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A face oculta pnld2020 001. pdf

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Prévia do material em texto

maria tereza maldonado
desenhos manuela eichner
Humilhação, hostilidade, ataque, 
difamação e covardia é uma 
fórmula que tem nome: bullying 
ou cyberbullying.
Luciana sabe bem o que é isso. 
Ela fi ca até altas horas em seu 
computador, trocando mensagens 
com muitos amigos de sua rede 
de relacionamentos e interagindo 
com outros usuários de jogos 
on-line. Acha a realidade virtual 
muito mais interessante do que 
o “mundo real”. No entanto, 
quando Marcelo a escolhe como 
alvo e começa a bombardeá-la 
com mensagens ofensivas pelo 
celular e pelo computador, 
Luciana fi ca transtornada, 
sem saber como agir com esse 
inimigo desconhecido. A situação 
se agrava no colégio quando 
Leonardo envolve Marcelo na 
prática do cyberbullying para 
difamar Henry, outra vítima desse 
tipo de afronta.
Luciana e Henry são as vítimas. 
Leonardo e Marcelo, os 
agressores. Quem vai tomar uma 
atitude para coibir essa guerra?
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a
A face oculta_CAPA_LP_PNLD2020.indd 1 7/19/18 2:46 PM
1a edição
2018
Maria Tereza Maldonado
ilustrações de Manuela Eichner
A facE 
ocuLta
uma hiStoria DE buLLying 
E cybErbuLLying
A face oculta_MIOLO_PNLD2020.indd 1 20/06/18 12:47 PM
Copyright © Maria Tereza Maldonado, 2009
Gerente editorial: ROGÉRIO CARLOS GASTALDO DE OLIVEIRA
Editora-assistente: KANDY SGARBI SARAIVA
Preparação de texto: MARCIA CECÍLIA VANUCCHI
Auxiliar de serviços editoriais: RUTE DE BRITO
Estagiária: MARI KUMAGAI
Revisão: HÉLIA DE JESUS GONSAGA (ger.), KÁTIA SCAFF MARQUES (coord.), 
ROSÂNGELA MURICY (coord.), CÉLIA CARVALHO, GABRIELA M. ANDRADE 
e LILIAN M. KUMAI
Gerência de arte: NAIR DE MEDEIROS BARBOSA
Projeto gráfico e produção: AEROESTÚDIO
Capa: AEROESTÚDIO
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Maldonado, Maria Tereza
A face oculta : uma história de bullying e 
cyberbullying / Maria Tereza Maldonado ; ilustrações 
de Manuela Eichner. — 1. ed. — São Paulo : Editora 
Todas as Letras, 2018.
1. Assédio nas escolas - Literatura infantojuvenil 
2. Literatura infantojuvenil I. Eichner, Manuela. 
II. Título.
18-17114 CDD-028.5
Índices para catálogo sistemático:
1. Literatura infantojuvenil 028.5
2. Literatura juvenil 028.5
Maria Alice Ferreira – Bibliotecária – CRB-8/7964
ISBN 978-85-68006-26-9 (aluno)
ISBN 978-85-68006-30-6 (professor)
1a edição, 2018
Todos os direitos reservados à
Editora Todas as Letras Ltda.
Avenida das Nações Unidas, 7221
1o andar – Setor C – Espaço 2 
CEP 05425-902 – Pinheiros – São Paulo – SP 
A face oculta_MIOLO_PNLD2020.indd 2 7/17/18 10:42 AM
Caro leitor, 
Quer saber o que me motivou a escrever A face oculta? 
Ouvi centenas de histórias de pessoas que sofrem bullying 
e cyberbullying, de quem pratica e de quem participa dessas 
ações, apoiando quem faz e compartilhando mensagens ofen-
sivas. Vou contar uma coisa para vocês: eu sofri bullying quan-
do tinha dez anos. Naquela época, esse nome nem existia, e 
a internet também não. Os adultos pensavam que aquilo era 
brincadeira de crianças e não percebiam o sofrimento que isso 
provocava. Bullying não é brincadeira! Porque brincadeira é 
quando todos se divertem! Quando alguns se divertem ata-
cando, excluindo, depreciando outros, isso é um padrão de 
agressão que pode se estender para outros relacionamentos. 
A partir de centenas de histórias reais, surgiu A face oculta. 
Os personagens sintetizam muitas pessoas que conheci com as 
características de cada uma delas. 
Luciana é uma adolescente que adora fazer amigos. Ela 
é alegre, extrovertida, atraente, vai bem nos estudos e é muito 
segura de si. Essa descrição poderia ser a de muitas outras ga-
rotas como ela e não teria nada de extraordinário se não fosse 
por um detalhe: na verdade essa é a descrição de uma Luciana 
que só existe no mundo virtual; no mundo real ela é intro-
vertida, tem poucos amigos, detesta atividades físicas, come 
compulsivamente e esconde sua aparência com roupas largas 
e escuras. Só uma coisa as “duas” Lucianas têm em comum: 
a paixão pelo computador. Mas uma faceta nada atraente do 
mundo virtual veio atormentar a garota: ela está sendo vítima 
de cyberbullying e sente que não pode pedir ajuda a nenhum 
adulto, pois teme ficar sem seu precioso computador.
Espero que goste de ler A face oculta tanto quanto eu 
gostei de escrever!
Maria Tereza Maldonado
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SumArio
A inimiga do sol 7
O real mundo virtual 13
Perseguição implacável 22
Ataques torturantes 28
Comemorando a vitória 36
Os ataques continuam... 43
...E as famílias são chamadas 52
Redimensionando o problema 58
Ameaças e novas ideias 65
Vítimas e algozes 73
Confronto e consequências 81
Epílogo 90
Glossário 93
Sobre a autora e a obra 95
Sobre a ilustradora 96
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A inimiga Do SoL
O domingo de Carnaval começou radiante: calor, mar com poucas ondas, 
água transparente, céu azul. Alzira e Leandro acordaram às 
seis da manhã para fazer uma caminhada a passos rápidos no 
calçadão de Copacabana. Para eles, esse era o melhor modo 
de começar o dia, mesmo em fins de semana e feriados. Mas 
não para a filha deles, Luciana, de 13 anos, que toda noite fi-
cava até tarde entretida com jogos on-line, conversando com 
os amigos pelo computador, e detestava acordar cedo. 
Quando voltaram da caminhada, a mãe de Alzira, que 
viera de Belo Horizonte passar a semana de Carnaval com 
eles, já estava acordada, preparando suco de laranja para o 
café da manhã. Sabia que a filha e o genro chegariam para 
tomar uma chuveirada, vestiriam as fantasias de odalisca e 
de pirata e pegariam o metrô até o centro da cidade, onde, 
às 9 da manhã, aconteceria a concentração de um bloco que 
tocava marchinhas tradicionais. 
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Foi o que aconteceu. Lá, os dois, animadíssimos, encon-
traram alguns amigos e se divertiram observando fantasias 
criativas: a mulher-bomba enrolada em panos negros com o 
cartaz “Vou explodir de alegria!”, a jovem com uma bunda de 
plástico por cima da bermuda, o senhor careca e barrigudo 
com uma tiara na cabeça e roupa de bailarina, a senhora com 
um chapéu enorme imitando uma caneca de cerveja, a mu-
lher com uma saia feita de tubos de papel higiênico. Muitas 
crianças no colo dos pais, algumas assustadas com o som de 
bumbos, trombones e tubas e com a multidão que rapidamen-
te lotou a rua estreita, antes de o bloco começar a circular pelo 
centro da cidade. Gente de todas as idades, com perucas co-
loridas, óculos enormes, colares, pulseiras e muita animação.
— Oi, tia, cadê a Luciana?
Alzira surpreendeu-se quando Bruna a pegou pelo bra-
ço. Não a tinha visto no bloco, com a avó que adorava sambar.
— Você não conhece sua amiga, Bruninha? Ela detesta 
Carnaval!
— Falei com ela ontem. Já faz um tempão que a gente não 
se vê, já cansei de convidar para um monte de programas, ela 
sempre inventa uma desculpa para não sair de casa! Na ver-
dade, o único convite que ela aceita de vez em quando é se 
encontrar comigo na padaria do papai para comer aquele pão 
doce irresistível...
— É, a gente também insiste para que pelo menos ela vá à 
praia nos finais de semana, mas nem isso, em pleno verão está 
branca como a neve, parece inimiga do sol!
Por volta de uma da tarde, caminharam até a estação de 
metrô mais próxima. Estava lotado, com gente fantasiada indo 
para os blocos da Zona Sul e muitas pessoas com roupa de 
praia, os termômetros marcando 35 graus. Ao descer, ainda 
andaram mais três quadras, as ruas de Copacabana cheias, a 
praia colorida comuma barraca ao lado da outra, os ambulan-
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tes fazendo a festa com as vendas de bebidas, bonés, cangas e 
enfeites carnavalescos. Entraram em casa felizes, suados e can-
sados. Leandro foi direto para o chuveiro, para depois entrar 
na cozinha com a mulher e preparar um peixe assado com le-
gumes para o almoço.
— E aí, mãe, Luciana já acordou?
Dona Vera olhou para Alzira sobre os óculos, parando de 
picar maçãs e peras para a salada de frutas:
— Claro que não, ainda é cedo para ela! Não conhece sua 
própria filha?
Alzira deu um longo suspiro:
— Não sei mais o que dizer nem o que fazer para con-
vencer essa menina de que está perdendo os melhores anos 
da vida dormindo até tarde e enfiada nesse maldito computa-
dor! Precisava ver a animação da garotada no bloco: havia até 
criancinhas de 2 anos dançando no colo dos pais!
— Cada um aproveita a vida do seu jeito, minha filha! 
Luciana acha a maior graça no computador, é lá que ela se di-
verte, paquera, faz amigos. Mas nem você nem o Leandro con-
seguem entender isso...
— Gosta de computador e de comida... Reparou como 
engordou desde o Natal? Vive comendo bobagens: pipoca, bis-
coitos, balas, bolos, tudo o que não presta. Faz várias coisas ao 
mesmo tempo: tecla, come, ouve música, fala pelo celular e, 
ainda por cima, jura que consegue se concentrar para fazer o 
dever de casa no meio dessa confusão toda! 
— Calma, minha filha, você, desde pequena, tem mania 
de fazer drama! Luciana não está gorda, está cheinha. Você 
também, nessa idade, não gostava de fazer os deveres e tirava 
notas baixas! Não precisa se preocupar tanto! Chegou do bloco 
tão alegre, agora está com essa cara...
— Eu não faço drama, mamãe, você é que acha que nada 
é grave, que tudo se resolve com o tempo! O Leandro também 
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se preocupa. A Luciana é impermeável aos nossos argumentos, 
diz com a maior convicção que o mundo virtual é muito mais 
interessante do que essa nossa vidinha real, vê se pode?
— Talvez ela tenha razão... — disse dona Vera, pensativa.
Ainda vestindo a camisola cor-de-rosa estampada com 
coelhinhos saltitantes, Luciana entrou na cozinha, os olhos se-
micerrados, os passos cambaleantes, como se fosse sonâmbula:
— Oi... bom dia...
— Boa tarde! Já passa das duas e você ainda não acabou 
de acordar, menina? — Leandro olhou sério para a filha en-
quanto abria a porta do forno para colocar um pouco mais de 
azeite em cima do peixe, o delicioso cheiro das ervas se espa-
lhando pela cozinha.
Luciana foi direto para a geladeira, abriu o congelador, 
pegou o pote de sorvete de goiabada com queijo e encheu sua 
caneca com uma generosa porção.
— A comida já está praticamente pronta, minha filha! 
Que ideia é essa de comer a sobremesa antes da refeição? Além 
do mais, sua avó fez uma salada de frutas deliciosa, que não 
engorda tanto! — A voz de Alzira estava no tom de censura 
que mais irritava Luciana.
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— Ai, mãe, que porre! O dia mal começou e você já está 
reclamando!
— Em primeiro lugar, o dia começou há muito tempo, me-
nina! Seu pai e eu já fomos à praia, pegamos o metrô até o centro 
da cidade, sambamos no bloco e encontramos muitos jovens se 
divertindo, inclusive a Bruna, que mandou um beijo para você. 
Em segundo lugar, você deveria se olhar bem no espelho para ver 
que está gorda e pensar duas vezes antes de se entupir de sorvete!
Luciana voltou para o quarto resmungando:
— Não sei quem inventou essa regrinha idiota de comer 
sobremesa depois da refeição! Com esse calor, sorvete é muito 
melhor do que peixe assado!
Começou a ler as mensagens e os blogs dos amigos que 
estavam se divertindo no Carnaval, alguns com várias fotos já 
colocadas. Um dos amigos inventou uma fantasia de preto ve-
lho: ele e mais cinco tiveram a paciência de pintar todo o corpo, 
cabelos e sobrancelhas, e desfilaram com cachimbo no canto 
da boca e cajado. Hilário. Outro saiu fantasiado de mendigo, 
as roupas esfarrapadas, todo sujo como se tivesse ficado uma 
semana sem tomar banho. Hilário também. Ela escreveu al-
guns comentários engraçados, mas pensou: “Odeio Carnaval, 
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não entendo como meus pais e meus amigos gostam de ficar 
dançando no meio da multidão com esse calor horroroso!”.
Em seguida, entrou na comunidade virtual “Meus pais 
não me entendem!” para ler as novas mensagens postadas por 
centenas de participantes cujos pais também os chamavam de 
“zumbis” e “inimigos do sol”, travando intermináveis batalhas 
entre “certo e errado”, “verdade e mentira”, incapazes de per-
ceber a riqueza dessa rede de trocas de ideias, confidências e 
informações que, para Luciana, eram mais importantes do que 
tudo aquilo que ensinavam na escola e que, segundo ela, não 
servia para coisa alguma na vida.
— Filha, a comida está pronta, venha almoçar! — Lean-
dro gritou lá da cozinha, esperando que Luciana ouvisse. 
Silêncio. A porta do quarto fechada, ela com os fones 
ouvindo as músicas preferidas que baixava da internet. Assim 
que viu o pai entrar, minimizou as telas para que ele não visse 
nem as mensagens dos participantes da comunidade nem as 
fotos dos amigos carnavalescos: com certeza, ele a censuraria, 
mais uma vez, por não gostar de sair de casa. 
— Não estou com fome, pai! Muito calor para comer coi-
sas quentes! Já almocei o sorvete.
— Tudo bem, você não é obrigada a comer, mas pelo me-
nos fique conosco. Sua avó vai embora daqui a dois dias, de-
pois só na Semana Santa se a gente for para Belo Horizonte, e 
você quase não conversou com ela. Quando não está dormin-
do, desaparece nesse buraco negro cibernético e mal olha para 
a cara da gente!
— Tá bom, tô indo... — resmungou, bocejando. Levan-
tou-se e foi se arrastando até a sala, onde a mesa estava posta. 
Entediada, a mão no queixo, ela aparentemente acompanhava 
a conversa, mas na verdade planejava a cidade que estava cons-
truindo em um jogo do computador, em que não havia escolas 
nem estudantes de coisa alguma. 
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O rEaL munDo 
virtuaL
Todas as manhãs, Luciana saía da cama sacudida pelo pai, mal conseguia 
acordar com a xícara de café quente e ia para a escola como 
um zumbi. Zumbi. Era assim que o pai a chamava quando 
se chocava com sua palidez de inimiga do sol e das ativi-
dades ao ar livre, quando a criticava pelo excesso de peso, 
quando não entendia por que ela não queria sair com os 
amigos.
Sempre que percebia o pai exasperado por vê-la recusar 
os convites para sair, Luciana respondia calmamente:
— Não quero fazer o que todo mundo faz! Estou me 
lixando para o que os outros pensam, não gosto de sair de 
casa e pronto!
— Mas isso não é normal na sua idade, Luciana!
— E daí? Não quero ser normal!
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— Pois deveria querer ser uma adolescente normal e sau-
dável, sem essas olheiras de poucas horas de sono, sem ir para 
a escola se arrastando e se arriscando a repetir o ano!
— Eu odeio a escola, você sabe! E pouco me importa se 
eu for reprovada! Vai ser até bom! Quem sabe vocês desistem 
de me fazer estudar e me deixam ficar em casa, fazendo o que 
eu mais amo, que é ficar plugada no computador!
— Você pode repetir o ano duzentas vezes, mas da es-
cola você não vai sair! E não adianta fazer essa resistência 
absurda, a ponto de mal falar com seus colegas! — Leandro 
gritava, impaciente. 
— Não estou a fim de conversar com ninguém daquela 
escola! Meus amigos virtuais são muito mais interessantes!
Pai e filha cansavam de repetir os mesmos argumentos, 
mas um não conseguia aceitar o ponto de vista do outro. Da 
turma de Luciana, Alzira e Leandro conheciam apenas duas 
colegas que, às vezes, se reuniam parafazer trabalhos em gru-
po. Convites para ir ao cinema, fazer um lanche ou ir a festas, 
de tanto ser recusados, tornaram-se praticamente inexistentes: 
os amigos desistiram de insistir. 
Entretanto, a menina tinha mais de quinhentos amigos 
na rede de relacionamentos, com os quais trocava mensagens, 
conversava animadamente e passeava nos ambientes virtuais 
dos jogos on-line. O conceito de amizade era um tema recor-
rente de conversa entre ela e seus pais, mas as opiniões eram 
tão divergentes que eles não conseguiam chegar a um denomi-
nador comum. 
— Para que serve ter quinhentos amigos na rede se você 
não sai com nenhum deles, não os convida para vir aqui em casa 
e não é convidada para ir à casa deles? — questionava Leandro.
— Quando eu tinha a sua idade, andava em bando, mi-
nha casa era o ponto de encontro do grupo. Sua avó já cansou 
de comentar isso com você. Combinávamos de fazer piqueni-
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que na praia, passear à tarde no parque, andar de roda-gigante, 
montanha-russa e trem-fantasma. Nos divertíamos pra valer! 
— agregava Alzira.
— Eu também me divirto muito com meus amigos da 
rede, vocês não entendem porque só usam o computador para 
trabalhar! — retrucava Luciana. 
— Amizade com gente que você nem conhece? Amigo é 
a pessoa com quem a gente se encontra, conversa, troca confi-
dências... — a mãe insistia.
— Amizade de verdade a gente cultiva, sabe que pode 
contar com a pessoa nos momentos difíceis, não dá para ser 
amigo de quinhentas pessoas! — completava Leandro.
— Ai, caramba, essa definição de amizade é antiga, de an-
tes de criarem o computador! Eu me encontro com meus ami-
gos no ambiente virtual, viajamos, vamos a shows, sentamos na 
lanchonete para jogar conversa fora, tudo o que se faz com os 
amigos na vida que vocês insistem em chamar de real! Aliás, 
para nós, amigo nem precisa ser uma pessoa de verdade, pode 
ser um avatar que interage com o nosso, aí a gente conversa, pas-
seia pelos cenários dos jogos, cria intimidade, mesmo que seja 
tudo inventado! — argumentava Luciana, impaciente com a di-
ficuldade dos pais para entender a realidade do mundo virtual. 
Os avatares que Luciana construía para representá-la 
eram muito diferentes dela: magros, altos, cabelos curtos com 
cores e cortes exóticos, roupas ousadas e coloridíssimas. Em 
sua foto no site de relacionamento, ela estava irreconhecível: 
sorridente, com uma blusa vermelha e brincos de argola, os 
cabelos longos pentea dos para trás, realçando o rosto... Muito 
diferente da Luciana das roupas escuras e largas com que ela 
procurava esconder os quilos a mais, do cabelo desalinhado 
encobrindo as orelhas e a testa, do sorriso raro e contido. 
Em seu perfil, descrevia-se como simpática, sociável, de bem 
com a vida. Outra pessoa. A filha que os pais adorariam ter.
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Era na rede que Luciana revelava o que ocultava no cha-
mado mundo real, era onde ela despertava, ria, se emocionava, 
interagia, se apaixonava, começava e terminava namoros, se 
divertia, era espirituosa, sedutora; no mundo virtual, estava li-
vre do medo da violência nas ruas e da insegurança que sentia 
no contato com as pessoas de carne e osso; passeava com os 
amigos pelos cenários fantásticos dos jogos a qualquer hora 
do dia ou da noite, frequentava festas empolgantes e assistia a 
shows virtuais espetaculares, com suas bandas preferidas. Nem 
seus pais nem seus professores a conheciam em sua outra vida, 
não entendiam o fascínio de ser quem não se é, a face oculta 
revelada no outro lado.
Essa “segunda vida” era muito mais fascinante do que a 
primeira. A vida virtual era a sua vida real, nela encontrava 
tudo o que desejava: informação, comunicação, lazer. O que os 
outros chamavam de realidade era um cotidiano absolutamen-
te sem graça e entediante, que lhe inspirava o mais profundo 
desprezo e a deixava mal-humorada. Queria mesmo ser um 
zumbi nesse mundo desinteressante. 
Difícil era respeitar o horário de dormir, com tantas atra-
ções no universo virtual: quase todas as noites, ela apagava a 
luz no horário combinado, esperava os pais adormecerem e 
ficava até altas horas construindo a cidade dos seus sonhos. 
Em outro jogo, criava personagens, famílias de várias gerações 
e até o próprio universo, desde a célula mais primitiva até a 
vida em outras galáxias. Em alguns jogos, criava sozinha essas 
diferentes realidades; em outros, elaborava enredos fantásticos 
com mais de noventa usuários, enquanto trocava mensagens 
com outros. 
Pela manhã, na escola, não adiantava lutar contra o 
sono. As pálpebras de Luciana ficavam pesadas, ela tentava 
disfarçar a cara sonolenta colocando a mão na testa e cobrin-
do o rosto com os longos cabelos, procurava sentar-se no 
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meio dos melhores alunos, para os quais os professores não 
olhavam com censura. Misturada a eles, esperava passar des-
percebida, embora recentemente tivesse sido acordada pela 
mão da professora de Português em seu ombro: a pergunta fa-
tal, que ela não tinha conseguido ouvir e muito menos respon-
der, custou-lhe um ponto a menos na média. Apesar do risco 
de notas baixas, Luciana não se importava: a atração irresistí-
vel pelo computador era muito mais forte do que o medo de 
que os pais restringissem ainda mais seu horário on-line. Mes-
mo em véspera de prova, ficava até tarde na rede.
“E aí, Zumbi de Botafogo, tudo em cima?”
“Fala, Zumbi de Copacabana!”
Uma da manhã: assim começava a troca de mensagens 
entre Luciana e Paulo, filho de uma amiga de Alzira. Os dois se 
comunicavam diariamente pelo computador e passaram a se 
chamar de zumbis para implicar com Leandro. Paulo também 
mergulhava no “buraco negro cibernético” e se desinteressa-
ra dos estudos, para desespero dos pais, que compartilhavam 
com Alzira e Leandro suas preocupações. 
Para Paulo, também era um sacrifício acordar cedo, e ele 
quase sempre dormia na sala de aula. Pegava o bermudão e a 
camisa que a mãe colocava na cadeira na noite anterior, ajeitava 
o colar de contas de madeira que nunca saía do pescoço mes-
mo nos dias em que tomava banho, escovava precariamente o 
cabelo, bebia uma caneca de chocolate quente que a empregada 
preparava e deitava de novo para dormir mais dez minutos até 
ser chamado aos gritos pela irmã estressada que ficava super-
preocupada de perder o ônibus escolar e chegar atrasada. 
Paulo havia adotado a estratégia de Luciana para des-
pistar os professores: usava os longos cabelos encaracolados 
cuidadosamente repartidos ao meio para esconder o rosto 
quando adormecia nas aulas — que ele achava entediantes; 
usava o cabelo também para disfarçar os minúsculos fones de 
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ouvido, escondendo cuidadosamente os fios dentro da camisa, 
para ouvir música enquanto os professores se esforçam para 
dar a matéria. Conseguia parecer atento quando, na verdade, 
estava mentalizando acordes de guitarra e imaginando novos 
arranjos de suas músicas prediletas que poderia fazer no pro-
grama de composição assim que voltasse para casa. Porém, ao 
contrário da amiga, comia pouquíssimo: o envolvimento com 
o computador e com a guitarra lhe tirava o apetite, esquecia as 
refeições e não encontrava tempo para tomar banho, escovar 
os dentes e fazer xixi. Muito menos para estudar.
Arnaldo, o pai de Paulo, viajava muito a trabalho. Apesar 
do pouco tempo para a família, procurava motivar o filho para 
estudar as matérias escolares, além da guitarra que despertava 
em Paulo um grande interesse. Deise, a mãe, trabalhava o dia 
todo, e Paulo ficava em casa sozinho com a empregada, já que 
Daiane, a irmã mais velha, tinha a agenda cheia de atividades 
após o horárioda escola. 
O quarto de Paulo é o seu mundo, com tudo o que mais 
ama: a guitarra e o amplificador de boa marca, o computador 
com monitor grande para visualizar melhor os sintetizadores 
virtuais que utilizava para compor músicas, TV, telefone fixo 
que deixou de usar depois que ganhou um celular de última 
geração. Com tantos atrativos à disposição, não sentia vonta-
de de sair de casa nem para encontrar os amigos nem para 
passear com a família aos domingos. Nem sequer para fazer 
esportes, estudar inglês ou dedicar-se a qualquer outra ativi-
dade que lhe tomasse o tempo precioso destinado à guitarra e 
ao computador.
— Já jantou, meu filho? E terminou de ler o livro para 
o teste de amanhã? — Deise entrou no quarto de Paulo assim 
que chegou do trabalho, exausta depois de um longo dia de 
reuniões com os consultores que vieram da matriz do banco 
em que trabalhava como gerente. 
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— Ainda não, mãe! — resmungou o rapaz, sem tirar os 
olhos da tela do computador.
Deise tirou os sapatos de salto alto e se jogou na cama do 
filho, ainda com a bolsa a tiracolo.
— Ai, que canseira! Já vi que meu dia ainda não termi-
nou, vou ter de ler esse livro com você e ajudá-lo a fazer o 
trabalho... E ainda trazer um prato de comida para ver se você 
come alguma coisa, está quase desaparecendo de tão magro!
— Não estou com fome, mãe! E o livro é um porre...
— Para você, tudo que não tem a ver com computador 
e guitarra é um porre, menino! Não é possível que nada mais 
desperte seu interesse, e também não é possível passar a vida 
fazendo só o que você gosta! Todo mundo tem obrigações: seu 
pai, sua irmã, a empregada, eu. Ou você acha que eu gosto de 
ficar trabalhando até as sete da noite? Ou que seu pai gosta 
de ficar longe da gente viajando a trabalho quase todas as se-
manas? Você acha que não há dias que eu adoraria ficar dor-
mindo até mais tarde ou ir ao cinema na primeira sessão de 
segunda-feira? 
— Ai, mãe, não começa! Já estou cansado desse papo...
— Eu também estou cansada de ficar no seu pé, sem ao 
menos ter o direito de relaxar depois de um dia inteiro de tra-
balho! Também não aguento mais entrar em casa e ver você 
sem tomar banho, sem comer e sem fazer os deveres. Ou você 
acha que eu gosto de ficar no seu pé?
— Se não gosta, me deixa em paz!
— Ah, é? Esqueceu que, no ano passado, eu deixei você 
de lado para ver se você tomava jeito e estudava sozinho? E o 
que aconteceu? Repetiu o ano!
— Não vou repetir de novo...
Arnaldo tinha precisado insistir muito para Deise se 
controlar e deixar o filho “quebrar a cara”, para ver se ele de-
senvolvia o senso de responsabilidade. Sempre que conversava 
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com o filho sobre os estudos, percebia que ele se acomodava, 
evitando estudar por conta própria porque sabia que a mãe o 
ajudaria e sobraria mais tempo para se dedicar à guitarra. 
— Querida, você precisa “desmamar” esse menino! 
Daiane desde pequena estuda por conta própria; Paulo fica 
esperando por você até hoje! Quanto mais você fizer por ele, 
menos ele vai se mexer por iniciativa própria! E ele tem capaci-
dade de se virar sozinho, como acontece com a música!
— Na teoria você está certo, meu bem, mas na prática 
acho que isso não vai funcionar. Paulo ama a música e não pre-
cisa de ninguém atrás dele para estudar. Mas na escola... E não 
acho que valha a pena deixá-lo repetir o ano...
— Continuo pensando que seria a melhor maneira de ele 
aprender a andar com as próprias pernas, mas, enfim, vamos 
ver o que acontece... 
— É, querido, você tem razão. Vou me esforçar para não 
oferecer tanta ajuda, afinal não é fácil para mim chegar cansa-
da do trabalho e ainda ter de ficar estudando com ele.
No último bimestre, as notas cada vez mais baixas, Deise 
capitulou e começou a supervisionar os estudos do menino e 
até a fazer alguns trabalhos por ele, para evitar que fosse repro-
vado. Não adiantou: Deise ficou arrasada, como se ela própria 
tivesse fracassado, com raiva de Arnaldo por ele não ter acre-
ditado que a única coisa que o filho conseguia estudar sozinho 
era música. Quem menos se incomodou foi o próprio Paulo.
— Qual o problema de repetir o ano? Assim eu fico com 
mais base para o ano que vem... — argumentou, com a espe-
rança secreta de não precisar fazer tanto esforço, já que não 
haveria matérias novas, só a revisão do ano anterior.
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PErSEguicao 
impLacavEL
O shopping estava cheio naquele sábado chuvoso, muita gente subindo e 
descendo pelas escadas rolantes, passeando pelos corredores, 
olhando as vitrines e lotando a praça de alimentação. Marcelo 
foi o primeiro a escolher o sorvete de manga na casquinha, en-
quanto Elisa, sua meia-irmã, não conseguia decidir entre seus 
quatro sabores preferidos. Quando, finalmente, escolheu o de 
maracujá e começou a saboreá-lo, Marcelo, que já estava aca-
bando o seu, discretamente esbarrou no braço dela, fazendo o 
sorvete cair no chão.
— Mãeeee... o Marcelo fez isso de propósito! — recla-
mou, choramingando.
— Não fiz não, foi sem querer! — defendeu-se, a cara de 
sonso revelando a mentira.
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— A mim você não engana, rapaz! É claro que você fez 
de propósito, só não sei por que você cisma de perseguir sua 
irmã desse jeito! Esquece que já tem 14 anos e ela só 8? 
— Não fiz de propósito! Você e o Vítor acham que eu sou 
o culpado de tudo e só acreditam nessa pirralha que adora me 
ferrar! — A voz de Marcelo estava muitos decibéis acima do 
aceitável. 
— Fale baixo, as pessoas já estão olhando pra você! — 
advertiu Vítor, aproximando-se de Marcelo.
— Eu falo como eu quiser, e você não pode se meter por-
que não é meu pai! 
— Marcelo, o Vítor é meu marido e pai de sua irmã, você 
deve respeito a ele, sim! Eu vou comprar outro sorvete para a 
Elisa e descontar da sua mesada!
— Hum, até parece... Você ameaça e depois esquece... — 
retrucou Marcelo, irônico, indo para o outro lado da sorveteria 
para atender no celular a ligação de um amigo do prédio:
— E aí, cara, tu não tá em casa, não?
— Não, tô no shopping, mas vou chegar daqui a pouco, 
qual é a boa?
— Tá todo mundo a fim de bater uma bola, mas tá faltan-
do gente no nosso time. Pô, cara, tu devia estar aqui, acabamos 
de soltar bombinhas na garagem, o segurança veio correndo, e 
a gente se mandou a tempo!
No grande condomínio com três blocos de apartamentos 
onde morava com a mãe, Vítor e Elisa, Marcelo e mais cinco 
amigos “tocavam o terror”, implicando com as crianças na pisci-
na e nos brinquedos do parque, derrubando as lixeiras e deixan-
do a sujeira espalhada no chão para, escondidos, se divertirem 
vendo a raiva dos faxineiros falando palavrões enquanto limpa-
vam a área uma vez mais. Como corriam rapidamente para os 
esconderijos previamente combinados, nunca eram pegos, em-
bora todos os porteiros e os seguranças soubessem quem eram 
os arruaceiros. E os vizinhos também, principalmente quando 
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os garotos corriam para cima e para baixo pelas escadas depois 
de grudarem chicletes ou pedaços de fita-crepe nas campai-
nhas dos apartamentos, fazendo-as tocar sem parar. 
No prédio onde o pai de Marcelo morava com a atual mu-
lher e Tiago, seu meio-irmão da mesma idade de Elisa, havia 
poucos apartamentos e uma pequena área de lazer, com pisci-
na, mas sem campo de futebol. E, mesmo que houvesse um, não 
adiantaria, porque a maioria das crianças não passava dos 6 anos. 
Da idade de Marcelo, só as gêmeas do andar de baixo, que ele 
depreciava por serem “arrumadinhas demais”, preocupadas com 
roupas, cabelos e maquiagem. Por isso, sua maior diversão nos 
fins de semana em que passava com o pai era implicar com Tiago, 
que considerava Marcelo seu ídolo e com quem dividia o quarto:
—Sai do computador, moleque safado, agora é minha 
vez de jogar!
— Peraí, Marcelo, tô terminando essa fase. Quer jogar a 
outra comigo? 
— Claro que não, seu idiota, isso é jogo de neném!
— Então deixa eu jogar o seu? 
— Tá maluco? Tu é muito burro pra jogar o que eu jogo! 
— Não sou burro, sua besta! Sou muito mais novo que 
você, mas se você me ensinar eu aprendo! — insistia Tiago.
— Aprende coisa nenhuma, tu é muito burro, nem quan-
do tu tiver a minha idade vai conseguir fazer o que eu faço! 
Agora sai, anda!
— Então deixa eu ficar aqui vendo você jogar! — Tiago 
não desistia de se aproximar do irmão.
— Tá bom, mas só se tu ficar de boca fechada, senão eu 
não consigo me concentrar!
Tiago se entusiasmava com o jogo do irmão, que se 
movia rapidamente pelos cenários, e não conseguia conter a 
curiosidade, queria entender um pouco mais das personagens 
e da história que estava sendo desenvolvida.
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— E aí, o que esse cara vai fazer com o outro agora?
Marcelo logo perdia a paciência:
— Eu não disse pra tu ficar calado? Agora sai do quarto, 
pentelho!
— O quarto é meu, sua besta, esqueceu?
— O quarto é teu coisa nenhuma, é o meu pai quem paga 
tudo nessa casa, tua mãe não trabalha!
— Seu pai é meu também, idiota! E você não mora aqui, 
então o quarto é mais meu do que seu!
Essa foi a gota-d’água: sempre que Tiago tocava esse pon-
to sensível, Marcelo se enfurecia e começava a chutá-lo, gritan-
do descontroladamente:
— Eu te odeio, moleque, quero mais é que tu morra! Um 
idiota como tu não devia nem ter nascido! — Marcelo empur-
rava o irmão, que caía no chão, se encolhendo de dor e cho-
rando baixinho.
Cenas como essa se repetiam com frequência quando os 
dois estavam juntos e terminavam mal para Marcelo, que não 
se continha e agredia fisicamente o irmão. Ainda não tinha 
conseguido digerir a grande mudança de sua vida: deixar de 
ser filho único aos 6 anos para, com um intervalo de apenas 
três meses, ter um irmão e uma irmã que moravam com pai 
e mãe na mesma casa. Havia momentos em que até gostava 
de brincar e de conversar com eles, mas, de repente, o ciúme 
tomava conta, ele sentia-se o mais prejudicado de todos, recla-
mava que os irmãos eram protegidos e mimados, afirmava que 
só ele levava bronca e ficava de castigo, acusava o pai e a mãe 
de terem deixado de gostar dele. E explodia de raiva.
Naquela época, havia momentos em que a raiva de Mar-
celo, na escola, detonava dentro dele: em sua turma, havia um 
“chefe”, ao qual todos os meninos obedeciam, que determina-
va quem participaria da brincadeira e quem ficaria de fora; os 
dois “ajudantes”, tão altos e fortes quanto o líder, aplicavam os 
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castigos a quem ousasse se rebelar contra as leis impostas, que 
variavam entre xingamentos e humilhações a tapas, chutes e 
socos. E nem adiantava reclamar com a professora, que consi-
derava tudo aquilo “natural” entre meninos de 7 anos e achava 
que eles deveriam aprender “a se virar sozinhos”. 
8, 9, 10 anos, e a história se repetia, Marcelo sempre excluí-
do do futebol na hora do intervalo por não saber jogar direito, 
apelidado de “perna de pau” — também por ser magro, com as 
pernas compridas e finas —, sem coragem para reagir e enfren-
tar os valentões, a raiva se acumulando dentro dele. Essa raiva 
ele descarregava nos irmãos pequenos, feliz por sentir que saía 
vitorioso das batalhas com eles, mesmo quando ficava de castigo.
Por fim, depois de muito tempo, incentivado pelo pai, criou 
coragem para começar a ter aulas de futebol, vencendo o medo 
de ser criticado pelos colegas. Resolveu se esforçar e, em poucos 
meses, melhorou tanto que o “chefe” da turma consentiu que ele 
fizesse parte do time. Assim que sentiu que havia conquistado 
seu lugar no grupo, foi à forra: passou a maltratar e a ridiculari-
zar os colegas excluídos. Passando de perseguido a perseguidor, 
esmerou-se como torturador, atacando os tímidos, inventando 
apelidos depreciativos para os diferentes da maioria, as queixas 
contra ele e o grupo se avolumando, as notas abaixando, os pais 
que mal se falavam sendo chamados para reuniões na escola por 
conta das observações dos professores no conselho de classe.
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— Estou achando melhor mudar o Marcelo de colégio, 
já virou “figurinha carimbada”, mesmo que esteja quieto aca-
ba sendo acusado quando acontece alguma coisa de errado — 
disse Heitor, em um dos raros telefonemas para a ex-mulher. 
— Mas o pior é que ele tem realmente se comportado 
muito mal, depois que se juntou a esse grupo de garotos que 
perturbam a ordem. Está correndo o risco de repetir o ano de 
novo e, também por isso, talvez seja melhor sair desse colégio. 
Meu medo é ele escolher outro grupo de bagunceiros na nova 
escola, já que agora ele está se sentindo poderoso — comple-
mentou Iracema, em uma das raras ocasiões em que concorda-
va com a opinião do ex-marido.
Heitor e Iracema acabaram decidindo mudar o filho de 
escola. No início, Marcelo ficou enfurecido: “Por que não fize-
ram isso antes, quando eu estava levando a pior? Logo agora 
que eu consegui me enturmar com a galera e estou até come-
çando a gostar da escola? Vou ter de começar tudo de novo!”. 
Mas nem seus protestos nem seus argumentos foram sufi-
cientes para convencer os pais a voltar atrás. E foi assim que 
ele passou a ser colega de turma de Luciana, escolhendo-a de 
imediato para ser alvo de ataques: “Nunca zoei pesado uma 
menina, deve ser muito divertido, vou experimentar!”, pensou, 
assim que a viu encolhida e adormecida, escondendo os quilos 
a mais sob um vestido preto e largo. 
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AtaquES 
torturantES
Luciana tinha acabado de sair da escola quando ouviu o som de mensa-
gem de texto em seu celular. Tirou-o rapidamente da bol-
sa, curiosa para ler o torpedo, pensando ser do garoto que 
havia conhecido em uma festa de família a que os pais ti-
nham-na obrigado a ir.
“Goooooooooorda!”
Foi um choque: nunca havia recebido esse tipo de men-
sagem. E de quem? “Particular”: era o que aparecia no visor. 
Sem pensar duas vezes, teclou, irritada: “Quem é você, idiota?”.
“Ha, ha!”, Marcelo riu, satisfeito. “Funcionou!” Mandou 
outra: “Odeio menina gorda e feia como tu!”.
Luciana ficou com os olhos cheios d’água, lendo a men-
sagem várias vezes, sem conseguir entender o que estava 
acontecendo. Um turbilhão de pensamentos e de sensações 
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desagradáveis a invadiu: a voz da mãe ecoando dentro da cabe-
ça, dizendo que ela estava gorda e criticando-a por não resistir 
à gula, a tristeza de se olhar no espelho e não gostar do que via, 
a boa intenção de reduzir as calorias sempre adiada para a se-
gunda-feira seguinte, a vergonha de ir à praia ou à piscina sem 
conseguir esconder as coxas grossas com celulite e a barriga 
enorme. “E agora? Se eu responder, é capaz desse cara escrever 
coisas ainda piores. Se eu não responder, talvez ele continue 
me provocando!”. Confusa e angustiada, continuou andando 
até o ponto do ônibus ainda pensando no que fazer. 
Marcelo estava impaciente, esperando pela reação de Lu-
ciana. Dez, quinze, vinte minutos, e nada. Resolveu continuar 
o ataque: “E aí, sua gorda, desistiu de reagir? Vai ficar mais pa-
rada do que um saco de batatas?”. 
Sentada na janela do ônibus, Luciana não conseguiu con-
ter as lágrimas, que rolaram abundantemente pelo rosto, mo-
lhando a blusa e pingando no celular. Ficou paralisada, lendo 
e relendo a mensagem cruel, a tristeza e a angústia apertando-
-lhe o peito, a certeza de que o garoto da festa jamais ligaria 
para ela, por também tê-la achado gorda e feia. 
“Será que algum garoto vai se atrever a me namorar, com 
esse corpo horrorosoque eu tenho?”, pensou, ainda chorando. 
Do fundo da tristeza, foi crescendo a revolta contra esse des-
conhecido asqueroso que teclava verdades tão horríveis a seu 
respeito: “Quem será?”, “Como conseguiu o número do meu 
celular?”, “Será que é da minha escola?” ,“Será que é um dos três 
garotos novos da turma?”, “Ou uma menina que resolveu impli-
car comigo?”. A revolta misturou-se à raiva; o medo de reagir e 
piorar a situação brigava com a vontade de mandar uma men-
sagem bem desaforada. Por fim, digitou: “Vai pra !”.
Marcelo deu um risinho de satisfação ao perceber que 
seu alvo estava reagindo exatamente como ele queria: “Fisgou 
a isca, que menina burra!”. Pensou um pouco para dar uma 
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resposta que a exasperasse ainda mais: “Não posso, porque 
você já está lá ocupando todo o espaço, sua balofa!”.
Luciana tinha acabado de entrar em casa quando recebeu 
essa mensagem. Largou a mochila no sofá da sala, trancou-se 
no banheiro, o choro incontido ao ler e reler as palavras que a 
machucavam profundamente, arrependida de ter caído na ar-
madilha do agressor que, provavelmente, estaria se divertindo 
com suas respostas desaforadas. “Sou uma idiota mesmo!”, dis-
se olhando-se no espelho, socando a testa, o rosto vermelho, 
os olhos inchados de chorar. Não queria que Dete, a diarista, 
a visse assim, não queria contar para os pais, mas não sabia o 
que fazer para colocar um ponto final nessas mensagens tor-
turantes. Ainda no banheiro, ligou para Paulo pedindo ajuda.
— Lu, lembra que eu deixei de falar com o meu melhor 
amigo porque ele se juntou a um grupinho de idiotas que re-
solveu me zoar? Eu fingia que não era comigo, mas fiquei mui-
to perturbado com aquilo. Lembra que eu acabei me afastando 
dele, porque ele nunca me pediu desculpas pelo que fez? No 
seu caso, o pior é que você nem tem ideia de quem seja! Mas, 
em todo caso, acho melhor você parar de responder as mensa-
gens e deixar o idiota falando sozinho. O cara vai acabar desis-
tindo de você e escolhendo outra vítima.
Depois de falar com Paulo, Luciana pensou em ligar para 
Bruna, mas Dete bateu na porta do banheiro.
— Oi, Luciana, você está no banheiro faz tanto tempo 
que a comida está esfriando. Você está passando mal? 
— Não, Dete, está tudo sob controle! Daqui a pouco eu 
almoço.
Lavou novamente o rosto, agora menos avermelhado, mas 
com a ponta do nariz ainda mostrando o choro incontido. Ligou 
para Bruna, que havia sido atacada por duas meninas da turma 
que a invejavam por ser a queridinha dos professores. As meni-
nas tinham sido cruéis, chamavam-na de baleia, cochichavam e 
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riam quando ela passava pelos corredores, espalharam boatos 
para que Bruna ficasse mal perante as amigas e os professores.
— Lulu, querida, a gente tem de ser superior a quem nos 
ataca! Silêncio total, combinado? Mesmo que você fique se 
roendo de vontade de escrever mensagens desaforadas, resista 
à tentação! Claro, eu sei que falar é fácil, na prática é mais com-
plicado. Quando aquelas imbecis começaram a me chamar de 
baleia e a fazer fofocas a meu respeito, eu ligava pra você cho-
rando, totalmente derrubada, sem saber como reagir. Foi você 
quem me alertou para o lance da inveja! Eu não tinha sacado 
que elas queriam ser boas alunas como eu e não conseguiam, 
então tentaram me destruir!
— E aí você começou a se achar gostosa mesmo gordi-
nha! — Luciana começou a rir lembrando como Bruna conse-
guiu fazer as pazes com o espelho. 
— Pronto, agora você já sabe o caminho! Vai ver o cari-
nha tá a fim de você e não quer admitir isso!
— Ah, sei lá! Acho que não tem carinha algum de olho 
em mim... Bem que eu queria ser como você, comer sem culpa 
e ainda me achar uma deusa!
— Ih, Lulu, para com isso! Quando você não se esconde 
nessas roupas que você cismou de usar ultimamente, você fica 
linda! E, por falar nisso, o carinha da festa fez contato?
— Nada! Esperei um pouco, mandei uma mensagem 
mas ele nem respondeu! Deve ter conhecido uma menina ma-
gra e resolveu ficar com ela...
— Deixa de ser boba, Lulu! Vai pintar outro mais interes-
sante! A fila anda!
Luciana sentiu-se melhor depois de falar com os amigos, 
mas ainda estava um pouco tensa, por não saber o que viria 
em seguida. Foi para a cozinha e comeu dois pratos cheios de 
macarrão com molho de tomate, carne moída, arroz, feijão e 
cenoura refogada. De sobremesa, duas porções de salada de 
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frutas. A mãe compra sorvete só nos finais de semana para aju-
dá-la a controlar o peso. “Ainda bem que ela está no trabalho, 
se visse o tanto que eu comi no almoço, era bronca na certa!”, 
pensou, enquanto saboreava a salada de frutas, lamentando a 
falta do sorvete de creme para fazer a combinação perfeita. 
— Algum problema, Luciana? Está com cara de choro, 
posso ajudar em alguma coisa? — perguntou Dete, passando 
pela cozinha com uma pilha de roupas para passar.
— Nada não, acho que vou conseguir resolver sozinha. 
Mas você também está com cara de preocupada. Aconteceu 
alguma coisa com o Maicon?
— Ai, um problemão... Vou até pedir à sua mãe para eu 
chegar mais tarde na sexta-feira, me chamaram para conversar 
na escola, descobri que ele anda matando aula para ficar horas 
naquela maldita lan house que abriram lá perto de casa.
— Ih, um novo membro para o clube dos zumbis?
— Nem brinca, Luciana! O pior é que só aí eu entendi 
por que andava sumindo dinheiro da minha bolsa. Pensei que 
eu estivesse errando nas contas... É muito ruim pensar que 
meu próprio filho não reconhece o sacrifício que eu faço para 
criá-lo e ainda por cima tem coragem de roubar da própria 
mãe! — Dete começou a chorar, visivelmente perturbada.
— Ai, Dete, conversa com ele, isso vai se resolver! — Lu-
ciana a abraçou com carinho.
— É... Não é fácil criar filho sem pai... Mas Deus há de me 
dar força para resolver mais essa... Desculpe o desabafo, agora 
vou cuidar da roupa e você também tem mais o que fazer...
Enquanto almoçava em sua casa, Marcelo maquinava os 
passos seguintes para perturbar Luciana. Resolveu dar um tem-
po nas mensagens pelo celular e entrar no site de relacionamen-
tos para escrever, usando um perfil fake, uma mensagem no 
perfil de Luciana.
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“Teus amigos também te acham uma gorda horrorosa!”
“Só queria estar lá na casa da baleia para ver a cara dela 
lendo essa mensagem! É maneiro zoar menina! Vou cercar essa 
garota por todos os lados, até ela ficar completamente pirada!”, 
Marcelo ria sozinho, imaginando a reação de sua vítima.
Quando Luciana terminou de escovar os dentes, foi para 
o quarto e ligou o computador, ansiosa para entrar na rede e 
estar com os amigos. Mas, assim que leu as vinte primeiras 
mensagens, deparou-se com a de Marcelo. Choque: o coração 
acelerado, a boca seca, o suor frio nas mãos, a angústia lhe 
contraindo o estômago cheio.
“Aqui também? Quem está passando meus dados para 
esse terrorista? O ataque está vindo de todos os lados! Se não 
adianta responder nem ignorar, o que me resta fazer?”
Encaminhou a mensagem para Bruna e Paulo. Ambos 
tornaram a aconselhá-la a não responder, que assim o agressor 
desistiria.
— E se ele não desistir, o que eu faço? 
— Nesse caso, talvez seja melhor falar com seus pais...
— Só em último caso, Bruna! Aposto que eles iriam su-
gerir que eu desse um tempo com o celular e com o computa-
dor! E você sabe muito bem que eu não conseguiria viver sem 
estar na rede!
— Você não tem mesmo a mínima ideia de quem está 
fazendo esses ataques?
— Não! Mas mesmo que eu descobrisse, de que adianta-
ria? Você acha que eu deveria encher o cara de porrada?
— É amiga, tá complicado, mas a gente vai descobrir um 
jeito de resolver essa parada!
Comonessa noite Leandro chegaria muito tarde do tra-
balho, Alzira e Luciana jantaram sozinhas.
— Estou achando você meio abatida, filha. Aconteceu al-
guma coisa na escola?
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— Não, mãe, nada. Acho que estou ficando gripada, só isso.
— Sabe, a Dete vai chegar mais tarde na sexta-feira. Pro-
blemas com o Maicon.
— Eu sei, ela me falou.
— Computador é muito bom, mas quando usado em ex-
cesso dá problemas...
— Ai, mãe, estou cansada desse papo, ainda mais hoje! 
Boa noite, vou dormir mais cedo...
— Até parece... Nem doente você desgruda da telinha!
Novas mensagens dos amigos e mais uma mensagem 
anônima: “Não sente pena de seus pais gastarem tanto dinhei-
ro no mercado pra te alimentar, baleia? Aposto que você come 
por três!”.
Injuriada, Luciana quase socou o monitor. “Desgraçado! 
E desgraçado também quem passou meus dados para esse in-
feliz! E se for alguém que eu conheço? Um amigo traidor? Uma 
amiga invejosa? O carinha da festa?”
Aviso de mensagem de texto no celular: “Comeu muito 
no jantar, gorda? Cuidado, barriga cheia dá pesadelo!”.
Uma hora depois, o aparelho toca: “Particular” no visor.
— Alô?!
Silêncio.
— Alô?!
Silêncio.
— Cara, qual é? Vai ficar mudo? Perdeu a língua?
Silêncio.
— Você é o idiota que está me torturando?
— Hi, hi, hi!
Luciana terminou a ligação espumando de raiva, deses-
perada por, mais uma vez, ter caído na armadilha do agressor. 
Exausta, foi para a cama, porém custou a dormir: virava para 
um lado e para o outro, com uma pergunta martelando a cabe-
ça: “O que eu fiz para merecer um inimigo assim?”.
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36
ComEmoranDo 
a vitoria
Na manhã seguinte à primeira “sessão de tortura”, Marcelo chegou à sala 
de aula antes de Luciana. Ficou satisfeito ao vê-la entrar 
abatida, com olheiras, revelando a noite maldormida. Sen-
tiu-se poderoso com o estrago que tinha causado: “Nunca 
pensei que fosse tão fácil desmontar uma menina!”.
Disfarçando o olhar com os longos cabelos que lhe enco-
briam parte do rosto, Luciana tentava descobrir em seus colegas 
algum sinal que revelasse o inimigo oculto. Como não gosta-
va da escola e estava quase sempre sonolenta, interagia pouco 
com os colegas, com exceção de algumas meninas com quem 
fazia trabalhos de grupo. Subitamente, lembrou-se de ter dado 
o número do celular a uma menina com quem faria um des-
ses trabalhos pela primeira vez. “Será que meu inimigo ouviu 
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e colocou na memória do celular dele?” Mal conseguiu prestar 
atenção às aulas. Além do sono, a preocupação de descobrir o 
“homem-bomba” que queria detoná-la. “Acho que é assim que 
as vítimas de um ataque terrorista se sentem: não sabem quem 
é o inimigo, nem quando ocorrerá o próximo ataque nem de 
onde ele partirá”. Insegurança total. E medo, muito medo. 
Por sua vez, Marcelo ainda estava se adaptando à nova 
escola. Sem muita facilidade de fazer amigos, interagia pouco 
com os colegas, com exceção dos dois meninos novos que en-
traram junto com ele e que também se sentavam no fundo da 
sala. Um deles, mais comunicativo, disse que estava pensando 
em pegar os contatos de todos da turma para enviar alguns 
links interessantes de um site de vídeos. “Ótimo! Assim vou 
pegar com ele o da baleia para bombardeá-la por aí também!”, 
animou-se Marcelo, pegando o celular na mochila para, dis-
cretamente, digitar a primeira mensagem do dia: “Com essa 
roupa preta, você fica com cara de bruxa gorda!”.
Ouvindo o som de mensagem de texto, Luciana abriu 
o celular, apreensiva: “Cara, se sabe que eu estou com roupa 
preta, está me vendo, se está me vendo, está aqui na sala, é 
a primeira pista. Quem será?”. Virou-se para olhar em volta, 
mas Marcelo, atento à reação de sua vítima, disfarçou fingindo 
prestar total atenção à aula para não revelar que estava rindo 
por dentro, comemorando mais uma vitória no jogo de perse-
guição. Satisfação igual só quando enrolava Tiago e Elisa nas 
brincadeiras, confundindo-os para depois acusá-los de esta-
rem roubando nos jogos e desrespeitando as regras, o que os 
deixava perturbados e enraivecidos. Marcelo achava tão diver-
tido atormentar os irmãos e implicar com eles que nem se im-
portava com as broncas que levava quando se queixavam dele. 
Assim que entrou em casa, de volta da escola, Luciana ligou 
o computador para trocar mensagens com Paulo, desejando que 
ele lhe desse outras pistas para desmascarar o “menino-bomba”.
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“Lu, vou falar com você em seguida. Minha mãe hoje veio 
almoçar em casa e eu preciso resolver umas paradas com ela!”
Mãe e filho viviam empacados no jogo de gato e rato: 
quanto mais Deise insistia com Paulo para estudar e terminar 
os trabalhos da escola, mais ele resistia; quando Deise tirava-
-lhe o computador e a guitarra para que ele cumprisse as tare-
fas, Paulo ficava deitado na cama durante horas, olhando para 
o teto, aparentemente sem se importar com o castigo; Deise 
se desesperava achando que nada adiantava para estimular o 
filho a estudar, nem que fosse para tirar as notas mínimas para 
evitar nova reprovação. A guitarra e o computador retorna-
vam, e Deise pedia socorro ao marido para que chamasse o 
filho à ordem. Entre uma viagem e outra, Arnaldo conversava 
com Paulo sobre a importância dos estudos, mas o rapaz argu-
mentava que só queria estudar música e não percebia a utilida-
de que as matérias da escola teriam em sua vida. 
E, assim, Deise terminava presa no circuito “reclama, 
mas faz”. Desgastada com a resistência do filho e preocupada 
com as reclamações dos professores, acabava estudando com 
ele, fazendo trabalhos, arrumando a mochila para supervisio-
nar o material, certificando-se das tarefas a serem feitas e da 
matéria que precisava ser estudada para as provas. Além dos 
argumentos do marido que não desistia de insistir que ela pre-
cisava “desmamar” Paulo, aturava as críticas da filha, respon-
sável e muito exigente consigo mesma, que a acusava de “dar 
mole” para Paulo, tratando-o como um menino mimado que 
nunca iria crescer e tornar-se alguém na vida. 
Verdade seja dita: Paulo adorava essa mordomia. Podia 
passar horas praticando com a guitarra, sonhando com sua 
banda de rock, que o tornaria famoso e traria rios de dinheiro... 
Depois de mais uma conversa infrutífera com o filho, 
Deise voltou ao trabalho, e Paulo escreveu uma mensagem 
para a amiga.
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“E aí, Lu? Finalmente, consegui convencer a mãe a não 
me tirar o computador, e agora podemos falar com calma. O 
idiota parou de perturbar?”
Luciana relatou em detalhes os acontecimentos das últi-
mas 24 horas. 
“Cara, agora é trabalho de detetive! Tente ir por exclusão: 
descobrindo quem não é, sobra quem é, sacou?”
“E quando eu descobrir, o que faço?”
“Aí é outra parada: a estratégia depende de quem é o ini-
migo. Se o cara for muito forte, não dá pra meter porrada, né? 
Vai ter de destruir de outro jeito. E se for uma menina...”
“Não sei, não, mas acho que é menino...”
“No momento, não dá para se prender a uma única hi-
pótese, Lu! Meninas também gostam de zoar outras meninas. 
Cabeça aberta, fique ligada!”
Em seguida, uma surpresa que deixou Luciana curiosís-
sima:
“E aí, querida? Estou morrendo de saudades de você! 
Esse negócio do seu pai trabalhar até em feriados atrapalhou 
nossa Semana Santa e eu agora não sei quando poderei ir ao 
Rio ver vocês!”
“Vó, que novidade é essa? Você no computador?!”
“Pois é, quis que você fosse a primeira a saber! Comecei 
a ter aulas com uma turma de maiores de 60 e estou aprenden-
do a navegar pela internet! Agora poderemos conversar pelo 
computador!”
“Cara, que incrível! Está gostando?”
“Estou adorando! Acho que estoucorrendo o risco de 
ficar mais viciada do que você!”
“Vó, você é o maior barato! Se meus pais tivessem a ca-
beça aberta assim como você... Mas agora não vou poder ficar 
conversando porque estou morrendo de fome e tenho de ligar 
para uma amiga minha. Beijos, tchau!”
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Antes de falar com Bruna, Luciana foi almoçar. Dete 
havia preparado panquecas de camarão com molho de to-
mate, delícia total. Comeu seis e ficou furiosa consigo 
mesma ao se lembrar da mensagem em que seu inimigo a 
acusava de aumentar a despesa do supermercado. Camarão 
custa caro!
— Lulu, pensei demais em você hoje! Teve uma palestra 
sobre bullying lá na escola! — disse Bruna à amiga, mais tarde, 
ao telefone.
— Bu o que, Bruna? Que raio de palavra é essa?
— B-u-l-l-y-i-n-g! A psicóloga que deu a palestra expli-
cou que não conseguiram encontrar uma palavra em portu-
guês que traduza corretamente o conceito. 
— E o que é isso, Bruna?
— É o que o carinha está fazendo com você! É o que aque-
las idiotas fizeram comigo implicando sem parar até me dei-
xarem maluca!
Bruna resumiu para Luciana o que ouvira na palestra: 
bullying é um comportamento de agressões físicas ou verbais 
feitas de modo repetitivo com o objetivo de ferir moral e até 
fisicamente a pessoa escolhida como alvo; e o cyberbullying usa 
a tecnologia para bombardear a vítima 24 horas por dia, sete 
dias por semana, desespero total!
— E o que a sua escola vai fazer com isso?
— Estão pensando em começar uma campanha antibullying 
para conscientizar os alunos de que é errado se divertir fazendo 
os outros sofrerem! 
— Na minha escola não se fala sobre isso...
— Agora, Lulu, é o seguinte: das cinquenta mensagens que 
você recebe por dia, aposto que só se lembra das que o inimigo 
manda, verdade?
— Pô, Bruna, pior que é...
— E por que você está dando tanta importância a isso? 
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Parece que a mensagem do carinha tem efeitos especiais, bri-
lha, dança na tela! 
— Ora, por que será? É óbvio que esse idiota conseguiu 
atingir meu ponto fraco, né? Estou com dez quilos a mais, me 
acho um lixo quando me olho no espelho, prometo a mim 
mesma que vou emagrecer; depois de duas semanas me sacri-
ficando, subo na balança e vejo que perdi só meio quilo: aí eu 
desanimo, caio de boca na comida e engordo mais ainda...
— Entendi. Aí olha a mensagem no celular xingando 
você de gorda e dá o maior desespero... E o carinha se sente 
poderoso, controlando tudo!
— Pois é, ele não me dá descanso, nem consigo fugir de 
mim mesma, evitando o espelho, me escondendo nas roupas 
largas...
— Ah, estou me lembrando de outro detalhe da pales-
tra e que tem tudo a ver com o carinha que está te atacando: 
a psicóloga disse que a pessoa que pratica bullying é insegura 
e pouco criativa. Já reparou que tudo o que ele escreve é em 
função do seu peso?
— É mesmo... Eu nem tinha pensado nisso...
— Então, pense! E deixe o carinha falando sozinho até se 
cansar e escolher outro alvo. Se você continuar respondendo 
às mensagens, ele vai ficar feliz, mas aposto que vai continuar 
repetindo as mesmas besteiras! 
— Só não sei o que eu fiz para ele me escolher entre tan-
tas pessoas...
— Lulu, o carinha nem precisa ser muito inteligente para 
perceber que as meninas vivem em guerra com a balança! E, 
além disso, você fica sozinha, sem um grupo para te defender, 
aí vira alvo fácil, não acha? 
— É, pode ser... 
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OS ataquES 
continuam...
Duas semanas depois, Luciana, apesar de ter resistido à tentação de en-
viar outras mensagens desaforadas a seu agressor, conti-
nuou sendo torpedeada via celular e computador: “Bruna 
tem razão, o carinha é um imbecil, só me chama de gorda! 
Por que eu continuo dando a ele tanto poder para me ma-
chucar? Além de gorda, sou uma idiota por estar sofrendo 
desse jeito! Esse desgraçado contaminou minha rede! O que 
antes para mim era só prazer agora é sofrimento!”.
Abatida com os ataques e atormentada por uma enorme 
raiva de si mesma, Luciana estava cada vez mais isolada. Não 
conseguia nem mais falar sobre o problema com Bruna e Pau-
lo, que também não sabiam o que mais ela poderia fazer a não 
ser falar com os pais e com a orientadora da escola. “Se ignorar 
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as mensagens não está produzindo o efeito desejado, se não 
descobriu quem a ataca e não consegue deixar de se incomo-
dar com isso, que alternativa resta a não ser pedir ajuda aos 
adultos?”, argumentavam os amigos. 
Sentimentos contraditórios se chocavam na cabeça de 
Luciana: “Isso também não vai adiantar! Na escola, vão dizer 
pra eu não botar pilha nesse idiota, meus pais já estão fazendo 
um drama enorme com as dores de cabeça e de estômago que 
eu ando sentindo e, com certeza, vão pensar que me tirar do 
computador vai resolver todos os problemas! E o pior é que 
eles vão cismar de conversar com a orientadora, ela vai falar 
com a turma, todo mundo vai ficar sabendo que o carinha está 
me zoando e que eu estou sofrendo com isso, muitos vão dizer 
que são zoados e não estão nem aí pra isso, vão ficar rindo de 
mim por transformar um probleminha à toa no maior proble-
mão, eu vou ficar morrendo de vergonha, me sentindo uma 
idiota completa e aí vai ser o fim! Prefiro morrer!...”.
Enquanto isso, Marcelo tratava de ampliar os ataques, 
que passaram a lhe dar enorme prazer. Adorava ver Luciana 
toda encolhida, a cabeça baixa, o rosto abatido, sem sequer ir 
para o pátio na hora do intervalo. Tornou-se “sócio” de Leo-
nardo, que acabou lhe revelando o que pretendia fazer com a 
lista de contatos da turma: 
— Cara, o lance é o seguinte: eu consegui convencer o 
Gil a provocar uma briga com o Henry no pátio e imobilizá-lo 
com uma “gravata”. Enquanto isso, você filma a cena no meu 
celular. Depois a gente coloca na rede e encaminha para todo 
mundo, só pra gozar com a cara do moleque! 
— Irado! O veadinho vai ter um ataque! É bom pra ele 
deixar de ser nerd gay, ridículo, combinando a cor da bermuda 
com a camisa, o cabelinho todo penteadinho, sentadinho na 
primeira fila, puxando o saco dos professores. Ele merece!
— Viu o que ele fez ontem quando a turma fez “Uh, uh!”?
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— Não! Acho que foi na hora em que eu saí da sala para 
ir ao banheiro...
— O gayzinho virou pra trás e falou com a galera: “Ih, 
gente, qual o problema? Só porque eu sei as respostas certas 
e os professores gostam de mim?” — Leonardo afinou a voz e 
exagerou nos trejeitos para imitar o colega. 
— Não acredito! Ele fez isso? Esse moleque merece mor-
rer! Outro dia, entrou cheio de marra no carro da mãe, impor-
tado que nem ela!
— Ouvi falar que a mãe dele é inglesa. Mas não precisava 
ficar metido a besta falando inglês com a professora! Já não 
basta tirar dez em todas as provas?
— É, a mãe é inglesa e o pai é brasileiro. Parece que, em 
casa, ele fala inglês com a mãe e português com o pai — acres-
centou Marcelo. 
— Como é que você descobriu isso?
— Pô, cara, eu gosto de ouvir a conversa dos outros, as-
sim fico sabendo das coisas!
Porém, mesmo considerando-se “sócio” de Leonardo em 
alguns ataques, Marcelo nada lhe revelou sobre Luciana. Que-
ria mantê-la como vítima particular: ser seu torturador secreto 
dava-lhe especial prazer. No início, ficou frustrado quando ela 
parou de responder com mensagens desaforadas. Depois, che-
gou à conclusão de que isso era desnecessário: apenas observar 
as mudanças de comportamento já mostrava a dimensão do 
estrago de seus ataques incessantes. 
Luciana olhava desconfiada para todos os colegas, ten-
tando adivinhar quem seria seu inimigo oculto e o que ele fa-
ria em seguida. Quando um grupinho achava graça de alguma 
coisa, ela logo olhava, aborrecida, possivelmente imaginando 
que estariam rindo dela; tornou-se ainda mais calada do quede costume, sem sorrir um momento sequer, o rosto tenso, a 
musculatura contraída. Chegou a pedir licença algumas vezes 
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para sair da sala e buscar um remédio na secretaria, queixan-
do-se de dor de cabeça.
Quando Marcelo começou a trocar ideias com Leonar-
do, que também era recém-chegado à escola, descobriu que 
ele havia sido expulso da escola anterior por ter se metido em 
muitas confusões: a pior foi ter agredido um professor na saí-
da da escola, inconformado por ter recebido uma nota menor 
do que a da colega cujo trabalho ele havia copiado. Foi inútil 
o pai dele ter discutido com a diretora, afirmando que o filho 
ficara enraivecido por ter sido realmente injustiçado: embora 
Leonardo tivesse um rendimento razoável, não houve possi-
bilidade de renovar a matrícula, e ele foi convidado a se retirar 
por conta dos problemas de comportamento.
Com ossos largos, queixo quadrado, cabelos quase rapa-
dos e músculos bem definidos para seus 13 anos, Leonardo 
intimidava muita gente, provocava brigas, desrespeitava a au-
toridade dos professores e humilhava os colegas que percebia 
serem mais fracos que ele. Com inteligência aguçada e bem 
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articulado, não precisava estudar muito para tirar notas razoá-
veis e passar de ano. Ainda estava “sondando o terreno” na 
nova escola, planejando estratégias mais discretas, porém alta-
mente eficazes para realizar seus ataques. 
Não queria correr o risco de ser expulso outra vez: seu 
pai teve dificuldade em convencer a diretora a aceitá-lo como 
aluno e havia recomendado vivamente ao filho que evitasse se 
meter em confusões, pelo menos nos primeiros meses, para 
não causar má impressão. Em sala de aula, Leonardo deixou 
de desacatar os professores, mas questionava os ensinamentos, 
interrompia a aula com frequência para fazer perguntas pro-
positalmente complicadas e apresentar argumentos contrários 
ao que estava sendo dito. Enquanto isso, seus olhos de águia 
estavam atentos para selecionar uma vítima.
Para despistar os colegas, Leonardo enviou alguns ví-
deos sobre temas variados, a partir do endereço eletrônico que 
constava da lista da turma. Mas, quando arquitetou a cena da 
briga em que Henry seria atacado por Gil e filmado por Mar-
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celo, espertamente ficou de fora argumentando que atuaria 
como roteirista, diretor e editor da cena, pensando: “Minha 
cara não pode aparecer na tela: se der problema, ninguém po-
derá provar que eu tenho alguma coisa a ver com isso!”. 
Elaborou maquiavelicamente o roteiro: no pátio, na hora 
do intervalo, Gil se aproximaria de Henry e lhe daria uma 
cotovelada. Henry certamente reclamaria, e seria provocati-
vamente chamado de “veadinho escroto”: Marcelo já estaria 
filmando de um ângulo em que o rosto de Gil não aparecesse 
de frente. Este imobilizaria Henry para colocá-lo em posição 
humilhante. 
— E pronto! Depois é só colocar legendas, e o filme vai 
ficar maneiro! — explicou Leonardo, reunido com Gil e Mar-
celo durante o intervalo. 
— Cara, genial! Vamos destroçar esse moleque! — Mar-
celo estava entusiasmado. 
— Pô, Marcelo, capricha na filmagem, minha cara não 
pode aparecer, porque se der problema não quero me ferrar! 
— Gil estava apreensivo.
— Ô, cara, esqueceu que eu vou editar essa parada? O 
gayzinho nerd é quem vai ser o astro da superprodução! — 
Leonardo falou rindo, procurando tranquilizar o colega.
E assim foi feito: tudo aconteceu como o planejado. As-
sim que Leonardo fez sinal para Marcelo parar de filmar, Gil 
liberou Henry, que saiu vermelho de raiva, enxugando as lágri-
mas, direto para a sala de aula. Os três ficaram às gargalhadas, 
rememorando cada detalhe da cena, comemorando o sucesso 
da primeira fase da empreitada. 
Quando começou a aula de Matemática, Henry olhava 
fixamente para o professor, o corpo tenso, como se estivesse 
segurando o choro. Nem ousou olhar para trás e encarar seus 
algozes, que, ainda agitados, conversavam e riam alto, a ponto 
de o professor ter de pedir silêncio.
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— Hi, hi, hi!
A risada ecoou nos ouvidos de Luciana. “Epa, é a risada 
do carinha quando ele me ligou e não disse nada! Quem será?” 
Virou-se rapidamente para ver se descobria quem era, mas Mar-
celo percebeu e tratou de ficar sério, para não ser descoberto. 
Ao entrar em casa, Leonardo encontrou o irmão no com-
putador.
— Aí, Pedro, me ajuda a editar uma parada que um cari-
nha filmou no meu celular!
Para Leonardo, seu irmão mais velho era um ídolo: com 
ele aprendeu a mexer no computador, a visitar sites pornôs, 
entrar em salas de conversa, falar de sexo e de meninas e dar 
golpes de artes marciais, já que Pedro, com 17 anos, está bem 
mais adiantado do que ele. Apaixonado por fotografia e cine-
ma, Pedro já havia ensinado o irmão a fazer edição de vídeos 
e a colocar legendas, mas resolveu se divertir ajudando-o a 
“montar a bomba para detonar o gayzinho inglês”. Editaram 
trechos da filmagem para compor uma história em que Henry 
parecia estar sendo dominado e abusado por Gil; nas legendas, 
fizeram várias referências depreciativas ao menino e ainda in-
seriram animações pornográficas. 
— Cara, ficou genial! — Leonardo estava ansioso para 
enviar o link para Marcelo e Gil, sugerindo como título “To-
mou e gostou!”. Queria saber a opinião deles antes de enviar 
para toda a lista. 
Marcelo e Gil aprovaram a montagem sem restrições e 
trocaram mensagens entusiasmadas, mal podendo esperar 
pelo dia seguinte, para ver a cara de Henry e ouvir os comen-
tários dos colegas. Cuidadosamente, Leonardo, orientado pelo 
irmão, criou um novo endereço eletrônico, para enviar o link 
aos colegas sem risco de ser facilmente identificado. 
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No dia seguinte, zum-zum-zum na sala, todos curiosos 
para saber quem havia sido o autor do vídeo. Henry não estava 
presente. Porém, logo antes do intervalo, a coordenadora en-
trou na sala chamando Marcelo e Gil para uma reunião com 
a diretora. 
Os dois saíram cabisbaixos, cochichando:
— Por que só a gente? E o Leonardo, vai ficar fora dessa? 
— perguntou Marcelo.
— Cara, sacou? Nessa de ser o diretor, o espertinho tirou 
o corpo fora e deixou a gente no meio do tiroteio!
— Então a gente tem de entregar ele!
— Com que provas? Só com a nossa palavra? Quem vai 
acreditar? — Gil estava assustado e arrependido de ter caído 
na armadilha de Leonardo. 
Terry, a mãe de Henry, havia enviado o link à diretora 
assim que o filho, arrasado, mostrara-lhe o vídeo. De manhã 
cedo, Celso, o pai, ligou para marcar uma reunião de emergên-
cia devido à gravidade do caso e exigir providências rigorosas 
para punir os culpados. Rosa, a diretora, ficou chocada: era 
o primeiro episódio desse tipo que presenciava na escola nos 
mais de vinte anos em que trabalhava lá. 
— E agora quero saber o que levou vocês dois a cometer 
um erro tão grave, difamando e humilhando o colega! — Per-
guntou Celso, o rosto contraído de raiva.
Gil permaneceu calado, olhando para o chão, as mãos 
geladas, balbuciando desculpas por ter achado que era apenas 
uma brincadeira.
— Como é que você pode ter pensado que era apenas 
uma brincadeira um vídeo tão ofensivo, que pode ser acessado 
por internautas do mundo inteiro? — Terry olhou firme para 
Gil, as veias saltando do pescoço, os olhos azuis arregalados de 
indignação, a voz esganiçada, pronunciando as palavras com 
sotaque carregado. 
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— Foi a primeira vez que eu participei de um negócio 
desses, não pensei que fosse tão ruim, peço desculpas a todos 
vocês! — Os olhos de Gil estavam marejados, os joelhos ba-
tiam um no outro, de tão nervoso que estava, só de pensar na 
reaçãoda mãe quando fosse comunicada. 
Marcelo também estava tenso, a ponta do pé esquerdo 
batendo repetidamente no chão, mordendo a unha do dedo 
mindinho na tentativa de articular os pensamentos para me-
lhor se defender. 
— Não fomos nós que tivemos a ideia, foi o Leonardo!
Henry logo reagiu:
— Mas foi você quem filmou quando o Gil me provocou 
e me imobilizou, Marcelo!
— Como assim? A ideia foi do Leonardo e só vocês dois 
foram vistos? E quem fez a montagem, as legendas e a anima-
ção? Quem colocou na rede? — inquiriu Rosa.
— O Leonardo! — Gil e Marcelo responderam em unís-
sono. 
— Bem, mesmo que ele tenha tido toda essa participação 
que vocês estão dizendo, isso não isenta vocês dois da respon-
sabilidade pelo que aconteceu! — disse Rosa e, pelo interfone, 
solicitou à orientadora que chamasse Leonardo. 
Leonardo saiu da sala protestando, argumentando que 
não havia provas contra ele, apenas um complô para incrimi-
ná-lo, que os dois meninos o culpavam apenas para diluir a 
própria responsabilidade. Repetiu brilhantemente a mesma 
argumentação diante de Rosa, deixando Marcelo e Gil boquia-
bertos. A pedido de Celso e Terry, foi marcada para a manhã 
seguinte uma reunião com os responsáveis pelos três, que tam-
bém estariam presentes e não poderiam retornar à sala de aula 
até que o problema fosse devidamente solucionado. Ficou de-
cidido também que o vídeo deveria ser retirado do site naquele 
mesmo dia. 
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...E aS famiLiaS 
Sao chamaDaS
— Ih, cara, sujou? Então vamos logo tirar esse negócio do ar! — Pedro foi 
o primeiro a saber do ocorrido, ao ver o irmão chegar agitado. 
— Foi o que a diretora exigiu, mas ela gravou o vídeo no 
computador e nós também, então nosso trabalho não vai de-
saparecer assim... E eu afirmei na moral que não tinha nada 
a ver com isso!
— Mas, cara, é a tua palavra contra a daqueles dois, ca-
pricha na defesa! E o pai também vai te dar apoio, fica frio! 
Mas agora deixa eu te contar o que aconteceu ontem na festa 
de aniversário da Bibi!
Pedro contou ao irmão que se aproximou de uma menina 
de quem ele estava a fim dando-lhe uma mordida no ombro. 
— E aí, ela te deu um tapa na cara? — Leonardo adorava 
ouvir as aventuras do irmão.
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— Que nada! Ela fingiu que tinha ficado ofendida, mas 
até gostou. Aí a gente ficou de pegação até o final da festa!
— Aí, lembrei daquela outra menina que você pegou de-
pois de puxar os cabelos dela numa boate! Ela xingou você, 
mas também acabou gostando, né?
Pedro soltou uma gargalhada:
— Acho muito maneiro ser o homem das cavernas! 
Ivan, pai de Leonardo e Pedro, chegou na hora do jantar, 
mais cedo que a mulher. Envolvida em uma reunião de traba-
lho com a equipe, ela não tinha horário para voltar. 
— E aí, filhão, tudo certo?
— Mais ou menos, pai — respondeu Leonardo, esten-
dendo o papel em que a diretora solicitava a presença dos res-
ponsáveis na manhã seguinte e contando em detalhes tudo o 
que havia acontecido.
— E, pai, vamos combinar de deixar a mãe fora dessa, 
certo? Senão ela vai ficar preocupada e vai me encher o saco...
— Combinado! Gostei de saber que você construiu um 
raciocínio correto e tirou o corpo fora para não ser incrimina-
do! — Ivan ficou orgulhoso com a esperteza do filho. — Não 
há provas de sua participação: essa será a nossa defesa amanhã!
Na casa de Marcelo, assim que Iracema recebeu a notícia, 
ameaçou retirar o computador do quarto do filho por tempo 
indeterminado.
— E, ainda por cima, marcaram essa reunião para ama-
nhã cedo? Vou ter de ligar para o meu chefe avisando que vou 
chegar atrasada. E nem vou contar para o seu pai, até porque 
não adianta falar nada mesmo... Nem quando estávamos casa-
dos ele ia às reuniões da escola, quanto mais agora...
— Pô, mãe, reconheço que foi mau, mas não tem nada a 
ver eu ficar sem computador por causa disso...
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— Bom, o negócio é o seguinte: disseram que você fez 
coisa errada, não foi? Posso até discordar da conduta da di-
retora, mas você tem de ser punido de algum modo, concor-
da? Se bem que eu acho um exagero fazer esse escândalo todo 
por causa de uma brincadeira de crianças. Na minha época, o 
pessoal chamava os meninos mais delicados de “mariquinhas”, 
apelidava quem era gordo de “rolha de poço”, quem usava ócu-
los era “quatro-olhos”, e ninguém morreu por causa disso!
— Tá vendo? Até você acha que esse negócio não foi tão 
grave assim... Se os pais do nerd não tivessem reclamado, a 
gente só teria se divertido, sem essa confusão que aconteceu!
— Marcelo, os pais do menino reclamaram porque ele 
se incomodou com o que vocês fizeram. Acho melhor vocês 
pararem com essa brincadeira de mau gosto! Imagine se eles 
tivessem feito isso com você? 
Na realidade, Iracema sempre ficava em dúvida se deve-
ria censurar o filho ou deixá-lo livre para fazer o que ela consi-
derava “besteiras normais da adolescência”. 
— Se eu tivesse o jeitinho dele e falasse com aquela voz, 
a galera ia fazer o mesmo comigo, com certeza! Além de gay, 
é nerd, todo certinho, só três meninas conversam com ele, 
nenhum garoto chega perto. Ele merece, mãe, a gente não 
atacou assim, do nada!
A mãe de Gil ficou furiosa, em parte por causa do prejuí-
zo financeiro: como era dentista, precisou desmarcar os clien-
tes da manhã para comparecer à reunião. Havia ficado viúva 
quando Gil acabara de completar nove anos, acumulando a 
responsabilidade de sustentar a família e educar o filho. 
— Mas, mãe, por que você está reclamando tanto? Você 
nunca vai às reuniões da escola...
— E como é que eu posso ir, menino? E o meu trabalho? 
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Se eu não estiver lá no consultório atendendo os clientes, não 
ganho dinheiro!
— Quando as reuniões são à noite, você também não vai...
— À noite eu estou exausta! Você me vê saindo de casa 
para alguma coisa durante a semana? Trabalho em pé o dia 
inteiro e depois ainda tenho de cuidar da casa. Agora, amanhã 
não tem jeito mesmo, não é? Vou ter de ir, não vou?
— É, mãe, senão não vou poder entrar na escola... — Gil 
estava quase chorando de remorso.
— E quem vai pagar meu prejuízo? Você? Vai ficar sem 
mesada e sem sair nos finais de semana durante um mês para 
pagar pelo menos em parte o que eu vou deixar de ganhar para 
ir a essa reunião! E, ainda por cima, estou com vergonha de ter 
um filho otário que se deixa enrolar por um espertinho qual-
quer! Onde você estava com a cabeça, menino? Não pensou 
nas consequências?
— Pô, mãe, o Leonardo falou com tanta segurança que o 
plano ia dar certo que eu acreditei...
— Ah, você é muito bobo mesmo! Mas foi bom ter acon-
tecido isso, vamos ver se pelo menos agora você aprende a não 
se deixar influenciar por quem não presta...
No dia seguinte, a reunião com a diretora foi tensa. Cel-
so, Terry e Henry foram os primeiros a chegar. Marcelo estava 
com ódio de Leonardo e de Henry: “Que droga eu ter me as-
sociado a esse mau caráter, covarde, que não tem coragem de 
assumir o que fez! E esse gayzinho nerd vai me pagar! Quem 
mandou sair correndo, chorando, pedindo socorro pra papai 
e mamãe? Vai virar mais uma vítima particular da minha co-
leção! Vou torturá-lo até ele morrer de um ataque de coração, 
soltando gritinhos, ui, ui, ai, ai!”.
Assim que a diretora começou a falar sobre o motivo da 
convocação, Ivan tomou a dianteira para defender o filho:
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— Professora Rosa, para início de conversa, eu vim aqui 
para protestar contra a suspensão do Leonardo, punido sem 
provas concretas, apenas porque a senhora apressadamente 
acreditou na palavra dos dois verdadeiros culpados!
— Mas foi ele quem fez o plano e nos deu toda a orienta-
ção! — argumentou Marcelo. 
— Juro por Deus que não estou

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