anti-herói é uma oposição ao ideário de herói. Enquanto um herói transmite senso de nobreza, o anti-herói apresenta características iguais ou inferiores às de seu grupo. Será o beberrão, um preguiçoso, um Tópicos Avançados da Teoria Literária 49 medroso, enfim, características negativas àquelas do herói. Porém, ele irá responder o chamado para aventura e irá cumpri-la da mesma forma que um herói. O antagonista, por seu turno, é o personagem que se opõe ao protagonista, atrapalhando toda ação deste, impedindo que ele cumpra sua missão, atrapalha agindo diametralmente em oposição às missões do protagonista. Esses são os principais, porém, como vimos na unidade 01, existem outros tantos personagens importantes. RESUMINDO Mais vale, das lições aqui tomadas, é que, embora tenham algum grau de ficção, os personagens sempre serão reflexo de algum atributo, sejam eles físicas, psicológicas, sociais, ideológicas ou morais. Podendo ter somente um desses atributos, como os personagens planos, ou todos os atributos, como os esféricos. Tópicos Avançados da Teoria Literária50 REFERÊNCIAS AGOSTINHO, S. Confissões. Tradução: J. O. Santos, A. A. de Pina. São Paulo: Nova Cultural, 1987. AMORIN, M. Cronotopo e exotopia. In: BRAIT, B. Bakhtin: outros conceitos- chave/Beth Brait. (org.). São Paulo: Contexto, 2006, p. 95-114. ASSIS, M. De. Memórias póstumas de Brás Cubas. Porto Alegre: LPM, 1997. 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