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Júlia Figueirêdo – DESORDENS NUTRICIONAIS E METABÓLICAS EMERGÊNCIAS HIPERGLICÊMICAS: CETOACIDOSE DIABÉTICA: A cetoacidose diabética (CAD) é a complicação mais grave do DM1, marcada por hiperglicemia, cetonemia e acidose metabólica. Pode ser encontrada no momento do diagnóstico, principalmente em crianças e adolescentes. São considerados fatores de risco para CAD o sexo feminino, doenças psiquiátricas, episódios prévios de cetoacidose e doenças psiquiátricas. Condições precipitantes para as emergências hiperglicêmicas FISIOPATOLOGIA: Ao identificar a ausência de insulina, o organismo promove o aumento de hormônios contrarreguladores como glucagon, cortisol, GH e catecolaminas, que agravam ainda mais a hiperglicemia. Esse desfecho resulta da diminuição da captação periférica de glicose e do maior estímulo a gliconeogênese hepática. Para sanar esse déficit, há início do consumo de reservas energéticas endógenas, sendo a lipólise, com liberação de ácidos graxos livres (AGL) e glicerol, o evento de maior importância. No fígado, os AGL são transformados em cetonas, especialmente ácido beta- hidroxibutírico, ácido acetoacético e acetona. Como a velocidade de síntese supera a degradação desses corpos cetônicos, há acúmulo plasmático e, posteriormente, dissociação em cetoânions e H+. Como consequência do aumento da concentração de cetoácidos, observa- se desenvolvimento de acidose metabólica com ânion-gap aumentado. Distúrbios hidroeletrolíticos são comuns na CAD, pois o aumento da osmolaridade sérica causa escape de fluidos do meio intra para o extracelular. No espaço intravascular, os eletrólitos são filtrados pelos rins e abundantemente excretados na urina (diurese osmótica), de forma secundária à hiperglicemia. Apesar desse processo, observa-se manutenção (ou elevação) dos níveis séricos de potássio e fosfato. Isso pode ser explicado por uma predisposição à saída iônica celular com a depleção insulínica, além dos próprios efeitos da acidemia e da hiperosmolaridade. Esse evento é pouco frequente na DM2, geralmente causada por infecções graves ou outras situações de estresse metabólico em indivíduos em falência pancreática As cetonas sinalizam, de modo indireto, escassez extrema de alimento, o que se reflete clinicamente como hiporexia Júlia Figueirêdo – DESORDENS NUTRICIONAIS E METABÓLICAS Fisiopatologia da cetoacidose diabética QUADRO CLÍNICO: As principais queixas são poliúria, polidipsia e perda de peso (polifagia facultativa pelo efeito das cetonas sobre o apetite), taquicardia, desidratação (mucosas secas, olhos fundos) e astenia. A dor abdominal é uma manifestação importante, especialmente em crianças, causada pelo atrito entre os folhetos do peritônio desidratado. Pode até mesmo simular um abdome agudo. A respiração de Kussmaul (rápida e profunda) é um sinal comum, descrevendo a tentativa de corrigir a acidemia, eliminando maiores volumes de CO2. Outro sinal característico é o hálito cetônico (odor de maçã podre). Causas secundárias para as manifestações clínicas da CAD INVESTIGAÇÃO DIAGNÓSTICA: Dentre os exames laboratoriais inespecíficos, a leucocitose (10 a 25.000/mm³), com ou sem desvio à esquerda, é universalmente observada, mesmo sem infecções. Esse achado se deve à hiperatividade do córtex adrenal, levando a aumento de glicocorticoides. Na CAD, apesar da grande eliminação urinária de potássio, a normocalemia ou hipercalemia são frequentes, fenômeno que também se repete para o fosfato, como descrito acima. A desidratação pode gerar aumento de ureia e creatinina em função de azotemia pré-renal, ou seja, diminuição da TFG por menor influxo de sangue aos glomérulos. A hiponatremia é outro quadro frequente, já que a hiperglicemia, por seu efeito osmótico, remove água do interior das células, diluindo o sódio plasmático. É, no entanto, necessário corrigir os valores encontrados, considerando que a cada 100 pontos de aumento da glicemia (acima de 100 mg/dl), há queda de 1,6 pontos de sódio. A hipertrigliceridemia grave também pode provocar pseudo- hiponatremia, diminuindo falsamente a concentração de sódio. 𝑁𝑎+ 𝑐𝑜𝑟𝑟𝑖𝑔𝑖𝑑𝑜 = (𝑁𝑎+) + 1,6 ∗ 𝑔𝑙𝑖𝑐𝑒𝑚𝑖𝑎 − 100 100 Fórmula para cálculo do sódio corrigido O diagnóstico definitivo de CAD, por sua vez, requer a presença de hiperglicemia, A espoliação nutricional é ainda mais severa na presença de gastroparesia, capaz de induzir náuseas e vômitos Exames de imagem ou culturas de focos de infecção devem ser solicitados conforme a suspeita clínica para o agente precipitante da cetoacidose Júlia Figueirêdo – DESORDENS NUTRICIONAIS E METABÓLICAS acidose metabólica e cetonemia ou cetonúria significativa. O ácido beta-hidroxibutirato (principal cetoácido) não é captado nas pesquisas laboratoriais, de modo que a não detecção de corpos cetônicos NÃO descarta sua presença. A ação de peróxido de hidrogênio ao exame de urina pode induzir a conversão do beta-hidroxibutirato em acetoacetato, confirmando o quadro. Uma estratégia mais confiável para essa confirmação, contudo, é a pesquisa indireta pelo cálculo do ânion-gap: Â𝑛𝑖𝑜𝑛 𝑔𝑎𝑝 = 𝑁𝑎+ − (𝐶𝑙− + 𝐻𝐶𝑂3 −). Critérios diagnósticos laboratoriais para a CAD Como diagnósticos diferenciais, devem ser consideradas a cetose de jejum, cetoacidose alcoólica, acidose induzida por medicamentos (salicilatos e metformina) e insuficiência renal crônica. TRATAMENTO: A conduta frente a CAD tem como principais objetivos a recuperação da volemia, a queda de níveis glicêmicos e a correção de distúrbios hidroeletrolíticos, se valendo de estratégias de implementação imediata, a saber: Reposição volêmica vigorosa: deve contar com infusão de 1L de SF 0,9% na 1ª hora, com uso cauteloso de ringer lactato na fase inicial, pois ele contém potássio (ainda que tenha menor concentração de cloro, evitando acidose hiperclorêmica). Após esse primeiro momento, recomenda-se a dosagem do sódio sérico, corrigido. Se ele estiver normal ou elevado (> 150 mEq/l), a reposição deve ser modificada para salina 0,45%, mantendo SF 0,9% apenas em valores baixos. A velocidade de infusão deve ser ajustada para 4 a 14 mg/kg/h, ao passo que em crianças, esse valor deve ser de 20 ml/kg, feito rapidamente. Essa abordagem visa manter a pressão arterial e melhorar a perfusão dos tecidos, o que auxilia a diminuir a hiperglicemia e reverter a acidose. Quando a glicemia for < 250 mg/dl, a reposição passa a ser feita com soro glicosado 5% e NaCl a 0,45%, como forma de evitar quedas muito acentuadas da glicose sanguínea. Nesse estágio, a infusão varia entre 150 e 250 ml/h, monitorando a glicemia, que deve se manter em 150- 200 mg/dl. Insulinoterapia: é iniciada juntamente à reposição de fluidos, pois pode agravar a hipovolemia e induzir choque hipovolêmico, graças à maior entrada de água nas células motivada por esse hormônio. Uma dose de ataque de insulina regular IV (0,1 a 0,15 UI/kg) deve ser administrada para estimular os Caso o valor de ânion-gap seja > 10 mE1/l, a dosagem de lactato deve ser avaliada, descartando hiperlactatemia grave (> 5 mm/l) Não se deve infundir mais de 5L em 8 horas, sob risco de desenvolvimento de edema cerebral e síndrome da angústia respiratória Júlia Figueirêdo – DESORDENS NUTRICIONAIS E METABÓLICAS receptores insulínicos, seguida por infusão venosa contínua (0,1 Ui/kg/h), visando diminuição média de 50-70 mg/dl/h. A ausência de redução dos níveis de glicose, mesmo após aumento da dose anterior em 2x, indica presença de infecções ou de erros no processo de hidratação. Ao atingir valores≤ 200-250 mg/dl, a infusão deve ser diminuída (0,05 UI/kg/h), e adiciona-se soro glicosado 5%, como descrito acima. Essa etapa deve ser mantida até a normalização do pH e bicarbonato, momento após o qual podem ser retomadas as aplicações subcutâneas. Reposição de eletrólitos: como a variação dos níveis de K+ é a que mais acarreta risco ao paciente, recomenda- se o uso de cloreto de potássio caso a concentração sérica do íon seja < 5 mEq/l e haja fluxo urinário adequado. A administração usual é de 20-30 mEq/l a cada 100 ml da solução de hidratação. A intervenção quanto ao fosfato é controversa, somente sendo indicada na presença de disfunção cardíaca, depressão respiratória, anemia ou em valores < 1,0 mg/dl. A reposição pode ser feita com fosfato monopotássico 20% (1/3) e KCl 10% (2/3). Normalmente, não é necessário administrar bicarbonato, com benefícios apenas se o pH for < 6,9 em adultos (usar 100 mEq/l diluídos em 400 ml de água destilada e, na hipopotassemia,20 mEq de KCl) ou < 7,1 em crianças. Na pediatria, a dose de reposição é obtida por 𝐻𝐶𝑂3 −𝑜𝑓𝑒𝑟𝑡𝑎𝑑𝑜 = (12 − 𝐻𝐶𝑂3 − 𝑒𝑛𝑐𝑜𝑛𝑡𝑟𝑎𝑑𝑜) ∗ 0,3 ∗ 𝑝𝑒𝑠𝑜 . Algoritmo investigativo e terapêutico para a cetoacidose diabética Os critérios de resolução da CAD são pH > 7,3 (pode ser obtido por sangue venoso, após correção, ou arterial), bicarbonato > 18 mEq/l e glicemia < 200 mg/dl. A partir desse ponto, pode ser liberada a dieta e, caso o paciente se mantenha estável, há retorno ou início do esquema basal-bolus para manejo da DM1. 𝑝𝐻 𝑎𝑟𝑡𝑒𝑟𝑖𝑎𝑙 = 𝑝𝐻 𝑣𝑒𝑛𝑜𝑠𝑜 + 0,03 Fórmula para cálculo do pH sérico com base no sangue venoso O esquema de insulinização por via SC deve ser feito com 0,1 UI/kg (se glicemia capilar ≥ 160-200 mg/dl), podendo chegar a 0,4 UI/kg (para valores ≥ 500 mg/dl) As doses devem ser menores antes de dormir e na madrugada Considera-se que o tempo para normalização e da cetonemia e da acidose seja duas vezes maior do que o necessário para a glicemia atingir 250 mg/dl Júlia Figueirêdo – DESORDENS NUTRICIONAIS E METABÓLICAS COMPLICAÇÕES: As complicações associadas à CAD podem ser delimitadas como consequentes à doença (ex.: infecções, hipertrigliceridemia aguda e pancreatite) ou resultantes do tratamento, descritas por: Edema cerebral: é um desfecho raro, porém altamente letal. Com a hiperosmolaridade, há maior produção de substâncias osmoticamente ativas nas células do SNC. Com a reposição volêmica, a osmolaridade sérica cai rapidamente, causando influxo de água e eletrólitos para o meio intracelular. Deve-se pensar nesse quadro se houver piora do nível de consciência após o início do tratamento, além de cefaleia intensa súbita, náusea, desorientação, oftalmoplegia e sinais de hipertensão intracraniana. O diagnóstico é confirmado com a realização de tomografia ou ressonância magnética. A resolução do quadro se dá com o suporte ao paciente (manitol, ventilação mecânica) e a diminuição da velocidade de correção da CAD. Síndrome do desconforto respiratório agudo: a SDRA ocorre em um pequeno número de pacientes, resultantes da menor pressão coloidosmótica intravascular e do aumento da pressão dos capilares, que também elevam sua permeabilidade, com escape de fluidos e proteínas; Acidose metabólica hiperclorêmica: marcada por ânion-gap normal, pode ser precipitada pela oferta excessiva de cloro durante a ressuscitação volêmica. Não requer tratamento específico, desaparecendo em poucos dias após o controle da glicemia. ESTADO HIPEROSMOLAR HIPERGLICÊMICO: O estado hiperosmolar hiperglicêmico (EEH) é a forma de descompensação típica da DM2, especialmente em idosos, apresentando mortalidade mais elevada do que a CAD. A ocorrência do EEH é dependente de hiperglicemia e baixa ingesta de líquidos, tendo como principal fator predisponente as infecções urinárias e pulmonares. A patogênese desse quadro resulta do aumento progressivo da osmolaridade sérica (resultado de níveis altos de sódio e glicose), sem que haja alteração intracelular. Assim, observa-se desvio de fluidos para o meio extracelular. A diurese osmótica, portanto, implica em perda acentuada de água, porém sem excreção proporcional de eletrólitos. O comprometimento renal prévio traz ao EEH um componente pré-renal, ou seja, déficits na filtração sanguínea que afetam a excreção de glicose, perpetuando assim a hiperglicemia. Observa-se, portanto, que a reidratação retoma a capacidade de eliminação adequada de glicose e íons, cessando o avanço do estado hiperosmolar. São fatores de risco para a ocorrência de edema cerebral a idade < 5 anos, hiper- hidratação, acidose grave, uso de bicarbonato, hipoglicemia, hipocapnia e hipernatremia A presença de insulina residual é suficiente para prevenir a cetogênese, porém não afeta a glicogenólise excessiva, tornando a CAD menos comum na DM2 Júlia Figueirêdo – DESORDENS NUTRICIONAIS E METABÓLICAS Fisiopatologia do estado Hiperosmolar hiperglicêmico Os sintomas clássicos se associam à desidratação, com hipotensão e oligúria descrevendo estágios avançados de hipovolemia. Pode haver dor abdominal à palpação, resultado do atrito de folhetos peritoneais e pela gastroparesia hiperosmótica. Fenômenos trombóticos (por elevada hemoconcentração) são evidenciados pela presença de empastamento de membros inferiores ou embolia pulmonar. O exame físico neurológico revela achados importantes, como déficits motores focais, sonolência e crises convulsivas. Caso o paciente esteja comatoso, esse estado só pode ser atribuído ao EEH na presença de osmolarisade > 350 mOsm/l. Quadro clínico da cetoacidose diabética e estado Hiperosmolar hiperglicêmico O diagnóstico laboratorial de EEH requer glicemia > 600 mg/dl, pH > 7,3 (e HCO3 > 18 mEq/l) e osmolaridade plasmática > 320 mOsm/kg. O cálculo da osmolaridade é realizado por meio da fórmula: 𝑂𝑠𝑚 = 2 ∗ 𝑁𝑎 + 𝐺𝑙𝑖𝑐𝑒𝑚𝑖𝑎 18 . É possível diferenciar o estado hiperosmolar hiperglicêmico da CAD pois o primeiro não apresenta cetonemia e cursa com níveis elevados de glicose, sódio e ureia. Alguns pacientes, no entanto, apresentam um padrão laboratorial misto, com discreta cetonemia, hiperosmolaridade sérica e acidose moderada. Comparação diagnóstica entre a cetoacidose diabética e o EEH A hidratação venosa deve ser iniciada com SF 0,9% mesmo na presença de hipernatremia. Com a infusão de 1 a 2 litros dessa solução nas primeiras horas, há substituição por salina 045% (hipotônica), mantida nas 12 horas seguintes, após as quais devem ter sido administrados 6 a 8 litros. No EEH, a insulinoterapia sem manejo do déficit hidroeletrolítico é uma intervenção arriscada, podendo causar colapso vascular. Nesse quadro, o influxo celular de glicose desequilibra o gradiente osmótico, atraindo água para o meio intracelular e piorando a hipovolemia. Com a reidratação vigorosa, administra-se insulina regular venosa contínua, havendo rápida queda da glicemia como resultado da sensibilidade residual ao hormônio, hemodiluição e retorno da diurese. Júlia Figueirêdo – DESORDENS NUTRICIONAIS E METABÓLICAS Assim como na CAD, recomenda-se manter a glicemia > 250 mg/dl como profilaxia para o edema cerebral. A reposição de potássio segue os mesmos moldes da cetoacidose diabética, mesmo que os indivíduos com EEH possam apresentar calemia normal ou aumentada em consequência da hiperosmolaridade. Algoritmo para investigação e tratamento do estado Hiperosmolar hiperglicêmico O manejo de comorbidades e fatores desencadeantes deve ser feito conjuntamente à correção do EEH,com antibioticoterapia (resultados de cultura sugestivos de infecção), profilaxia para tromboembolismo e uso de procinéticos
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