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Doutor António S. Chipanga, Docente e Regente – Lições Sumárias da disciplina de Direitos Fundamentais, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane 1 REGIME DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS A matéria de que nos vamos debruçar daqui em diante é relativa ao regime dos direitos fundamentais que no programa temático que temos vindo a seguir corresponde a Parte II com o título Regime comum dos Direitos Fundamentais, sendo o primeiro capítulo o atinente a atribuição dos Direitos. Do capítulo I temos como primeira matéria a tratar, o “princípio da universalidade” e sucessivamente falaremos do (da): a) Princípio da universalidade e pessoas colectivas b) Igualdade em geral c) Princípio da igualdade no Direito positivo moçambicano d) Sentido da igualdade e finalmente, e) Destinatários do princípio da igualdade I. Princípio da universalidade Recorrendo as lições do Professor Jorge Miranda1 “o primeiro princípio comum aos direitos fundamentais e também aos demais direitos existentes na ordem jurídica ……é o da universalidade: todos quantos fazem parte da comunidade política fazem parte da comunidade jurídica, são titulares dos direitos e deveres ai consagrados; os direitos fundamentais têm ou podem ter por sujeitos todas as pessoas integradas na comunidade política, no povo”. No plano constitucional, o princípio está consagrado no artigo 35 com a epígrafe Princípio da universalidade e igualdade com o seguinte texto normativo ”Todos os cidadãos são iguais perante a lei, gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres, independentemente da cor, raça, sexo, origem étnica, lugar de nascimento, religião, grau de instrução, posição social, estado civil dos pais, profissão ou opção política.” Na Declaração Universal dos Direitos do Homem, o princípio vem expresso nos artigos 2.˚ e 7.˚, nos seguintes termos: ˝Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamadas na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. Além disso, não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto político, jurídico ou internacional do país ou do território da naturalidade da pessoa, seja esse pais ou território independente, sob tutela, autónomo ou sujeito a alguma limitação 1 Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional Tomo IV, Direitos Fundamentais, 2.ª edição , Coimbra, 1998, pagina 193. Doutor António S. Chipanga, Docente e Regente – Lições Sumárias da disciplina de Direitos Fundamentais, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane 2 Artigo 7.˚ Todos os cidadãos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual protecção da lei. Todos têm direito a protecção igual contra qualquer descriminação que viole a presente declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação. Na Carta Africana dos direitos Humanos e dos Povos, o princípio consta dos artigos 2 e 3, tal como se transcreve: ˝Toda a pessoa tem o direito ao gozo dos direitos e liberdades reconhecidos e garantidos na presente Carta, sem nenhuma distinção, nomeadamente de raça, de etnia, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou de qualquer outra opinião, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação”. ˝Artigo 3.˚ 1. Todas as pessoas beneficiam-se de uma total igualdade perante a lei. 2. Todas as pessoas têm direito a uma igual protecção da lei.˝ O princípio da universalidade em qualquer um destes instrumentos legais incide sobre as pessoas, na sua totalidade, pelo simples facto de serem pessoas titulares de direitos e deveres fundamentais. Todas as pessoas dotadas de personalidade jurídica são sujeitos constitucionais de direitos e deveres. O princípio é aplicável para todos os cidadãos moçambicanos no território nacional ou fora deste e a todos os cidadãos estrangeiros em serviço, com domicílio temporário ou permanente no território nacional ou na esfera de jurisdição do Estado Moçambicano. Os cidadãos estrangeiros e os apátridas que se encontram por qualquer circunstância a residir no território de Moçambique, beneficiam-se dos direitos reservados aos cidadãos nacionais. O legislador Moçambicano adoptou a fórmula “todos os cidadãos” e nós entendemos que a expressão todos os cidadãos não tem qualquer sentido restritivo. Pretende em nosso entender exprimir genericamente a universalidade das pessoas jurídicas (pessoas físicas e pessoas colectivas). No conjunto das pessoas singulares ou pessoas físicas, abrange cidadãos nacionais, cidadãos estrangeiros e apátridas, residentes no território moçambicano com ou sem laço jurídico de nacionalidade originária ou derivada. Doutor António S. Chipanga, Docente e Regente – Lições Sumárias da disciplina de Direitos Fundamentais, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane 3 A expressão pretende apenas referir às pessoas abrangidas pelas normas de Direito Moçambicano. Por conseguinte, o legislador moçambicano usa indistintamente a expressão “todos os cidadãos” em diferentes fórmulas normativas, mas sempre pretendendo exprimir o comando para a universalidade das pessoas sujeitas ao Direito Moçambicano, senão vejamos: Artigo 35, 38, 44, 48, 51, 53, 55, 79, 81, 89, 90, 91, 94, 95. Por vezes, o mesmo legislador usa a expressão “todo o cidadão”, vide artigos: 40, 41, 45, 46. Outras vezes ainda usa a expressão: os cidadãos ou o cidadão: artigo 52, 54, 69, 70 e 80. Todas estas expressões têm o mesmo valor e sentido jurídico, salvo os casos em que o sentido é nos dados pelo contexto ou própria natureza específica do direito em que a qualificação terá necessariamente um significado diferente quer para o direito, quer para o dever em causa, como são os casos previstos nos artigos 147, n.˚ 2 al. b), que é especialmente para pessoa física, o candidato ao cargo de Presidente da República, artigo 24, n.˚ 2, que só se refere a cidadãos com nacionalidade originária em virtude de terem nascido no território moçambicano, o artigo 85 quando se refere ‘todo o trabalhador” ou o trabalhador, os artigos 86 e 87 com a expressão “ os trabalhadores”. Trata-se de fórmulas cujo sentido é específico a pessoa humana, o trabalhador, sujeito de direito na ordem jurídica. O mesmo se diz em relação as expressões “crianças”, nos artigos 47 e 121. A expressão mulher, artigo 122, juventude, artigo 123, velhice ou idoso, artigo 95 e 124 e portadores de deficiência nos artigos 37 e 125. Todos estes artigos dispõem sobre a pessoa humana segundo a sua própria natureza e categoria na classificação dos direitos fundamentais. O princípio ora anunciado é um conceito quantitativo, tal como se pode notar na expressão “todos” o que significa que abrange a totalidade dos cidadãos que integram a comunidade política de um Estado. A este princípio, conforme o preceituado no artigo 35, o princípio da igualdade que na esteira deste entendimento diz respeito ao conteúdo do direito e nesta perspectiva é um conceito qualitativo. O princípio da universalidade compreende o regime comum dos direitos fundamentais e acha- se consagrado no artigo 35. Feitas as considerações prévias sobre o entendimento que temos sobre as expressões usados pelo legislador neste dispositivo normativo vejamos agora os segmentos que encontramos no mesmo artigo 35: a) Todos os cidadãos “são iguais perante a lei”; b) Todos os cidadãos ….“gozam dos mesmos direitos”; Doutor António S. Chipanga, Docente e Regente – Lições Sumárias da disciplina de Direitos Fundamentais, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane 4 c)Todos os cidadãos…. “estão sujeitos aos mesmos deveres”. A cada um dos três segmentos acresce-se independentemente da cor, raça, sexo, origem étnica, lugar de nascimento, religião, grau de instrução, posição social, estado civil dos pais, profissão ou opção política. Porém, o princípio da igualdade que diz respeito a qualidade do sujeito, levou o legislador a restringir o sentido e alcance do princípio da universalidade, não se aplicando a todos os casos de sujeitos de direito com o mesmo sentido e alcance. Em relação aos nacionais, estabelece-se na Constituiçao da República de Mocambique dois regimes de aplicaçao directa do principio da universalidade. a) Os cidadãos de nacionalidade originária, que preenchem os requisitos previstos nos artigos 23, 24 e 25 da CRM gozam na plenitude dos direitos fundamentais consagrados na Constituição em sentido formal e material, artigo 42 e 43; b) Os cidadaos de nacionalidade moçambicana adquirida, que preenchem os requisitos previstos nos artigos 26 a 29 da CRM gozam na plenitude dos direitos fundamentais consagrados na Constituição em sentido formal e material, artigo 42 e 43, com excepçao dos artigos 30, 146, n.˚ 2 al. a) e 46. Nesta conformidade, os cidadãos moçambicanos com nacionalidade adquirida não podem: a) ser deputados, b) membros do Governo, c) titulares de órgãos de soberania e d) não têm acesso à carreira diplomática ou militar. A Constituição vai mais longe quando estipula que a lei define as condições do exercício de funções públicas ou de funções privadas de interesse público por cidadãos moçambicanos de nacionalidade adquirida. O desvio do princípio da universalidade combinado com o princípio da igualdade não só se verifica em relação aos cidadãos de nacionalidade adquirida como também em relação a outros cidadãos devido a sua condição física ou moral, como são os casos previstos nos artigos 73, portadores de deficiência ˝… e estão sujeitos aos mesmos deveres com ressalva do exercício ou cumprimento daqueles para os quais, em razão da deficiência, se encontrem incapacitados.˝. Vide ainda os artigos: Artigo 47 (Direitos da criança) 1. As crianças têm direito à protecção e aos cuidados necessários ao seu bem-estar. 2. As crianças podem exprimir livremente a sua opinião, nos assuntos que lhes dizem respeito, em função da sua idade e maturidade. Doutor António S. Chipanga, Docente e Regente – Lições Sumárias da disciplina de Direitos Fundamentais, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane 5 3. Todos os actos relativos às crianças, quer praticados por entidades públicas, quer por instituições privadas, têm principalmente em conta o interesse superior da criança. Artigo 121 (Infância) 1. Todas as crianças têm direito à protecção da família, da sociedade e do Estado, tendo em vista o seu desenvolvimento integral. 2. As crianças, particularmente as órfãs, as portadoras de deficiência e as abandonadas, têm protecção da família, da sociedade e do Estado contra qualquer forma de discriminação, de maus tratos e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições. 3. A criança não pode ser discriminada, designadamente, em razão do seu nascimento, nem sujeita a maus tratos. 4. É proibido o trabalho de crianças quer em idade de escolaridade obrigatória quer em qualquer outra. Artigo 122, (Mulher) 1. O Estado promove, apoia e valoriza o desenvolvimento da mulher e incentiva o seu papel crescente na sociedade, em todas as esferas da actividade política, económica, social e cultural do país. 2. O Estado reconhece e valoriza a participação da mulher na luta de libertação nacional, pela defesa da soberania e pela democracia. Artigo 123 (Juventude) 1. A juventude digna, continuadora das tradições patrióticas do povo moçambicano, desempenhou um papel decisivo na luta de libertação nacional e pela democracia e constitui força renovadora da sociedade. 2. A política do Estado visa, nomeadamente o desenvolvimento harmonioso da personalidade dos jovens, a promoção do gosto pela livre criação, o sentido de prestação de serviços à comunidade e a criação de condições para a sua integração na vida activa. 3. O Estado promove, apoia e encoraja as iniciativas da juventude na consolidação da unidade nacional, na reconstrução, no desenvolvimento e na defesa do país. 4. O Estado e a sociedade estimulam e apoiam a criação de organizações juvenis para a prossecução de fins culturais, artísticos, recreativos, desportivos e educacionais. 5. O Estado, em cooperação com as associações representativas dos pais e encarregados de educação, as instituições privadas e organizações juvenis, adopta uma política nacional de juventude capaz de promover e fomentar a formação profissional dos jovens, o acesso ao primeiro emprego e o seu livre desenvolvimento intelectual e físico. Doutor António S. Chipanga, Docente e Regente – Lições Sumárias da disciplina de Direitos Fundamentais, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane 6 Artigo 124 (Terceira idade) 1. Os idosos têm direito à protecção especial da família, da sociedade e do Estado, nomeadamente na criação de condições de habitação, no convívio familiar e comunitário e no atendimento em instituições públicas e privadas, que evitem a sua marginalização. 2. O Estado promove uma política de terceira idade que integra acções de carácter económico, social e cultural, com vista à criação de oportunidades de realização pessoal através do seu envolvimento na vida da comunidade. Artigo 125 (Portadores de deficiência) 1. Os portadores de deficiência têm direito a especial protecção da família, da sociedade e do Estado. 2. O Estado promove a criação de condições para a aprendizagem e desenvolvimento da língua de sinais. 3. O Estado promove a criação de condições necessárias para a integração económica e social dos cidadãos portadores de deficiência. 4. O Estado promove, em cooperação com as associações de portadores de deficiência e entidades privadas, uma política que garanta: a) a reabilitação e integração dos portadores de deficiência; b) a criação de condições tendentes a evitar o seu isolamento e a marginalização social; c) a prioridade de atendimento dos cidadãos portadores de deficiência pelos serviços públicos e privados; d) a facilidade de acesso a locais públicos. 5. O Estado encoraja a criação de associações de portadores de deficiência. Concluindo e sistematizando sobre o princípio da universalidade, segundo o Professor Jorge Miranda 2 “o primeiro princípio comum aos direitos fundamentais e também aos demais direitos existentes na ordem jurídica ……é o da universalidade: todos quantos fazem parte da comunidade política fazem parte da comunidade jurídica, são titulares dos direitos e deveres ai consagrados; os direitos fundamentais têm ou podem ter por sujeitos todas as pessoas integradas na comunidade política, no povo”. O princípio da universalidade incide sobre as pessoas, na sua totalidade, pelo simples facto de serem pessoas titulares de direitos e deveres fundamentais pelo que, todas as pessoas dotadas de personalidade jurídica são sujeitos constitucionais de direitos e deveres. O legislador Moçambicano adoptou a fórmula “todos os cidadãos” e nós entendemos que a expressão todos os cidadãos não tem qualquer sentido restritivo. Pretende em nosso entender exprimir genericamente a universalidade das pessoas jurídicas (pessoas físicas e pessoas colectivas. 2 Ibidem, página 193. Doutor António S. Chipanga, Docente e Regente – Lições Sumárias da disciplina de Direitos Fundamentais, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane 7 A Constituição em alguns momentos normativosfaz referência a direitos dos cidadãos e a direitos institucionais, referendo-se neste último caso a pessoas colectivas de Direito privado, como é o caso das organizações sociais, das associações, dos partidos políticos, das autarquias locais, das sociedades comerciais e das fundações. A questão que se coloca é se os direitos, liberdades, garantias e deveres constitucionais apresentam-se em relação a todas as pessoas jurídicas, como seja a pessoa colectiva ou a apenas as pessoas singulares? A resposta, em nosso entender é negativa, no sentido de que os direitos, liberdades, garantias e deveres fundamentais não podem ser aplicáveis às pessoas colectivas da mesma forma que se aplica as pessoas físicas. A ordem jurídica reconhece expressamente a capacidade de gozo de direitos e submissão a deveres às pessoas colectivas, conforme o artigo 12, 54, n.˚ 3, 52, 78, 74, 75 todos da CRM e artigo 157 e seguintes e os artigos 33, 34 e 38, todos do código civil de 1966. Os direitos fundamentais só têm sentido quando tenham sido fixados para o seu gozo pleno pelos seus destinatários, o que pressupoe que estes tenham a plenitude de gozo do direito que lhe foi atribuido. Nesta conformidade, parafraseando o Professor Jorge Bacelar Gouveia3, “A orientação geral dominante é a de que as pessoas colectivas são titulares de direitos fundamentais, em nome deste princípio da universalidade, desde que os direitos fundamentais concretamente a analisar se harmonizem, na protecção concedida, ao sentido existencial da pessoa colectiva em causa, até podendo haver, no extremo, direitos fundamentais só para pessoas colectiva: a liberdade religiosa individual não se aplica numa sociedade comercial, mas a inviolabilidade do domicílio já pode ter razão de ser, em nome da protecção de segredos da actividade económica.” Por este entendimento, não pode ser aplicável a pessoa colectiva, o direito à vida e a integridade física e moral, artigo 40, o direito à família, artigo 119, o direito a maternidade e paternidade, artigo 120, o direito a infância, artigo 121, o direito reservado a portadores de deficiência, artigo 125, o direito a habeas corpus, artigo 66, nem está sujeito a prisão preventiva, artigo 64 e extradição, artigo 67, todos da CRM. II. Princípio da igualdade em geral O princípio da igualdade significa pensar na justiça e com justiça entre os membros da mesma comunidade política. Requer que sejam tratados de igual modo todos os casos que se encontram nas mesmas condições e circunstâncias, sendo desvio de aplicação tratar de forma diferente o que é igual. A igualdade deve ser apreciada de ponto de vista de sujeito e de conteúdo. Os sujeitos iguais merecem tratamento igual, sucedendo o mesmo em relação a assuntos de conteúdo iguais. 3 Direito Constitucional de Moçambique,Parte Geral, Parte especial, IDILP – Instituto do Direrito de Lingua Portugues, Campus de Campolide, Lisboa/Maputo, 2015, página 322. Doutor António S. Chipanga, Docente e Regente – Lições Sumárias da disciplina de Direitos Fundamentais, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane 8 A este propósito o Professor Bacelar Gouveia4 ensina o seguinte: O princípio da igualdade desenvolve-se sob duas linhas fundamentais: o tratamento igualizador: tratar igualmente o que é materialmente igual, proibindo-se o tratamento discriminatório, positivo e negativo, que se funda em razões que não são objectivamente admissíveis; e o tratamento diferenciador: tratar diferentemente o que é materialmente desigual, o qual se justifica no facto de haver razões substanciais que o explique. Assim, não se pode tratar da mesma maneira, alegando o princípio da igualdade de tratamento, o pai e o filho, o trabalhador e o empregador, o pároco e o crente, o governante e o governado. As pessoas são tratadas igualmente conforme a sua qualidade e especificidades. Os estudantes devem ter um tratamento igual enquanto forem iguais, os trabalhadores, os militares, os agentes da polícia, os políticos, os funcionários públicos, os doentes, as crianças, os jovens, os adultos, as mulheres, os idosos, etc. A diferenciação a que nos referimos tem a ver com valores sócio-culturais que são prosseguidos pelas comunidades e reconhecidos pela ordem constitucional, nos termos do artigo 11, al. i). Descorar ou ignorar esta realidade equivale a protelar a igualdade igualitária que é contrário ao princípio da igualdade. Em todos estes casos e outros os respeitantes a idade das pessoas para aquisição ou gozo de direitos como seja o direito de eleger e ser eleito a cargos públicos, o direito de casar, de conduzir, de trabalhar, da liberdade religiosa ou de praticar qualquer outra acção no domínio político ou civil, o princípio da universalidade e de igualdade são válidos e aplicados. Corolário do princípio da igualdade No sentido em que temos vindo a debruçarmo-nos sobre o princípio da igualdade temos como corolário: o preceituado no artigo 73, o exercício do poder politico pelo povo através de sufrágio universal, o referendo e a permanente participação democrática dos cidadãos na vida da Nação. A não retroactividade da lei, só podendo ter efeitos retroactivos quando beneficiam os cidadãos e outras pessoas jurídicas, artigo 57; A igualdade de género, isto é, homem e mulher são iguais perante a lei em todos os domínios da vida política, económica, social e cultural, artigo 36; O direito de antena, de resposta e de réplica, artigo 49; O direito ao culto e a religião, artigo 54; A igualdade das crianças independentemente de terem ou não nascido na constância de casamento, artigo 121, n.˚ 3; 4 Manual de Direito Constitucional, Volume II, Almedina, 1955 – 2005, pagina Manual de Direito Constitucional, Volume II, Almedina, 1955 – 2005, pagina 1075. Doutor António S. Chipanga, Docente e Regente – Lições Sumárias da disciplina de Direitos Fundamentais, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane 9 O respeito aos princípios fundamentais da administração pública, artigo 249 Igualdade de tratamento dos cidadãos enquanto funcionários ou candidatos a qualidade de funcionário, artigo 251; Os direitos e garantias dos administrados, artigo 253. Limitações ao princípio da universalidade Os direitos e liberdades fundamentais consagrados na Constituição são exercidos pelos cidadãos só podendo ser limitados nos termos previstos no artigo 56, n.˚ 2, da CRM. 1. Os direitos e liberdades individuais são directamente aplicáveis, vinculam as entidades públicas e privadas, são garantidos pelo Estado e devem ser exercidos no quadro da Constituição e das leis. 2. O exercício dos direitos e liberdades pode ser limitado em razão da salvaguarda de outros direitos ou interesses protegidos pela Constituição. 3…… 4……. A limitação do exercício dos direitos só pode ocorrer nos casos previstos nos artigos 72: Artigo 72 (Suspensão de exercício de direitos) 1. As liberdades e garantias individuais só podem ser suspensas ou limitadas temporariamente em virtude de declaração do estado de guerra, do estado de sítio ou do estado de emergência nos termos estabelecidos na Constituição. 2. Sempre que se verifique suspensão ou limitação de liberdades ou de garantias, elas têm um carácter geral e abstracto e devem especificar a duração e a base legal em que assenta. A suspensão dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos requer a declaração do estado de guerra, do estado de sitio ou do estado de emergência e para o efeito, impõe-se o cumprimento do dispostos nos seguintes artigos da CRM: Artigo 290 (Estado de sítio ou de emergência) 1. O estado de sítio ou o estado de emergência só podemser declarados, no todo ou em parte do território, nos casos de agressão efectiva ou eminente, de grave ameaça ou de perturbação da ordem constitucional ou de calamidade pública. 2. A declaração do estado do sítio ou de emergência é fundamentada e especifica as liberdades e garantias cujo exercício é suspenso ou limitado. Doutor António S. Chipanga, Docente e Regente – Lições Sumárias da disciplina de Direitos Fundamentais, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane 10 Artigo 291 (Pressupostos da opção de declaração) A menor gravidade dos pressupostos da declaração determina a opção pelo estado de emergência, devendo, em todo o caso, respeitar-se o princípio da proporcionalidade e limitar- se, nomeadamente, quanto à extensão dos meios utilizados e quanto à duração, ao estritamente necessário ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional. Artigo 292 (Duração) O tempo de duração do estado de sítio ou de emergência não pode ultrapassar os trinta dias, sendo prorrogável por iguais períodos até três, se persistirem as razões que determinaram a sua declaração. Durante a vigência do estado de guerra, de sítio ou de emergência poderão ser tomadas medidas que constam dos artigos 287 e 288, com observância do disposto no artigo 286, isto é, as limitações ao exercício dos direitos, liberdades e garantias fundamentais não podem abranger ou pôr em causa o direito à vida, à integridade pessoal, à capacidade civil e à cidadania. O princípio da universalidade e pessoas colectivas A Constituição em alguns momentos normativos faz referência a direitos dos cidadãos e a direitos institucionais, referindo-se neste último caso a pessoas colectivas de Direito privado, como é o caso das organizações sociais, das associações, dos partidos políticos e das fundações. A atribuição dos direitos fundamentais as pessoas colectivas não é uma equiparação, mas sobretudo a uma limitação de Direitos Fundamentais primordialmente destinados a pessoais singulares. A pergunta que se coloca em relação a pessoas colectivas é a seguinte: os direitos, liberdades, garantias e deveres constitucionais colocam-se em relação a todas as pessoas jurídicas, como seja a pessoa colectiva ou a apenas as pessoas singulares? A resposta, em nosso entender é negativa, no sentido de que os direitos, liberdades, garantias e deveres fundamentais não podem ser aplicáveis as pessoas colectivas da mesma forma que se aplica as pessoas físicas. As lições que temos vindo a ministrar revelam que a ordem jurídica reconhece expressamente a capacidade de gozo de direitos e submissão a deveres às pessoas colectivas, conforme o artigo 12, 54, n.˚ 3, 52, 78, 74, 75 todos da CRM e artigo 156 e seguintes e os artigos 33, 34 e 38, todos do código civil de 1966. A consagração destes dispositivos legais no direito civil supera em grande medida a concepção de que os Direitos Fundamentais são exclusivamente centradas as pessoas físicas, ou seja, aos indivíduos. Doutor António S. Chipanga, Docente e Regente – Lições Sumárias da disciplina de Direitos Fundamentais, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane 11 Na verdade, conforme já tivemos ocasião de nos pronunciar sobre a distinção direitos fundamentais e direitos humanos, os direitos fundamentais incidem sobre a pessoa jurídica que inclui pessoa colectiva. Assim, o que podemos discutir agora é saber se as pessoas colectivas gozam na sua plenitude dos direitos fundamentais, independentemente da sua natureza específica. As pessoas colectivas no sentido em que estamos a referir abrangem não só as pessoas com personalidade jurídica legalmente reconhecida nos termos da lei civil e das Associações, designadamente Lei n.º 8/91, de 18 de Julho; Lei n.º 10/2005, de 23 de Dezembro; Código Civil de 1966, Decreto-lei n.º 1/2006, de 3 de Maio e no Diploma Ministerial n.º 68/87 de 3 de Setembro, como também as organizações civis que ainda carecendo de personalidade jurídica, gozam de protecção jurídica no quadro dos direitos fundamentais, como são as associações religiosas, artigo 12 e 54, comissões de trabalhadores, associações de consumidores, associações de defesa de ambiente e de promoção de democracia, associações juvenis, organizações de moradores e conselhos comunitários ao nível da base, artigo 78. Os direitos fundamentais só têm sentido quando tenham sido fixados para o seu gozo pleno pelos seus destinatários, o que pressupõe que estes tenham a plenitude de gozo do direito que lhe foi atribuído. Neste sentido, tal como nos ensina o Professor Jorge Miranda5 “…Não faria sentido em Direito constitucional a separação civilística entre capacidade de gozo e capacidade de exercício ou de agir, porque direitos fundamentais são estabelecidos em face de certas qualidades prefixadas pelas normas constitucionais e, portanto, atribuídas a todos que as possuam. Rematando sobre esta visão o Professor Jorge Bacelar Gouveia6 ˝…, quem comanda o Direito Civil é o Direito Constitucional e não o contrário, sendo justo falar, mas do que de autonomia, de supremacia deste em relação à aquele:….˝ Nos direitos fundamentais (sobretudo nos direitos, liberdades e garantias) o gozo dos direitos consiste na capacidade de exercício. Os direitos de liberdades são pessoalíssimos e por conseguinte, insusceptíveis tanto de serem transmitidos por qualquer forma como de ser exercidos por outrem.” Todas as pessoas colectivas gozam em princípio dos seguintes direitos fundamentais entre outros, sem qualquer restrição nem imposição de terem ou não personalidade jurídica própria: a) Liberdade de associação, artigo 52; b) Liberdade de expressão e de informação, artigo 48; c) Direito de antena, de resposta e de réplica política, artigo 49; 5 Jorge Miranda, idem, pagina195. 6 Manual de Direito Constitucional, Volume II, Almedina, 1955 – 2005, página 1072. Doutor António S. Chipanga, Docente e Regente – Lições Sumárias da disciplina de Direitos Fundamentais, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane 12 d) Direito à greve tratando-se de associação sindical; e) Direito de petição, queixa e reclamação, artigo 79; f) Direito de acção popular, artigo 81; g) Direito de impugnação, artigo 69; h) Liberdade de residência e de circulação, artigo 55; i) Direito à reunião e de manifestação, artigo 51; j) Direito de recorrer aos tribunais, artigo 70; k) Direitos reservados aos administrados, artigo 252; l) Direito a inviolabilidade do domicílio e da correspondência, artigo 68; m) Direito ao ambiente, artigo 90; n) Direito a habitação e urbanização, artigo 91; o) Liberdade de criação cultural, artigo 94. p) O direito de propriedade, artigo 82, Por esta listagem fácil é de notar que os direitos fundamentais de que as pessoas colectivas sejam titulares são todos aqueles que sejam compatíveis com a sua natureza específica e a identificação exaustiva dos direitos próprios só é possível casuisticamente. As pessoas colectivas só têm os direitos compatíveis com a sua natureza, ao passo que as pessoas singulares têm todos os direitos, salvo os especificamente concedidos apenas a pessoas colectivas ou a instituições7, por exemplo, o direito de antena, artigo 49 e os decorrentes da própria pessoa colectiva conducente à prossecução dos fins para que exista, os direitos adequados à sua especialidade, artigo 160 do CC com a limitação imposta pelo artigo 157, também do CC. Nesta conformidade, parafraseando o Professor Bacelar Gouveia8 a orientação geral que se obtêm é a de que as pessoas colectivas são titulares de direitos fundamentais, em nome deste princípio da universalidade, desde que os direitos fundamentais concretamente a analisar se harmonizem, na protecção concedida, ao sentido existencialda pessoa colectiva em causa, até podendo haver, no extremo, direitos fundamentais só para pessoas colectivas: liberdade religiosa individual não se aplica numa sociedade comercial, mas a inviolabilidade do domicílio já pode ter razão de ser, em nome da protecção de segredos da actividade económica. Por este entendimento, não pode ser aplicável a pessoa colectiva, o direito à vida e a integridade física e moral, artigo 40, o direito à família, artigo 119, o direito a maternidade e paternidade, artigo 120, o direito a infância, artigo 121, o direito reservado a portadores de deficiência, artigo 125, o direito a habeas corpus, artigo 66, nem está sujeito a prisão preventiva, artigo 64 e extradição, artigo 67. 7 Idem, Jorge Miranda, página 197. 8 Idem, página 1073. Doutor António S. Chipanga, Docente e Regente – Lições Sumárias da disciplina de Direitos Fundamentais, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane 13 III. Sentido da igualdade Na senda do que temos vindo a tratar e recorrendo às lições do Professor Jorge Miranda9, a análise da igualdade tem de assentar em três pontos firmes, acolhidos quase unanimemente pela doutrina e pela jurisprudência. São eles: a) Que a igualdade não é identidade e igualdade jurídica não é igualdade natural ou naturalística; b) Que a igualdade significa intenção de racionalidade e, em último termo, intenção de justiça; c) Que a igualdade não é uma “ilha”, encontra-se conexa com outros princípios, tem de ser entendida – também ela – no plano global dos valores, critérios e opções da Constituição material. O sentido do princípio da igualdade é de na verdade negativa, ou seja, o princípio veda privilégios e qualquer discriminação às pessoas jurídicas, porquanto, gozam da tutela do Direito. Assim, “ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever…” O princípio de direito deve ser assim entendido como sendo aquele que assegura a todos os tratamentos igual em iguais circunstâncias, o que afasta concessão de privilégios em razão da qualidade da pessoa jurídica. Os privilégios são situações de que dão vantagens não fundadas em nenhum elemento de base material e correspondem à situações de discriminação ou desvantagem em relação a outra pessoa semelhante, nas mesmas condições e oportunidade. Há também neste prisma e no quadro do sentido do princípio da igualdade, a discriminação que são situações de vantagens fundadas que desaguam nas desigualdades de direito em consequências de desigualdades de facto, tendentes à superação destas e, por isso, em geral, têm carácter temporário. São exemplos destas discriminações positivas no plano constitucional, as disposições atinentes à criança, artigos 47 e 121, a mulher artigo 122, juventude, artigo 123, terceira idade, artigo95 e 124, portadores de deficiências, artigos 37 e 125. 9 Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Direitos Fundamentais, 4.ª edic. Coimbra, 2008, pagina 253 e seguintes. Doutor António S. Chipanga, Docente e Regente – Lições Sumárias da disciplina de Direitos Fundamentais, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane 14 A Constituição Moçambicana identifica os factores de desigualdade inadmissíveis como são os casos previstos nos artigos 39 e 250. Artigo 39 (Actos contrários à unidade nacional) Todos os actos visando atentar contra a unidade nacional, prejudicar a harmonia social, criar divisionismo, situações de privilégio ou discriminação com base na cor, raça, sexo, origem étnica, lugar de nascimento, religião, grau de instrução, posição social, condição física ou mental, estado civil dos pais, profissão ou opção política, são punidos nos termos da lei. Artigo 250 (Acesso e estatuto dos funcionários) 1. O acesso à Função Pública e a progressão nas carreiras profissionais não podem ser prejudicados em razão da cor, raça, sexo, religião, origem étnica ou social ou opção político- partidária e obedece estritamente aos requisitos de mérito e capacidade dos interessados. Todos estes factores não são os únicos que quando praticados promovem privilégios ou discriminação. Os factores aqui enumerados são a título de exemplo, tendo em conta que o artigo 42, da CRM apresenta-nos um leque aberto de Direitos Fundamentais e desta forme temos que entender que os factores de discriminação são também abertos em face do artigo 42. O legislador arrolou os factores previstos nos artigos 39 e 251 como sendo os mais gritantes em relação aos quais a ordem jurídica reagem com maior veemência possível dado ao impacto que eles podem causar na esfera jurídica dos lesados, mas há muito mais factores que causam privilégios ou discriminação negativa contra a pessoa nos vários domínios da vida privada ou publica que constam desta enumeração mas que causam danos É por consciência de todos estes factores que o legislador cautelosamente fixou o disposto nos artigos 69, 70, 79, 80, 81, 214 e n.˚ 3 do artigo 252, todos da CRM. A finalidade de todas estas proibições é de assegurar a protecção dos direitos do cidadão e garantir que de facto os direitos consagrados na Lei fundamental sejam efectivamente os que deve gozar sem qualquer limitação fora da previsão legal, nos termos do n.˚ 2 do artigo 56, que corresponde ao previsto Na segunda parte do artigo 7 da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 cujo texto se apresenta: “Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual protecção da lei. Todos. Todos têm direito a protecção igual contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração contra qualquer incitamento a tal discriminação.˝ O que até aqui temos vindo a tratar sobre este princípio da igualdade é na vertente negativa, ou seja, em sentido negativo que corresponde a proibição. Doutor António S. Chipanga, Docente e Regente – Lições Sumárias da disciplina de Direitos Fundamentais, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane 15 Vejamos então o sentido positivo do principio da igualdade que nos parece mais complexo, tal como nos expõe o Professor Jorge Miranda10 que no sentido em que vínhamos apreciando. Neste sentido resulta do princípio da igualdade o seguinte: a) Tratamento igual de situações iguais (ou tratamento semelhante de situações semelhantes); b) Tratamento desigual de situações desiguais, mas substancial e objectivamente desiguais - ˝impostas pela diversidade das circunstancias ou pela natureza das coisas˝ - e não criadas ou mantidas artificialmente pelo legislador. c) Tratamento em moldes de proporcionalidade das situações relativamente iguais ou desiguais e que, consoante os casos, se converte para o legislador ora em mera faculdade, ora em obrigação; d) Tratamento das situações não apenas como existem mas também como devem existir, de harmonia com os padrões da Constituição material (acrescentando-se, assim, uma componente activa ao principio e fazendo da igualdade perante a lei uma verdadeira igualdade através da lei. O princípio da igualdade não se refere única e exclusivamente as pessoas físicas, mas sim as pessoas jurídicas, ou seja, as pessoas singulares e pessoas colectivas, dai que este princípio aplica-se as pessoas colectivas e sobre os grupos não personalizados. Às regras previstas na lei eleitoral atinentes a igualdade dos partidos políticos, das coligações de partidos políticos, dos grupos de cidadãos eleitores proponentes e das candidaturas aplica-se o princípio da igualdade, nos termos em que estamos a estudar em todas as suas acepções. O princípio aplica-se às relações entre o Estado e os cidadãos e os cidadãos na sua vida particularnas instituições públicas e privadas que mantém com as demais pessoas nas suas famílias, grupos, associações civis, sindicatos partidos políticos, etc. IV. Destinatários do princípio da igualdade O Dr. Joaquim Madeira, então Procurador-Geral da República, numa das suas intervenções públicas perante jornalistas nacionais e estrangeiros a propósito de crimes de corrupção, abuso de confiança e outros cometidos contra os bens públicos por algumas altas entidades públicas do Estado e agentes da Administração Pública, a dado tempo, disse: “ninguém está acima da lei.” Todo aquele que cometer um acto qualificado de crime, previsto e punido nos termos do Código Penal ou em qualquer outra lei avulsa, será submetido a julgamento e condenado se se provar a sua culpabilidade na prática do acto. 10 Idem, pagina 255 e seguintes. Doutor António S. Chipanga, Docente e Regente – Lições Sumárias da disciplina de Direitos Fundamentais, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane 16 Por conseguinte, o destinatário número um da lei é o próprio órgão que emanou a lei. Quem elabora e aprova a lei fica directa e imediatamente vinculado a lei que ele próprio aprovou devendo por isso, cumpri-la na sua íntegra. A emanação das normas constitucionais em sede do poder constituinte material ou formal original obedece quer no conteúdo, quer na sua forma à vontade política da nova ideia do Direito. Porém, a primeira Constituição dentre as várias disposições normativas, em princípio fixa os procedimentos jurídico-constitucionais que deverão ser observados sempre que se pretender proceder à revisão constitucional. Nesta conformidade, o poder constituinte passa a partir desta primeira Constituição a vincular-se a um comando pelo qual se deverá subordinar sempre que pretender rever a Constituição. Assim, o princípio da igualdade consagrado na lei impõe-se a todos os órgãos que tem por missão elaborar, executar e fazer cumprir a lei, pois na sua actuação têm por dever observar todos os ditames decorrentes do princípio da igualdade em todas as suas dimensões. Desta feita, o princípio da igualdade exige tratamento igual a todas as funções dos órgãos do Estado, bem como a aplicação igual da lei, da norma jurídica em todas as circunstâncias iguais. Quando nos referimos a primazia dos destinatários do princípio da igualdade queremos dizer que para além do órgão legislativo inclui-se os órgãos políticos, como seja o Presidente da República e o Conselho de Ministros, os tribunais judiciais, o Conselho Constitucional, o Ministério Público, a Comissão Nacional de Eleições e os órgãos administrativos. Aos particulares o princípio da igualdade não se aplica, em virtude destes gozarem do princípio da autonomia, salvo quando verifica-se uma descriminação contra a pessoa que põe em causa a dignidade da pessoa humana ou haja situações de abuso de poder de facto. Na esfera privada è importante distinguir pessoas físicas das pessoas colectivas. Nas pessoas colectivas aplica-se o princípio da igualdade em relação aos membros entre si e nas relações que se estabelecem na sociedade, na associação, na fundação ou no Partido Politico. Terminado este tema segue Parte II, regime dos Direitos Fundamentais, título I do regime comum dos Direitos Fundamentais, capitulo II da Protecção Jurídica Interna em que iremos nas aulas seguintes tratar sucessivamente da: 1. Protecção jurídica e acesso ao direito; 2. A tutela jurisdicional dos direitos fundamentais; 3. Actos jurídico-públicos e meios jurisdicionais 4. A tutela graciosa ou não contenciosa dos direitos fundamentais a) O direito de petição b) O Provedor de Justiça 5. A responsabilidade civil das entidades públicas e do Doutor António S. Chipanga, Docente e Regente – Lições Sumárias da disciplina de Direitos Fundamentais, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane 17 6. Movimentos sociais e direitos humanos: o papel dos diferentes actores na protecção dos Direitos Humanos. 1. PROTECÇÃO JURÍDICA E ACESSO AO DIREITO A Constituição da República de Moçambique no seu artigo 69 com a epígrafe Direito de impugnação, dispõe que “O cidadão pode impugnar os actos que violam os seus direitos estabelecidos na Constituição e nas demais leis.” Ora, a impugnação acto de tutela constitucional pelo qual a pessoa jurídica contesta o comportamento com o qual não se conforma é um direito fundamental cujo exercício pressupõe que antes de mais o cidadão ofendido conheça o direito de que é legitimo titular e em que medida e circunstâncias pode ser exercido. A Constituição estabelece ainda no artigo 79 o direito de petição, queixa e reclamação conferindo a todos os cidadãos o direito de apresentar petições, queixas e reclamações perante a autoridade competente para exigir o restabelecimento dos direitos violados ou em defesa do interesse geral. Por conseguinte, o direito consagrado na Constituição representa para o cidadão o padrão do comportamento que deve ser observado por ele próprio, pelo Estado e demais pessoas jurídicas. O comportamento do Estado e das demais pessoas jurídicas em face do Direito consagrado deve ser conforme a lei – Padrão, a norma constante da Constituição e das demais leis da Ordem jurídica. A conformidade do comportamento é assim aferida comparando a lei-padrão com a conduta manifesta pelo agente e do juízo de valor apura-se a conformidade ou a desconformidade do comportamento e neste ultimo caso estamos perante uma violação da norma. No caso vertente, quando do direito de que seja titular o cidadão não se tem conhecimento ou quando se conhece não se sabe em que condições pode ser gozado, nesse caso, o cidadão não pode de forma alguma identificar a sua obstrução e muito menos determinar em que circunstâncias foi-lhe denegado ou limitado o gozo do seu direito. O Professor Jorge Miranda a este propósito afirma: “A primeira forma de defesa dos direitos é a que consiste no seu conhecimento. Só quem tem consciência dos seus direitos tem consciência das vantagens e dos bens que pode usufruir com o seu exercício ou com a sua efectivação, assim como das desvantagens e dos prejuízos que sofre por não os poder exercer ou efectivar ou por eles serem violados”11. Não foi por acaso que os regimes colonialistas que dominaram vários povos de África, Ásia e América Latina, pautaram sempre por uma mesma doutrina de nunca dar acesso ao conhecimento aos povos dominados, tal como se pode notar do regime jurídico estabelecido no Acto Colonial, norma constitucional destinado exclusivamente a população negra das colónias portuguesas. 11 Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Direitos Fundamentais, 2.ª edição, Coimbra editora, 1998, página 229. Doutor António S. Chipanga, Docente e Regente – Lições Sumárias da disciplina de Direitos Fundamentais, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane 18 Em Moçambique o regime colonial Português aplicou a mesma doutrina e assim, os povos considerados indígenas não lhes foi permitido o acesso ao ensino, à ciência e à tecnologia. O ensino ministrado para estes povos foi predominantemente o religioso limitado ao ciclo primário e quanto muito até ensino secundário básico e fora deste o sistema consuetudinário em conformidade com os usos e costumes dos povos considerados indígenas, aos quais não se reconhecia direitos de cidadania. Os poucos moçambicanos instruídos à data da independência nacional em 25 de Junho de 1975 tiveram que emigrar para fora das terras de domínio português onde conseguiram acesso ao ensino e a frequência ao nível superior. O direito de que um cidadão é titular só pode ser exercido integralmente quandoo seu titular tenha conhecimento sobre ele e saiba quais os seus contornos. O direito a informação, previsto no n.˚1 do artigo 48 é, pois o complemento e suporte jurídico do gozo dos direitos, liberdades e garantias fundamentais de que os cidadãos sejam titulares e a este acresce-se o direito à educação previsto no artigo 113 e o direito ao ensino consagrado no artigo 114, todos da CRM. O acesso ao direito e à informação, bem como ao conhecimento constitui normas preceptivas, imediatamente invocáveis em salvaguarda dos direitos fundamentais. Os cidadãos não só têm o direito à informação como têm o direito de serem informados, nos termos do n.˚ 1 do artigo 252 e n.˚ 1 do artigo 92 (direito dos consumidores). O povo moçambicano é ainda constituído por um número significativo de população analfabeta, na ordem de 44,9% do universo de 28.9 milhões de habitantes em 2018 e com as instituições públicas com uma capacidade limitada de tornar público o conjunto dos direitos fundamentais de que os cidadãos sejam titulares. Algumas ordens jurídicas em África já consagram na Constituição instituições que se encarregam de educação cívica dos cidadãos visando promover e dar a conhecer os direitos de que o cidadão é titular, trata-se da Comissão da Educação Cívica prevista na Constituição da República de Ghana de 1992. A Constituição Moçambicana desde 1975 que consagra um vasto leque de direitos fundamentais, mas quantos e quais os moçambicanos têm conhecimento dos direitos que a lei fundamental proclama a seu favor. O Presidente da República, a Assembleia da República, o Conselho de Ministros, os Tribunais, o Conselho Constitucional, os Ministros, os Governos provinciais ou distritais, os municípios ou outras entidades públicas emanam normas que implementam e desenvolvem os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, mas que mecanismos existem instituídos na ordem jurídica que levam tais comandos ao conhecimento directo e imediato do cidadão, de modo a beneficiar- se deles ou a exercer qualquer dos direitos previstos nos artigos 70, 79, 80, 81 e n.º 3 do artigo 252, todos da CRM. A Constituição prevê no artigo 62, o direito de acesso aos tribunais, a defesa e ao direito de assistência jurídica e patrocínio judiciário e fá-lo por intermédio do Instituto de Patrocínio e Assistência Jurídica (IPAJ). Doutor António S. Chipanga, Docente e Regente – Lições Sumárias da disciplina de Direitos Fundamentais, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane 19 Independentemente das atribuições conferidas a este Instituto público, o seu âmbito é nacional, mas a sua abrangência encontra muitas limitações em termos de recursos humanos, materiais, financeiros e capacidade de realização, o que não lhe permite estender a sua representação para todos os 161 distritos e mais de 380 Postos Administrativos e muito menos para onde se situa o cidadão, no seu local de residência habitual ou de trabalho nas mais de 1042 localidades e povoados, vilas e 53 cidades municipalizadas. Neste momento, o IPAJ situa-se fundamentalmente em todas as capitais provinciais e em alguns distritos onde haja tribunais judiciais e procuradorias gerais da República em funcionamento. Mas o acesso ao direito não se circunscreve tão-somente a matéria criminal, civil ou laboral. O Direito é muito mais vasto e quanto mais os direitos fundamentais que não encontram o seu limite, nos termos do artigo 42 da CRM. O IPAJ tal como muitas das instituições públicas situam-se ao nível da capital do país, da província, do distrito e não onde o cidadão tem a sua residência habitual, no bairro ou aldeia ou no seu local de trabalho. O Cidadão no seu local de residência ou de trabalho carece de informação sobre os direitos, liberdades e garantias de que seja titular e desconhecendo-os nada poderá dizer sobre o seu cumprimento por parte do Estado ou não em conformidade com a Constituição e demais leis. A falta de conhecimento sobre os seus legítimos direitos torná-lo-á agente passivo em face de uma violação, por desconhecimento do direito que o assiste em cada circunstância e momento. O artigo 38 determina que todos os cidadãos têm o dever de respeitar a ordem constitucional, mas em nenhum outro dispositivo consagra-se de que modo os cidadãos devem tomar conhecimento da ordem constitucional a respeitar e muito menos são indicados os mecanismos de acesso ao direito que não sejam por via dos tribunais aos quais cabe exercer as funções previstas no artigo 212 e seguintes. Todas as normas jurídicas emanadas na Ordem Jurídica apresentam-se em língua portuguesa, qualificada nos termos do artigo 10 da Constituição de língua oficial. Porém, a maioria dos cidadãos nacionais falam línguas nacionais consideradas como património cultural e educacional que promovem o seu desenvolvimento e utilização crescente como línguas veiculares da nossa identidade, conforme o artigo 9 da CRM. Pese embora esteja consagrado na lei fundamental a necessidade de uso das línguas nacionais, a situação com que nos deparamos revela-nos que as leis, os julgamentos, as mensagens, as comunicações do Estado, da administração pública e todo o relacionamento do Estado com os cidadãos são ainda em português, bem como os serviços públicos funcionam em língua portuguesa e não existe instituído no sistema nacional, um serviço público de tradução para os cidadãos não falantes da língua oficial. Doutor António S. Chipanga, Docente e Regente – Lições Sumárias da disciplina de Direitos Fundamentais, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane 20 Há porém, esforço louvá-lo desenvolvido pelo Governo de Moçambique e pelos órgãos de comunicação social, tais como o ensino Bilingue que tem vindo a ser ministrado nas provinciais, junto das escolas, povoações, bairros, aldeias e outros consistindo no ensino na língua local e as estações da Rádio Moçambique que transmitem os seus programas radiofónicos em língua local, em todas províncias do país. O factor língua contribui assim para a inacessibilidade do Direito e da justiça e incumprimento do gozo pleno dos direitos de que os cidadãos sejam titulares. Pela Lei n.º 33/2009, de 22 de Dezembro, a Assembleia da República criou a Comissão dos Direitos Humanos que de entre as funções conferidas no artigo 5 tem por dever realizar as seguintes entre outras: a) Promover e proteger os direitos humanos no Pais, através de programas de educação sobre direitos humanos e execução de acções de protecção dos mesmos direitos estabelecidos nos termos da Constituição e da referida lei; b) Desenvolver e conduzir programas de informação para promover o entendimento público da lei e do título III da Constituição – Direitos, Deveres e Liberdades fundamentais – e sobre o papel e actividades da Comissão dos Direitos Humanos. Por conseguinte, a Comissão dos Direitos Humanos formalmente criada em 2009 aguarda pela eleição dos seus membros para o seu pleno funcionamento, e enquanto isso, o vazio instituído pela omissão do dever de constituir a Comissão mantém-se e o cidadão é o mais prejudicado. A Constituição tem um regime específico sobre o Advogado e consta do artigo 63 nos seguintes termos: Artigo 63 (Mandato judicial e advocacia) 1. O Estado assegura a quem exerce o mandato judicial, as imunidades necessárias ao seu exercício e regula o patrocínio forense, como elemento essencial à administração da justiça. 2. No exercício das suas funções e nos limites da lei, são invioláveis os documentos, a correspondência e outros objectos que tenham sido confiados ao advogado pelo seu constituinte, que tenha obtido para defesa deste ou que respeitem à sua profissão. 3. As buscas, apreensões ou outras diligências similares no escritório ou nos arquivos do advogado só podem ser ordenadas por decisãojudicial e devem ser efectuadas na presença do juiz que as autorizou, do advogado e de um representante da ordem dos advogados, nomeado por esta para o efeito, quando esteja em causa a prática de facto ilícita punível com prisão superior a dois anos e cujos indícios imputem ao advogado a sua prática. 4. O advogado tem o direito de comunicar pessoal e reservadamente com o seu patrocinado, mesmo quando este se encontre preso ou detido em estabelecimento civil ou militar. 5. A lei regula os demais requisitos relativos ao mandato judicial e a advocacia. Doutor António S. Chipanga, Docente e Regente – Lições Sumárias da disciplina de Direitos Fundamentais, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane 21 Desta disposição é notório a independência e o carácter privado ou liberal da profissão de Advocacia e ainda o papel do Advogado na defesa dos direitos das pessoas frente ao Estado. É sabido que os Advogados no exercício da sua profissão são colaboradores da Administração da Justiça, sendo um dos pilares, contando com os Tribunais e o Ministério Público e nesta qualidade espera-se do profissional do Direito, nos termos do artigo 4 da Lei n.˚ 28/2009, de 29 de Setembro, o seguinte: a) Defender o Estado de Direito democrático, os direitos e liberdades fundamentais e participar na boa administração da Justiça; b) Promover o acesso à justiça, nos termos da Constituição; c) Contribuir para o desenvolvimento da cultura jurídica para o conhecimento e aperfeiçoamento do Direito, devendo pronunciar-se sobre os projectos de diplomas legais que interessam ao exercício da advocacia, ao foro judicial e à investigação criminal; d) Participar no estudo e divulgação das leis e promover o respeito pela legalidade A conduta do Advogado no exercício da profissão espera-se que seja a prevista no artigo 72 do estatuto da Ordem dos Advogados de Moçambique que se dispõe da seguinte maneira: a) O Advogado é indispensável à administração da justiça e, como tal, deve ter um comportamento público e profissional adequado à dignidade e responsabilidade da função que exerce, cumprindo pontual e escrupulosamente os deveres consignados no Estatuto e todos aqueles que a lei, os usos, costume e tradições profissionais impõem. b) A honestidade, probidade, rectidão, lealdade, cortesia e sinceridade são obrigações profissionais. Para terminar este ponto importa referir que a Constituição no n.º 2 do artigo 62, prevê ao cidadão que for comunicado que é arguido em processo criminal e nesta qualidade é lhe indicado nos termos da lei penal um conjunto de direitos que o assiste até a condenação judicial transitada em julgado, de entre os direitos figura o de escolher livremente o seu defensor para o assistir em todos os actos do processo penal a decorrer. Trata-se de um direito importante que consubstancia a protecção jurídica simultânea e de acesso ao direito. 2. A tutela jurisdicional dos direitos fundamentais A tutela dos direitos e liberdades fundamentais é na verdade a principal garantia do gozo efectivo dos direitos que a ordem jurídica interna tutela em relação ao cidadão. Se não houver um tribunal, órgão jurisdicional independente e imparcial que na sua actuação observa e respeita a igualdade e oportunidade das partes e decide segundo critérios objectivos previstos na lei e os cidadãos têm a possibilidade de se dirigirem para essa instância judicial para a declaração e efectivação dos seus direitos lesados por um outro cidadão ou pelo Estado, os direitos e liberdades fundamentais consagrados na Constituição e na lei são uma letra morta e só visam distorcer a imagem do Estado no exterior quando o cidadão não se beneficia do direito que lhe assiste. Doutor António S. Chipanga, Docente e Regente – Lições Sumárias da disciplina de Direitos Fundamentais, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane 22 Os direitos e liberdades fundamentais despidos da protecção jurisdicional de nada valem e a sua consagração não tem sentido nem valor jurídico, pois não existe mecanismos que oferece garantias da sua efectivação no plano material. É nesta conformidade que a lei constitucional estabelece no artigo 70 o direito de recorrer aos tribunais contra os actos que violem os seus direitos e interesses reconhecidos pela Constituição e pela lei. O gozo pleno dos direitos e liberdades fundamentais requer: a) Tutela jurisdicional de todos os direitos e liberdades; b) O direito de acesso de todos os cidadãos sem qualquer descriminação aos tribunais para a defesa dos seus direitos; c) A garantia de que o acesso a justiça não poderá de forma alguma ser denegada em virtude de o cidadão ter falta ou insuficiência de recursos financeiros; d) O gozo da assistência jurídica e patrocínio judiciário; Por fim destacar o facto de que a tutela jurisdicional dos direitos fundamentais implica nos termos do artigo 211 da CRM que aos tribunais compete-lhes garantir e reforçar a legalidade como factor da estabilidade jurídica, garantir o respeito pelas leis, assegurar os direitos e liberdades dos cidadãos, assim como os interesses jurídicos dos diferentes órgãos e entidades com existência legal. Apenas aos tribunais compete penalizar as violações da legalidade e decidirem pleitos de acordo com o estabelecido na lei, educar os cidadãos e a administração pública no cumprimento voluntário e consciente das leis, estabelecendo uma justa e harmoniosa convivência social. Na esteira deste entendimento, as decisões dos tribunais são de cumprimento obrigatório para todos os cidadãos e demais pessoas jurídicas e prevalecem sobre as de outras autoridades, conforme o artigo 214, da CRM. A tutela jurisdicional encontra-se de forma expressa ou ainda aflorada nas seguintes disposições constitucionais: Artigo 66 (Habeas corpus) 1. Em caso de prisão ou detenção ilegal, o cidadão tem direito a recorrer à providência do habeas corpus. 2. A providência de habeas corpus é interposta perante o tribunal, que sobre ela decide no prazo máximo de oito dias. O artigo 69, (Direito de impugnação) O cidadão pode impugnar os actos que violam os seus direitos estabelecidos na Constituição e nas demais leis. Doutor António S. Chipanga, Docente e Regente – Lições Sumárias da disciplina de Direitos Fundamentais, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane 23 Artigo 70 (Direito de recorrer aos tribunais) O cidadão tem o direito de recorrer aos tribunais contra os actos que violem os seus direitos e interesses reconhecidos pela Constituição e pela lei. Artigo 89 (Direito à saúde) Todos os cidadãos têm o direito à assistência médica e sanitária, nos termos da lei, bem como o dever de promover e defender a saúde pública. Artigo 90 (Direito ao ambiente) 1. Todo o cidadão tem o direito de viver num ambiente equilibrado e o dever de o defender. 2. O Estado e as autarquias locais, com a colaboração das associações de defesa do ambiente, adoptam políticas de defesa do ambiente e velam pela utilização racional de todos os recursos naturais. Artigo 213 (Inconstitucionalidade) Nos feitos submetidos a julgamento os tribunais não podem aplicar leis ou princípios que ofendam a Constituição. Além destes dispositivos a Constituição estabelece ainda que o cidadão pode invocar os artigos 40, 41, 44, 45, 71, 81, 92 e 252, n.˚ 3, 243, n.˚ 1 al. a) e 244, al, g) para a defesa dos seus interesses ou do interesse geral. O quadro jurídico-constitucional ora apontado parece nos indicar no sentido de os cidadãos fazerem funcionar o Conselho Constitucional e tribunais judiciais para que estes protejam e garantam os direitos fundamentais dos cidadãos, consagrados na Constituição. De acordo com este raciocínio, deduz-se tratar da defesa de interesses subjectivos dos cidadãos,pois visa satisfazer interesses dos cidadãos individualmente considerados. 3. Actos jurídico-públicos e meios jurisdicionais A tutela dos direitos fundamentais tem consagração constitucional contra todos os órgãos de soberania, incluindo o conjunto dos órgãos governativos e instituições públicas que não podem quer a título individual, quer conjuntamente decidirem pela suspensão ou obstrução do exercício pleno dos direitos fundamentais pelos cidadãos. As situações que impõem a suspensão do exercício dos direitos fundamentais figuram da CRM no seu artigo 72 e as circunstancias que determinam o acto, bem como o processo para o efeito, consta dos artigos 282 e seguintes. A Constituição, apesar de permitir a suspensão em determinadas situações ponderadas pelo Presidente da República com envolvimento do Governo tendo em conta que recai sobre este a responsabilidade de garantir o gozo dos direitos e liberdades e de velar pela ordem pública e estabilidade dos cidadãos, conforme os artigos 203, al. a) e 202, ambos da CRM, com o pronunciamento do Conselho Nacional de Defesa e segurança, artigo 264 e sancionamento da Assembleia da República, al. g) do n.˚ 2, do artigo 178, impõe-se a salvaguarda em termos Doutor António S. Chipanga, Docente e Regente – Lições Sumárias da disciplina de Direitos Fundamentais, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane 24 absolutos, dos direitos fundamentais que constituem o mínimo da dignidade pessoal- particularmente carecidos de protecção em situações de desordem ou de intranquilidade social -, além de exigir a estrita necessidade e adequação das medidas restritivas para o restabelecimento da normalidade da normalidade constitucional, que se exige “pronto”, isto é, tão rápido quanto possível.12 A tutela graciosa ou não contenciosa dos direitos fundamentais O Direito, traduzido no processo civil, recomenda a todos os cidadãos que em caso de conflito as medidas primárias a serem accionadas para dirimir o referido conflito é a via extrajudicial, em que as partes envolvidas por si só ou com apoio e intervenção de outras pessoas jurídicas possam recorrer a mecanismos amigáveis de resolução de conflito que não seja em primeiro plano a acção judicial. O tribunal aprecia e julga os factos que lhe forem presentes segundo os ditames do Direito, enquanto que as partes entre si gozando da autonomia de vontade podem resolver o conflito adoptando medidas reconciliatórias em beneficio mutuo das partes com menos custos que a acção no tribunal. Os tribunais emitem uma decisão jurídica com força obrigatória para todas as partes, uma vez transitado em julgado e nem nenhuma das partes pode recuar da decisão decretada, conforme o artigo 214 da CRM. A intervenção judicial no caso que põe as partes em conflito só traz desvantagens para todos, decorrendo dos transtornos impostos pelos procedimentos processuais, contratação e pagamento de advogado cuja assistência judicial é obrigatória, conforme o tipo de processo, o tempo que o processo leva para obtenção do resultado e a tramitação demorada do processo até decisão final, pelo menos em Moçambique, por carência de meios humanos e outros no sistema judicial. Assim, em face de todos estes inconvenientes o sistema prevê uma outra modalidade de resolução dos conflitos, ou seja, outra forma de protecção dos direitos tutelados que é a tutela graciosa dos Direitos Fundamentais. Esta modalidade surge por se reconhecer que o sistema judicial no Estado de Direito, por mais célere, avançado e imensos recursos e meios de actuação tiver nunca pode conseguir cobrir eficazmente todas as necessidades da sociedade, sendo, por isso, importante a tutela graciosa por se mostrar mais moldável às circunstâncias do desenvolvimento das relações pessoais entre os cidadãos. O Professor Jorge Miranda13 aponta três notas básicas para se recorrer a tutela graciosa: Primeiro – Não existência de formalismo (ou de formalismos específicos) Segundo – Interpenetração com elementos de oportunidade e de mérito; Terceiro – Grande variedade e plasticidade das suas manifestações (sua fundamentação e seus resultados). 12 José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição da Republica Portuguesa de 1976, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2004, pagina 339. 13 Idem, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, página 248 e seguintes. Doutor António S. Chipanga, Docente e Regente – Lições Sumárias da disciplina de Direitos Fundamentais, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane 25 O Professor Miranda acrescenta ainda que a tutela graciosa pode realizar-se através de órgãos administrativos como através de órgãos políticos; Tanto pode traduzir-se numa nova intervenção do órgão que antes se tenha pronunciado sobre a matéria como a uma espécie de autocontrolo dentro de certo aparelho orgânico, outras vezes a uma fiscalização por outro ou por outros órgãos; umas vezes visa a prática de certo acto ou a adopção de certa providência, outras vezes dirige-se contra acto já praticado, visando a sua reconsideração, revogação ou modificação; tanto pode atender à correcção de uma inconstitucionalidade ou de uma ilegalidade como atender à aplicação de uma sanção por comportamento ilícito. Das garantias graciosas, temos em primeiro plano, o direito de petição que consta do artigo 79 da CRM, com a epígrafe direito de petição, queixa e reclamação, regulamentada pela lei n.˚ 2/96, de 4 de Janeiro, publicado no suplemento do Boletim da República n.˚ 1, de 4 de Janeiro de 1996, conjugado com o Decreto n.˚ 30/2001, de 15 de Outubro, publicado no suplemento do Boletim da República n.˚ 41, de 15 de Outubro de 2001. O direito de petição permite aos cidadãos apresentar petições, queixas e reclamações as autoridades administrativas, politicas ou civis, exigindo o restabelecimento dos seus direitos violados ou agir em defesa de terceiros no interesse geral. O peticionário dirigindo-se as autoridades administrativas reclama, queixa-se ou interpõe o recurso hierárquico gracioso solicitando que lhe seja dada uma decisão administrativa que se funda na legalidade violada de harmonia com os critérios e procedimentos instituídos na instituição, substituindo assim a decisão que se contesta. O direito de petição quando dirigido aos órgãos políticos ou análogos visam a intervenção do respectivo órgão com vista a usar a sua influência no sistema politico administrativo, sem substituir os órgãos competentes em razão da matéria, na resolução pacifica do conflito que opõe o cidadão com a instituição publica, exigindo o cumprimento da lei que julga violada. Para a concretização deste direito está criado ao nível do Regimento da Assembleia da República, Lei n.˚ 17/2007, de 18 de Julho, a Comissão de Petições. O cidadao querenco repor o direito que lhe foi violado ou em defesa de terceiros no interesse geral pode recorrer aos seguintes instrumentos em pedido inicial feito por escrito e assiando pelo seu autor ou por quem o representa; Requerimento – instrumento pelo qual o interessado pede, segundo as formas legais impostas, a uma autoridade a quem compete especialmente conceder ou autorizar o que se requer; Reclamação – instrumento pelo qual o lesado ou o ofendido opõe-se a uma decisão ou acto já praticado em relação ao qual não se conforma e dirige perante a pessoa ou a autoridade que praticou ou tomou a decisão com a finalidade de persuadir a alterar ou revogar a decisão com a qual não se conforma; Doutor António S. Chipanga, Docente e Regente – Lições Sumárias da disciplina de Direitos Fundamentais, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane 26 Recurso hierárquico ou gracioso – instrumento pelo qual o lesado ou o ofendido opõe-se a uma decisão já tomada em relação a qual não se conforma, com fundamento em elementos de prova que demonstram que a decisão foi tomada ilegalmente ou injustamente e é dirigido a pessoa ou a autoridade superior ao que tomou a decisão com a finalidade de persuadir a alterar ou revogar a decisão do seu inferior hierárquico; Recurso tutelar - instrumento pelo qual o lesado ou o ofendido opõe-se a uma decisão ou acto já praticado por uma autoridade do Conselho Municipal ou de povoação em relação ao qual não se conforma e dirige perante a pessoa ou a autoridade que exerce a tutela sobre as autarquias locais, ao nível da província é o Governador provincial ou Governo provincial e ao nível central são os Ministros da Função Pública, Ministro da Administração Estatal e o Ministro das Finanças, com a finalidade de persuadir a alterar ou revogar a decisão; Recurso de revisão - instrumento pelo qual o lesado ou o ofendido opõe-se a uma decisão já tomada em relação a qual não se conforma por existir elementos de prova que demonstram que a decisão foi tomada com base em factos inexistentes ou inexactos que influiram na decisão e é dirigido a pessoa ou a autoridade superior ao que tomou a decisão com a finalidade de persuadir a alterar ou revogar a decisão do seu inferior hierárquico; Recurso contencioso - instrumento pelo qual o lesado ou o ofendido opõe-se a uma decisão já tomada em relação a qual não se conforma por existir elementos de prova que demonstram que a decisão foi tomada ilegalmente, injustamente ou com base em factos inexistentes ou inexactos que influiram na decisão e é dirigido ao Tribunal competente do local onde o facto ocorreu com a finalidade de persuadir a alterar ou revogar a decisão que se constesta; A outra figura importante que a ordem jurídica contempla visando a defesa e protecção dos direitos fundamentais fora dos tribunais é o Provedor de Justiça que no sistema Anglo- saxónico é designado de Ombudsman. O Provedor de Justiça consta da Constituição da República no artigo 256 e seguintes e regulamentado pela Assembleia da República através da Lei n.˚7/2006, de 16 de Agosto14 aprecia os factos que lhe forem submetidos, sem poder decisório, dirigindo aos órgãos competentes as necessárias recomendações para prevenir e reparar as injustiças que apurar que estão a ocorrer. Por conseguinte, o Provedor de Justiça não pode anular, revogar ou modificar os actos dos poderes públicos, quer da Administração Publica, quer da autarquia local. O seu poder reside na persuasão do titular do órgão que tomou a decisão. A intervenção do Provedor da Justiça por queixa, reclamação ou pedido do cidadão não interrompe nem suspende os prazos ou a marcha normal do processo em curso na administração pública. 14 Publicado no Boletim da República n.˚ 33, de 16 de Agosto de 2006. Doutor António S. Chipanga, Docente e Regente – Lições Sumárias da disciplina de Direitos Fundamentais, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane 27 O Provedor de Justiça é o órgão do Estado que tem como função a garantia dos direitos dos cidadãos, a defesa da legalidade e da justiça na actuação da Administração Pública, eleito pela Assembleia da República, por maioria de dois terços dos deputados, pelo tempo que a lei determinar. A função principal do Provedor de Justiça é a defesa dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos e nesta sua missão os órgãos e agentes da administração pública devem prestar a devida colaboração e apoio. O Provedor de Justiça é independente e imparcial no exercício das suas funções, devendo observância apenas à Constituição e às leis. Ao Provedor de Justiça apresentam a petição, queixas ou reclamações, os cidadãos, individual ou colectivamente, por actos ou omissões dos poderes públicos e em nome destes tem a competência de solicitar a declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade das leis, conforme al. f) do n.˚ 1 do artigo 244 e tem assento no Conselho de Estado, al. d) do n.˚ 2, do artigo 163, ambos da CRM. O Provedor de Justiça submete uma informação anual à Assembleia da República sobre a sua actividade. O direito de apresentar petição, queixa ou reclamação é extensivo aos estrangeiros apátridas quando se trate de defesa dos seus próprios direitos ou interesses A actividade do Provedor de Justiça pode ainda ser exercida por iniciativa própria, nos casos de violação dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos, desde que o facto chega ao seu conhecimento e, é independente dos meios graciosos e contenciosos previstos na Constituição da República e na lei. O Provedor de Justiça age sempre em consequência de uma petição, queixa ou reclamação que lhe tenha sido apresentado por um ou mais cidadãos que contesta a actuação da administração pública em relação aos seus direitos. 4. A responsabilidade civil das entidades públicas O Estado moçambicano consagra no artigo 58, com epigrafe Direito à indemnização e responsabilidade do Estado, uma disposição normativa nos termos da qual: 1. A todos é reconhecido o direito de exigir, nos termos da lei, indemnização pelos prejuízos que forem causados pela violação dos seus direitos fundamentais. 2. O Estado é responsável pelos danos causados por actos ilegais dos seus agentes, no exercício das suas funções, sem prejuízo do direito de regresso nos termos da lei. Ora, pelo conteúdo da norma, o Estado assume a responsabilidade de proceder à indemnização pecuniária pelos prejuízos morais ou patrimoniais que forem causados ao cidadão pela violação dos seus direitos fundamentais, desde que sejam ilícitos e culposos. A responsabilidade do Estado pelos danos causados ao cidadão pode compreender responsabilidade: Doutor António S. Chipanga, Docente e Regente – Lições Sumárias da disciplina de Direitos Fundamentais, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane 28 no sentido de responsabilidade político-criminal dos titulares de cargos públicos, como seja, os dos órgãos do Estado ao nível central, local e autarquias locais; no sentido de responsabilidade disciplinar dos funcionários ou agentes do Estado; no sentido de responsabilidade política. Esta responsabilidade abrange um complexo de mecanismos jurídico-político de valor ou desvalor a conduta política do titular do órgão do Estado que causou o dano. O artigo tem como sujeito lesado o cidadão individual ou colectivamente considerado, como são as pessoas colectivas da esfera privada, sem prejuízo de uma autarquia exigir o mesmo direito em caso de sentir-se lesado por um acto praticado por um titular do órgão do Estado ou seus funcionários. A responsabilidade civil do Estado e das demais entidades públicas apresenta-se como responsabilidade por actos de função administrativa, por esta ser a que mais directa e imediatamente relaciona-se com o cidadão na prestação de serviços públicos. São frequentes as situações factuais que podem gerar a responsabilidade civil do Estado pelos actos ou omissão do seu dever pelos seus agentes no exercício da função legislativa, executiva ou jurisdicional resultando em actos ilícitos, nomeadamente leis ou sentenças inconstitucionais, nacionalizações, expropriação, declaração de Estado de sítio ou de emergência e leis que lesem os direitos/interesses de pessoas, execução prévia por parte da administração pública de normas contrárias a administração pública. Ocorrendo qualquer um dos casos cabe ao Estado repor a legalidade e indemnizar o cidadão pelos danos causados. 5. Movimentos sociais e direitos humanos: o papel dos diferentes actores na protecção dos Direitos Humanos. A defesa e promoção dos direitos fundamentais não é nem pode ser tarefa exclusivamente do Estado e demais entidades públicas perante
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