Prévia do material em texto
ESTÉTICA E SEMIÓTICA AULA 6 Prof. Jeferson Ferro 2 CONVERSA INICIAL Nesta aula vamos tratar de dois temas centrais: a relação entre semiótica e sistemas culturais, a Estética enquanto um campo específico da filosofia. Os temas que abordaremos são: 1. Semiótica da cultura 1 O que é cultura e como podemos abordá-la a partir de um viés semiótico? 2. Semiótica da cultura 2 Biosfera, semiosfera e o conceito de modelização. 3. Semiótica da cultura 3 Um tempo de crises: a representação e a identidade – problemas contemporâneos. 4. Estética 1 Dos gregos aos alemães, o pensamento sobre a arte, a beleza e o bom gosto. 5. Estética 2 A estetização do mundo capitalista e seus problemas. CONTEXTUALIZANDO Chegamos à última aula de nossa disciplina. De certa forma, iremos resgatar conceitos vistos ao longo do percurso para que possamos lançar um olhar semiótico para a cultura contemporânea. Entre as questões mais prementes de nosso tempo, podemos destacar os conflitos de identidade e a estetização da vida. Saiba mais Para você, o que é a beleza? O link a seguir apresenta um vídeo produzido por jornalistas da Folha de São Paulo e se debruça sobre a questão da beleza e da identidade em nossa sociedade atual. Assista e reflita sobre essa questão. PÓS-BELEZA. Tab Uol. Disponível em: <https://tab.uol.com.br/beleza#pos- beleza>. Acesso em: 7 set. 2018. 3 TEMA 1 – SEMIÓTICA DA CULTURA (1) Nas aulas anteriores, entramos em contato com teorias semióticas que buscam compreender o processo da significação em diversos campos da vida social. Um grande número de pensadores assumiu a tarefa de identificar e classificar elementos das linguagens humanas, entendidos como sistemas de significação – na linguística, na literatura, no cinema etc. Saussure lançou as bases do estudo estrutural das línguas naturais, estabelecendo uma série de dicotomias úteis para a definição dos fenômenos da comunicação, bem como para a compreensão do funcionamento do sistema linguístico – sincronia/diacronia, significante/significado, língua/fala etc. A concepção saussuriana da linguagem rendeu muitos frutos teóricos, dentre eles a semiótica de Julian Greimas, que compreende as relações simbólicas, notadamente no campo da arte, como uma dinâmica entre o plano de conteúdo e o plano de expressão, que pode ser compreendida no percurso gerativo do sentido, um eixo semântico que se organiza a partir de elementos em oposição – vida x morte, liberdade x opressão etc. Já Peirce parte de uma concepção fenomenológica, fundada na filosofia, para conceber a própria natureza do processo de significação não como algo que se manifesta em um “sistema específico”, mas como uma relação triádica que se dá no mundo, o tempo todo, em qualquer situação. Entre as tríades peirceanas estão os conceitos de Primeiridade/ Secundidade/Terceiridade; Objeto/Signo/Interpretante; e Ícone/ Índice/Símbolo. Roland Barthes e Umberto Eco, por sua vez, aproximaram os estudos da significação de objetos comuns ao universo da vida moderna, como a moda, a televisão, as histórias em quadrinhos etc. Eles beberam tanto na fonte saussureana quanto na peirceana. Como podemos, portanto, falar de uma abordagem semiótica do grande e heterogêneo conjunto de manifestações humanas que consideramos parte da “cultura”? Vamos a seguir pensar a respeito do conceito de cultura e de como podemos abordá-lo por um viés semiótico. 4 1.1 Cultura O termo cultura não possui uma única definição e é considerado de forma distinta por pensadores da psicologia, antropologia, artes etc. Uma das primeiras tentativas de se definir cultura, que acabou se tornando referência para estudos posteriores, foi a do antropólogo britânico Edward Tylor: em 1871, ele a definiu como sendo “aquele conjunto complexo que inclui conhecimento, crenças, arte, lei, princípios morais, hábitos e qualquer outra capacidade ou habilidade desenvolvida por um ser humano dentro de uma sociedade.” (Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2011). Seguindo Tylor, podemos entender como cultural tudo aquilo que a espécie humana produziu em sua existência neste planeta. Tudo o que criamos – ferramentas, máquinas, habitações, cidades – todas as formas de relação que estabelecemos com o meio ambiente e com os outros habitantes – agricultura, democracia, guerra – e sobretudo todas as linguagens e suas manifestações que regem nossa comunicação – as línguas naturais, a literatura, a música etc. – formam o conjunto da cultura. Percebe-se que cultura, grosso modo, se opõe à natureza, uma vez que é cultural tudo aquilo que é produto de uma transformação ou criação operada pelo humano. No entanto, essa oposição cria um sério problema: e o ser humano, por acaso, não é fruto da natureza? Mais à frente veremos como a semiótica da cultura busca aproximar cultura e natureza, indo além dessa dicotomia. O que se caracteriza como essencialmente relevante para o estudo semiótico é que a cultura se manifesta por meio da linguagem, dos sistemas de comunicação que criamos para interagir com o mundo, criar e difundir conhecimento. Nesse sentido, a cultura é em sua essência uma manifestação sígnica, pois ela só existe nas relações de representação que estabelecemos com o mundo. Conforme explica Stuart Hall (2016), os signos que criamos transmitem sentidos dentro de um código, que não é um elemento da natureza, mas criação de uma sociedade: No cerne do processo de significação na cultura surgem, então, dois “sistemas de representação” relacionados. O primeiro nos permite dar sentido ao mundo por meio da construção de um conjunto de correspondências, ou uma cadeia de equivalências, entre as coisas – pessoas, objetos, acontecimentos, ideias abstratas etc. – e nosso 5 sistema de conceitos, os nossos mapas conceituais. O segundo depende da construção de um conjunto de correspondências entre nosso mapa conceitual e um conjunto de signos, dispostos ou organizados em diversas linguagens, que indicam ou representam aqueles conceitos. A relação entre “coisas”, conceitos e signos se situa, assim, no cerne da produção do sentido na linguagem, fazendo do processo que liga esses três elementos o que chamamos de “representação”. (Stuart Hall, 2016, p. 38) Não é possível, portanto, pensar em cultura sem pensar em linguagem, o que significa dizer que a questão da representação está no cerne da discussão sobre cultura. Hall (2016) nos explica que todas as culturas humanas – e aqui podemos pensar em cultura como um conjunto específico de manifestações de um determinado grupo, como o povo brasileiro, o carioca, o frequentador de rodeios etc. – criam “mapas conceituais compartilhados”, que são aqueles conjuntos de significados que se expressam por meio da linguagem e regem as relações entre os indivíduos que os compartilham. Assim, o uso do diminutivo no português brasileiro – “Me dá um chorinho / beijinho / tempinho...” – é uma marca de nossas relações que se estabelece formalmente no código (a língua portuguesa). Saiba mais PEREIRA, R. A. Cuidado com a língua. Folha de S. Paulo, 19 ago. 2018. Neste texto, o humorista português Ricardo comenta aspectos peculiares das relações humanas no mundo lusófono que se manifestam no uso da língua portuguesa. 1.2 Escola de Tartu A semiótica da cultura é uma vertente dos estudos da significação que se estabeleceu em Tartu, na Estônia, na década de 1960. Seu principal autor foi Yuri Lotman. Inspirados pelos estudos formais de Saussure, mas sem ignorar a semiótica peirceana, seus pesquisadores propõem a análise dos sistemas culturais com base em fenômenos linguísticos, uma vez que entendem que as línguas naturais são um sistema primário, enquanto as demais manifestações da cultura (o jogo, as artes, a ciência, a religião etc.) constituem sistemassecundários, pois se organizam a partir da língua natural. Seu foco não era o signo em si, mas a linguagem como um sistema semiótico. A cultura é, então, compreendida como um sistema de sistemas, ao mesmo 6 tempo homogêneo e heterogêneo: se, por um lado, cada sistema apresenta um comportamento específico, no conjunto da cultura todos os sistemas fazem parte de um grupo maior, como se fossem partes de um mesmo organismo – a cultura humana. Para a semiótica da cultura, o elemento fundamental dos processos de significação é a informação, e ele está presente tanto na natureza quanto na cultura. Essa dicotomia, cultural x natural, é reformulada nos termos semiosfera e biosfera. Conforme define Kirchof (2010, p. 64): Ao passo que a segunda compreende o mundo da natureza ainda não organizada a partir de qualquer código ou sistema semiótico, a primeira corresponde ao mundo da semiose, em que funcionam os sistemas semióticos, responsáveis pela comunicação. A cultura, sendo o lugar da semiosfera, subdivide-se em diferentes linguagens, criando-se, dessa forma, “subsemiosferas”, que adquirem uma identidade própria a partir da maneira específica como organizam a informação. Na natureza, a energia do sol, as leis da física e da química e o código da vida (DNA) são as “informações” que geram transformações no mundo. Na cultura, as informações são codificadas por meio da linguagem. Conforme aponta Machado (2010, p. 160), do ponto de vista da cultura, “O mecanismo elementar de produção da semiose é a transformação da informação percebida em informação codificada, isto é, um texto”. A codificação da informação, portanto, é o processo semiótico fundamental da cultura. Nesse sentido, segundo Hall (2016), ela se aproxima da noção de cultura como produto dos processos de representação. Mas a cultura não deve ser vista como um elemento necessariamente oposto à natureza. Se, por um lado, a semiosfera existe dentro da biosfera, por outro, ela a absorve e transforma, pois ambas “competem” pela informação no mundo. A seguir, vamos nos aprofundar nos conceitos fundamentais da semiótica da cultura desenvolvida pelos pesquisadores de Tartu. Saiba mais O QUE é cultura? Curso massivo (MOOC) cultura e gestão cultural, 7 jul. 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=1C6u6_J1C1c>. Acesso em: 7 set. 2018. 7 TEMA 2 – SEMIÓTICA DA CULTURA (2) Para a escola de Tartu, a semiótica da cultura vai se ocupar dos “textos” e da forma como eles se organizam em sistemas produtores de semiose. A cultura é uma força estruturante que organiza o mundo em sistemas que permitem ao ser humano processar informação e interagir. Nas palavras de Lotman e Uspenski (1981, p. 39; citados por Machado, 2010, p. 160): “O ‘trabalho’ fundamental da cultura [...] consiste em organizar estruturalmente o mundo que rodeia o homem. A cultura é um gerador de estruturalidade: cria à volta do homem uma sociosfera que, da mesma maneira que a biosfera, torna possível a vida, não orgânica, é óbvio, mas de relação”. A sociosfera de que nos fala Lotman, por sua vez, é a manifestação das relações sociais que, para a semiótica, interessam como um processo inerente à semiosfera, ou seja, o universo das relações simbólicas que opera pelos meios de representação. A cultura, portanto, seria uma estrutura capaz de “transformar toda informação circundante em conjuntos diversificados, porém organizados, de sistemas de signos, aptos a constituir linguagens, tão distintas quanto as necessidades expressivas dos diferentes sistemas culturais” (Machado, 2010, p. 160). Dessa forma, estudar a cultura equivale a debruçar-se sobre os códigos que estruturam a produção e distribuição de informação nas sociedades, o que nos permitiria compreender tanto aspectos da organização das coletividades quanto da consciência individual. Para atingir esse propósito, esse estudo teria os seguintes objetivos, segundo Kirchof (2010, p. 65): a. descrever os principais tipos de códigos culturais, responsáveis pela formação das ‘línguas’ ou ‘culturas isoladas’; b. descrever suas características comparativas; c. determinar os universais das culturas humanas; d. construir um único sistema das características tipológicas dos principais códigos culturais e das propriedades universais da estrutura geral da ‘cultura da humanidade’. Devemos destacar que, conforme descrito no item d, a semiótica da cultura prevê a concepção de um sistema único, geral, capaz de tipificar e descrever o funcionamento da cultura como um todo. Para isso, toma como objeto de seu modelo semiótico não o signo, mas o “texto”, entendido aqui 8 como toda manifestação codificada de informação. Isso significa dizer que uma determinada informação se caracteriza como texto a partir do momento em que ganha forma dentro de um determinado código, que, por sua vez, faz parte de um determinado sistema dentro da cultura. Assim, dados expressos em fórmulas matemáticas, informações descritas por um texto na língua natural, uma imagem captada em uma fotografia digital, são todos exemplos de diferentes códigos que processam a informação dentro de um sistema próprio. Esse processo de codificação tem uma característica determinante: ele é duplo. Um texto verbal, por exemplo, é código porque representa determinadas informações com base nas relações sintáticas e semânticas convencionais, características do sistema da linguagem verbal, mas também é um código porque encarna uma forma distinta dentro da estrutura maior que sistematiza os textos verbais – ou seja, dentro do sistema discursivo. Como aponta Machado (2010, p. 162), “todo texto deve estar codificado, no mínimo, duas vezes: pelo código que apreende a informação e a transforma num conjunto organizado de signos; pelo contexto sistêmico da cultura historicamente constituído”. Assim como um texto opera por seus elementos linguísticos (alfabeto, sintaxe, semântica etc.) e discursivos (gêneros, funções da linguagem etc.), a música, por exemplo, é codificada pelo sistema de notas musicais, mas também pelos estilos musicais – clássica, pop, rock, blues – dentro das relações que os organizam histórica e culturalmente. Além da dupla codificação do texto, existe também a dupla função dos códigos. Eles não se restringem à função de configurar e transmitir informações, mas possuem um papel sistêmico modelador dentro do universo da cultura. Conforme descreve Kirchof (2010, p. 66): Os pesquisadores de Tartu acreditam que a linguagem não deve ser vista apenas como sistema de comunicação, mas também como sistema modalizador: ao mesmo tempo em que transmite mensagens/informações, também cria os códigos/ modelos a partir dos quais o receptor deve decifrar tais informações. Assim, para Lotman (1978b, p. 37), cada código específico cumpre duas funções simultâneas, que estão ligadas indissoluvelmente: a) a função de comunicação: transmitir informações ou mensagens; b) a função de modalização: fornecer um modelo determinado do mundo nos seus contornos mais gerais. A modalização consiste, de forma resumida, no processo de conferir, à informação, um caráter, uma forma ou um modelo específico, derivado do código através do qual é veiculada. 9 O conceito de modalização (ou modelização, como outros pesquisadores preferem) será, portanto, fundamental à semiótica da cultura. Os sistemas modelizantes organizam-se em dois níveis. Em nível primário estão as línguas naturais, que se organizam com base numa relação entre os planos da expressão e do conteúdo. Já nos secundários, além da relação expressão/conteúdo, haverá uma outra, que pode ser ideológica, estética, ética etc. Podemos pensar no jornalismo como um sistema modelizante. Quais critérios éticos e estéticos esse sistema constrói com base na linguagem verbal? Sabemos que o jornalismo preza pela objetividade e pela imparcialidade– critérios éticos do seu sistema. E que sua linguagem procura observar preceitos linguísticos que conduzam a esses objetivos, buscando a simplicidade e a clareza do texto, a fim de gerar uma interpretação inequívoca. Tais aspectos são exemplos de características determinantes do sistema secundário desse tipo de texto. Machado (2010, p. 161) também aborda essa relação entre os sistemas e aponta para possibilidades que vão além do escopo da linguagem verbal: se narrativa é a língua natural dos mitos, tanto o poeta quanto o astrônomo podem construir narrativas sobre o mundo. Contudo, o modelo verbal do mito em nada se aproxima do modelo das fórmulas e medições dos signos matemáticos e geométricos. E, no entanto, ambos são sistemas modelizantes da cultura. Com isso, a modelização apresenta-se como capacidade cognitiva de um princípio heurístico para configurar distintas semioses na dinâmica da cultura. Ao lado da semiose social, em que a interação entre pessoas é mediada pela palavra oral e escrita, ocorrem outras semioses geradoras de diferentes textos que são ocorrências da e na cultura. Isso significa que podemos entender a narrativa como um sistema modelizante secundário, que está submetido à linguagem verbal como seu sistema primário. Por outro lado, sistemas como o da matemática, por exemplo, não estarão relacionados ao da narrativa. A semiótica da cultura, em sua abrangência propositiva, demonstrou capacidade de incorporar diferentes enfoques para a questão da significação, em que pese sua inspiração fundadora estar na linguística estrutural de Saussure. Dessa forma, a concepção de que há uma continuidade entre o mundo biológico e o mundo da cultura, ambos vistos como sistemas que processam informação, por exemplo, está na fenomenologia de Peirce, cuja concepção de semiótica não propõe distinções entre sistemas e classes de 10 fenômenos, mas aborda todos os objetos da percepção sob a mesma ótica. Podemos também aproximá-la da noção de semiose como cadeia ininterrupta das relações sígnicas, um aspecto central à teoria de Peirce e que também foi destacado por Bakhtin, para quem o signo gera outro signo, e assim sucessivamente. Por tudo isso, a escola de Tartu representou um avanço importante nos estudos da significação, lançando novos olhares para os sistemas de comunicação que operam nas sociedades humanas. TEMA 3 – SEMIÓTICA DA CULTURA (3) Vamos nos concentrar agora em alguns aspectos relevantes das relações simbólicas nas sociedades contemporâneas, procurando lançar um olhar semiótico para eles. Uma das características marcantes de nossa era pós-moderna é a instabilidade, fruto de um estado de incerteza permanente quanto aos rumos do mundo. A aceleração exponencial dos processos comunicativos possibilitou um crescimento vertiginoso na produção e acúmulo de informações. A velocidade das transformações é tal que perdemos a capacidade de prever com antecedência razoável o que vai acontecer com o mundo ou com nossas vidas num horizonte curto de tempo. Segundo Bauman (1998, p. 20), “pode-se definir a modernidade como a época, ou o estilo de vida, em que a colocação em ordem depende do desmantelamento da ordem ‘tradicional’, herdade e recebida; em que ‘ser’ significa um novo começo permanente”. Ou seja, questionar a ordem preestabelecida e reformatar o mundo, seja em suas relações sociais, seja no aspecto individual, torna-se uma nova regra. Vivemos em constante movimento, sem saber exatamente aonde estamos indo, nos transformando a cada minuto. De que forma tal ambiente de instabilidade e mudança permanente é causa ou consequência das transformações ocorridas no mundo da comunicação? Podemos supor que o mundo simbólico nos oferece pistas importantes para interpretar esse estado de coisas. Na aula anterior, ao estudarmos a televisão, refletimos sobre o gênero reality e sua consolidação como uma marca definidora de nossa época. O chamamento indicial, ou seja, a atração exacerbada por signos que nos aproximem de uma realidade tangível encontra nesse gênero televisivo sua 11 manifestação mais presente. Uma possível interpretação para esse fenômeno aponta para o cenário de transformação das mídias tradicionais: além da explosão de conteúdos provocada pela ascensão do digital, que transformou receptores em produtores e tornou muito mais difícil identificar o que é uma fonte confiável, instituiu-se também um crescente ceticismo em relação ao poder de representação das mídias digitais. É como se não mais pudéssemos acreditar no que vemos nas telas ou lemos nas páginas da internet. Esse ceticismo é uma marca do tempo em que vivemos, chamada de era da pós- verdade, e tem como sua consequência mais nefasta as temidas fake news. A seguir, debatemos essas questões com base no viés da representação. 3.1 A crise da representação O jornalismo sempre esteve fortemente embasado nos princípios de honestidade, fidelidade e objetividade. No entanto, no mundo pós-moderno tais premissas, em todas as formas de comunicação, passaram a ser bastante problematizadas. Nenhum tipo de linguagem pode garantir por si só a “fidelidade da representação”, como se estivesse intrinsecamente livre de aspectos conotativos – só os matemáticos discordarão disso. Como vimos na aula 2, a linguagem não é isenta de ideologia, e mesmo a melhor das tentativas de produzir uma reprodução fiel dos fatos estará, em alguma medida, influenciada pelo olhar de quem a produziu – para não falar na política editorial do veículo, no caso do jornalismo. Mesmo se acreditarmos que isso não invalida o princípio da honestidade e da busca pelo real, coloca todo o universo da comunicação em xeque. Um dos grandes problemas comunicacionais de nossa era está justamente num aparente afrouxamento do compromisso com a verdade, em grande medida derivado de uma leitura que relativiza exageradamente o poder representativo da linguagem, como se ela fosse uma ferramenta incapaz de nos permitir qualquer afirmação sobre o mundo, configurando aquilo que se chamou de pós-verdade. Trata-se de um afastamento dos elementos indiciais e simbólicos da comunicação e uma desconfiança sobre nossa capacidade de nos aproximarmos da realidade. É como se, ao aceitarmos que nosso conhecimento do mundo é sempre parcial e contaminado pelo viés do 12 enunciador, perdêssemos de todo a capacidade de buscar a precisão dos fatos, a imparcialidade do relato. Tudo são narrativas (ou simulacros) e, portanto, todas as versões se tornam igualmente válidas. Os especialistas perderam seu status de autoridade e com isso ficamos autorizados a acreditar em qualquer relato que nos pareça atraente. O poder de convencimento, afinal, resume-se ao valor icônico da mensagem – se ela nos parece atraente e convincente, então a aceitamos. Em termos da semiótica peirceana, podemos entender que a pós- verdade é, de fato, uma pré-verdade. Como já vimos, o trabalho de interpretação do mundo é uma jornada que “regride infinitamente em direção ao objeto dinâmico e progride infinitamente em direção ao interpretante final” (Santaella, 2008, p. 42). Isso significa dizer que um signo não altera seu objeto dinâmico, mesmo que o represente de forma equivocada – caso em que o objeto imediato é falho. E que o trabalho de interpretação implica, por definição, a busca pela melhor compreensão possível do objeto dinâmico – e isso é um imperativo ético. Todavia, há que se considerar que os avanços tecnológicos da contemporaneidade mudaram não só nossa percepção do mundo, mas a própria constituição do mundo, de tal forma que, num cenário de constantes mudanças, torna-se cada vez mais difícil delimitar a fronteira entre fato e ficção. Santaella (2004, p. 212), entretanto, tem uma visão otimista sobre este cenário: Em vez de estarem fazendo proliferar simulacros, as tecnologias estão, istosim, nos permitindo ver o que não podíamos ver antes, a saber, que a condição humana é, de saída, mediada por sua constituição simbólica, técnica e artificial. É certo que as tecnologias têm feito crescer as camadas de mediação, o que torna o processo muito mais complexo, difícil de ser compreendido, mas também mais rico. A cultura é mediação. Tornou-se essencial para a sobrevivência do jornalismo hoje reatar seus laços com a verdade. O compromisso com a busca dos fatos e a produção de interpretações honestas – e não de representações absolutamente infalíveis do mundo, pois elas não existem – é condição fundamental para resgatar a credibilidade no âmbito da comunicação profissional. A falibilidade intrínseca ao processo de representação não deveria ser um argumento em prol do abandono desse compromisso ético. 13 3.2 A crise da identidade As distopias futuristas estão novamente na moda. Séries como Carbon Altered (Netflix, 2018) e Westworld (HBO, 2016) são exercícios ficcionais sobre o que aguarda a humanidade num futuro próximo. Santaella entende o processo de expansão do corpo humano como a transferência de aspectos de nossa identidade para as redes virtuais ou ainda a modificação do próprio corpo, que ganha extensões artificiais, o que caracterizaria um ser pós- humano, como consequência do processo evolutivo proporcionado pelo desenvolvimento da linguagem, da nossa capacidade simbólica. Assim, como vimos anteriormente, o ambiente da cultura não estaria em oposição ao ambiente natural, pois tudo que é criado pela humanidade o é enquanto continuação da própria natureza. Em suas palavras: Não há uma dicotomia entre natureza e cultura, pois o homem e a sociedade se formam no processo de artificialização do mundo. Portanto, o processo de ciborgização atual nada mais é do que a continuação inelutável da saída do homem da natureza na construção de uma segunda ordem artificial. [...] as fronteiras entre ambiente externo (mídias, tecnologias) e ambiente interno (percepção, cognição, modelização) caminha para uma radical abolição. (Santaella, 2004, p. 218) Se chegaremos ao ponto em que o corpo humano será inseparável de elementos tecnológicos, biológicos ou não, só o tempo dirá. Mas o fato é que a identidade se tornou um tema dominante nas angústias existenciais na contemporaneidade. No mundo pós-moderno, as instituições tradicionais perderam em grande medida seu papel de elementos garantidores de nossas identidades. Nacionalidade, gênero, profissão, religião – tudo se tornou mais vago, menos certo, mais mutável. Por outro lado, o desenvolvimento tecnológico nos deu poderosos instrumentos de reconfiguração de nossas identidades, e, em consequência, a questão identitária se tornou o grande problema moderno. Que tipo de pessoa você é? Que tipo de música o define? A que série de tevê você assiste? Que marcas traz no corpo? Quantos seguidores no Instagram? Como explica Bauman (2005, p. 38): Num ambiente de vida líquido-moderno, as identidades talvez sejam as encarnações mais comuns, mais aguçadas, mais profundamente sentidas e perturbadoras da ambivalência. É por isso, diria eu, que estão firmemente assentadas no próprio cerne da atenção dos 14 indivíduos líquido-modernos e colocados no topo de seus debates existenciais. No cenário cultural, um exemplo da prevalência dos debates em torno da identidade é a tendência à autoficção, tanto na literatura quanto no audiovisual. Nunca antes tivemos um número tão grande de pessoas falando de si mesmas – e o reality não foge à regra. Junte-se a isso uma forte tendência documental nas produções para cinema e tevê e temos um cenário em que seria possível perguntar: seria a narração de si mesmo um sistema secundário na cultura contemporânea? Figueiredo (2017, p. 59) coloca a questão da seguinte forma: Na contemporaneidade, a pregnância da primeira pessoa na narrativa literária reflete o recuo do tempo social em prol do aqui e agora de um sujeito que já não se compromete com a construção do novo, que não se percebe como alguém que atua na história e que poderia transformá-la. A própria superabundância de fatos midiatizados contribui para expandir a visão da história como pura atualidade e para intensificar o temor de uma completa ficcionalização do mundo. Entretanto, definir quem somos implica dizer quem não somos. A identidade é um signo, e como tal se enquadra na dicotomia identidade x diferença. E as guerras em torno da identidade estão também se tornando um tema político da maior importância em nosso tempo. Na Europa, a questão da assimilação dos refugiados coloca os conflitos culturais em proeminência. Há uma tensão permanente que se expressa na linguagem: aceitar, assimilar x excluir, segregar. Landowski (2012) observa que na França há uma expressão costumeira que se emprega para repreender algum estrangeiro “desavisado” que, desconhecedor dos mapas conceituais compartilhados pelo povo francês, comete uma gafe: “Você não pode fazer como todo mundo?” O questionamento equivale a impor o rótulo de estrangeiro, diferente, não assimilado àquele indivíduo que, por suas atitudes, demonstra desconhecer o comportamento padrão naquela sociedade. Ele descreve semioticamente esta tensão no seguinte quadro: 15 Quadro 1 – Conjunção versus disjunção Fonte: Landowski, 2012, p. 15. Diante de uma identidade fragmentada, a aceitação do outro se torna uma barreira intransponível? A instabilidade e a incerteza inerentes à existência no mundo contemporâneo nos levam a voltar os olhos para dentro de nós mesmos? O desencanto com o poder de representação da linguagem nos faz duvidar de tudo, tratando todas as formas de comunicação como se fossem produtos de ficção? Essas são algumas das questões que definem as angústias do cenário cultural de nosso tempo e que se encarnam nos produtos comunicacionais como os quais interagimos cotidianamente. TEMA 4 – ESTÉTICA 1 Você se lembra do que falamos sobre a estética na aula 1? A palavra vem do grego aiesthesis e se refere à capacidade humana de perceber sensações – nossas habilidades sensoriais, portanto. Exatamente por isso ela está ligada ao mundo das artes, pois a arte é o império dos sentidos. Antes de raciocinar sobre uma obra de arte, devemos percebê-la, senti-la, não é mesmo? Pois essa briga entre a emoção e o raciocínio, a sensação e o pensamento é um debate bastante antigo no campo da filosofia. Estudar a arte e suas relações com a sociedade implica necessariamente lidar com as questões colocadas pela estética – que são várias, e muito interessantes. Ao longo dos séculos, diversos filósofos pensaram e escreveram sobre a estética. Questões como a verdade da arte e a definição de belo preencheram, 16 e continuam a preencher, páginas e páginas de tratados filosóficos. Lipovetsky e Seroy (2015), em trabalho recente, definem 4 eras da estética ao longo da história. São elas: 1. A arte realização ritual – o período mais longo, desde a pré-história, em que as obras artísticas serviam exclusivamente a propósitos ritualísticos: “a arte realização pré-reflexiva, sem sistemas de valores essencialmente artísticos, sem desígnio estético específico e autônomo” (Lipovetsky e Seroy (2015, p. 18). 2. A estetização aristocrática – ao final da Idade Média, com o Renascimento, o domínio artístico e estético começa a ter identidade própria. Valores estéticos (a beleza) adquirem importância social e passam a ser sinônimo de prestígio. É na vida da corte que esse momento estético encontra solo fértil. 3. A moderna estetização do mundo – surge no começo da era industrial, quando a arte se liberta das igrejas e dos palácios e goza de liberdade inédita. Ainda assim, se define em oposição ao universo da cultura de massa. “Enquanto na esteira do criticismo kantiano a filosofia deve renunciar a revelar o Absoluto ea ciência deve se contentar com enunciar as leis da aparência fenomenal das coisas, atribui-se à arte o poder de fazer conhecer e contemplar a própria essência do mundo. [...] O poeta faz concorrência ao padre” (Lipovetsky e Seroy, 2015, p. 22). O museu é a nova igreja. 4. A era transestética – Momento atual, que começa a se delinear no pós- guerra. Vivemos num universo de “inflação estética”, os fenômenos estéticos passam a viver “integrados nos universos de produção, de comercialização e de comunicação dos bens materiais. [...] A arte se tornou um instrumento de legitimação das marcas e das empresas do capitalismo” (Lipovetsky e Seroy, 2015, p. 29). Vivemos numa cultura “democrática e mercantil do divertimento”, e a arte serve à indústria cultural. A seguir, vamos resgatar um pouco desse percurso histórico, começando na Grécia antiga e retomando alguns aspectos da discussão que já 17 fizemos sobre arte e representação para, em seguida, progredir para uma discussão da questão estética na contemporaneidade. 4.1 Os gregos e a arte Os gregos entendiam que a arte e a filosofia eram atividades paralelas, mas que se cruzavam em diversas instâncias da vida. Como a grande questão que movia os pensadores era a busca da verdade, as discussões sobre a estética giravam em torno da questão do poder da arte de produzir conhecimento verdadeiro. Para Platão (c. 430 a.C.) o poeta era um hipócrita, pois a poesia busca nos seduzir e para isso nos afasta da razão. Para ele, “O conhecimento é a beleza e o bem, porque ele é conhecimento dessas verdades ideais que compreendem a verdadeira realidade das coisas” (Herwitz, 2010, p. 19). Platão acreditava que o conhecimento era fruto do raciocínio analítico. A arte, baseada no efeito mimético (imitação, representação da realidade), seria uma “simulação inadequada e fraudulenta” que nos afasta ainda mais do real. Já para Aristóteles (c. 385 a.C.), que foi um discípulo de Platão, a arte possuía um importante papel social, pois ela era capaz de nos dar lições profundas sobre a natureza humana e sobre as relações sociais graças a seu efeito catártico (de purgação), tipificado na experiência do teatro. Ao assistirmos aos dramas humanos representados em uma tragédia, seríamos capazes de nos “transportar” para o palco e “viver” aqueles dramas, o que teria um efeito positivo sobre nós, tanto do ponto de vista de produção de conhecimento, quanto do ponto de vista de produção de uma emoção libertadora. Esse debate sobre o poder da arte, conhecimento ou ilusão, reencarnou nas discussões sobre a linguagem e a representação: há os que defendem o conceito de simulacro para a comunicação, como se a linguagem fosse uma estrutura enganadora que nos afasta do real (Baudrillard); e os que defendem o poder revelador dos signos, entendendo que eles fazem com que nos aproximemos do mundo real (Peirce). Cerca de sete séculos depois das discussões fundadoras dos gregos, Santo Agostinho (ca. 360 d.C.) vai retomar a reflexão sobre a estética a partir do viés do conceito de beleza. Imbuído de uma lógica cristã, Agostinho vê na 18 estética uma manifestação da vontade divina: a beleza seria um modelo de concepção do mundo realizado por Deus. A arte sacra, que domina a Idade Média, é uma manifestação clara dessa concepção. 4.2 A estética alemã No século XVIII nasce uma linhagem filosófica alemã que dará grandes contribuições ao estudo da estética, com filósofos como Kant, Schelling, Hegel e Schopenhauer. Esse é o primeiro momento em que a filosofia se permite pensar sobre a beleza em si mesma, ou seja, em definir “O que é o belo?”. A experiência estética passa a ser vista como uma experiência sensual e individual, e não mais como conhecimento coletivo. A beleza deixa de ser pensada como forma de conhecimento, área que deixa o universo da arte e passa a ser um tema exclusivo da ciência. Esclarece Herwitz (2010, p. 24): Somente quando as vidas humanas, quando o sujeito humano é liberado da dependência de Deus, das formas platônicas ou o que o valha, somente quando esse sujeito é considerado como a base da experiência, do conhecimento, da vida, pode a experiência estética surgir como um tópico para a filosofia, para além do que os gregos já tinham feito escrevendo sobre a arte. Portanto, este renascimento da estética é resultado da concepção moderna do homem como dono de sua própria vontade, de seu próprio destino, como alguém que percebe o mundo por meio dos seus sentidos. Não por acaso, o nascimento dos museus acontece nessa época: as obras de arte passam a pertencer à “esfera do prazer autônomo” (Herwitz, 2010, p. 28), ou seja, podem ser admiradas pelo que são, independentemente de seu contexto de produção ou de um ideal que lhes é exterior – não são mais elementos de adoração a Deus, por exemplo. Assim, a estética passa a ser vista como uma discussão do gosto, e como tal um tipo específico de pensamento do ser humano. Sua questão central passa a ser, então, a definição do bom gosto. Conforme aponta Herwitz (2010, p. 38): “Visto que o século XVIII acredita que o juízo de gosto não é nada mais do que o prazer obtido na própria experiência, a questão é saber quais prazeres contam e como nesse mundo eles podem ser justificados”. Kant defende que critérios de apreciação da beleza devem estar sujeitos a princípios morais da sociedade. Ou seja, “belo” é aquilo que é aceito como 19 moralmente correto: “a moral exerce influência direta na forma de pensar, agir e comportar-se em uma sociedade e na apreciação da beleza, ou seja, nos mecanismos considerados no momento da fruição” (Engelmann, 2008, p. 40). Para Schelling, a arte opera uma combinação entre elementos conscientes e inconscientes, produzindo um conhecimento transcendente que nos leva ao infinito. Já para Schopenhauer, o filósofo do pessimismo, a arte abriria uma porta de fuga do mundo, para um momento em que nos fosse possível viver longe das frustrações cotidianas: “A experiência estética consiste no fato de o homem sair de si e desenvolver uma percepção sobre a essência dos objetos. Esse exercício possibilita intuir um mundo diferente daquele que é vivido com tédio e dor” (Engelmann, 2008, p. 46). Por fim, Heidegger, já no século XX, vai apontar para as contradições da arte na sociedade capitalista de consumo. Ele acreditava que a arte tinha perdido seu valor como elemento definidor da identidade de um povo. O mundo contemporâneo e sua relação com a estética é o que veremos a seguir. TEMA 5 – ESTÉTICA 2 Ao longo do século XX, o mundo passou por mudanças radicais. De início, duas grandes guerras redefiniram as fronteiras e o equilíbrio de poder em todo o planeta. A partir da segunda metade do século, o sistema econômico capitalista passou rapidamente a se tornar dominante e as sociedades ocidentais entraram de vez na era do consumo de massa. Já em meados dos anos 1930, pensadores alemães da escola de Frankfurt se dedicavam a refletir sobre a cultura na sociedade capitalista, e a analisar os impactos da massificação do consumo sobre a arte. Em 1935, o filósofo Walter Benjamin publica um ensaio que se tornaria fundamental para os estudos culturais no século XX: “A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica”. Benjamin (2000) argumentava que, com o advento da reprodutibilidade – a capacidade de reproduzir algo em larga escala – a obra de arte perdia sua aura, ou seja, seu aspecto de materialização única no espaço e no tempo. Se antes uma obra de arte era fruto de um momento único de produção do artista, e além disso era necessário ir até ela para contemplá-la – por exemplo, ir até o museu do Louvre para ver a Mona Lisa – isso agora já 20 não era mais preciso, pois no mundo moderno encontramos obras de arte que são facilmente reproduzidas e distribuídas a qualquer momento. O cinemaseria um exemplo deste novo ambiente artístico: obras de arte que eram criadas coletivamente, num processo de tentativa e erro, e que quando prontas eram exibidas a milhares de pessoas ao redor do planeta. Isso representava uma profunda mudança na sensibilidade humana. O tempo de contemplação de uma obra foi substituído pela atenção efêmera. Mudou a velocidade do mundo, mudou a relação das pessoas com a arte. Saiba mais O kitsch Se foram os alemães que aprofundaram a filosofia da estética em direção à definição da beleza e do bom gosto, foram eles também que criaram a palavra que resume o mau gosto, e que é tão característica que ganhou o mundo em sua forma original (sem tradução): kitsch. Podemos entender a definição da expressão mau gosto (ECO, 2008, p. 70) como a “pré-fabricação e imposição do efeito”. Ou seja, trata-se daquela arte que não nos deixa descobrir qual seu sentido, pois ela já nos dá a resposta de saída. É a música que, desde a primeira nota, é feita para chorar; a cena que, desde o primeiro segundo, é feito para causar revolta etc. O kitsch nos faz lembrar de que a arte precisa deixar espaço para a dúvida, para a descoberta. A velocidade só aumentou depois disso e o universo das artes viu uma profusão cada vez maior de obras – filmes, fotos, quadros, discos etc. – de tal forma que hoje há “arte” em toda parte: nos comerciais de tevê, no youtube, nas paredes de nossas casas, nas capinhas de nossos celulares. A própria definição de o que é arte e o que não é se tornou muito mais complexa, sobretudo após o advento da chamada pop art. É a “estetização da vida” de que nos falam Lipovetsky e Serroy, em que tudo ao nosso redor ganha contornos estéticos. Se mudam as formas de produção e consumo, mudam também as noções de bom gosto e de valor. O mundo do capitalismo transestético explora a arte como valor agregado a seus produtos: trata-se de um “novo modo de funcionamento que explora racionalmente e de maneira generalizada as dimensões estético-imaginárias-emocionais tendo em vista o lucro e a conquista dos mercados” (Lipovetsky; Serroy, 2015, p. 14). 21 Figura 1 – Arte é tudo aquilo que chamamos de arte? Fonte: Meunierd/Shutterstock; Emka74/Shutterstock; Mazura1989/Shutterstock. Seria justo dizer que o capitalismo deixou o mundo mais feio? Para os autores, não necessariamente. O regime capitalista não empobreceu a arte, mas democratizou o Homo aestheticus. Vivemos num mundo de “fetichismo e voyeurismo estético generalizados”, de tal forma que “a vida estetizada pessoal aparece como o ideal mais comumente compartilhado da nossa época: ele é a expressão e a condição do incremento do hiperindividualismo contemporâneo” (Lipovetsky; Serroy, 2015, p. 32). Ou seja, estetizar a própria vida – o corpo, o carro, a cozinha, o cachorro etc. – passou a ser uma atividade central para o indivíduo moderno. Por outro lado, essa avalanche estética que toma nossas vidas não nos eleva o espírito. “Consumimos cada vez mais belezas, porém nossa vida não é mais bela” (idem, p. 33). Eis o grande problema do capitalismo artista: Desse ponto de vista, a vida consumista merece inúmeras críticas, e não em nome de uma ética ascética revisitada, mas, ao contrário, em nome de um ideal estético superior que se pretenda a serviço da riqueza existencial, um ideal que privilegie a sensação de si e do mundo, o recentramento no tempo interior e na emoção do momento, a disponibilidade para o inesperado e o instante vivenciado, a fruição das belezas ao alcance da mão, o luxo da lentidão e da contemplação (Lipovetsky; Serroy, 2015, p. 36) Se houve uma época em que a arte era um produto de acesso restrito a certas elites, hoje parece que o problema é que temos que conviver com uma “inflação” do universo artístico. Há arte demais ao nosso alcance? A quantidade oblitera a qualidade, ou ainda, como argumentam Lipovetsky e Serroy, nos impede de apreciar a arte com a devida atenção, tirando dela sua função de produzir um aprofundamento na nossa capacidade de percepção do 22 mundo? São questões que se colocam para o debate no âmbito da estética contemporânea. Saiba mais WALTER Benjamin e a aura da obra de arte. Victor Naine, 8 nov. 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=GBBxYn-wvuE>. Acesso em: 7 set. 2018. Neste vídeo, o autor faz uma leitura crítica, bastante didática, deste texto fundamental da crítica de arte no século XX. TROCANDO IDEIAS A arte tem, inegavelmente, o poder de dizer muito sobre a sociedade e seu contexto histórico. Pabllo Vittar é hoje um dos casos mais polêmicos no cenário cultural brasileiro. Muitos resistem a considerar Pabllo como uma artista de fato. Outros, por sua vez, aceitam seu papel como performer e a consideram uma artista relevante no cenário nacional por levantar questões de identidade e representação, reposicionando papéis historicamente definidos em nossa sociedade. Saiba mais No vídeo-ensaio “Pabllo Vittar: o problema é da arte”, o canal Meteoro Brasil discute a questão da legitimidade da artista e de seu papel como provocadora no cenário cultural brasileiro. Assista o vídeo e discuta com seus colegas: Pabllo Vittar merece seu lugar de destaque no cenário cultural brasileiro? PABLLO Vittar: o problema é da arte. Meteoro Brasil, 16 ago. 2018. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=svuFUpe0Uz0>. Acesso em: 7 set. 2018. NA PRÁTICA A estética é certamente um valor cultural construído pelas dinâmicas sociais de um momento histórico. Seguindo a ideia de que vivemos hoje um processo inflacionário da estética, a “estetização da vida cotidiana”, como 23 definem Lipovetsky e Serroy (2015), reflita a respeito da sua relação com a arte. O seu mundo é excessivamente estetizado – ou seja, você se preocupa constantemente com a “beleza” das coisas, paga mais caro pelo estilo da roupa, do celular, do carro, prefere produtos gourmet etc.? A sua relação com a arte se resume ao consumo puro e simples? Existe espaço para a contemplação e para o aprofundamento de emoções e pensamentos no seu contato com a arte? Qual foi o último objeto artístico que o impactou e o fez ver o mundo de uma forma inesperada e por quê? Responda a essas questões por meio de um texto que discute o papel da “beleza” em sua vida: Saiba mais SCRUTON, R. Why Beauty Matters (Por que a beleza importa?) Álvaro Canella, 3 dez. 2015. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=bHw 4MMEnmpc>. Acesso em: 7 set. 2018. FINALIZANDO Nesta aula discutimos o conceito de cultura a partir de suas relações com a semiótica e a estética. Baseamo-nos no entendimento de que a cultura é, essencialmente, uma manifestação sígnica. Em seguida, ao entrarmos em contato com a semiótica da cultura desenvolvida pela Escola de Tartu, vimos que a cultura pode ser entendida como um “sistema de sistemas”, que se organiza primariamente com base nas línguas naturais, mas secundariamente em códigos diversos e independentes. A semiosfera é o ambiente de tudo aquilo que é cultural. A informação codificada dá origem a textos, que, por sua vez, compõem os sistemas da cultura e cumprem duas funções: comunicar e modelizar. A semiosfera e a biosfera, mais do que lados antagônicos, estão em uma relação de continuidade. Em seguida, refletimos sobre as questões culturais que definem a contemporaneidade, em especial as crises da representação e da identidade. A primeira é representada pelo cenário da pós-verdade e das fake news; já a segunda é uma manifestação da decadência das instituições tradicionais e da consequente instabilidade do mundo – a condição “líquida”, como define Bauman. 24 Por fim, resgatamos a história da estética para refletir sobre a condição atual da arte nas sociedades de consumo. A estetização de tudo e o sequestro da arte pela indústria são dois aspectos do mundocontemporâneo que colocam em xeque concepções tradicionais dos valores estéticos. 25 REFERÊNCIAS BAUMAN, Z. Identidade – entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. _____. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. BENJAMIN, W. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. In: ADORNO, T. et al. Teoria da cultura de massa. Trad. de Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 221-254. CULTURE and cognitive science. Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2 nov. 2011. Disponível em: <https://plato.stanford.edu/entries/culture-cogsci/>. Acesso em: 7 set. 2018. ECO, U. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 2008. ENGELMANN, A. A. Filosofia da arte. Curitiba: InterSaberes, 2012. FIGUEIREDO, V. L. F. Ficção e resistência na cultura de arquivo. Revista Matrizes, São Paulo, v. 11, n. 3, set-dez 2017, p. 57-70. HALL, S. Cultura e representação. Rio de Janeiro: Ed. da PUC Rio; Apicuri, 2016. HERWITZ, D. Estética: conceitos-chave em filosofia. Porto Alegre: Artmed, 2010. KIRCHOF, E. R. Yuri Lótman e a semiótica da cultura. Revista Prâksis, Feevale, Novo Hamburgo, v. 2, p. 63-72, 2010. LANDOWSKI, E. Presenças do outro. São Paulo: Perspectiva, 2012. LIPOVETSKY, G.; SERROY, J. A estetização do mundo – viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. MACHADO, I. Cultura em campo semiótico. Revista USP, São Paulo, n. 86, p. 157-166, jun./ago. 2010. SANTAELLA, L. Cultura e artes do pós-humano – da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2004. _____. Semiótica aplicada. São Paulo: Cengage Learning, 2008. Conversa inicial Contextualizando Trocando ideias Na prática FINALIZANDO REFERÊNCIAS