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Copyright © 2019 por Francisco Müssnich Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes sem autorização por escrito dos editores. revisão: Ana Grillo e Luis Américo Costa diagramação: Ana Paula Daudt Brandão capa: DuatDesign foto de capa: Ricardo Acioli adaptação para e-book: Marcelo Morais CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ M979c Müssnich, Francisco Cartas a um jovem advogado [recurso eletrônico]/ Francisco Müssnich. Rio de Janeiro: Sextante, 2019. recurso digital Formato: ePub Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions Modo de acesso: World Wide Web Inclui bibliografia ISBN 978-85-431-0713-4 (recurso eletrônico) 1. Direito. 2. Advocacia. 3. Advogados. 4. Livros eletrônicos. I. Título. 18-54163 CDU: 347.921.4 Todos os direitos reservados, no Brasil, por GMT Editores Ltda. Rua Voluntários da Pátria, 45 – Gr. 1.404 – Botafogo 22270-000 – Rio de Janeiro – RJ Tel.: (21) 2538-4100 – Fax: (21) 2286-9244 E-mail: atendimento@sextante.com.br www.sextante.com.br mailto:atendimento@sextante.com.br http://www.sextante.com.br Sumário Prefácio à primeira edição por André Esteves Prefácio por Judith Martins-Costa Apresentação Primeiras lições A formação do advogado Como estudar Pôquer, engenharia e teatro Tesouro da juventude Que tipo de advogado quero ser? Sem medo da tecnologia Vida real Prepare seu coração Made in USA O exame da Ordem Tendências da profissão Justiça no século 21 Ouvidoria, corregedoria e catecismo Depois do mestrado, novas lições Não leia: fale Construindo uma reputação O sonho do próprio escritório Linha direta O capital humano Advogadas: quem falou em minoria? A importância do voluntariado Quanto vale sua hora de trabalho? A alma do negócio A arte da negociação Vestir a camisa Falando sobre ética A importância da mídia Até breve Agradecimentos Sobre o autor Informações sobre a Sextante Prefácio à primeira edição por André Esteves Chico Müssnich nos relata, de forma leve e objetiva, um pouco do complexo universo do Direito nestas cartas dirigidas a um jovem advogado. A partir de sua rica experiência profissional, traz um útil aprendizado a todos que se interessam pelo Direito. Navega por diversas áreas – criminal, tributária, pública –, mas, naturalmente, é na área dos grandes negócios que nos dá o melhor do seu conhecimento. Todo o ritual das grandes transações e seus personagens característicos são explorados sob o ângulo do advogado, um observador privilegiado e, ao mesmo tempo, protagonista desses momentos. Tenho muito orgulho de ter compartilhado situações como essas ao lado de Chico Müssnich, quando a cumplicidade entre cliente e advogado chega ao seu ápice e os papéis por vezes se confundem, e quando um gesto, uma palavra, um sinal podem fazer a diferença entre uma boa ou má negociação. Além do nobre exercício do Direito, Chico Müssnich explora neste livro valores comuns a todos os profissionais de destaque e a importância do exercício pleno da cidadania. Dedicação, garra, foco nos interesses do seu cliente, dever de casa, inegociável respeito à ética são pilares para o pleno sucesso em qualquer profissão. Aproveitem. Maio de 2007 Prefácio por Judith Martins-Costa O principal contrato que liga o advogado aos seus clientes denomina-se contrato de mandato. Indica a etimologia que a palavra mandato vem de “dar a mão” (manus dare). Com essas saborosas e utilíssimas Cartas a um jovem advogado, que tenho a alegria de prefaciar, Chico Müssnich, literalmente, dá a mão a todos aqueles que se preparam para ingressar nessa difícil, aventurosa, complexa, mas muito gratificante carreira jurídica. Advoguei – no sentido estrito do termo, aquele que o liga às atividades de um contencioso exercido perante os tribunais – por relativamente pouco tempo. Na maior parte de minha vida profissional tenho sido professora e parecerista, atuando também como árbitra. Tenho, portanto, uma perspectiva privilegiada para conhecer e avaliar o trabalho de meus colegas de profissão. Ajuda também o fato de ter sido filha, neta, bisneta e trineta de advogados militantes – e ser casada com um deles. Com esse background, posso dizer, com a força de uma convincente expert witness, que estas Cartas dão aos que as lerem uma firme e sábia mão para aprender do que é feito um bom advogado e para refletir sobre os conselhos aqui contidos. Um advogado exerce muitos papéis. Não é à toa que nossa profissão balança na qualificação entre ser arte ou ciência (creio ser ambas); não é à toa que um dos capítulos foi intitulado de “Pôquer, engenharia e teatro”. Penso, todavia, que o mais próprio – e indeclinável – papel de um advogado é o de conselheiro. O advogado não é um preposto do seu cliente; é seu conselheiro. Quem aconselha não apenas informa, não se limita a oferecer um “palpite”: “dar um conselho”, explica Sinde Monteiro, “significa dar a conhecer a uma outra pessoa o que, na sua situação, se considera melhor ou mais vantajoso e o próprio faria se estivesse em seu lugar”, com o que “o conselho contém um juízo de valor acerca de um acto futuro do aconselhado, em regra ligado a uma explicação”.1 1 SINDE MONTEIRO, Jorge Ferreira. Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações. Coimbra: Almedina, 1989, p. 15. Destaquei. Para exercer o dever profissional de conselheiro, tem o advogado um ônus jurídico. Este é o de conhecer a Ciência do Direito e as técnicas da profissão. É muito estudar e argutamente observar. É o que diz o autor no capítulo denominado “Que tipo de advogado quero ser?”. Após afirmar ser preciso conhecer os vários ramos do Direito, Chico adverte: “Mas guarde um conselho de amigo: preste atenção às aulas de Direito Civil. Sem pleno conhecimento das instituições de Direito Civil, é impossível ser bom em qualquer ramo do Direito.” A atividade como parecerista e árbitra tem me feito confirmar, reiteradas vezes, a sabedoria e a imensa utilidade prática desse conselho. Para ir mais longe, é preciso conhecer o Direito Civil. Mas acrescento que, por vezes, não basta prestar atenção às aulas, pois, assim como crescemos com os bons mestres, nos apequenamos e desestimulamos com os medíocres. É preciso estudar a Teoria Geral do Direito Privado (que, a rigor, é a teoria geral de todos os ramos do Direito) nos nossos grandes clássicos, Pontes de Miranda (e os seis primeiros volumes de seu Tratado de Direito Privado) à frente de todos. Afinal, como se diz, nada há de tão prático quanto uma boa base teórica. Além da escolha por uma universidade conceituada, a escolha de boa doutrina é o primeiro degrau da escada que pode levar um jovem advogado ao topo de sua carreira profissional. A prática, tão importante quanto, vem depois. É difícil escolher, dentre os vários capítulos das Cartas a um jovem advogado, aqueles que transmitem os melhores conselhos. Todos estão recheados por juízos e recomendações da maior utilidade. Ressaltaria, ainda assim, três pontos: (1) os conselhos de ordem prática; (2) as advertências para que o estudante (e o advogado) não restem presos apenas aos livros jurídicos; e (3) as observações sobre a ética no exercício profissional. 1. Recordo ainda hoje uma entrevista que fiz, há muitos anos, na qualidade de membro da banca examinadora de um concurso público para o ingresso em relevante carreira jurídica. Ao perguntar ao candidato por que decidira deixar a advocacia para tentar o funcionalismo público, ele me respondeu: “Porque a carreira de advogado é burocrática, repetitiva.” Fiquei chocada. No meu modo de ver, o advogado – o bom advogado – é sempre um criador e, como Chico Müssnich, movido à paixão pelo que faz. No contencioso, acossado pelo problema de seu cliente, o bom advogado cria, com base no material legislativo, doutrinário e jurisprudencial do qual dispõe, a solução que, sendo acatada pelo juiz ou árbitro, se transformará em direito positivo. No consultivo, ao elaborar contratos, ou aopropor soluções para determinados problemas práticos, às vezes inusitados, busca em outros sistemas jurídicos soluções adaptáveis ao nosso sistema – razão pela qual deve conhecer e utilizar o Direito Comparado, não para transplantar soluções às vezes intransplantáveis ao nosso sistema, mas para moldar e apontar possíveis caminhos. Na prática da negociação, o bom advogado improvisa, articula, cria e inventa, como Chico nos mostra nos relatos de sua própria experiência. 2. O Direito lida com a vida; os institutos jurídicos que compõem nosso trabalho cotidiano apanham e sintetizam experiências que estão no mundo real. Nós, advogados, lidamos com antigas instituições, mas não somos dissecadores de cadáveres. Lidamos com organismos vivos e, ademais, por vezes mutantes, como o são os fenômenos sociais. Por isso, temos que entender a vida, a experiência social em suas múltiplas manifestações. Viver em um mundo jurídico exige conhecer não somente os preceitos, mas, igualmente, aquilo que os liga a estados de coisas possíveis e plausíveis, o que demanda sermos capazes de integrar o “ser” e o “dever ser” e, também, o “pode ser”.2 O bom advogado não se conforma com o provincianismo cultural e sabe que anda torto quem só conhece o Direito. Uma vida cultural intensa – com filmes, peças teatrais e leituras de Política, Sociologia, História, Economia, Psicologia e Literatura – é imprescindível para a formação de um bom advogado. “O pensamento jurídico não está escrito nas Tábuas da Lei; está escrito prevalentemente sobre as coisas; antes de mais nada, sobre as coisas mutáveis da história humana”, escreveu Paolo Grossi,3 hoje presidente da Corte Costituzionale italiana. Tanto quanto a História, a Literatura nos ensina a ver aquilo que, por vezes, está escondido sob os textos jurídicos. 2 Assim escrevi, inspirada por texto de Robert Cover, em: “A concha do marisco abandonada e o nomos”. In: MARTINS- COSTA, Judith. Narração e Normatividade. Ensaios de Direito e Literatura. Rio de Janeiro: GZ, 2013, p. 10. 3 GROSSI, Paolo. “Pensiero giuridico (appunti per una ‘voce’ enciclopedica)”. In: Quaderni Fiorentini per la Storia de Pensiero Giuridico Moderno, XVII, 1988, p. 264. 3. Ética e Direito são indiscerníveis. O “dar a mão” que está na origem do contrato de mandato implica vínculos intensíssimos de confiança e lealdade. O vínculo ético não se restringe, todavia, à relação advogado e cliente. A advocacia é, por força da Constituição Federal, “indispensável à administração da justiça”.4 O advogado é, disse Raymundo Faoro, presidente da OAB em tempos particularmente duros, um transmissor da cultura e um agente do bem comum: sua atividade não se aparta da ética da responsabilidade.5 A garantia constitucional dada à advocacia implica, em contrapartida, deveres do advogado para com a sociedade e para com o país. Chico Müssnich não se furta a enfrentar esse tema tão difícil quanto relevante, advertindo quanto à existência de limites para a ação da defesa. O dever de defender com profissionalismo, garra e paixão a causa do cliente não significa tornar-se cúmplice de seus clientes em ações criminosas. “É uma conduta deplorável”, anota Chico, e – digo eu – infelizmente não rara nestes tempos sombrios que o Brasil atravessa. Por isso, vem a calhar o aviso do autor:6 “Há uma diferença abissal entre aconselhar juridicamente e ajudar a produzir provas falsas. Qualquer ação que extrapole o limite do empenho na causa ultrapassa a ética e torna o advogado cúmplice. Se perceber que é isso o que o cliente tem em mente, recuse o convite para se tornar seu advogado.” Como costumo afirmar aos meus alunos, o advogado tem o dever de defender um acusado; mas tem o direito, inalienável, de “dizer não”. 4 Constituição Federal, art. 133. 5 Essas ideias de Raymundo Faoro estão em carta particular, inédita, da qual publiquei excertos em: MARTINS-COSTA, Judith. “Raymundo Faoro: o advogado como ‘líder da comunidade’ e ‘transmissor da cultura’”. In: MOTA, Carlos Guilherme e SALINAS, Natasha S. C. Os juristas na formação do Estado-Nação brasileiro. 1930 – dias atuais. São Paulo: Saraiva/FGV, 2010, p. 360. 6 Neste livro, p. 135. Comecei lembrando o contrato de fidúcia, e termino com ele. Advogado movido a paixão, hábil guerreiro nas lutas que enfrenta, amigo leal e leitor voraz – dentre outras qualidades –, Chico Müssnich bem sabe que integram as características ao mandato os deveres legais e contratuais de diligência e prestação de contas. Neste livro, além de diligenciar com o munus de servir à sociedade, bem aconselhando os jovens advogados, Chico presta contas de uma exitosa carreira que a todos inspira e serve de exemplo. Setembro de 2017 Apresentação A ideia deste livro sempre me fascinou. É uma honra ter a oportunidade de assinar a versão brasileira de Cartas a um jovem advogado. Li o similar americano, Letters to a Young Lawyer, escrito por Alan Dershowitz. Dershowitz é, como se sabe, um grande nome do Direito norte-americano. Esteve à frente de alguns casos bastante polêmicos, um deles o famoso julgamento de O. J. Simpson. Foi até encarnado no cinema, em O reverso da fortuna, por conta de outra das personalidades controvertidas que defendeu. Diante do autor da versão americana, minha responsabilidade não era pequena. Meu primeiro impulso foi começar pelo começo. Cheguei a idealizar todo um capítulo sobre as origens do Direito e o conceito de Justiça. Parei. Cheguei à conclusão de que o livro cumpriria melhor a missão a que se propõe se utilizasse uma linguagem mais coloquial. Minha intenção foi oferecer um pouco de minha experiência pessoal, desde os primeiros tempos de estudante até os dias de hoje. Com base nessas experiências, procurei deixar algumas sugestões, apontar certos caminhos. Tive em mente, todo o tempo, o jovem que um dia imaginou seguir a carreira jurídica. Espero, sinceramente, que este livro seja um estímulo nessa direção. Busquei incluir capítulos sobre assuntos que se tornaram relevantes ao longo dos anos, como arbitragem e compliance. Discuto ainda tendências do mercado, como a crescente e irreversível participação das mulheres no Direito e a importância do uso de tecnologia na prática profissional. Entrego aos leitores, assim, um livro completo, com a proposta de orientar jovens advogados e estudantes em suas escolhas profissionais. Hollywood nem sempre é generosa com os advogados. Um exemplo é o filme O advogado do diabo, com Al Pacino, cujo personagem, sócio majoritário de uma banca de advocacia americana, contrata um advogado iniciante, personagem de Keanu Reeves. À medida que o filme se desenrola, constata-se que o personagem de Al Pacino é o próprio diabo. O diabo em pessoa, na pele de um advogado. O cinema em geral capta o que está no imaginário popular. Por que um advogado é escolhido para personificar o próprio demo? Já discuti o assunto exaustivamente. Minha profissão está longe de ser demoníaca. Felizmente, o filme citado reserva uma espécie de redenção para o jovem advogado vivido por Reeves, apesar de uma sequência final marcada pela ambiguidade. Perto do desfecho, Reeves se recusa a prosseguir com a defesa de um homem que cometeu um crime brutal. Em outro filme americano, O mentiroso, Jim Carrey interpreta um advogado que tem sua vida virada de cabeça para baixo ao ser obrigado a passar um dia inteiro sem mentir. Novamente, advogados são associados a valores condenáveis e comportamentos duvidosos. No final, uma vez mais, o personagem encontra a redenção. Carrey decide fundar sua carreira em novas bases, sem mentiras ou manipulações. Por que advogados são associados a vilões com tanta frequência? Uma das razões pode estar no fato de que a advocacia sempre lida com o poder, em suas naturezas mais variadas. O próprio saber jurídico é um poder em si. Em um país como o Brasil, o mero acesso ao conhecimento já é a materialização de algum nível de poder. Como em toda profissão, no Direto há bons e maus profissionais. Talvez no Brasil, por suas características culturais, os maus advogadostenham recebido maior exposição. São os que fazem uso indevido do conhecimento adquirido. Isso contribui para manchar nossa reputação. Este livro, que chega às mãos de advogados iniciantes, apaixonados pela profissão como eu, é também uma tentativa de redenção. Por meio dele, gostaria de resgatar a aura que essa carreira já teve um dia e comunicar aos mais jovens o orgulho que tenho por exercer um dos mais nobres ofícios que um ser humano pode exercer. O mesmo cinema que nem sempre tem sido generoso com a advocacia produziu um filme como O sol é para todos, de 1962. Poucos personagens poderiam ser mais dignos do que Atticus Finch, advogado íntegro que defende um negro acusado de estupro. Foi um filme que certamente influenciou milhões de pessoas a desejar seguir a carreira jurídica. Vivido por Gregory Peck, Atticus Finch foi um grande herói do cinema. Não somos heróis, é verdade. Também não somos o diabo de Al Pacino. Quem somos? Não sei. Não há uma resposta única. Talvez este livro ajude o leitor a descobrir quem ele deseja ser. Quem sabe o auxilie a reconhecer sua verdadeira vocação, que tipo de inclinação deve orientar sua carreira. O que talvez se possa perseguir é, ao menos, alguma espécie de grandeza. Uma grandeza de outra ordem. Não exatamente a grandeza de uma grande causa humanitária, como salvar a vida de um inocente. O que talvez se possa e deva perseguir é a grandeza de reconhecer que somos feitos da mesma natureza, não importa a profissão. Essa natureza deve vir acompanhada de princípios inegociáveis e de traços que nos tornarão profissionais únicos, à nossa maneira. O que precisamos descobrir é o que vai nos diferenciar em cada atividade. No meu caso, sou movido pela paixão. Acho que não há advocacia sem paixão, como provavelmente não há jornalismo sem paixão, ou medicina sem paixão, ou teatro sem paixão. É o que me diferencia. Procuro exercer essa paixão em cada gesto, em cada movimento. A paixão se traduz em alguns princípios, dos quais jamais me desvio. São esses princípios e convicções que procuro descrever aqui, além do relato de algumas experiências de ordem bastante pessoal. É uma conversa despretensiosa, leve, voltada para o jovem profissional do Direito. Se, um dia, este livro for lembrado por alguns desses jovens advogados como um estímulo a seguir essa carreira, terei sido bem-sucedido. Eu terei, a meu modo, colaborado um pouquinho para o desenvolvimento de minha profissão e demonstrado o orgulho que sinto por ela. Espero transmitir um pouco desse orgulho a cada um dos leitores. Primeiras lições Muita gente estuda Direito porque o pai, o avô ou o tio é advogado. Esta não pode ser a motivação – ao menos, não a motivação única e decisiva para abraçar a carreira. Ninguém herda cliente. O filho só mantém os clientes do pai se tiver competência. Tenho alguns antepassados do meio jurídico. Francisco Antunes Maciel Júnior, meu avô materno, era advogado. Sua trajetória, no entanto, ficou marcada pela política. Foi ministro da Justiça do governo Vargas, entre 1932 e 1934. Meu bisavô, Francisco Antunes Maciel, outro político gaúcho, também era formado em Direito. Foi ministro e secretário dos Negócios do Império de D. Pedro II. Pode parecer impressionante, mas esses senhores de casaca e bigode tiveram pouca influência em minha escolha pela advocacia. Eram referências distantes – nem com meu avô materno cheguei a ter uma convivência que pudesse influir sobre minhas inclinações profissionais. Uma pena! Tinha mais informações sobre Economia, profissão do meu pai, e o ramo das cervejarias – meus antepassados alemães eram mestres na arte de fabricar cerveja. Definitivamente, não foi a família que me fez ser advogado. Acho que o Direito foi minha primeira paixão. No colégio, estava sempre disposto a questionar decisões que me pareciam injustas. Sempre procurei defender os colegas eleitos para alvo de chacota pela turma. Volta e meia, os adultos diziam: “Esse vai ser advogado.” A ideia ficou na minha cabeça. Continuo apaixonado até hoje. Tive a sorte de estudar em uma escola que me preparou para a profissão. O Colégio Padre Antonio Vieira, na Zona Sul do Rio de Janeiro, era tradicional. Éramos só meninos, e usávamos gravata e paletó enfeitado com as estrelas do Cruzeiro do Sul bordadas no bolso. O conjunto fazia suar no verão, mas as meninas achavam elegante. Como o colégio era pequeno, todos se conheciam e cada indivíduo era valorizado. Os alunos se dividiam em dois partidos, simbolizados pelas cores azul e vermelha, que disputavam entre si. A divisão desenvolvia uma concorrência saudável e estimulava a participação nas atividades escolares. Fui vermelho a vida inteira, cheguei a ser chefe do partido no último ano do ensino médio. Orador da turma em diversas ocasiões importantes, e também na formatura, costumava ter ajuda de minha mãe nos discursos. Uma mulher de grande cultura, apaixonada pelas artes e pela vida, ela sempre foi uma colaboradora fundamental. Não tenho dúvida de que, se a genética tomou parte de minhas inclinações jurídicas, a explicação reside na paixão pela vida que herdei de minha mãe. Voltando ao Padre Antonio Vieira: as provas eram orais. O aluno sorteava o ponto e tinha de responder no quadro-negro, diante do professor e da turma. Isso ajudava a desenvolver a capacidade de oratória. Tínhamos direito a consultar uma ficha onde havia no máximo vinte palavras. Passávamos momentos duros nos exames, mas hoje vejo que aquelas fichas eram uma forma inteligente de estudar. Era preciso exercitar intensamente a capacidade de síntese para resumir um assunto em 15 ou 20 palavras. O bom advogado precisa escrever bem e de forma concisa. No colégio, também aprendi a admirar a obra do Padre Antonio Vieira. Líamos avidamente os seus sermões geniais, obras do século XVII que permanecem atuais. O domínio da expressão escrita é um dos talentos indispensáveis na profissão. A vida do advogado é escrever – petições, contratos, artigos, análises. Se um aspirante a advogado tem dificuldade na redação, deve tratar de praticar. Vai precisar dela. Outra qualidade importante é a facilidade em estabelecer relacionamentos. Ser advogado é, sobretudo, lidar com pessoas, conquistá-las e interagir com elas sempre de maneira construtiva e favorável. É preciso ter inteligência emocional, saber a hora de apartar a briga e a hora de mergulhar nela. O sucesso do advogado depende da habilidade de entender o que leva as pessoas a agir dessa ou daquela maneira. A capacidade de desenhar estratégias e antever as do adversário é um trunfo que diferencia os profissionais do Direito. De alguma forma, o vermelho e o azul me impuseram a necessidade de pensar no outro, de adivinhar a intenção do adversário circunstancial. O início de minha formação educacional me preparou para o confronto, para o embate saudável. A verdade é que sou vermelho até hoje. A formação do advogado A profissão de advogado é multidisciplinar. O Direito absorve conhecimentos, técnicas e métodos de outras carreiras, como Economia, Engenharia e Psicologia. Tudo isso molda o trabalho do advogado, confere a ele mais densidade, profundidade e organização. Estudar apenas Direito nem sempre leva ao sucesso. A mistura da competência técnica profunda em Direito com outro tipo de conhecimento diferencia os bons profissionais dos verdadeiramente talentosos, excepcionais. O sonho de todo escritório de advocacia é descobrir, entre aqueles meninos e meninas que se apresentam para a entrevista, qual se destaca pelo conhecimento e pela motivação. Ou, como gosto de brincar, qual deles tem aquele olho vermelho e apertado de vampiro, que brilha no escuro. É esse o profissional que a firma quer contratar. Uma das escolhas mais importantes na definição do advogado que se quer ser é a opção por uma faculdade. É fundamental pesquisar antes de decidir. Faça dessa a sua primeira missão. Descubra qual a reputação da universidade que pretende cursar. Pesquise rankings e guias sobre educação na internet. Converse com ex-alunos e tente se informarcom quem já exerce a profissão. Um critério é verificar se os professores da universidade são respeitados no mercado e citados em reportagens na imprensa, ou se escrevem em publicações especializadas. Outra maneira de descobrir quais são os melhores cursos é verificar o índice de aprovação de estudantes no exame da Ordem dos Advogados do seu estado. Algumas seções da OAB, como as de São Paulo e do Rio de Janeiro, elaboram periodicamente listas das faculdades com maiores índices de aprovação. Antes de pensar no vestibular, seria bom perguntar que área do Direito gostaria de conhecer melhor. É que cada faculdade enfatiza uma área. No Rio de Janeiro, minha cidade, a UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) tem tradição na área do Direito Público e sempre foi boa opção para quem quer ser juiz, promotor ou procurador do estado, do município ou da Fazenda. Infelizmente, a falência do governo fluminense prejudicou muito esse patrimônio do Rio. Em Direito Privado, a Fundação Getulio Vargas oferece curso de primeira linha, com currículo novo e inteligente, além de professores de peso. A PUC-Rio também continua com um excelente ensino, principalmente nas áreas de Direito Empresarial e Civil, e um quadro de professores jovens e competentes. Estudei na PUC, e isso teve grande importância nos rumos que segui. Lá já havia uma área empresarial bastante desenvolvida. O Rio de Janeiro tem uma tradição forte em Direito Societário, em parte graças ao Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino do Direito (CEPED), criado em 1966, na UERJ. O CEPED estabeleceu parcerias com instituições renomadas de ensino e pesquisa em Economia, como a Fundação Getulio Vargas, e implantou o Curso de Advogados de Empresas, fundamental para a modernização do Direito no Brasil. Lá lecionaram grandes professores, como Alfredo Lamy Filho, talvez o maior advogado societário vivo do Brasil. Ele e outros professores do CEPED também ensinavam na PUC e estimularam na universidade a valorização do Direito de Empresa. A PUC do Rio ficava perto da minha casa e, desde a adolescência, eu frequentava seu campus para jogar futebol de salão, muitas vezes vestido com a camisa do meu Botafogo. A universidade dispunha de um time de futebol de salão excelente, que eu acompanhava desde menino, e de um alto coeficiente de meninas bonitas. Não fui para lá por isso, evidentemente, mas essas particularidades da PUC se somavam a seu consistente corpo docente. Enfim, fiz a escolha certa. Afinal, não basta ser bom apenas no estudo – o aluno também precisa jogar futebol, namorar, ir à praia. Tudo isso é importante para formar um ser humano capaz de se relacionar socialmente e construir parcerias. Atividades como o futebol oferecem chances de aprender coisas que a escola não ensina. O mais importante é que, na PUC, tive a chance de encontrar mestres que até hoje são referências para mim. Como estudar Sempre fui bom aluno. Não era o melhor da classe, lugar muitas vezes reservado àqueles que ou não faziam esporte, ou não tinham namorada – enfim, não faziam nada além de estudar. Sempre procurei fazer tudo isso. E, ainda assim, estava sempre entre os melhores. O segredo de ser bom aluno não é só estudar; é prestar atenção à aula. O que é ouvido em sala estimula o estudante a se aprofundar em casa. Há muita diferença entre aprender sozinho, a partir do zero, e iniciar o estudo com algum conhecimento, por mínimo que seja. Quando o professor é bom, aguça a curiosidade. Alguns alunos tomam nota de cada palavra do professor, como se fosse um mandamento divino. Nem sempre são os que melhor compreendem o que ouvem. O mais recomendável é desenvolver um sistema para tomar notas de forma telegráfica – algumas palavras-chave que permitam lembrar depois o que foi discutido. Nada que tire a atenção da aula, claro. Que método é esse? Cada um cria o seu. Estudar é conhecer a si mesmo. O mais importante fator de aprendizado é o convívio com grandes mestres. Fui aluno de Joaquim Falcão, hoje diretor da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas, excelente professor, que sabia despertar o interesse pelo Direito. Eu prestava muita atenção às suas aulas. Um dia, Joaquim me pediu que fosse conversar com ele em sua casa. Lembro que havia um pipoqueiro na esquina da rua onde ele morava. Comprei dois sacos de pipoca e, ao chegar, lhe dei um: “Trouxe pra você.” Ele achou muita graça e conversamos longamente. Até hoje, somos grandes amigos. A pipoca quebrou a formalidade e Joaquim Falcão me convidou para ser seu monitor. Foi uma grande experiência. Sentia grande prazer ao corrigir provas e preparar aulas. Ele sempre dizia que eu tinha o coração mole, pois queria dar boas notas e ajudar os alunos a passar de ano. Foi meu primeiro contato com a atividade acadêmica. Gostei tanto que mantenho a atuação no magistério até hoje, 36 anos depois. Considero o ensino um grande fator de criação de angústia intelectual. A atividade acadêmica impele a querer saber mais, obriga o professor a pesquisar e rever o que pensava que já sabia. Em todos esses anos como professor, constatei que existem três tipos de aluno: o que não estuda nada e nem sabe ao certo por que está ali; o que estuda muito, mas é incapaz de pensar; e aquele que não estuda tanto, apenas o necessário, mas pensa. Esse é o melhor aluno. É o estudante que participa das atividades, que contribui para o debate, que traz um olhar novo para um assunto que a gente pensava conhecer de sobra. São esses alunos que me fazem considerar que vale a pena dar aula. Aprendo muito com eles. Em geral, os universitários brasileiros não gostam de se preparar para as aulas. Esperam que o professor apresente o conhecimento pronto, mastigado. Uma atitude muito passiva. Estudei em Harvard, nos Estados Unidos. Lá é diferente. Todos têm consciência de que precisam ler antes os casos que serão discutidos em sala. Os professores costumam questionar os alunos sobre o assunto em pauta. É preciso estar sempre preparado; nunca se sabe quando o aluno será chamado. Em minhas classes, procuro incentivar a participação dos alunos, criar a dúvida, provocar a reflexão. Quero que venham prontos para o debate. Não é coisa fácil de conseguir. Os estudantes acham que, se chegaram à faculdade, está tudo resolvido. O diploma torna-se uma questão de decurso de prazo, e não uma obra de esforço pessoal. Esse tipo de postura prejudica o aluno, que deixa de aproveitar as oportunidades oferecidas pela faculdade de estabelecer relações com grandes profissionais e iniciar, assim, o caminho para uma carreira bem-sucedida. Além do Joaquim Falcão, fui monitor de outros mestres. Ainda me recordo de excelentes professores, como Gabriel Lacerda e Carlos Alberto Direito, já falecido, ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF). Cheguei a matar algumas aulas do meu próprio curso para assistir aos ensinamentos de Alfredo Lamy Filho, que lecionava Direito de Empresa no mestrado da PUC. Quem tem a sorte de ter um bom professor passa a contar com um guia que indica o caminho reto. Aproveite ao máximo. Tire suas dúvidas, peça conselhos, converse com ele após as aulas. Deixe a timidez de lado. Em geral, os professores adoram alunos interessados. Ingressei na faculdade em 1973 e me formei em 1976. O movimento estudantil ainda estava bem articulado. Tentei participar, mas sempre achei que adotavam um radicalismo sem sentido. Um exemplo foi a sugestão de alguns alunos de que pedíssemos à Xerox do Brasil a doação de uma copiadora para o diretório acadêmico. Em troca, seria colocada uma placa de agradecimento à companhia na entidade. Muitas vezes, tínhamos de imprimir textos em mimeógrafos – pequenas impressoras artesanais, movidas a manivela. O resultado era péssimo: saía tudo borrado. Resposta dos líderes estudantis: “Não podemos nos tornar escravos do sistema capitalista.” Esse tipo de atitude fez com que eu me afastasse. Não pensava em resolver os problemas do mundo dentro da faculdade. Estava muito mais preocupado com a qualidade dosprofessores e dos textos que líamos – o que não interessava especialmente ao diretório. Claro que não me furtava a questionar o clima opressivo que vigorava na época. Por ocasião da formatura, fui escolhido orador de minha turma e falei sobre um texto intitulado “A crise do ensino jurídico e a experiência do CEPED”, outra vez do grande mestre Alfredo Lamy Filho. O texto discutia as deficiências do ensino de Direito e a experiência do Curso de Advogados de Empresas criado na UERJ. Precavido, preparei um discurso, que apresentei à direção, e li outro, pois o diretor do departamento era chegado a uma tesoura. Trinta anos se passaram, mas a crítica que Lamy fazia ao ensino universitário continua atual, como mostra este trecho: “Na revolta dos moços, que marca de forma tão dramática os dias de hoje, uma parte substancial há de ser atribuída à Universidade, e, dentro dela, às escolas de Direito. A quantos vêm acompanhando o processo de inconformidade dos alunos com o ensino que lhes é ministrado, nenhuma surpresa pode causar o fato, que assume o noticiário dos jornais depois de longa, penosa e frustrada ação das lideranças estudantis, e de grande parte do corpo docente no âmbito fechado das faculdades. Em verdade, há muito se movimentam os estudantes, insatisfeitos com o que a Universidade lhes oferece, seja quanto ao adestramento profissional para desempenho de responsabilidade na sociedade em que devem viver, seja em termos de capacidade de compreensão dos fenômenos que se passam nessa sociedade. [...] Assinale-se, desde logo, que a crise no ensino jurídico precedeu as demais: há décadas os estudantes se queixam de que o ensino é ‘teórico’, que o aprendizado que lhes é ministrado não os prepara para o desempenho da profissão, seja na forma tradicional de advocacia liberal, seja nas formas de assessoria da administração pública ou da de empresas privadas, seja, ainda, em termos de cultura geral; que os professores são, na maioria, desinteressados, e alguns até incompetentes e, na quase totalidade, sem tempo para dedicar ao ensino e ao aluno.” Pôquer, engenharia e teatro Um bom advogado deve dominar três áreas: pôquer, engenharia e teatro. Não estou brincando. Cada uma dessas atividades exige o desenvolvimento de qualidades fundamentais para quem vai trabalhar com o Direito. Todo advogado deveria estudar com atenção dramas e comédias, conhecer Molière, Shakespeare e outros grandes dramaturgos. E também aprender um pouco da técnica de interpretação. Afinal, ele terá de incorporar diversos papéis para os clientes que representa, em momentos diferentes. Algumas vezes, será o camarada bom, de total confiança, disposto a negociar ou ajudar a outra parte; em outras, terá de bancar o vilão, capaz de pressionar, exigir, pôr contra a parede. Tudo sem culpa. A escolha desses papéis faz parte da estratégia montada para defender os interesses do cliente. É do jogo. É um treinamento útil pensar no pôquer. Do outro lado da mesa, é comum encontrar os mesmos tipos com os quais se deparará numa negociação ou audiência: o mentiroso, o prudente, o ousado, o misterioso. Observando o adversário – cartas pedidas e descartadas, expressões faciais, um gesto de tensão ou de alívio –, é possível formar opinião sobre seu perfil psicológico e sua estratégia. É um bom treino para negociação. Um jogador precisa descobrir os motivos por trás do comportamento das pessoas à mesa. Um advogado também. Usar as informações, interpretar sinais, confundir o adversário: os advogados – especialmente os que atuam em fusões e aquisições – têm de conhecer e utilizar todos esses recursos, e mais alguns. Se inventassem um curso que misturasse Engenharia e Direito, creio que formaria profissionais extraordinários. A Engenharia confere ênfase à lógica, ao raciocínio analítico. Treina a pessoa para focalizar no que é estrutural. Estimula a objetividade, a precisão e o conhecimento de matemática. E matemática sempre conta – mesmo nas profissões das áreas que conhecemos como Ciências Humanas. Isso é verdade especialmente para os que trabalham em Direito Societário – ou seja, representando ou assessorando clientes em negociações, fusões, aquisições e outras operações empresariais. O advogado precisa compreender os problemas e os objetivos do cliente. Não adianta planejar uma operação perfeita se ela não funciona do ponto de vista financeiro. O advogado tem de entender o que está envolvido em construir uma fábrica. O que significa emitir ações? E converter debêntures? E amortizar o ágio? O advogado que assessora uma aquisição tem de conhecer a fundo contabilidade para poder aconselhar: “Este negócio não vai decolar porque as consequências fiscais são extremamente onerosas. Vamos tentar descobrir outra estratégia societária?” A habilidade de interpretar papéis e adivinhar estratégias é tão importante quanto uma boa formação universitária. Entre contratar o advogado que tem a maior quantidade de títulos, o mais preparado, que estudou em universidades de renome no Brasil e no exterior, e contratar um profissional com títulos sem grife, mas que entende os problemas do cliente e ganha as causas, eu não hesitaria em contratar o advogado vencedor. Independentemente da formação acadêmica ou teórica que possa ter tido, ele, de fato, aplica com sucesso a técnica que aprendeu. Infelizmente, ainda não inventaram esse curso de “Engenharia do Direito”, que eu gostaria de ter feito. De todo modo, não custa aperfeiçoar o conhecimento da matemática e da contabilidade, o que a maioria dos advogados desconhece. Isso é importante, por exemplo, na hora de definir um índice para correção de contratos. O advogado precisa entender como os índices são calculados, sua periodicidade, o que abrangem. Quem sabe, um dia, esse conhecimento vá ajudar a não esquecer de inserir no contrato, em favor do cliente, uma cláusula que reajuste apenas a variação positiva do índice. Em geral, nada disso é ensinado na faculdade. Esse é um dos pontos em que o ensino do Direito precisa ser atualizado. Nada impede que se aprenda por conta própria, com a leitura de livros, ou fazendo cursos. Em nosso escritório, o BMA, todos os advogados têm como meta se aperfeiçoar nessas matérias. Já há alguns anos, oferecemos treinamento e aperfeiçoamento em contabilidade, matemática financeira e oratória. Portanto, quem pensa em trabalhar com Direito Societário ou Tributário deve tratar de fazer sua parte. Tesouro da juventude Anos atrás, quando entrevistava candidatos a estágio, costumava perguntar se já tinham lido o romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. Muita gente nem sabia o que era. Um advogado precisa ver além do Direito. É necessário entender a conjuntura política e social, ser capaz de liderar, escrever bem. Para isso, é preciso conhecer História e Literatura. Esse conhecimento vai ajudar o profissional a redigir petições, treinar uma equipe, planejar suas ações, interpretar atitudes. Um advogado tem de gostar de ler. Essa é uma profissão que exige atualização permanente. Todo dia uma decisão nova precisa ser estudada, todo dia uma nova lei é aprovada. Quem não lê – jornais, revistas especializadas, sites – fica para trás. E a leitura é, cada vez mais, digital. O bom texto jurídico tem três características: clareza, objetividade, elegância. Uma palavra errada pode colocar a perder um processo. Muita gente erra porque não conhece a própria língua. Há muitas maneiras de descrever um ato. Além de dizer alguma coisa, é possível gritar, sussurrar, contar, explicar, comentar, jurar, lembrar, enfatizar, retrucar, redarguir, contradizer e afirmar. Faça uma experiência. Escreva: “Ele andou até o carro.” Agora, experimente retirar a palavra “andou” e trocar por uma destas: “arrastou-se”, “cambaleou”, “marchou”, “saltitou”, “correu”. Cada uma sugere uma cena diferente. Quando escrevemos, dispomos de um estoque variadíssimo de vocábulos para escolher. A maioria recorre às mesmas palavras gastas, nem sempre as mais adequadas. Escreve melhor quem encontra o verbo, o substantivo e o adjetivoexatos para contar o que deseja. Tive a sorte de receber formação cultural e humanista. Minha mãe sempre apostou na educação. Fazia questão de me dar livros de presente e me levar para viajar, visitar museus, ir a óperas e concertos. Todo pai, se pudesse, deveria dar ao filho essas oportunidades de saber mais. Que tipo de advogado quero ser? A proposta da faculdade é oferecer ao aluno uma visão das muitas áreas do Direito. O advogado recém-formado é um especialista em generalidades. Isso não é ruim. É importante conhecer, ainda que superficialmente, os principais ramos de atividade. Não pense que ao se formar já vai ser advogado trabalhista, criminal, de família, etc. Antes, é preciso conhecer Direito Comercial, Tributário, do Trabalho, de Família, Administrativo, Constitucional. Mas guarde um conselho de amigo: preste atenção às aulas de Direito Civil. Sem pleno conhecimento das instituições de Direito Civil, é impossível ser bom em qualquer ramo do Direito. A escolha de uma especialização é determinada por uma conjunção de fatores. O primeiro é sua afinidade com determinados assuntos. Logo verá que algumas matérias lhe interessam mais do que outras. Essas preferências são um bom indicativo de suas aptidões. Se você tem interesse por política, provavelmente vai gostar de Direito Constitucional. Se sente curiosidade em relação ao mundo dos negócios, o Direito Comercial agradará mais. Os professores representam influência importante. Grande parte dos jovens decide abraçar determinado ramo do Direito por admirar o conhecimento e o sucesso de seus mestres. Os exemplos de familiares e amigos também podem estimular a escolha de uma especialidade e representar uma porta de entrada para o mercado de trabalho. Um exemplo: em 1995, quando criamos o Barbosa & Müssnich, hoje Barbosa Müssnich Aragão – BMA, chamei um ex-aluno meu, Bruno Soter, que já atuava com sucesso no Direito do Trabalho. O convite era para que continuasse a defender causas trabalhistas. Uma vez no BMA, Bruno passou a ter muito contato com casos relacionados a reestruturação de empresas, vendas, privatizações. Começou a trabalhar em Direito Comercial e Societário, ou seja, expandiu seus limites com extremo talento. Chegou a ser o managing partner do escritório, antes de sair para tornar-se sócio de uma boutique especializada em fusões e aquisições. Ao pensar sobre que rumo seguir, tenha sempre em mente que nenhuma escolha é definitiva. Na verdade, é a prática que vai determinar o ramo do Direito escolhido. A vida transforma o profissional, lapida a pedra bruta em diamante. Trata-se de um processo intuitivo, em que às vezes o estudante se deixa levar em outras direções, noutras assume o controle. Aceita um emprego, recusa outro, faz cursos, lê livros, conversa com colegas – enfim, aprofunda-se em um assunto cada vez mais. E assim, ao longo dos anos, constrói uma carreira. Minha própria história teve uma virada. Na faculdade, adorava Direito Tributário. Fui advogado fiscal por anos e realmente gostava do que fazia. Entre outras atividades, analisava a legislação de impostos, respondia a consultas sobre tributos devidos, fazia defesas fiscais, etc. Quando abrimos o BMA, passei a me dedicar mais ao estudo de fusões e aquisições. Comecei a defender companhias de tentativas hostis de aquisição de controle – os chamados hostile takeovers – e a realizar negócios de compra e venda de empresas. Hoje aproveito minha experiência tributária para pensar e criar estruturas societárias legalmente eficientes sob a ótica fiscal. Outro dia, recebi o folder de divulgação de opções de especialização em Direito de uma universidade. Ele oferecia uma infinidade de modalidades: Direito da Informação, Direito da Psicanálise, Direito Ambiental, Direito do Petróleo, Direito do Consumidor. Tome cuidado. Muitas vezes, essas apresentações são meios de confundir os estudantes, que pensam que aquela suposta especialização pode representar um meio de entrada no mercado de trabalho. Muito marketing, pouca substância. Pesquise bem a qualidade dos professores e converse com alunos dos cursos antes de investir num deles. É claro que não aconselho deixar de lado seus planos de fazer mestrado ou MBA. Na maioria das universidades, os cursos de Direito não oferecem todo o conhecimento necessário para um bom desempenho no mercado de trabalho. A advocacia demanda hoje um profundo conhecimento técnico. Para defender uma cimenteira, você precisa saber que insumos a empresa utiliza, quais são as questões ambientais envolvidas, quem são os maiores concorrentes, como cresce o mercado consumidor. São conhecimentos que os estudantes não adquirem na faculdade. Os cursos, MBAs e mesmo o mestrado representam alternativas para suprir essa deficiência e ajudam a quem deseja atuar numa área de alta especialização como petróleo ou meio ambiente. Grande parte do aprendizado profissional se dará em conversas com o cliente ou pela leitura. O esforço de pesquisa é, muitas vezes, a melhor maneira de aprender sobre a realidade do cliente e do seu negócio. Mesmo o advogado que já dispõe de uma coleção de diplomas não pode parar de estudar. Um bom profissional precisa se atualizar constantemente. É necessário ler as revistas jurídicas, que trazem artigos e análises de decisões. Elas colocam o estudante em dia e informam sobre decisões que muitas vezes significarão a vitória ou a derrota em um caso. Renovar conhecimentos é essencial. É fundamental ler a Revista dos Tribunais (que agora conta com um sistema on-line de pesquisa, http://www.rtonline.com.br) e a Revista Trimestral de Jurisprudência, do STF. Também não se pode deixar de acompanhar as publicações especializadas de sua área, como: Revista Brasileira de Direito Civil (disponível apenas em versão eletrônica, em https://rbdcivil.ibdcivil.org.br/rbdc); Revista Brasileira de Direito Público; Revista Brasileira de Direito Tributário e Finanças Públicas; Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro (RDM); Revista do Direito Bancário e do Mercado de Capitais; e a Revista de http://www.rtonline.com.br https://rbdcivil.ibdcivil.org.br/rbdc Direito do Consumidor. Também recomendo a Revista Brasileira de Arbitragem e a Revista de Arbitragem e Mediação, que abordam novas áreas do Direito, como veremos à frente. Talvez em sua cidade não seja fácil ter acesso a essas revistas, ou elas estejam disponíveis na biblioteca da faculdade. A boa notícia é que as informações que elas trazem também podem ser consultadas pela internet, em sites muitas vezes gratuitos. Observe a seguir uma lista dos sites mais consultados pelos advogados do BMA. Os melhores sites nacionais Banco de Dados Bibliográficos da USP: dedalus.usp.br/F?RN=346443687 Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações: bdtd.ibict.br Biblioteca do Senado Federal: www12.senado.leg.br/institucional/biblioteca Biblioteca da Faculdade de Direito da USP: www.direito.usp.br/biblifd/ Comissão de Valores Mobiliários: www.cvm.gov.br CVM – Processos Sancionadores Julgados: www.cvm.gov.br/sancionadores CVM – Decisões do Colegiado: www.cvm.gov.br/decisoes Comitê Brasileiro de Arbitragem – CBAr: cbar.org.br/site/jurisprudencia Conselho da Justiça Federal: www.cjf.jus.br/cjf Consultor Jurídico: www.conjur.com.br Direito Tributário (jurisprudência): www.decisoes.com.br Enciclopédia Jurídica da PUC-SP: enciclopediajuridica.pucsp.br Jus Navigandi: jus.com.br Portal de Periódicos Capes: www.periodicos.capes.gov.br Presidência da República: www4.planalto.gov.br/legislacao Real Gabinete Português de Leitura: www.realgabinete.com.br/portalweb/Biblioteca.aspx Revista Brasileira de Direito Civil: www.ibdcivil.org.br Revista Eletrônica de Direito Civil: civilistica.com Revista dos Tribunais Online: revistadostribunais.com.br Supremo Tribunal Federal: www.stf.gov.br Superior Tribunal de Justiça: www.stj.jus.br http://www.dedalus.usp.br/F?RN=346443687 http://bdtd.ibict.br/vufind/ http://www12.senado.leg.br/institucional/biblioteca http://www.direito.usp.br/biblifd/ http://www.cvm.gov.brhttp://www.cvm.gov.br/sancionadores http://www.cvm.gov.br/decisoes http://www.cbar.org.br/site/jurisprudencia http://www.cjf.jus.br/cjf http://www.conjur.com.br http://www.decisoes.com.br http://enciclopediajuridica.pucsp.br http://www.jus.com.br http://www.periodicos.capes.gov.br http://www4.planalto.gov.br/legislacao http://www.realgabinete.com.br/portalweb/Biblioteca.aspx http://www.ibdcivil.org.br http://www.civilistica.com http://www.revistadostribunais.com.br http://www.stf.gov.br http://www.stj.jus.br Os melhores sites internacionais Actualidad Juridica (Argentina): www.actualidadjuridica.com.ar All Law (EUA): www.alllaw.com Diritto (Itália): www.diritto.it European Legal Sites: www.law.cam.ac.uk/legal-resources-0 FindLaw (EUA): www.findlaw.com Google Acadêmico: www.scholar.google.com Kluwer Law International: www.kluwerarbitration.com Legi France (França): www.legifrance.gouv.fr Nações Unidas: www.un.org/ruleoflaw Revista para el Analisis del Derecho (Catalunha): www.indret.com Revista da Ordem de Advogados de Portugal: www.oa.pt Virtua Legis (França): www.virtua-legis.com http://www.actualidadjuridica.com.ar http://www.alllaw.com http://www.diritto.it http://www.law.cam.ac.uk/legal-resources-0 http://www.findlaw.com http://www.scholar.google.com http://www.kluwerarbitration.com http://www.legifrance.gouv.fr http://www.un.org/ruleoflaw http://www.indret.com http://www.oa.pt http://www.virtua-legis.com Sem medo da tecnologia Falamos do quanto podemos aprender através de sites institucionais e periódicos on-line. Mas os computadores e a internet podem fazer bem mais pelos advogados. Do uso de pesquisa em big data para produção de evidências ao controle de horas trabalhadas, cada vez mais profissionais e companhias se valem da informática para aumentar a qualidade e a eficiência dos seus serviços. Empresas de desenvolvimento de tecnologia para o exercício do Direito estão se multiplicando no mundo, decididas a transformar o setor, como ocorreu com o transporte, a música, a comunicação. Nos Estados Unidos, o maior mercado do mundo, há uma verdadeira corrida entre investidores para ver quem vai financiar o próximo “Uber do Direito”. Não passou tanto tempo assim desde a época em que usávamos o telex para comunicações com agilidade nos grandes escritórios. O telex parecia uma enorme máquina de escrever e fazia parte de uma rede mundial, em que cada terminal era identificado por um número. Ao escrever no teclado, o texto era imediatamente impresso em bobinas de papel pela máquina do destinatário. O sistema tinha limitações, pois não incluía todos os caracteres do português e não utilizava letras minúsculas. No fim dos anos 1980, o fax foi uma revolução. Não era mais preciso esperar a entrega de uma minuta de contrato ou petição por portador ou correio. Em alguns minutos, com a lentidão do ainda antiquado sistema telefônico brasileiro, os documentos chegavam ao escritório, com direito a carimbos, assinaturas, rubricas e até manchas de café. Era milagroso. Mas o uso de scanners e e-mails tornou tudo isso obsoleto. A tecnologia hoje nos proporciona facilidades impensáveis no passado. No BMA, por exemplo, temos um banco de dados que é um tesouro da firma. Cada novo cliente ganha uma pasta nesse sistema, na qual tudo é registrado: preferências, observações, histórico de reuniões. Advogados, secretárias, todos contribuem. Assim, é possível ver relações do cliente com vários setores do escritório, compreender seu estilo de trabalho, conhecer o seu histórico. Além disso, todos os documentos produzidos no BMA são gerenciados eletronicamente, ou seja, ficam em rede, e podem ser buscados, de acordo com permissões de segurança, que variam por área e nível no escritório. É possível buscar por cliente, por empresa e por assunto. Então, se o advogado tem de escrever uma petição sobre uma fusão de companhias na área de óleo e gás, pode dar uma busca e encontrar petições anteriores, que o ajudarão a fazer a nova. Isso nos permite ser mais eficientes, diminui o número de horas de trabalho necessárias e a possibilidade de erros. O escritório ganha e o cliente também. É claro que uma firma que lida basicamente com informações confidenciais precisa tomar precauções. Para acessar um documento, é preciso ter a permissão específica. As várias equipes do escritório só acessam os arquivos relacionados ao seu próprio trabalho. Além disso, o Comitê de Segurança da Informação controla o próprio uso das pastas e documentos. Se alguém tentar copiar vários arquivos do BMA, esse comitê vai saber e chamar o responsável para saber as razões. Outros programas se destinam a tornar o trabalho mais fácil. Um deles, por exemplo, permite identificar os trechos mais relevantes de um grande volume de documentos. Quando se faz uma diligência legal, por exemplo, é preciso examinar centenas de contratos. Você pode alimentar o robô com palavras-chave e ele pesquisa todos os arquivos, identificando os trechos em que elas aparecem. E há ainda as ferramentas que facilitam acompanhar o andamento de um processo, gerando avisos sempre que há uma mudança no seu status. Na administração do escritório também controlamos as horas trabalhadas por cada advogado em um sistema on-line, desenvolvido internamente. Nós o alimentamos com todos os comprovantes, de horas e de despesas. O sistema calcula o valor final, os advogados aprovam e a fatura segue para o cliente. Todos esses recursos são maneiras de facilitar o trabalho que é feito rotineiramente nos escritórios de advocacia. No mundo, um levantamento recente identificou mais de 1.400 organizações dedicadas a produzir soluções de tecnologia voltadas ao meio jurídico. Abaixo, cito algumas empresas americanas que estão chamando a atenção: Com um diretório que contém milhares de advogados, separados por assunto e por região, a Avvo permite que o cliente escolha on-line um advogado e receba conselhos por ligação telefônica ao custo de algumas dezenas de dólares. Oferece ainda modelos de documentos legais, desde pactos antenupciais até contratos de aluguel. A Lexoo também ajuda os consumidores a escolher um advogado, mas trabalha apenas com profissionais selecionados pela empresa. Ela oferece ao cliente indicações de advogados adequados ao seu caso – segundo a companhia, todos são entrevistados e têm o seu trabalho monitorado. Quando um interessado submete o seu caso através do site, a Lexoo envia o arquivo para alguns dos profissionais do diretório para pedir um orçamento. O valor é sempre fixo. Voltada aos profissionais do Direito, a Ravel Law cria mapas de casos relevantes relacionados a um tema, mostrando assim as sentenças mais recentes e importantes relativas ao processo em questão. Inteligência Artificial é a base da Legal Sifter, que ajuda empresas a esquadrinhar milhares de contratos, encontrando termos e cláusulas repetitivos, prejudiciais, etc. Muitas dessas firmas têm como meta tornar o aconselhamento por advogados um serviço mais barato e acessível. Outras pretendem facilitar o trabalho do profissional, sem no entanto alterar as suas rotinas. Mas algumas miram em realizar mudanças mais profundas. Em 2016, chamou a atenção um experimento da IBM, Ross. O programa oferece uma espécie de assistente de pesquisa robótico, que entende a linguagem oral. É possível fazer uma pergunta ao robô, que coleta as informações de vários bancos relacionados ao Direito para oferecer citações, sentenças, fontes. Como a atividade do advogado se baseia, principalmente, na argumentação e na análise de documentos – ou seja, no uso da linguagem –, a possibilidade de máquinas que compreendem uma língua e sabem interpretá-la é uma mudança significativa. Em 2017, uma empresa brasileira, a Tikal Tech, lançou um androide semelhante, o ELI. Segundo a startup, o “robô-advogado’’ teria como objetivo “aumentar a produtividade” do advogado, fazendo pesquisas e cálculos, organizando documentos e formatando petições. Com a rotina do processo automatizada, seria possível aceitar causas de pequeno valor,como cobranças indevidas de luz ou telefone. Apesar dessas novidades, não acredito que o desenvolvimento tecnológico seja uma ameaça para os advogados. Os profissionais que têm como função apoiar o trabalho do advogado, como os pesquisadores, secretárias, auxiliares administrativos, podem perder vagas, à medida que parte do seu trabalho for automatizado. Mas não há substituto para o talento. Relacionar-se com o cliente, pensar uma estratégia, convencer o juiz... Nada disso será feito pela máquina. O advogado não deve ter medo da tecnologia. Deve valer-se dela para entregar um trabalho melhor, mais rápido e mais acessível para os seus clientes. Com a tranquilidade de quem sabe que, nesse sistema, ele é a peça insubstituível. Vida real O avanço profissional se dá de duas maneiras: pela escolha dos mestres e pelos desafios. Os primeiros preparam o futuro advogado para assumir os últimos. Mestres não estão apenas na escola. O advogado experiente, que atua como mentor do mais jovem, é fundamental para a formação do profissional. Tive a sorte de receber bons exemplos e conselhos em minhas primeiras experiências profissionais. O que garante um bom estágio são a capacidade do estudante de aprender e as oportunidades que terá. O escritório precisa oferecer ao estudante a oportunidade de contribuir em casos variados e desafiadores. Mas a maior responsabilidade por tornar esse período uma fase fundamental da formação é do aluno. Ele é quem precisa lutar para extrair o máximo de cada experiência, aproveitar cada chance. Cada firma proporciona uma experiência diferente. Nas pequenas, é possível acompanhar um caso do começo ao fim, em todos os detalhes. Em um escritório grande, o estagiário provavelmente trabalhará em vários processos, mas desempenhará tarefas mais especializadas, sem alcançar a mesma profundidade. Nos dois casos, cabe ao iniciante aplicar-se, pesquisar e conversar com os advogados da casa para aprender mais sobre o caso e compreender as teses jurídicas envolvidas na questão. No BMA, apoiamos a formação de nossos estagiários com grupos de estudos. A ideia é oferecer informações sobre assuntos específicos e ajudar a desenvolver novas aptidões, num processo paralelo à formação acadêmica. Quando uma nova lei é promulgada, agendamos reuniões para debater suas particularidades. Incentivamos os estagiários a publicar artigos no jornal do escritório. A ideia é prepará-los, gradativamente, mas desde o primeiro dia, para que, no futuro, ocupem nossas cadeiras e administrem a firma. Também concedemos ao estudante o direito de errar. Em minhas aulas e no BMA, preferimos que o aluno escreva como sabe, faça o melhor que pode, sem parar mil vezes para tirar dúvidas. Se não for assim, o professor ou o colega de trabalho mais experiente se converte em “muleta” do aprendiz. Bem melhor é ler um trabalho feito da melhor maneira possível pelo estudante e apontar os enganos, os desvios de raciocínio, os equívocos de foco. Quem erra aprende. E só erra quem faz. Consegui meu primeiro estágio no penúltimo ano de faculdade, aos 20 anos. Pesquisei quais eram os principais advogados do Rio de Janeiro, com a ideia de tentar obter um lugar na equipe de uma dessas estrelas. Meu primeiro alvo foi o escritório Jayme Bastian Pinto & Taunay. Era uma firma bastante conhecida, com atuação destacada em Direito Comercial e Societário. Com a maior cara de pau, liguei e pedi: “Queria falar com o Dr. Jayme.” A secretária perguntou: “Qual o assunto?” Respondi: “Gostaria de falar sobre estágio profissional.” Ele concordou em me receber para uma entrevista. Mais tarde, soube que tomou informações a meu respeito com parentes meus. Nossas famílias eram do Rio Grande do Sul e se conheciam. Mesmo assim, nunca pedi ajuda a meu pai ou minha mãe. Queria vencer sozinho. Assim, dias depois, eu me apresentei com um terno que não combinava nem um pouco com minha cabeleira rebelde (eu ainda tinha cabelos à época). Estava um pouco nervoso, mas não o suficiente para perder a autoconfiança. Abro aqui um parêntese. Sempre me considerei capaz de superar desafios. Autoconfiança e intuição são trunfos na luta pelo sucesso profissional. A intuição é um tipo de inteligência. Uma inteligência não analítica, baseada na percepção de sinais transmitidos pelas pessoas à volta. Intuitivamente, sabemos como está o outro e adaptamos nosso comportamento para provocar empatia. Não vamos contar uma longa história se o ouvinte parece apressado. Nem piadas para quem está de mau humor. Já a pessoa autoconfiante transmite seriedade e determinação. Se um advogado jovem acha que não tem essa qualidade, deve trabalhar para conquistá-la. Como? Estude mais que os outros, observe a atitude dos profissionais mais experientes, aproveite todas as oportunidades para aprender. Bem preparado, um bom profissional se sente mais seguro. Como dizia Arnold Palmer, um dos maiores jogadores de golfe da história dos Estados Unidos: “The more I practice, the luckier I get” (“Quanto mais eu treino, mais sorte eu tenho”). O escritório era um ambiente austero e formal, na rua da Assembleia, em pleno Centro do Rio. Fui recebido pelos sócios. Os dois foram muito educados, cordiais. Nenhum tinha jeito de bicho-papão. Acho que experimentei o mesmo alívio que sentem os candidatos a estagiário aqui no escritório, quando conto histórias engraçadas durante as entrevistas. Geralmente, os estudantes estão meio assustados e um pouco de informalidade deixa todo mundo mais descontraído. Mais tranquilos, os candidatos se expressam melhor, emitem opiniões. É quando podemos avaliar cada um. Na entrevista, quiseram saber sobre meu desempenho na faculdade. Contei que estudava bastante e que era apaixonado pela profissão. Não fiz nada de mais, não proferi nenhuma grande verdade universal, não recitei leis. Apenas demonstrei autoconfiança e entusiasmo pelo Direito. Também fui muito educado, o que é fundamental em qualquer situação. Ao fim da conversa, o Dr. Jayme me perguntou: “Quando gostaria de começar?” “Agora!”, respondi. De fato, comecei a trabalhar naquele exato momento. Lembro que certos colegas de turma, alguns filhos de advogados, ficaram com ciúme do meu estágio. Nunca aceitaram que meu começo profissional tivesse ocorrido antes do deles. O escritório não era grande, mas seus clientes, sim. Jayme Bastian Pinto conhecia a fundo Direito Comercial. Apesar de grande profissional, tinha a humildade de consultar o Código Comercial para verificar se o que pretendia escrever estava correto. Ele era uma pessoa muito meticulosa. Luiz Alfredo Taunay era um jovem advogado, estudioso e severíssimo. Sempre que algum integrante do escritório entregava o resultado de alguma tarefa, perguntava: “Você fez o melhor que pôde?” Se a pessoa dissesse que sim, que havia feito o melhor, ele analisava o trabalho com o maior rigor. Se o estagiário respondesse que não, que havia feito rápido ou mais ou menos, ele retrucava: “Peço uma coisa para você e você não faz o melhor que sabe?” Ou seja: a única alternativa era executar cada tarefa com perfeição. Felizmente, acho que sempre correspondi às expectativas. Sempre fazia mais do que pediam. É o tipo de postura profissional que considero essencial. É a diferença entre um sujeito que corre 40 quilômetros e outro que corre 42 quilômetros. Os dois correm muito, mas só o segundo completa a maratona. Uma de minhas primeiras tarefas foi uma pesquisa sobre o estatuto do antigo Banco Lar Brasileiro, controlado pelo Chase Manhattan Bank. A ideia era que eu investigasse o significado jurídico do cargo de diretor-adjunto. Quais suas funções e posição no ranking dos diretores? Eu precisava avaliar responsabilidades em caso de liquidação extrajudicial. Lancei-me à tarefa com o maior entusiasmo. Obtive os estatutos de várias instituições financeiras e empresas, comparei- os com o do Banco e escrevi um relatório detalhado. Dr. Jayme me enviou um bilhete elogioso, que guardei por muito tempo. Ele agradecia a pesquisa e dizia que ela fora muito útil para que redigisse seuparecer. Depois, o Dr. Taunay – até hoje só o chamo assim – me mandou o documento remetido ao cliente. Confirmei que alguns argumentos da minha pesquisa haviam sido aproveitados. Aprendi muito no escritório. Ensinaram-me a ler as partes relevantes dos periódicos legais (especialmente o Diário Oficial), em busca de notícias sobre novas leis e decisões judiciais, além de anotar em um fichário as que pudessem ser relevantes no futuro. Com outro advogado da casa, recebi lições sobre como escrever com clareza e ironia. Ele me ensinou que as palavras têm um significado preciso, como já expliquei. Quem escreve bem usa menos palavras para comunicar uma ideia, porque escolhe e encaixa perfeitamente os vocábulos de que necessita para argumentar. Todos os dias, depois da faculdade, eu ia para o estágio. Fazia principalmente pesquisas sobre Direito Comercial. Estava sempre às voltas com estatutos de empresas. Sempre gostei de fuçar documentos, descobrir detalhes. Pegava um livro, comparava com outro e emitia uma opinião – o que é parte importante desse trabalho. É uma tarefa que ainda gosto de fazer. O bom advogado deve voltar à pesquisa de vez em quando, para renovar seus métodos de busca e refrescar conhecimentos. Outra incumbência minha era bater à porta da Junta Comercial para acompanhar processos. Um trabalho burocrático, mas também muito importante para o bom andamento do escritório. Era preciso desenvolver um relacionamento amigável com os funcionários das turmas julgadoras. Quando querem, eles podem atrasar muitíssimo o progresso de uma causa. E é claro que, muitas vezes, a outra parte tem o maior interesse em que o processo se arraste o máximo. Uma de minhas grandes vitórias nesse estágio foi a solução de um problema sério na Junta Comercial. O ano de 1975 marcou a primeira capitalização de um título patrimonial da Bolsa de Valores em uma corretora. O problema foi que o caso emperrou na Procuradoria da Junta. Estudei o assunto com cuidado. Não havia nada na lei que impedisse a capitalização. Ela só não era usual. Sem grande experiência, fui conversar com o procurador. Sabia o processo de cor. Expliquei que não havia nenhum problema legal. E ainda enfatizei: seu parecer vai criar um precedente, vai ficar famoso. Apelei para o maior de todos os pecados dos homens: a vaidade. Funcionou. Quando o caso foi resolvido, o cliente ficou contentíssimo. Era um caso importante, inovador, e eu ofereci uma pequena contribuição para que ele fosse resolvido. Naquela época, havia a convicção – que considero equivocada – de que o estágio, por se constituir numa oportunidade de aprendizado, não precisava ser remunerado. Depois de seis meses, passei a receber salário mínimo. Foi um dia inesquecível. Por um lado, vibrei com meu primeiro pagamento, resultado do meu próprio trabalho. Por outro, fiquei aborrecido, porque meu pai decidiu cortar minha mesada. Como a mesada era maior do que o salário mínimo, passei alguns apertos. Foi um aprendizado de equilíbrio orçamentário. Costumava participar das entrevistas para a contratação de estagiários no BMA. Hoje o processo é feito por um time de profissionais. Acompanho sempre que possível. Somos rigorosos. É preciso. Nosso capital é humano. Um dia, esses estudantes serão o futuro do escritório. Terão de corresponder à nossa aposta. Quando me pedem vagas, a única coisa que faço é recomendar que inscrevam a moça ou o rapaz no processo de seleção. Caso contrário, e sobretudo quando se é sócio, a organização acaba subordinada a favores e interesses, com prejuízo a médio e longo prazos. Costumamos receber currículos dos candidatos por intermédio de advogados conhecidos, amigos ou via site. Fazemos uma triagem em função de características que, por experiência, percebemos que funcionam melhor no BMA. Quais são essas características? O único jeito de descobrir é trabalhar um dia no escritório. Um dos primeiros passos é convidar os candidatos para uma dinâmica de grupo, discussão em que colocamos um tema em debate. Enquanto os estudantes conversam, analisamos os perfis: um é mais calado, outro fala bastante; um faz um comentário inteligente, outro opina sem saber nada sobre o assunto. Depois da dinâmica, os candidatos passam por testes de conhecimento jurídico, línguas e redação. Nas provas, procuramos verificar se eles estão atualizados com os fatos, se leem os jornais. Um advogado deve ler o jornal todo dia. Precisamos de pessoas que pensem além do Direito. Queremos gente interessada no país, na sociedade, na economia, capaz de relacionar sua atividade profissional a um contexto maior. Há requisitos para alcançar um bom estágio. Em primeiro lugar, é preciso ser muito bom aluno. Não é o caso de ser o melhor, mas de estar entre os primeiros. Em segundo lugar, é importante falar mais de uma língua. Se o candidato domina mais de um idioma, terá vantagem sobre os outros competidores. Por fim, o comportamento. O modo de falar, de se vestir e de se dirigir às pessoas é fundamental. Nas discussões em grupo, a aparência pessoal, sóbria, bem cuidada, com ar profissional, ajudará a sobressair. Não se deve falar demais. Há um ditado que ensina: quem fala demais dá bom-dia a cavalo. Procure estabelecer uma relação de confiança, olho no olho, com as pessoas que coordenam a seleção. Não seja arrogante, apenas confiante. Um item é imprescindível para os candidatos a estágio: fazer o dever de casa. Antes de ir à entrevista, pesquise na internet ou em outros meios a história do escritório, os ramos em que atua e, se possível, quais seus principais clientes. Descubra quem são os sócios fundadores e quais os casos de maior destaque. Só assim será possível dialogar com mais confiança e estabelecer uma empatia inicial com o entrevistador. Muita gente deixa de fazer essa preparação antes de uma entrevista. Preparado, você já chega com uma imensa vantagem sobre os mais displicentes. Prepare seu coração Depois de um ano no Bastian Pinto & Taunay, comecei a ficar inquieto. O escritório era muito focado nas figuras principais. Ficou pequeno para mim. Percebi que dificilmente minhas responsabilidades aumentariam no curto prazo. Ninguém iria me passar assuntos mais complexos. Foi aí que meu professor de Direito Comercial, Jorge Hilário Gouvêa Vieira, por intermédio de seu irmão e meu amigo Antonio Alberto, me sondou se gostaria de estagiar no escritório de seu pai, Dr. João Pedro Gouvêa Vieira. Eu ainda não sabia, mas ele já havia perguntado aos titulares do escritório em que estagiava se poderia conversar comigo. “Não. Estamos satisfeitos com ele”, respondeu um dos sócios. O assunto morreu ali, mas, alguns meses depois, o chega-pra-lá foi esquecido e fui chamado para uma entrevista. Fiquei animado. O escritório Gouvêa Vieira era um dos maiores e mais tradicionais do Rio. Cuidava de mais casos e atuava em mais áreas do Direito do que aquele em que eu trabalhava. Foi difícil tomar a decisão. Mais difícil ainda foi me despedir do primeiro emprego. Tentei ter uma conversa para agradecer a oportunidade. Não entenderam. Tive de escrever uma carta que explicava a minha saída como a busca de um novo desafio. Avenida Rio Branco, 85, 13o andar. Quando pisei pela primeira vez nas salas do Gouvêa Vieira, não imaginava que passaria ali os próximos 19 anos. Entrei como um estudante e saí de lá maduro, para montar o BMA. Foi uma segunda universidade. Comecei como se começa sempre: pesquisando. Depois, passei a acompanhar ações de busca e apreensão para a Francred, uma financeira do Banco Francês e Brasileiro. Eram ações para recuperar carros e máquinas não pagos, oferecidos como garantia (alienação fiduciária) a empréstimos tomados para a respectiva aquisição. Era uma tarefa difícil, pelo drama dos que eram obrigados a entregar os bens comprados a crédito. Breno Bello de Almeida Neves, que supervisionava as minhas atividades, foi um dos que me ensinaram a encarar as causas de forma estritamente profissional. O trabalho do advogado pressupõe uma disputa. Em muitas situações, os acordos não são possíveise um dos lados do conflito terá de perder. Quem não é advogado encara essas lutas de forma emocional. Nós somos obrigados a exercitar o autocontrole para perceber os conflitos como parte da profissão. Muita gente confunde esse autocontrole com frieza. Não somos insensíveis. Enxergamos o drama onde o drama está. Sofremos quando há sofrimento. Exultamos quando há motivo para júbilo. O que procuramos evitar é que as emoções transbordem para fora de nossas mentes. Isso é dominar as emoções. Ser advogado é ter adversários. É contrariar interesses. Por isso, pratique o autocontrole. Lembro-me que um dos casos da Francred proporcionou-me um encontro inesquecível. Reuni-me com um devedor que era dono de uma empresa de importação de máquinas. Quando cheguei, ávido por cobrar a dívida para o cliente, sentei-me em frente à mesa do empresário. Sem delongas, ele me disse: “Está vendo esses dois potes de vidro cheios de papéis?” Respondi: “Sim.” Então ele me explicou que no pote da direita estavam os nomes dos credores que ele iria pagar. No da esquerda, os que jamais receberiam. E acrescentou: “Se você insistir em exigir a dívida, o nome do seu cliente, que está no pote da direita, vai para o da esquerda.” Estarrecido com aquela postura sem-vergonha, concluí que era melhor calar e agradecer a gentileza de ter me recebido. Tempos depois a dívida foi integralmente paga. Obrigado, autocontrole. Made in USA Muitos dos meus alunos e mesmo os estagiários do escritório têm um sonho: fazer o mestrado no exterior. De preferência, nos Estados Unidos, onde o Direito se desenvolveu enormemente. O Direito brasileiro sofre bastante influência dos Estados Unidos. Nada mais natural que se queira estudar lá, caso haja recursos para pagar as universidades americanas. Mas, antes de vender o carro e limpar a poupança para realizar o projeto, é preciso avaliar se essa é a melhor opção. Estudar no exterior é uma experiência interessante, mas não transforma ninguém em Indiana Jones do Direito. Muita gente que pega o avião mal sabe o ABC do Direito brasileiro. E volta crente de que virou sabichão. Rapidamente, aprenderão com a prática que o diploma em inglês não impressiona juízes nem clientes. Mesmo com essas ressalvas, é certo que estudar numa escola estrangeira é uma grande experiência: uma oportunidade de aprender sobre um novo sistema legal e outra maneira de raciocinar. Nos Estados Unidos, parte-se de um caso para extrair um princípio. Aqui é o contrário: nosso Direito é totalmente codificado. O que se tenta descobrir é o princípio legal que se pode aplicar ao caso. Quanto a mim, aprendi muito em meu mestrado no estrangeiro. Em 1976, meu estágio no escritório Gouvêa Vieira havia se transformado em emprego. Foi quando me formei na PUC, no tempo recorde de quatro anos, um ano antes do previsto. Tive de fazer um requerimento especial ao reitor para que ele me deixasse cursar mais matérias do que o permitido no último semestre da faculdade. Era uma vitória estar empregado tão cedo, mas eu não estava satisfeito. Percebia que o mercado era competitivo e que havia gente boa da minha idade dentro e fora do escritório. Eu teria de apresentar qualificações diferentes dos demais se quisesse me destacar. Decidi que um mestrado nos Estados Unidos me conferiria esse diferencial. Também funcionaria como um rompimento do cordão umbilical, a chance de deixar o abrigo de minha família. Eu cresceria, ganharia maturidade, voaria com minhas próprias asas. Inscrevi-me nos cursos de Columbia, NYU e Harvard. Arrumei boas cartas de recomendação, do senador Francisco Dornelles; do então diretor do Departamento da PUC, Sergio Ferraz; e dos professores Joaquim Falcão e Gabriel Lacerda. Fui aceito por Columbia e Harvard. Escolhi Harvard. Foi uma grande experiência. Assisti a palestras de Ralph Nader, que havia sido estudante de Harvard em 1958. Mais tarde, ele criaria uma das mais importantes ONGs do mundo, a Public Citizen, responsável pela aprovação de muitas leis de defesa da democracia, do meio ambiente e dos direitos do consumidor. Cruzava no campus com John Kenneth Galbraith, um dos economistas mais influentes do século 20. E convivi com Roberto Mangabeira Unger, já então professor titular de Harvard. Uma temporada nos Estados Unidos também joga holofote sobre uma verdade: a universidade é a porta de entrada para o mercado de trabalho. Lá fora, há plena consciência de que se disputa a mesma vaga de emprego. Não existe a camaradagem dos alunos brasileiros, a generosidade de emprestar o caderno para que o colega copie as anotações. Nos Estados Unidos, vigora a Lei de Murici: cada um trata de si. Não acho que seja o ideal. É bom ser generoso e parceiro. Mas os estudantes brasileiros aproveitariam bem mais a universidade se a encarassem como transição para o meio profissional – e, portanto, fossem mais profissionais em sala de aula. Isso não elimina a parceria, a cumplicidade. Um dia, o relacionamento da faculdade pode se revelar decisivo na vida profissional de cada um. Até mesmo, eventualmente, para a formação de uma futura sociedade de advogados. A maior parte das disciplinas que cursei se relacionava aos Direitos Tributário e Comercial, áreas ainda em desenvolvimento na academia brasileira. Para ser aprovado, era preciso escrever uma dissertação de, no mínimo, 60 páginas. Escrevi sobre insider trading, a prática ilegal de negociar ações com base em informações relevantes não divulgadas ao mercado, obtidas por meio de informantes inescrupulosos e métodos escusos, ou mesmo pelo desempenho de funções de confiança em grandes companhias. O tema chamava atenção, numa época de grandes operações na Bolsa de Nova York. Mais tarde, o trabalho foi publicado como um artigo na edição 34 da Revista de Direito Mercantil. 7 Na formatura, Harvard mostrava seu prestígio: o orador foi Helmut Schmidt, então chanceler alemão. 7 O tema me interessou tanto que voltei a ele em 2014, quando fiz novo mestrado na Fundação Getulio Vargas, sobre Direito de Regulação. Sérgio Guerra, excelente professor, abriu meus horizontes para o tema, que daria origem à minha dissertação, “O Insider Trading no Direito Brasileiro”, publicada em livro em 2017, em um momento em que o tema entrou na ordem do dia. Quando retornei, em 1979, me sentia mais preparado. Havia afiado o raciocínio, aprendido uma nova maneira de examinar problemas, mais crítica e analítica. Amadurecera, mas sabia que o emblema de Harvard no currículo não me fazia melhor do que ninguém. Eu teria de trabalhar duro se quisesse conquistar meu espaço. Vontade não me faltava. Nem paixão. O exame da Ordem Quando fiz o exame para ser admitido na Ordem dos Advogados, em 1976, ele ainda não era obrigatório. Eu tinha duas opções para exercer a profissão: cursar prática forense, aos sábados, na universidade, ou prestar o exame. Escolhi a prova. Havia um teste escrito e outro oral. Tive de redigir uma petição e responder a questões sobre ética e Direito Tributário e Constitucional. Naquela época, o exame não era uma peneira tão fina quanto é hoje. É que foi necessário criar um filtro para selecionar os advogados. A profissão se tornou muito popular. Nada menos que 1.240 cursos estão habilitados a ensinar Direito no Brasil – nos Estados Unidos, são apenas 203 universidades. Todos os anos, essas escolas, muitas com baixíssima qualidade técnica, despejam no mercado milhares de aspirantes a advogado. Infelizmente, o diploma não significa uma boa formação. E o exame é a forma de evitar que os maus conselhos de um advogado com deficiências de conhecimento prejudiquem clientes e atinjam toda a categoria. O rigor das provas tem sido importante para manter um padrão de qualidade no exercício do Direito. A tal ponto que outros profissionais, como os médicos, discutem a adoção de mecanismos semelhantes. Os índices de aprovação são baixos. Em 2016, só 22% dos inscritos passaram. O percentual de aprovação varia muito quando se checa o ranking por instituições: em 2016, a Universidade Federal de Minas Gerais
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