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2 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .............................................................................................. 3 2 TEORIA FREUDIANA ................................................................................... 4 2.1 O que a Psicanálise tem a comentar sobre a política, de qual política se trata?..............................................................................................................................5 2.2 A noção de política e a sua necessária compreensão ........................... 8 2.3 Psicanálise, estética e a política ........................................................... 10 3 DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS ................................................... 14 3.1 Reequilibração cognitiva ...................................................................... 15 4 FREUD E A INSTABILIDADE TEÓRICA NA METAPSICOLOGIA ............. 17 5 HABITAR O INÓSPITO: A CONDIÇÃO HUMANA ...................................... 20 5.1 O inconsciente freudiano ...................................................................... 21 5.2 Eu na teoria freudiana .......................................................................... 22 6 FANTASIA E REALIDADE PARA A PSICANÁLISE FREUDIANA .............. 24 7 FORMAÇÃO DA PERSONALIDADE SEGUNDO A PSICANÁLISE ........... 26 7.1 A formação da personalidade segundo a Teoria Estrutural .................. 28 7.2 O ID ...................................................................................................... 29 7.3 O EGO .................................................................................................. 30 7.4 O SUPEREGO ..................................................................................... 32 7.5 Relações entre os três componentes da psique na formação da personalidade ...............................................................................................................33 8 NEUROSE E PSICOSE .............................................................................. 34 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................. 37 3 1 INTRODUÇÃO Prezado aluno! O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma pergunta, para que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em tempo hábil. Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora que lhe convier para isso. A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser seguida e prazos definidos para as atividades. Bons estudos! 4 2 TEORIA FREUDIANA Fonte: encrypted-tbn0.gstatic.com Na extensa mitologia que se encontra difundida em parte significativa da historiografia da psicanálise, um dos mitos mais recorrentes é o da absoluta originalidade de Freud (SIMANKE; CAROPRESO, 2017). Mesmo quando Freud retoma – e desenvolve à sua maneira, certamente – ideias amplamente difundidas na literatura científica e filosófica de sua época, essas ideias são apontadas como criações originais suas, com uma veemência que se manifesta na razão direta da sua importância para a construção do aparato teórico psicanalítico. A etiologia sexual dos transtornos mentais, a sexualidade infantil, a repressão e o inconsciente são apenas os exemplos mais destacados de questões que têm uma longa história, anterior e independente de Freud, que é sistematicamente ignorada por esse tipo de historiografia (SIMANKE, 2016). O resultado é um enaltecimento imaginário e ingênuo de que um personagem da estatura de Freud realmente não carece. Além disso, essa atitude impede que se percebam os vínculos de Freud com o contexto intelectual em que seu pensamento se formou. Isso traz evidentes prejuízos para a compreensão do processo de constituição dos conceitos psicanalíticos, mas também para a avaliação efetiva da contribuição de Freud para as diversas áreas de conhecimento com as quais dialogou (SIMANKE, 2019). 5 2.1 O que a Psicanálise tem a comentar sobre a política, de qual política se trata? Sobre qual política estão discorrendo os psicanalistas se torna um assunto de grande relevância, sobretudo no que toca ao seu lugar de escuta e compreensão dos fenômenos sociais. A intenção é distanciar em definitivo a Psicanálise de uma pretensa neutralidade científica. Estamos, sem dúvida alguma, optando por dizer que o analista não precisa ter a escolha de permanecer em sua torre de marfim, na poltrona acolchoada de seu consultório. Do ponto de vista da ética da Psicanálise, é inapropriado ao analista a escolha de tomar uma posição diante das demandas sociais e das violências que acometem a população? Antes de imediatamente respondermos com um alto e sonoro “não”, de antemão já assumido por nós, vale expormos o que os analistas têm discursado sobre o tema. Segundo Rosa (2016), a política é o que engendra gozo e desejo nas cenas, nos acontecimentos experimentados pelos sujeitos nas relações sociais, numa realidade compartilhada. Mais do que aquilo que pode gerar um governo, exercendo um poder sobre o sujeito, diz respeito a uma produção, a um consenso do que é comum para ser apropriado e elegível por uma sociedade. Percebamos que não se trata apenas de ideias veiculadas entre povos; diz-se de ações impregnadas por ideias e que se materializam em ato. Na política, há uma determinada forma de enxergar o mundo, de se posicionar, de dirigir-se às escolhas, de reconhecer e de aceitar as diferenças entre cada sujeito. Importa salientarmos - para o espanto de alguns de nós, inadvertidos do que há na enunciação das palavras - a coexistência de “políticas” nas vidas das pessoas; e não “política”, como poderíamos supor. Ainda para Rosa (2016), “A política apresenta-se em duas faces: não apenas como poder e domínio sobre o sujeito, mas também como a ação no espaço entre as relações, ou seja, aquela que tem no horizonte a produção do mundo comum”. Posto isso, cumpre trazer à baila neste momento a primeira face apresentada pela autora. Vejamos que o poder e o domínio exercido pela política mencionada fazem jus a um discurso que no contemporâneo se mostra regulador do laço social, da relação que os sujeitos constroem com o mundo ao seu redor e com os outros sujeitos. Este discurso foi definido por Jacques como o discurso do capitalista. O sujeito enredado na maquinaria do poder é aquele constituído por esse discurso que pode supor um Outro não barrado, discurso social que não admite o equívoco, a separação, a falta ou a diferença. O “todos somos iguais”, a imagem, a autoestima e a onipotência do “eu me 6 basto e não preciso dos outros para tocar a minha vida” são os emblemas e pilares desse discurso. Pois bem, estes não são os traços que caracterizam o tempo do narcisismo? A agressividade, a violência, a ambivalência do amor e do ódio (elevados ao extremo) marcam o narcisismo: momento que inaugura a identificação primordial (da conquista) da primeira imagem de si (unificada) para o infans, “eu sou tudo para ela e ela é tudo para mim”. (COSTA, COSTA-ROSA, 2020). Junto aos valores que impulsionam ímpetos narcisistas e incitam a competitividade, de vencer a qualquer “custo”, Rosa sublinha uma violência nesses discursos, [...] modalidadesde violência que ficam mascaradas em inúmeras questões sociais como nas situações de miséria, sempre acompanhadas de um processo histórico de exploração e de humilhação, ou nas catástrofes ditas naturais que, embora aparentemente atinjam a todos, certamente incidem mais direta e intensamente sobre aqueles mais frágeis na organização social e sem recursos para minorar os efeitos da natureza. (ROSA, 2016, p. 26). Dessa constatação material e histórica, chama-se a atenção para as consequências da política social-econômica capitalista, “toda” estruturada no consumo e no lucro. Uma política que existe à bancarrota da classe trabalhadora paupérrima, daqueles que estão à margem da sociedade. Nas argumentações de Checcia (2015), associado à política sempre está o poder - o poder de analisar ou o poder de coibir. Os poderes atrelados a uma política teriam a potência de colocar uma posição em análise a ponto de retificá-la ou infligir uma coerção a um lugar ocupado. Estes poderes, em um específico panorama, estariam ligados ao Estado. Para nos determos à política com a qual, a nosso ver, a Psicanálise partilha, é pertinente tecer considerações sobre a política contemporânea de Estado. O Estado entendido como nação representaria os interesses de uma população; ele é subscrito a um país. Em um sentido objetivo, a nação se define como um conjunto de pessoas, com suas histórias particulares, regionais e localizadas, que se consideram parte de um mesmo território - geográfico, cultural e político. É notável, portanto, que desde a 1ª Revolução Industrial, por volta do século XVIII, vige um sistema econômico nomeado por Marx de modo de produção capitalista. Por intermédio deste, o Estado é o seu principal representante, logo, não se posiciona de forma neutra e defende claramente os interesses de uma determinada classe social. Nesta perspectiva, o Estado, em seu ideário neoliberal, enquanto expressão dos interesses do capital, visará o fortalecimento do mercado, assegurando-se de obter as condições propícias para o 7 enriquecimento e acúmulo das riquezas. Notemos que a classe social mais favorecida neste sistema econômico de funcionamento é a que detém a maior capacidade financeira de poder de compra (COSTA, COSTA-ROSA, 2020). Nutrindo e concomitante às diversas violências às minorias, assinalamos o MCP, edificando-se no campo das formações sociais de maneira hegemônica e conduzindo discursos que agem para anular as diferenças, a história dos sujeitos. Tudo se passa como se a única história a ser contada devesse ser a dos vencedores, dos colonizadores, ou, como brincou Lacan, a do herói “comum” - aquele que está a serviço dos bens. Esta é uma lógica estruturante de um modo de se portar na realidade, de relacionar-se com o Outro. Apresenta-se como um modelo de identificação que propaga como lei fundante da vida aquela que dita que quem deve vencer é o mais forte. Isso é o que pode justificar a irônica (para dizer trágica, de uma outra maneira) cena em que o explorado se identifica com o explorador (ROSA, PENHA, FERREIRA, 2018). Ainda conforme Rosa (2016): “Aqui, política e Psicanálise nos ajudam a entender. Explico: a ambivalência está no cerne do sujeito e da agressividade que habita cada um, ou seja, amor e ódio são dirigidos ao mesmo objeto, e o ódio está sempre presente como potencialidade”. O amor e o ódio, colocados em ato intensamente, trazem ao palco um enredo ideológico que anula o sujeito, individuando- o. Há a produção de uma realidade na qual o sujeito não se reconhece fora dela, não há dentro ou fora, “eu e o Outro somos um só”. A reflexão que se segue, com Braunstein (2010), permite-nos afirmar que o sujeito - ao se estruturar pelos significantes-mestres que vêm do discurso capitalista, ou, como propõe o autor, do discurso dos mercados - não só não admite o que é diferente de si, mas adere muito bem aos estereótipos, aos padrões de ser humano e de conduta fornecidos pela cultura de mercado. O sujeito, além de consumir a imagem, as bugigangas, os objetos comprados, consome a si próprio, adora-se. Ele é o próprio objeto, consumido pelos ideais vendidos pela política de vida neoliberalista nos “mercados” do MCP. Nos questionamentos levantados por Rosa, Penha e Ferreira (2018), acerca da forte intolerância existente entre as pessoas no contemporâneo, no discurso do capitalista, os sujeitos não fazem laços. Concordamos com os autores quando estes ainda apontam que, no Brasil, essa análise se expressa por meio de uma “onda” crescente de jovens eleitores conduzidos por um revisionismo histórico e intolerantes à política, interessados em candidatos à presidência que propagam o ódio e a violência. 8 Nossa metodologia de investigação psicanalítica nos permite explorar esse tema sem abrir mão de sua polissemia. Trata-se de um método que surge de nossas experiências de atendimento psicanalítico em territórios marcados pela exclusão social e política; da escuta dos sujeitos em situações sociais críticas. (Rosa, Penha e Ferreira, 2018, p. 107). A escolha de alinhar a Psicanálise às análises críticas oferecidas pelo materialismo histórico - em relação ao que fornece suporte às formas de organização da vida em sociedade. Na altura em que a pesquisa deste artigo foi realizada, os autores encontrados para dialogar com o tema proposto no texto eram os que mais se dedicavam ao tema “Psicanálise e política”. Ressaltamos que os autores exploram, cada um ao seu modo, o conceito de política à luz da Psicanálise de Freud e Lacan. Checcia (2015), se dedica mais a tecer considerações acerca de uma política da Psicanálise, enquanto (ROSA, 2016), e em outros artigos nos quais divide a autoria (ROSA; PENHA; FERREIRA, 2018), desenvolve exaustivamente a noção de política em suas consequências devastadoras ao sujeito, em sua concepção de desejo e produção de laço social. Os autores trazem contribuições que muito nos interessam e nos servem de âncora para sustentar as teorizações que iniciamos, contudo, acreditamos que não fica claro ainda acerca de qual política estão comentando. Em torno das práxis psicanalíticas da qual partimos e a partir do objeto de estudo recortado, este aspecto que ressaltamos é imprescindível. Poli (2017) nos possibilita dar conta desta lacuna, ao passo que estão ao encontro do que optamos ao redor da articulação entre Psicanálise e política. Antes de enveredarmos para uma política da Psicanálise, preferimos debater sobre qual política confere materialidade ao sofrimento psíquico e às demandas populares em seus clamores. Esse olhar muda a nossa empreitada, exigindo-nos recorrer a outros campos do saber. Neste caso, seguindo de Lacan aos escritos de Marx, em especial à caracterização conhecida do que é a mais-valia em sua obra. 2.2 A noção de política e a sua necessária compreensão Uma pequena digressão sobre o conceito de política é oportuna para o desenvolvimento de nossa reflexão. A mínima compreensão deste conceito, em Bordieu (2014), e Marx (2010), na leitura que fizemos dos textos cotejados de suas obras, faz parte das contribuições da Psicanálise, apropriando-se da estética, a uma escuta que alcance a política em vigor no nosso tempo. 9 Antes de definir o que é a “política”, Bordieu (2014), introduz a concepção de “campo”. O campo seria um “microcosmo”, componente do mundo social, o espaço onde ocorrem as disputas, as lutas, os jogos de forças. Como exemplo da definição citada, por exemplo, há o campo artístico, o campo religioso, os campos da Saúde e da Assistencial Social, pensados como instituições. A política, enquanto isso, “[...] é uma luta em prol de ideias, mas um tipo de ideias absolutamente particular, a saber, as ideias-força, ideias que dão força ao funcionar como força de mobilização” (BORDIEU, 2014, p. 108). A política, vista sob a perspectiva de um dispositivo de produção, de umespecífico laço social, seria um conjunto de ideias que agencia alguém ou alguma coisa a produzir um produto. Bordieu (2014), lembrou que existem condições diferentes de acesso à política e, para cada condição social de ingresso à política, isto é, se o sujeito é mulher ou homem, negro ou branco, pobre ou rico, há uma propensão maior ou menor de responder aos problemas colocados por essa política. No funcionamento do campo político, um certo número de pessoas - a minoria em termos de proporção numérica, mormente os donos do capital - detém as condições sociais de acesso a este campo, ao passo que os demais estão excluídos; no caso, a grande massa populacional. Do ensaio que utilizamos de Bordieu (2014), levantamos duas perguntas, às quais, em nossa compreensão Marx pôde responder há um século e algumas décadas atrás: via de regra, quem são aqueles que fazem política e quem são os políticos? No campo político, as lutas travadas em vista do poder sobre o Estado são entre quais adversários? Principiando as respostas, de pronto, por intermédio do próprio sociólogo Bordieu, existe no campo político um jogo particular de forças, dentre as quais uma delas instaura a imposição de princípios que determinam uma visão e uma divisão do mundo social. No pensamento de Marx, a política é mediada pela economia. Não por menos, Marx não deixou de medir esforços para criticar a economia e a política de sua época. O questionamento do pensamento marxiano aponta para uma organização social do trabalho na qual o trabalhador recebe apenas uma pequena parte do produto que ele mesmo ajudou a produzir, para depois este mesmo produto circular no mercado como mercadoria. Este mecanismo se associa ao que chamamos de economia política (nos Manuscritos econômico-filosóficos, por estar dialogando com Adam Smith, Marx prefere adotar a locução “economia nacional” no lugar de “economia política”), em 10 outros termos, esta é a política arregimentada pelo modo de produção do capital, ao ver de Marx, com o desígnio de instituir a infelicidade da sociedade. Sustentada no livre-comércio, e na consequente não intervenção do Estado, o caráter capitalista da economia política visa a acumulação do excedente que se extrai pela circulação da mercadoria, venda e capital ganho. E o que permitiria a acumulação do excedente? A exploração do proletariado, os trabalhadores que existem senão para (re) produzir a perda de sua humanidade ao se tornarem uma classe de escravos, como afirmara Marx (COSTA, COSTA-ROSA, 2020). 2.3 Psicanálise, estética e a política Fonte: cliapsicologia.com.br/wp-content/uploads O recurso aos domínios do saber derivados da estética é crucial para a Psicanálise em seu arcabouço ético-político-clínico. A ética que corresponde ao desejo, a política de fazer oposição a toda ou qualquer prática que ameace extinguir a diferença, a clínica com sua técnica amparada nos pilares anteriores, aliadas à estética, ganham em oportunidade de abertura e sensibilização aos sentidos constantemente ignorados no convívio social. No início do ensaio intitulado O ‘Estranho’, Freud afirmou que entendia por estética “[...] a teoria das qualidades do sentir”. Ele mencionou que raramente os psicanalistas se sentem convocados a pesquisar este tema. Buscando contribuir com Freud, perguntaríamos: a estética se preocupa com as qualidades do sentir; e a Psicanálise, também não se preocuparia? Não é para o que sente o sujeito em suas 11 experiências no sofrimento e no desejo que a escuta do analista está voltada? E, se raramente os analistas estudam o tema da estética, por outro lado, ou pelo menos acreditamos que assim deveria ser, os analistas não fazem outra coisa que não estarem atentos aos temas que tocam no interesse da estética. Em tempos de indiferença e insensibilidade a acontecimentos que subestimam a vida humana, tratando-a somente a partir da posição (status quo) social que ela ocupa, propomos aproximar a Psicanálise do ramo da estética. Diante da atual política e do regime de relações de poder existentes nas instituições do Estado, torna-se fundamental dar um destino, nomear as sensações que nos sãos provocados. As elaborações teóricas de Dionísio (2010 - 2018) sobre a relação entre Psicanálise, estética e arte são bem-vindas para o objeto de trabalho neste artigo. Dionísio (2010) investe numa aproximação entre a recepção-estética e a Psicanálise quando em relação ao sujeito do inconsciente, à experiência de si defronte às injunções apresentadas pela realidade. O autor destaca que a análise toca naquilo que há de mais íntimo do sujeito no plano das suas sensações, à semelhança do que seria o encontro do artista e do espectador com a obra de arte. Segundo Rancière (2009), na teoria freudiana, a relação entre o pensamento (consciente) e o não- pensamento (inconsciente) se forma no terreno da estética. Tanto a Psicanálise quanto a estética tratariam do indizível, do que não se pode dizer em palavras e do que está na enunciação dos discursos. Nesse sentido, parece- nos interessante o que discorreu Dionísio (2018) sobre a dimensão sensível da escuta flutuante em Psicanálise e o seu tom análogo ao trabalho de recepção-estética. Das aproximações sugeridas pelos autores, é pertinente uma escuta que seja estética, sensível e implicada nos eventos irrompidos da política econômica capitalista (DIONÍSIO 2010; 2018; RANCIÈRE 2009). Na esteira da presente reflexão, perguntarmos sobre como estamos escutando a política, precavidos pela Psicanálise, é o mesmo que respondermos: há que se ter um posicionamento, lê-se implicação, frente à política pautada na manutenção de privilégios. Freyze-Pereira (2010), no que toca a relação da obra de arte com o intérprete/espectador, trouxe a noção de “Psicanálise implicada” para expressar a escuta analítica que se faz num contexto diferente do tradicional setting. Rosa também decidiu aderir ao termo, contudo, localizando-o nas problematizações possíveis a serem feitas em relação ao sujeito no laço social, nos seus modos de gozar e desejar na relação com o Outro. Este é o trabalho que nos conduz à “[...] perspectiva da 12 Psicanálise implicada, aquela em que as teorizações sobre desejo e gozo incluem o modo como os sujeitos são capturados e enredados na máquina do poder, de modo que algumas vezes tenha suspendido seu lugar discursivo” (DIONÍSIO, 2018). A escuta estética, na marcação que expomos, alcança a arte do bem-dizer, a implicação e a responsabilidade do sujeito nas escolhas que tateiam o desejo que o habita. O reconhecimento do sujeito naquilo que a maquinaria do poder em suas capturas o impele a sentir é o ponto-de-estofo necessário para que outros sentidos sejam criados com base neste vínculo. A Psicanálise implicada no registro de uma intensão ampliada, para além dos consultórios, mostra-se em seu ato estético como um proveitoso meio de operar junto aos sujeitos e aos efeitos (danosos à singularidade do desejo na dimensão criativa) da política econômica capitalista (ROSA, 2010). A partir do caminho trilhado por Freud na psicanálise e por Husserl na filosofia, temos o que Assoun chama de “divórcio epistêmico” (2009) operado pela psicanálise em relação à filosofia, um divórcio que se dá na medida em que Freud coloca o status do psiquismo em outra dimensão que não a da consciência. Todavia, embora tenha inicialmente sido sustentado por Freud, este afastamento entre os dois campos de estudo parece não ter sido assumido pelos filósofos contemporâneos, os quais, de modo recorrente, viram nas ideias deste autor um grande desafio e um vasto campo a ser interrogado (MEZAN, 2013). Contudo, não só os filósofos questionaram o saber psicanalítico. Diante da provocação freudiana de que o sujeito não encontra seu fundamento na razão e sim no inconsciente, outras ciências, entre as quais podemos citar a psiquiatriafenomenológica, também interpelaram a psicanálise, seja para lhe cobrar rigor epistemológico, seja para questionar a cientificidade do seu conhecimento, ou ainda, para tentar extrair dela apenas os aspectos que deveriam ser tomados como suas principais contribuições. Dessa forma, se até aquele momento fenomenologia e psicanálise caminharam isoladas entre si com seus fundadores, algumas décadas depois, os seguidores de Freud, Husserl, ou de ambos, acabaram por encontrar meios de fazer com elas se encontrassem. A respeito desse encontro, um primeiro aspecto a ser considerado por conta de suas implicações históricas, refere-se à particularidade com que filosofia e psiquiatria tomaram parte nesse debate (TATOSSIAN, 2012). Nos países de língua alemã, a psiquiatria fenomenológica, por ter sido marcadamente influenciada pelos trabalhos de Husserl e Heidegger, tendeu a se afastar do inconsciente freudiano, ora opondo-se explicitamente a ele, ora ignorando a 13 sua existência. Tal posicionamento representa, em grande medida, a tendência que a tradição alemã seguiu em suas críticas dirigidas à psicanálise, que consistiu em atacar a“ doença incurável” que acometeu a metapsicologia freudiana, a saber, sua herança materialista, mecanicista, determinista e naturalista, a fim de lhe oferecer um outro solo epistemológico ou, ainda, de negar seu ineditismo. Em solo francês, no entanto, a trajetória do diálogo entre fenomenologia e psicanálise se constituiu de modo mais consistente e por outras vias daquelas iniciadas na tradição germânica. Segundo Tatossian (2006), duas foram as razões para isso, a saber, a inflexão antropológica e existencial que a fenomenologia husserliana ganhou entre seus seguidores – Sartre, Merleau-Ponty e Ricoeur –e, em especial, a renovação psicanalítica proposta por Lacan. No caso francês, embora a discussão com a psicanálise tenha se dado muito mais pelas mãos dos filósofos do que dos psiquiatras, não se pode deixar de considerar que a abertura proporcionada por aqueles acabou por persuadir alguns psiquiatras nessa direção. No caso destes, contudo, tal aproximação se deu menos por motivos epistemológicos do que pelas necessidades oriundas da confrontação com os pacientes doentes no curso de suas experiências clínicas, fato este que levou os franceses a se aproximarem do método clínico psicanalítico, ao mesmo tempo em que criticavam as bases teóricas da metapsicologia e tentavam, assim, revê-las (TATOSSIAN, 2012). Por este motivo, Assoun considera que a relação dos franceses com a psicanálise freudiana é controversa, haja vista que aceitar o método psicanalítico e tratar a doutrina psicanalítica como um sistema arbitrário faz com que aquele fique sem respaldo. No que diz respeito às críticas tecidas pela tradição fenomenológica, o principal ponto de impasse com o qual a psicanálise se depara seria a incompatibilidade que há em assumir um modelo energético para explicar o funcionamento do psiquismo e utilizar-se de um método que busca traduzir o sentido dos fenômenos apresentados no contexto clínico. Assim, cabe melhor precisar de que forma o diálogo entre fenomenologia e psicanálise se construiu no campo da psiquiatria germânica e, também, que rumos ele tomou no contexto intelectual francês. 14 3 DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS Partindo da constatação do paradoxo contido nos direitos humanos fundamentais, discutiremos como a subjetividade se articula na composição política da presença dos corpos jovens na periferia. Os direitos humanos fazem valer uma forma de regulação abstrata que desconsidera as condições materiais e simbólicas dos sujeitos por eles protegidos. Ao serem universalizados e destituídos de carga étnica, racial, econômica, social e de gênero, os direitos se tornam transcendências que, na rotina dos corpos, hierarquias e instituições, naturalizam processos de desigualdade social. A título de exemplo, o Brasil é o país com a terceira maior população carcerária do mundo, sendo dois terços homens negros e pardos. O Brasil mata seus jovens negros de periferia trinta vezes mais do que os países europeus, inclusive em guerra. Nas periferias, discursos sobre a implementação de direitos humanos universais convivem com práticas iníquas, excludentes e desiguais de aplicação da justiça (GUERRA, 2020). Esse paradoxo da disjunção reaparece com nova roupagem ao tomarmos pela psicanálise a não coincidência do sujeito consigo mesmo, dado que o inconsciente é destituído de qualidades. Além disso, a imagem do sujeito não corresponde ao seu eu nem se reduz à representação de seu corpo. As diferentes representações do sujeito escapam, inclusive, a sua experiência inconsciente de satisfação, sendo matriciadas pela forma que ganham na linguagem (GUERRA 2017). A essa multiplicidade de maneiras de presentificação de um corpo no mundo corresponde uma multiplicidade de modos regulatórios no laço social. Direitos humanos universais, leis jurídicas nacionais, lei do crime e lei superegoica - que rege inconscientemente os atos compulsivos e repetitivos do sujeito - convivem no mesmo plano em que sujeito e corpo social estabelecem suas tensionadas formas de convivência. A relação que se firma entre esses códigos não é exatamente hierárquica. Com igual força, eles disputam o campo político, comunitário e subjetivo, e se mesclam, ganhando maior ou menor intensidade, conforme a perspectiva que se tome para ler o complexo sistema que, então, se cria (GUERRA; BISPO; SOUZA, 2016). 15 3.1 Reequilibração cognitiva Fonte: encrypted-tbn0.gstatic.com Freud foi, como se viu, mais de uma vez alinhado com uma visão da memória como conservação de um registro estático da experiência do organismo e do sujeito psíquico, que podia estar ou não acessível ao resgate, mas que permanecia relativamente idêntico a si mesmo ao longo do tempo, salvo pelo eventual desgaste passivo devido à corrupção de sua base física no cérebro. Restituído ao seu contexto, a abordagem freudiana pode aparecer mais claramente como apontando para uma visão dinâmica e integrativa da memória, protagonizada pela reorganização constante das conexões ativas que formam o seu correlato neural. Assim, se a neurobiologia contemporânea da memória se afastou consideravelmente das concepções do localizacionismo oitocentista e da morfologia especulativa dos engramas, foi numa direção que a aproxima de uma teoria como a de Freud e de outros autores que tomaram a mesma orientação e/ou a desenvolveram nas décadas posteriores, até o presente. O resultado é que Freud e as correntes teóricas psicanalíticas que deram continuidade aos seus pontos de vista ainda parecem ser interlocutores relevantes para o debate contemporâneo sobre a memória na psicologia e nas neurociências cognitivas (SHEVRIN, 2014; BOCCHI; VIANA, 2012). Uma concepção psicodinâmica sobre a memória remonta, sob muitos aspectos, à natureza criativa que a memória tem em Freud, na qual a fantasia inconsciente e o desejo são capazes de res-significar vivências e de instaurar 16 novos sentidos a partir da experiência passada. Existem aproximações entre aspectos da teoria da memória em Freud, a neurobiologia subjacente ao conceito de facilitação (Bahnung), a ideia de LTP e essa concepção dinâmica que desponta a partir de investigações neurocientíficas mais recentes, a fim de apontar a existência de uma mesma linha de pensamento sobre a memória, ligada à integração contínua de funções psíquicas e à experiência do seu uso. Ou seja, se hoje a memória é entendida sob um ponto de vista neurodinâmico, isso não foi inaugurado recentemente. A novidade encontra-se nas evidências científicas e experimentais que lhe dão respaldo, e que surpreendentemente corroboram algumas prerrogativas de Freud sobre o tema.E Freud, ao que tudo indica, estava ciente das implicações da sua teoria psicodinâmica sobre a memória quando a formulou como uma função construída ao longo da história das vivências do aparelho psíquico. Através das vicissitudes do aparelho, a percepção e a memória são modificadas por novas representações trazidas pelas diferentes fases do desenvolvimento do indivíduo, o que imprime um modo particular de organização e de atualização dos traços mnêmicos. Na Carta 52, o autor se refere à memória como um “rearranjo” entre os processos: “o material presente sob a forma de traços mnêmicos fica sujeito, de tempos em tempos, a um rearranjo, de acordo com as novas circunstâncias – a uma retranscrição”. Empolgado, anuncia a Fliess essa grande novidade: “o que há de essencialmente novo em minha teoria é a tese de que a memória não se faz presente de uma só vez, e sim ao longo de diversas vezes, e que é registrada em vários tipos de indicação” (BOCCHI; VIANA, 2012). 17 4 FREUD E A INSTABILIDADE TEÓRICA NA METAPSICOLOGIA Fonte: encrypted-tbn0.gstatic.com Para o historiador, a transformação da ciência constitui um desafio sério, sobretudo na medida em que a mera verificação de uma teoria se torna difícil por causa de seu caráter abstrato. Para o clínico interessado em aplicações, porém, é também desorientador não encontrar uma base teórica firme sobre a qual possa alicerçar sua prática. A existência de mudanças teóricas significativas indicaria confusão por parte do cientista, o que comprometeria sua credibilidade. Daí uma baixa tolerância para aquilo que podemos denominar instabilidade teórica, ou seja, a constante reformulação de pressupostos na atividade teorizante do cientista (TORRIANI; TRISTAN, 2016). No âmbito da literatura psicanalítica, a questão da continuidade ou ruptura nas teorias de Freud se mostrou uma falsa alternativa, requerendo uma abordagem mais diferenciada. Após uma aprofundada análise do pensamento freudiano, Monzani (2014) conclui que: Trata-se de vários procedimentos e operações. [...] O que temos é sempre uma progressiva rearticulação e redefinição dos conceitos determinada por sua lógica interna e pela progressiva integração dos dados da experiência. Ora se trata do aprofundamento e do alargamento de um conceito (sedução). Ora se trata de uma progressiva diferenciação no interior de um mesmo conceito (ego). Ora da emergência de uma noção implícita mas ordenadora (a pulsão de morte) etc. E cada uma dessas operações leva, por sua vez, frequentemente, a que se obrigue a repensar o conjunto dos conceitos que lhe são vizinhos e assim por diante. (MONZANI, 2014, p. 295). Pelo movimento pendular, Monzani entende a alternação entre um polo e seu oposto, seu exemplo disso sendo o tratamento dado aos conceitos de ego consciente por um lado e o de inconsciente por outro lado. Freud teria inicialmente elaborado um 18 conceito de ego no Projeto de uma psicologia para neurológios (1895) que passaria então por um certo abandono, durante o qual ele se ocupou do conceito oposto, o inconsciente, até os anos 1920, quando voltaria a tratar do ego. Pelo movimento espiralado, trata-se de entender “[...]essa imagem no espaço e cilindricamente, em que as mesmas questões são abordadas, “esquecidas”, retomadas, mas não no mesmo nível em que estavam sendo tratadas anteriormente” (MONZANI, 2014). Isso sugere a figura da hélice, pois a espiral em três dimensões gera um cone. Em seus escritos metapsicológicos, Freud relaciona explicitamente a questão da instabilidade teórica com a sua compreensão do que seria um conceito, sobretudo em duas breves passagens de Introdução ao narcisismo (1914) e Os instintos e seus destinos (1915). Vejamos estes trechos na íntegra: Não nos sentimos bem ao abandonar a observação em favor de estéreis disputas teóricas, mas não podemos nos furtar a uma tentativa de esclarecimento. É certo que noções como a de uma libido do Eu, energia dos instintos do Eu e assim por diante não são particularmente fáceis de apreender nem suficientemente ricas de conteúdo; uma teoria especulativa das relações em jogo procuraria antes de tudo obter um conceito nitidamente circunscrito como fundamento. Acredito, no entanto, ser justamente essa a diferença entre uma teoria especulativa e uma ciência edificada sobre a interpretação da empiria. Esta não invejará à especulação o privilégio de uma fundamentação limpa, logicamente inatacável, mas de bom grado se contentará com pensamentos básicos nebulosos, dificilmente imagináveis, os quais espera apreender de modo mais claro no curso de seu desenvolvimento, e está disposta a eventualmente trocar por outros. Pois essas ideias não são o fundamento da ciência, sobre o qual tudo repousa; tal fundamento é apenas a observação. Elas não são a parte inferior, mas o topo da construção inteira, podendo ser substituídas e afastadas sem prejuízo. Em nossos dias vemos algo semelhante na física, cujas concepções básicas sobre matéria, centros de força, atração etc. não seriam menos problemáticas do que as correspondentes na psicanálise. (FREUD, [1914] 2010, p. 13). Tomando como referência a física, o pai da Psicanálise esclarece que entende a empiria como fundamento da ciência e a teoria como uma superestrutura descartável. Os fatos clínicos permaneceriam inalterados como pedras coloridas num caleidoscópio, e as hipóteses poderiam ser reformuladas, dando - nos múltiplas interpretações. Podemos notar inicialmente a dificuldade de que tal substitutibilidade requereria um desacoplamento total da empiria em relação à teoria, o que é impossível após a aquisição da linguagem, pois pelo menos alguns fatos terão que ser interpretados segundo conceitos (ou habilidades categorizadoras verbais). Em outras palavras, não é possível termos uma empiria puramente nocional ou intuitiva, pré-verbal), logo, alguns conceitos deverão permanecer após o processo de revisão teórica. Freud opõe uma teoria especulativa a uma ciência intérprete da empiria, 19 reconhecendo que a primeira poderia se dar ao luxo de procurar conceitos claros e fixos como fundamento. A porém, supostamente teria que se contentar apenas com conceitos imprecisos e mutáveis. Deste modo, a consulta à experiência não precisaria de maiores controles lógicos. A teoria especulativa se moveria de cima para baixo, ao passo que a ciência empírica - interpretativa avançaria no sentido inverso, de baixo para cima. Fica sugerido, pouco convincentemente, que o lidar com a empiria seria razão suficiente para eximir o pesquisador de maior rigor lógico e controle experimental (TORRIANI; TRISTAN, 2016). A Física é invocada como referência metodológica, apesar da grande diferença entre o seu objeto de estudo e o da Psicologia. Como observa Kathleen Wilkes, “Freud me parece ter sido um daqueles que acolhiam as ciências físicas como um superego para a Psicologia em geral. ” Pode-se perceber agora também um cuidado maior em reconhecer a impossibilidade de se evitar o uso de conceitos na descrição dos fenômenos. Se, na passagem citada do ano anterior, poderia talvez ter havido um pressuposto mais ingenuamente empirista, agora Freud parece admitir o que Immanuel Kant poderia ter considerado serem conceitos empíricos. O caráter convencional dos conceitos é aceito, pois sem maleabilidade não haveria avanços científicos, mas isso seria distinto de uma mera arbitrariedade. É bom lembrar que, na sua autocompreensão, Freud se imagina como o fundador de uma nova ciência que, por meio de sua capacidade de intervenção terapêutica, poderia trazer grandes benefícios (ou malefícios) à humanidade. Como vimos, segundo o pai da Psicanálise, haveria pelo menos dois momentosna prática científica. O primeiro momento seria o de uma abordagem necessariamente confusa e exploratória da experiência. Não é claro, porém, porque o pesquisador não poderia e não deveria tentar buscar clareza conceitual. Freud afirma que a experiência não seria a fonte dos conceitos, mas, ao contrário, que os dados estariam submetidos aos conceitos, e o sentido destes últimos seria continuamente negociado. Deste modo, parece haver um afastamento da concepção empirista ingênua da ciência e uma aproximação a um tipo de convencionalismo ou mesmo pragmatismo. O segundo momento seria um de rearrumação lógica, em que os conceitos seriam revistos para que se tornassem mais consistentes, mas Freud avisa que mesmo assim o progresso da ciência exigiria do teórico conceitos maleáveis. Estas duas passagens se limitam a registrar instantes no que podemos chamar o devir (evitaremos o termo ‘desenvolvimento’) teórico freudiano, em que a reflexão metodológica se mostra incontornável. Devem ser tomadas pelo que 20 são, sem tentativas de extrapolação ou generalização indevida (TORRIANI; TRISTAN, 2016). 5 HABITAR O INÓSPITO: A CONDIÇÃO HUMANA Fonte: data:image/jpeg “Na angústia, ele sente-se '‘estranho’'” (2012), escreveu Martin Heidegger, naquela que é conhecida por ser uma das obras mais notáveis do século XX, a saber, Ser e Tempo. Apresentando a angústia como uma abertura ao estranho, o a inospitalidade do Dasein. Não se tratava, todavia, de um simples lampejo autor em meio a uma obra marcada exatamente pela aridez de linguagem. Ao contrário, essa frase revela, sobretudo, a condição fundamental do existir humano. Iniciar por ela, portanto, transcende a um mero recurso estético ou de estilo, porquanto lança-nos de imediato para aquele que é o tema central da presente tese, especificamente, a condição de indeterminação revelada pelo afeto da angústia. Além disso, ela nos serve de ponto de partida para pensar um possível diálogo entre as preocupações ontológicas do filósofo alemão e aquelas que, suspeitamos, ocuparam o psicanalista Sigmund Freud. Este, ao desenvolver os alicerces da metapsicologia, apresentou a angústia como uma manifestação afetiva desvinculada de qualquer objeto e, por isso, como uma expressão privilegiada da pulsão em toda sua potência de indeterminação e estranheza. Assim, se para Freud as pulsões são marcadas pela indeterminação de seu objeto e estão no fundamento do aparelho psíquico, para Heidegger, o nada é o lugar onde se sustenta o existir humano. Em todo caso, parece que para ambos é a 21 radical face da indeterminação que está em questão quando a angústia se manifesta. Caso as coisas se deem desse modo, então, talvez não soe demasiado arriscado afirmar que a angústia, tal como a concebem Heidegger e Freud, abre a possibilidade de se conquistar um solo comum de diálogo entre o filósofo e o psicanalista, naquilo em que apontam para os fundamentos do desenvolvimento psíquico e emocional humano (BARBOSA, 2020). 5.1 O inconsciente freudiano É preciso ter clareza de qual é o objeto da psicanálise. Ainda que o biológico exista e não seja recusado por Freud, não é o seu objeto. O objeto da psicanálise é o psíquico, em particular, o inconsciente. Nas Conferências Introdutórias, Freud demarca o campo psicanalítico: Essa é a lacuna que a psicanálise busca preencher. Ela pretende fornecer à psiquiatria o fundamento psicológico faltante; espera descobrir o terreno comum a partir do qual se possa compreender a convergência do distúrbio físico e do psíquico. Para tanto, é necessário que ela se mantenha livre de todo e qualquer pressuposto anatômico, químico ou fisiológico que lhe seja estranho, que trabalhe com conceitos auxiliares puramente psicológicos, e é por essa mesma razão que, receio, ela lhes parecerá estranha inicialmente (FREUD, 1916a, p. 27). A razão por que Freud recorre a essa analogia é para argumentar que as instâncias operam com leis diferentes: “essa diferenciação espacial corresponde a uma diferenciação funcional, na medida em que cada um desses lugares é regulado por leis próprias, constituindo assim uma espécie de subsistema no interior do aparelho”. Precisamos distinguir, então, inconsciente, pré-consciente e consciente. Em uma nota de rodapé de 1919, Freud identifica a consciência com a percepção. A consciência, diz Freud: “nada mais é do que um órgão sensorial para a percepção de qualidades psíquicas” (ZAIDAN et al, 2019). No sentido dinâmico, podemos diferenciar o inconsciente do pré-consciente, pois enquanto o último caracteriza conteúdos que, ainda que não estejam na consciência, podem se tornar conscientes a qualquer momento, o reprimido caracteriza conteúdos que apesar de sua intensidade não podem se tornar conscientes. O aspecto dinâmico expressa o jogo de forças que ocorre no aparelho psíquico. O inconsciente enquanto sistema está presente na concepção de que as localidades psíquicas são regidas por leis próprias. Enquanto o inconsciente é regido predominante mente por 22 processos primários, na consciência e no pré-consciente predominam processos secundários. Dizemos predominantemente porque Freud nos faz uma advertência importante, a respeito da presença da consciência durante o sonho, de que isto: “nos alerta contra identificar os processos primários com processos inconscientes” (ZAIDAN et al, 2019). 5.2 Eu na teoria freudiana Fonte: encrypted-tbn0.gstatic.com Basicamente, Longuenesse afirma que é possível que o Eu de Freud seja considerado como um descendente da unidade transcendental da apercepção de Kant. Assim como, para Kant, o uso do Eu no Eu penso estaria conectado à consciência de uma unidade de conteúdos mentais ordenada por regras lógicas, a saber, à consciência de que se está engajado em uma atividade, que o indivíduo considera como própria, de ligação de representações de acordo com regras, o conceito freudiano de Eu também consistiria em uma organização de eventos mentais cujos conteúdos apresentariam um tipo específico de unidade, na medida em que os últimos seriam estruturados conforme regras lógicas elementares, levando em conta que o Eu é governado pelo princípio de realidade e opera por processos psíquicos secundários, segundo a terminologia psicanalítica de Freud (CORDEIRO, 2014). A primeira relação explorada por Longuenesse, a mais próxima da hipótese geral e aquela que se pretende retomar, consiste no seguinte paralelo - da mesma forma que a unidade transcendental da apercepção, que fundamenta o uso do Eu no Eu penso, é 23 uma condição necessária para a aquisição de conceitos, para a ligação dos conceitos em juízos e inferências e para que haja “representações de objetos externos sistematicamente conectadas” (LONGUENESSE, 2017), o Eu de Freud “é aquele aspecto da nossa vida mental cujos conteúdos intencionais obedecem regras lógicas elementares e são ordenados de acordo com o ‘princípio de realidade’” (idem, ibidem). Tanto a unidade da apercepção quanto o Eu referem-se, em última análise, a organizações de processos mentais que encontram sua expressão nos conceitos e nos juízos - no pensamento discursivo, nos termos kantianos; nos processos psíquicos secundários sob o império do princípio de realidade, segundo Freud. Como parte da justificativa, Longuenesse recorre a duas referências que compõem a extensa obra do psicanalista; de modo mais rápido, ao texto intitulado Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico, publicado em 1911, e ao artigo de 1923, O Eu e o Isso, que é a fonte principal da autora quanto à noção freudiana de Eu (FILLA, 2019). Nas Formulações, a principal preocupação de Freud é indicar algumas consequências resultantes da imposição do princípio de realidade ao aparelho psíquico. Para uma breve explanação, é suficiente recuperar do texto freudianoque, a princípio, em seu funcionamento primário, os processos psíquicos eram governados pelo princípio de prazer, cuja tendência se resumia à satisfação, mas este estado de repouso psíquico passa a ser perturbado por urgentes necessidades internas. O organismo, que procurava livrar-se de qualquer aumento de tensão que lhe afligia, tenta o caminho da satisfação alucinatória de desejo para resolvê-lo, por meio da reanimação de traços mnêmicos do objeto desejado, retidos de vivências anteriores de satisfação. Contudo, a via alucinatória se mostra ineficaz para eliminar os estímulos endógenos, que continuam perturbando o indivíduo, de modo que, logo no início de seu desenvolvimento, ele se vê obrigado a buscar uma alteração no mundo real que viabilize a satisfação – “Assim se introduziu um novo princípio na atividade psíquica; já não se representou o que era agradável, mas sim o que era real, ainda que fosse desagradável” (FILLA, 2019). Contudo, a imposição desse novo princípio, representante da realidade, não se desenrola sem consequências, as quais, como já foi dito, são elencadas por Freud, a começar por uma série de adaptações do aparelho psíquico, como o aumento da importância dos órgãos sensoriais dirigidos ao mundo exterior, da consciência ligada a eles e o desenvolvimento das funções da atenção e da memória. Todavia, Longuenesse destaca especialmente o papel do princípio de realidade quanto ao 24 surgimento da capacidade de formar juízos, visto que, depois do seu estabelecimento, ao invés de excluir ideias causadoras de desprazer dos processos associativos através da repressão, “surgiu o juízo imparcial que decidiria se uma determinada representação era verdadeira ou falsa, quer dizer, se estava ou não em consonância com a realidade; e o fazia por comparação com os traços mnêmicos da realidade”. Em outras palavras, o estabelecimento do princípio de realidade passa a exigir que o indivíduo diferencie percepção objetiva de recordação e julgue se é possível reencontrar um objeto real que corresponda àquilo que é representado subjetivamente. Este exame de realidade, que busca inibir o investimento de uma imagem mnêmica até a alucinação, é uma das atribuições do Eu, conforme virá a afirmar Freud. É ao que Longuenesse (2017) parece se referir quando afirma que o Eu nos permite “adquirir uma representação perceptiva confiável do mundo”. 6 FANTASIA E REALIDADE PARA A PSICANÁLISE FREUDIANA Fonte: data:image/png Investigar o estatuto da realidade para a Psicanálise tem grande relevância clínica, uma vez que permite situar a especificidade da clínica psicanalítica ao se propor a operar com o sujeito do inconsciente. Tem ainda interesse particular na atualidade quando a noção de indício, derivada da Medicina baseada em evidências, ganha destaque e poder nos discursos sobre tratamentos psicológicos. Pode-se, assim, apresentar algumas questões: qual a relação das fantasias inconscientes, da realidade psíquica, com os eventos sociais? Como correlacionar o que ocorre na cena social com 25 o que ocorre no que Freud nomeou como Outra Cena, palco das fantasias? Esclarecer o sentido em que essas relações podem ser pensadas implica situar como a Psicanálise poderia ler, por exemplo, os efeitos das modificações sociais contemporâneas para o sujeito. Essa discussão mostra a forma como a Psicanálise, de modo subversivo e na contramão da perspectiva de controle defendida pela sociedade contemporânea, traz o sujeito como resposta inédita. Assim, a noção de realidade permite situar como a clínica psicanalítica deve operar e como considerar o discurso e a narrativa do paciente. Permite, ainda, discutir como a Psicanálise se posiciona eticamente na cultura. Trata- se, então, de uma noção bastante específica para a Psicanálise, polêmica, mas fundamental para o entendimento da própria Psicanálise, especialmente de suas práxis. Freud elabora a Psicanálise a partir da escuta de suas pacientes histéricas e da consideração daquilo que em seus relatos remetia ao que nomeou como Outra Cena, o Inconsciente. Ou seja, a Psicanálise surge de uma demanda clínicae de um trabalho que reconfigura essa demanda. Assim, considera-se que a Psicanálise fulgura no momento em que Freud declara que sua escuta analítica não tinha como desígnio extrair informações sobre os fatos, mas sobre as fantasias inconscientes. Isto é, a Psicanálise passa a existir quando Freud afirma que se interessa pela realidade psíquica. O sintoma histérico foi lido por Freud como uma solução de compromisso entre forças conflitantes. Essa construção diante do não suportável, conflitivo, resultaria na conversão histérica, a qual mostra que Freud aposta em uma realidade psíquica, havendo, portanto, a passagem da consideração do trauma como evento social para evento inconsciente. Consequentemente, as mulheres ditas histéricas encontravam na expressão corporal do sintoma a maneira legítima de denunciar a opressão que as acometia. Uma vez que ninguém estava disposto a promover uma escuta dessa angústia, essas mulheres encontraram em Freud ouvidos dispostos à escuta daquilo que não se pode dizer. Como ratifica Coppus (2013), o corpo humano inclui-se na análise. É a partir desse corpo que a Psicanálise instaurou uma realidade que se difere da realidade compartilhada: uma realidade psíquica. Freud esbarra na realidade psíquica da histérica vendo ali uma expressão do psiquismo como uma forma de arranjo de seu inconsciente ao tentar significar corpo e realidade. Na obra “Estudos sobre a histeria”, Freud aponta três pontos basilares da histeria: haveria um episódio traumático tendo relação com impulsos libidinais que foram recalcados; os sintomas histéricos não 26 estavam desconexos, havia uma lógica, eles faziam sentindo e tinham um porquê de ser; e uma alternativa para se buscar a cura seria a evocação da lembrança traumática seguida por um episódio catártico. Ele precisou redimensionar esses pontos para elaborar a Psicanálise. A clínica da histeria conduz Freud à adoção da hipótese do inconsciente e à extração das consequências clínicas dessa hipótese de trabalho, empreendimento que será a veia condutora de toda a sua obra. Assim, é situando a fantasia inconsciente como realidade psíquica que Freud cria a Psicanálise, ainda que a realidade psíquica se constitua a partir de um hiato, de uma falta. Para se aprofundarem essas noções, remete-se à experiência do desamparo descrita por Freud nos primórdios de sua obra (REIS E SILVA, 2020). 7 FORMAÇÃO DA PERSONALIDADE SEGUNDO A PSICANÁLISE Fonte: data:image/jpeg Para a Psicanálise, a formação da personalidade coincide com a formação e estruturação da mente. Para Freud, o ser humano não é um indivíduo. Isso porque ele está “dividido”. Seus desejos, suas razões e seus apelos morais não coincidem. Pois são formados em momentos diferentes da vida, usando estruturas mentais diferentes. A infância tem papel essencial na formação da personalidade. Para Freud, a infância já é um lugar da sexualidade, do desejo, das pulsões. E os eventos da infância, mesmo quando “esquecidos” (recalcados), podem perdurar por toda nossa vida, guiando nossas percepções, emoções e crenças. Polêmicas, ousadas e radicais, suas 27 teorias a respeito de fenômenos como interpretação dos sonhos, sexualidade e inconsciente ainda são alguns dos temas mais estudados e criticados nesse campo de saber. Como se sabe, a motivação sexual foi muito enfatizada por Freud, particularmente, nos seus primeiros trabalhos. Uma das mais conhecidas - as cinco fases do desenvolvimento psicossexual da criança - ainda provoca acaloradas discussões entre os profissionais da área (FERREIRA, 2014). De acordo com Freud, as crianças passam por cinco fases de desenvolvimento: I – A faseoral (0 – 1 ano) Desde o nascimento, Freud afirma que a primeira fase de desenvolvimento de uma criança se concentra na região oral. Tendo como exemplo principal foco a amamentação da mãe, a criança obtém prazer no momento da sucção e sente satisfação com a nutrição proporcionada pelo ato. Caso a amamentação fosse interrompida precocemente, o autor afirmava que a criança teria atitudes suspeitas, não confiáveis ou sarcásticas, enquanto aquela que for constantemente amamentada terá uma personalidade confiante e ingênua. Com duração de um ano a um ano e meio, a fase oral termina com na época do desmame. II – A fase anal (1 – 3 anos) Após receber orientações sobre higiene íntima, a criança desenvolve uma obsessão para com a região anal e o ato de brincar com as próprias fezes. Freud afirmava que a criança vê esta fase como uma forma de se orgulhar das suas "criações", o que levaria à personalidade "anal expulsiva". A criança poderia também propositadamente reter seu sistema digestivo como forma de confrontar os pais, o que levaria à personalidade "anal retentiva". Esta fase tem duração de um a dois anos. III – A fase fálica (3 – 5 anos) De acordo com o psicanalista, a fase fálica é a mais crucial para o desenvolvimento sexual na vida de uma criança. Ela se concentra nos órgãos genitais - ou a falta deles, se a criança for do sexo feminino - e os complexos de Édipo ou Electra surgiriam. Para um homem, a energia sexual é canalizada no amor por sua mãe, levando a sentimentos de inveja (às vezes violentos) contra o pai. Geralmente, no entanto, o menino aprenderá a se identificar com o pai, em termos de órgãos genitais correspondentes, reprimindo assim o complexo de Édipo. Por outro lado, o complexo 28 de Electra, embora Freud não tenha sido tão claro assim, principalmente diz respeito ao mesmo fenômeno, porém invertido, para as meninas. Esta fase dura de três a quatro anos. IV – O período de latência (5 anos – puberdade) Freud dizia que o período de latência no desenvolvimento da criança não é um período psicossexual, mas sim uma fase de desejos inconscientes reprimidos. Neste período, a criança já superou o complexo da fase fálica e, embora desejos e impulsos sexuais possam ainda existir, eles são expressos de forma assexuada em atividades como amizades, estudos ou esportes, até o começo da puberdade. V- A fase genital (puberdade e vida adulta) Segundo Freud, na fase genital, a criança mais uma vez volta a sua energia sexual para seus órgãos genitais e, portanto, em direção às relações amorosas. Ele diz que esta é a primeira vez que uma criança quer agir de acordo com seu instinto de procriar. Os conflitos internos típicos das fases anteriores atingem aqui uma relativa estabilidade conduzindo a pessoa a uma estrutura do ego que lhe permite enfrentar os desafios da idade adulta. Neste momento, meninos e meninas estão ambos conscientes de suas identidades sexuais distintas e começam a buscar formas de satisfazer suas necessidades eróticas e interpessoais (FERREIRA, 2014). 7.1 A formação da personalidade segundo a Teoria Estrutural As observações feitas por Freud revelaram uma série interminável de conflitos psíquicos. A um instinto opunha-se outro. Eram proibições sociais que bloqueavam pulsões biológicas e os modos de enfrentar situações que se chocavam. Freud tentou ordenar este caos aparente propondo três hipotéticas instâncias da formação da personalidade: id, ego e superego. 29 7.2 O ID Fonte: data:image/jpeg É no Id que estão as pulsões. O Id é irracional, ilógico e impulsivo. O Id busca o prazer, desconsiderando as consequências. Ele quer a satisfação imediata de seus impulsos. O Id pode ser comparado a um cavalo que tem muita força, mas que depende do cavaleiro para usar adequadamente essa força. Os conteúdo do Id são quase todos inconscientes, e isto inclui as configurações mentais que nunca se tornaram conscientes, da mesma forma como o material que não foi aceito pela consciência. Um pensamento ou uma lembrança, que foi excluído da consciência, mas que se encontra na área do Id, será capaz de influenciar toda vida mental de uma pessoa (QUEDER, 2018). O id representa e se faz lugar da parte pulsional da vida psíquica humana, ele não conhece nem normas (interditos ou exigências) nem realidade (tempo ou espaço) e é regido unicamente pelo princípio do prazer, pela satisfação imediata e incondicional de seus imperativos. O id é portanto o eixo fundamental das pulsões sexuais. Trata-se de uma instância inteiramente inconsciente. Em A decomposição da personalidade psíquica, Freud nos diz que ele: […] é a parte obscura, inacessível, de nossa personalidade; o pouco que nós sabemos dele, o aprendemos pelo estudo do trabalho dos sonhos e da formação de sintomas neuróticos, e o essencial disto possui um caráter negativo, não se deixando descrever em posição oposta ao ego. 30 Enquanto instância completamente inconsciente, o id é vivido como algo que faz irrupção a despeito do ego e do superego, ele faz fazer e ao mesmo tempo tende a escapar de toda possibilidade de discernimento. Podemos encontrar neste ponto um aspecto impessoal justamente onde existe um ponto que se impõe de maneira inconsciente, como a experiência de uma força quase exterior e não menos imperativa por isso. Ele possui um aspecto impessoal exatamente lá onde é inconsciente, onde o indivíduo encontraria dificuldades a se reconhecer. Em francês – língua na qual Deleuze e Guattari leram Freud e o criticaram –, podemos ilustrar tal questão de maneira ainda mais precisa graças ao uso corrente e pronominal da palavra que é usada para traduzir o que no Brasil foi traduzido como id18: le ça pode ser traduzido como o id ou o isto. Esta segunda variante, talvez menos freudiana, nos mostra entretanto o caráter impessoal de tal instância pelo simples fato de que se trata de um pronome demonstrativo substantificado, sublinhando justamente este aspecto do problema de descentramento da personalidade (MARTINS, 2015). 7.3 O EGO Fonte: encrypted-tbn0.gstatic.com O Ego está em contato com a realidade. Funciona a nível consciente e pré- consciente, embora também contenha elementos inconscientes. O Ego protege o Id, mas extrai dele a energia suficiente para suas realizações. O Ego tem a tarefa de garantir a saúde, segurança e sanidade da personalidade (autopreservação). 31 Ego tem a função controlar as exigências dos instintos do Id, decidindo se elas devem ou não ser satisfeitas, adiando-as para momentos mais favoráveis ou as suprimindo inteiramente. O ego busca o prazer e evita o desprazer. Assim, o ego é originalmente criado pelo Id, na tentativa de melhor enfrentar as necessidades de reduzir a tensão e aumentar o prazer. Contudo, para fazer isto, o Ego tem de controlar ou regular os impulsos do Id, de modo que a pessoa possa buscar soluções mais adequadas, ainda que menos imediatas e mais realistas (QUEDER, 2018). O ego é uma espécie de altar das identificações, ele é propriamente um produto das relações identificatórias. Depois da concepção de um superego de cunho arcaico e que foi determinado por imagines parentais de certa forma herdadas pelo complexo de Édipo, as identificações sucessivas que nos acometem fazem com que ao longo desta lógica sucessiva nos distanciemos gradativamente dos pais de uma cena arcaica, numa trajetória rumo a uma impessoalidade crescente. O ego é uma instância que abre o indivíduo a uma multiplicação de referências identificatórias que ultrapassa e excede a rigidez marcadamente mais regressiva do superego. A respeito desta questão, Freud nos diz: Não esqueçamos […] que a criança aprecia seus pais diferentemente nas diversas épocas de sua vida. Na época em que o complexo de Édipo cede seu lugar ao superego, eles são certamente grandiosos, e posteriormente testemunhamde uma grande desvalorização. Produzem-se então também identificações com certos pais posteriores (educadores, chefes…), tais identificações fornecem regularmente contribuições importantes à formação do caráter, mas concernem apenas ao ego; elas não influenciam mais o superego, que foi formado a partir das imagines parentais. O ego é lugar de toda identificação que se dá num tempo lógico posterior ao campo identificatório mais regressivo do psiquismo humano, isto é, das chamadas identificações primárias, que foram para o indivíduo os trilhos para uma saída no declínio do complexo de Édipo e cederam seus lugares ao superego (MARTINS, 2015). 32 7.4 O SUPEREGO Fonte: encrypted-tbn0.gstatic.com O Superego se desenvolve a partir do Ego e atua como um juiz ou censor sobre as atividades e pensamentos do Ego. Nele estão os códigos morais, modelos de conduta e os parâmetros que constituem as inibições da personalidade. Freud descreve três funções do Superego: consciência, auto-observação e formação de ideais. Enquanto consciência pessoal, o Superego age tanto para restringir, proibir ou julgar a atividade consciente, porém, ele também pode agir inconscientemente. As restrições inconscientes são indiretas e podem aparecer sob a forma de compulsões ou proibições. O Superego tem a capacidade de avaliar as atividades da pessoa, independentemente das pulsões do Id para tensão-redução e independentemente do Ego, que também está envolvido na satisfação das necessidades (QUEDER, 2018). Esta instância psíquica é apresentada por Freud como uma herdeira transgeracional que remonta, ao menos, aos avós quando estes imprimiram um superego aos pais e estes imprimiram um superego em seus filhos. O superegonão se constituiria a partir de uma identificação aos pais, mas a partir da transmissão do superego que foi transmitido aos pais pelos avós, e assim por diante no sentido ascendente. Freud supõe também a existência de uma temporalidade surperegoica marcadamente arcaica que se dá em uma relação viva com o passado e as tradições de cada povo, nas origens do que Freud chamava de Kultur. Algumas linhas de A decomposição da personalidade psíquica a respeito da temporalidade em jogo nas questões do superego: 33 O superego da criança não se edifica verdadeiramente sobre o modelo dos pais, mas sobre o modelo do superego dos pais; ele se preenche do mesmo conteúdo, ele se torna um portador da tradição, de todos os julgamentos de valor à prova do tempo que por esta via são perpetuados geração após geração […] nesta tradição da raça e do povo, que só cede muito lentamente à influência do presente, às novas modificações. Este passado age através do superego depois de muito tempo, ele tem um papel importante na vida humana, independente das condições econômicas. Presumimos encontrar nessa instância psíquica portadora de toda uma tradição, um papel que ultrapassa a forma de experiência subjetiva que atribuímos a uma pessoa e remonta aos mais diversos interditos ascendentes, ancestrais. Neste sentido, grosso modo, para o que Freud apresenta como sendo o superego, não há descendência, apenas ascendência. Em última instância, toda descendência é produzida e sobre determinada pela ascendência à qual remontaria uma genealogia do superego. Neste aspecto, o indivíduo se encontra finalmente reduzido a um ponto de uma linhagem da espécie humana e da sua própria família. A relação entre o indivíduo e sua genealogia superegoica seria assim uma concepção impessoal e quase metafísica do superego (MARTINS, 2015). 7.5 Relações entre os três componentes da psique na formação da personalidade Fonte: miro.medium.com 34 A meta fundamental da psique é manter e/ou recuperar um nível aceitável de equilíbrio dinâmico que maximiza o prazer e minimiza o desprazer. Todo o processo inicia-se no Id, que é de natureza primitiva, instintiva. 0 ego, surge do id e existe para lidar com a realidade das pulsões básicas do id e também atua como mediador entre as forças que operam no Id e no Superego e as exigências da realidade externa. O Superego, surge do ego, e age como um freio moral ou uma força contrária aos interesses do ego. Ele determina normas que definem e limitam a flexibilidade do Ego. É necessário esforço para tornar consciente os conteúdos do inconsciente O id é inteiramente inconsciente, o ego e o superego o são em parte. “Grande parte do ego e do superego pode permanecer inconsciente e é normalmente inconsciente. Isto é, a pessoa nada sabe dos conteúdos dos mesmos e é necessário despender esforços para torná-los conscientes”. O propósito da psicanálise nesses termos, o propósito prático da psicanálise “é, na verdade, fortalecer o ego, fazê-lo mais independente do superego, ampliar seu campo de percepção e expandir sua organização, de maneira a poder assenhorear-se de novas partes do id” (QUEDER, 2018). 8 NEUROSE E PSICOSE Fonte: encrypted-tbn0.gstatic.com Os primeiros escritos da obra freudiana categorizavam transtornos emocionais em três grupos e Freud os denominava de psiconeuroses. As neuroses atuais 35 compunham o primeiro agrupamento, caracterizando-se como transtornos emocionais resultantes da ausência ou inadequação da satisfação sexual; seus sintomas não eram de natureza simbólica. Para tal transtorno a investigação deveria ser direcionada para as desordens sexuais atuais e não em acontecimentos importantes da vida passada. Sua etiologia, neste sentido, é somática e não psíquica. Essa denominação está em desuso na psicanálise, entretanto, recentemente tem servido como embasamento para o estudo da psicossomática. As neuroses de transferência constituem o segundo grupo. Elas foram também chamadas de psiconeuroses de defesa. Este agrupamento engloba as histerias, fobias e as neuroses obsessivas. Segundo Freud, apenas estas poderiam produzir a transferência, pois para isso seria necessário dirigir catexias libidinais às pessoas. O terceiro grupo era composto pelas neuroses narcísicas, ou seja, as psicoses. De acordo com Freud, a psicanálise não reunia condições para tratar pacientes acometidos desse tipo de neurose. A justificativa usada pelo fundador da psicanálise era a de que tais pacientes não conseguiam a revivescência do conflito patogênico e a superação da resistência devido à regressão. Freud supunha que essas pessoas abandonavam as catexias objetais e que sua libido objetal se transformava em libido do ego (POLETTO, 2012). Nos trabalhos iniciais de Freud verifica-se uma distinção mais radical entre neurose e psicose. Correspondendo às neuroses, os conflitos interiores do indivíduo, cujo significado inicial lhe escapa, remetendo para os conflitos infantis recalcados que serão acessíveis pela transferência. Já as psicoses envolvem os conflitos entre o indivíduo e o mundo, pouco ou dificilmente acessíveis pela transferência, mesmo com revelações diretas do inconsciente. No Rascunho H, a paranoia, Freud classifica então como psicoses: a confusão alucinatória, a paranoia e a psicose histérica. No texto “As neuropsicoses de defesa”, Freud refere que os pacientes que analisou apresentavam boa saúde antes do adoecimento. Entretanto, em determinado momento “houve uma ocorrência de incompatibilidade em sua vida representativa”. Isto é, seu eu foi confrontado com uma experiência, representação ou sentimento que provocou um afeto aflitivo que o indivíduo optou por esquecê-lo. Sendo assim, percebe-se uma dificuldade de mediação entre a representação incompatível e seu próprio eu (POLETTO, 2012). Freud afirma que quando a defesa utilizada contra uma representação incompatível é efetivada, separando-a do seu afeto, esta representação permanece na consciência, embora enfraquecida e isolada, o mecanismo em ação nessa situação é o de recalcamento (verdrängung) que é caracteristicamenteusado pelas neuroses. 36 Conforme Verdrängung é habitualmente traduzido como recalque ou repressão. Esta palavra vem do verbo verdrängeng, que significa em alemão empurrar para o lado, desalojar. Este verbo ainda remete a uma sensação de sufoco, de incomodo que leva o sujeito a desalojar, deixar de lado o material que o incomoda. Entretanto, segundo essa significação, tal material permanece junto ao sujeito, pressionando pelo retorno, e exigindo a mobilização de esforço para mantê-lo longe. Partindo desses elementos, as conotações mencionadas da significação relacionadas ao termo verdrängung se aproximam ao emprego do termo no contexto psicanalítico (POLETTO, 2012). O recalque, mecanismo de defesa relacionado por Freud às neuroses, não consegue eliminar a fonte pulsional que, de maneira constante, emite estímulos que chegam à consciência e reivindicam satisfação. O que este mecanismo faz é empurrar para o lado e não extinguir por definitivo determinado conteúdo. O material recalcado está de certa forma presente também em sua ausência e, mesmo desalojado, se manifesta à distância. Ele pressiona pela volta à consciência, fica numa espécie de ‘salão contíguo ao consciente’ tentando o retorno, já que sua manutenção afastada exige um esforço para mantê-lo fora de cena. O recalque é um estado que exige grande empenho de força para se manter, pois a pressão pelo regresso é constante. Este retorno aparecerá, segundo Freud, sob a forma de sintomas, dos atos falhos, dos chistes e dos sonhos (POLETTO, 2012). 37 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBOSA, Caroline Garpelli. Habitar o inóspito: a condição humana de desabrigo a partir de Martin Heidegger e Sigmund Freud. 2020. BOCCHI, J. C.; BARROS VIANA, M. Freud, as neurociências e uma teoria da memória. Psicologia USP, v. 23, n. 3, p. 481-502, 2012. BORDIEU, P. O campo político. In: Castro, C. Textos básicos de sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. BORDIEU, P. O campo político. In: Castro, C. Textos básicos de sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. BRAUNSTEIN, N. A. O discurso capitalista: quinto discurso? O discurso dos mercados (PST): sexto discurso? A Peste: Revista de Psicanálise, Sociedade e Filosofia, v. 2, n. 1, p. 143-165, jan./jun. 2010. CHECCIA, M. Poder e Política na clínica psicanalítica. São Paulo: Annablume, 2015. COPPUS, A. N. S. (2013). O lugar do corpo no nó borromeano: inibição, sintoma e angústia. 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