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TEORIAS DA HISTÓRIA E PESQUISA EM EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ Reitor José Jackson Coelho Sampaio Vice-Reitor Hidelbrando dos Santos Soares Editora da UECE Erasmo Miessa Ruiz Conselho Editorial Antônio Luciano Pontes Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes Emanuel Ângelo da Rocha Fragoso Francisco Horácio da Silva Frota Francisco Josênio Camelo Parente Gisafran Nazareno Mota Jucá José Ferreira Nunes Liduina Farias Almeida da Costa Lucili Grangeiro Cortez Luiz Cruz Lima Manfredo Ramos Marcelo Gurgel Carlos da Silva Marcony Silva Cunha Maria do Socorro Ferreira Osterne Maria Salete Bessa Jorge Silvia Maria Nóbrega-Th errien Conselho Consultivo Antônio Torres Montenegro (UFPE) Eliane P. Zamith Brito (FGV) Homero Santiago (USP) Ieda Maria Alves (USP) Manuel Domingos Neto (UFF) Maria do Socorro Silva Aragão (UFC) Maria Lírida Callou de Araújo e Mendonça (UNIFOR) Pierre Salama (Universidade de Paris VIII) Romeu Gomes (FIOCRUZ) Túlio Batista Franco (UFF) RUI MARTINHO RODRIGUES JEIMES MAZZA CORREIA LIMA JANOTE PIRES MARQUES (Organizadores) TEORIAS DA HISTÓRIA E PESQUISA EM EDUCAÇÃO 1ª Edição Fortaleza - Ceará 2015 Teorias da História e Pesquisa em Educação © 2014 Copyright by Rui Martinho Rodrigues, Jeimes Mazza Correia Lima e Janote Pires Marques Impresso no Brasil / Printed in Brazil Efetuado depósito legal na Biblioteca Nacional TODOS OS DIREITOS RESERVADOS Editora da Universidade Estadual do Ceará – EdUECE Av. Dr. Silas Munguba, 1700 – Campus do Itaperi – Reitoria – Fortaleza – Ceará CEP: 60714-903 – Tel: (085) 3101-9893. FAX: (85) 3101-9893 Internet: www.uece.br – E-mail: eduece@uece.br Editora fi liada à Coordenação Editorial Erasmo Miessa Ruiz Diagramação Gilberlânio Rios Capa Larri Pereira Revisão de Texto Leonora Vale de Albuquerque Catalogação na Publicação Bibliotecária: Perpétua Socorro Tavares Guimarães-CRB 3 /801 Teorias da História e Pesquisa em Educação / Rui Martinho Rodrigues, Jaimes Mazza Correia Lima e Janote Pires Marques [organizadores]. Fortaleza: EdUECE, 2015. 176 p. ISBN: 978-85-7826-247-1 1. História da Educação 2. Teorias da história 3. Marc Bloch I. Título CDD: 371.009 RUI MARTINHO RODRIGUES JEIMES MAZZA CORREIA LIMA JANOTE PIRES MARQUES (Organizadores) TEORIAS DA HISTÓRIA E PESQUISA EM EDUCAÇÃO 1ª Edição Fortaleza - Ceará 2015 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO Charliton José dos Santos Machado ............................................. 09 O ÍDOLO DAS ORIGENS Rui Martinho Rodrigues ............................................................... 15 O DESENVOLVIMENTO DO ESPÍRITO CRÍTICO NO ESTUDO DA HISTÓRIA Regina Cláudia Oliveira da Silva Francisco Ari de Andrade ............................................................. 39 O DISCURSO HISTÓRICO, O TEXTO HISTORIOGRÁFICO E A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO Janote Pires Marques.................................................................... 61 A NECESSIDADE DA EXPLICAÇÃO HISTÓRICA NA EDUCAÇÃO Ana Maria Leite Lobato Haroldo de Vasconcelos Bentes .................................................... 79 NATUREZA E CONSTRUÇÃO DO FATO HISTÓRICO: Limites e Possibilidades do Fazer Histórico Roberto da Silva Júnior .............................................................. 103 A COMPLEXIDADE DO TEMPO HISTÓRICO PARA OS HISTORIADORES DA EDUCAÇÃO JeimesMazzaCorreia Lima ......................................................... 119 HISTORIOFOTIA: A ESCRITA CINEMATOGRÁFICA DA HISTÓRIA Sander Cruz Castelo ................................................................... 133 EDUCAÇÃO, HISTÓRIA, CIÊNCIA E TECNOLOGIA NUMA MANCHETE SOBRE A MEDICINA: um Debate (Im)provável? Felipe Franklin de Lima Neto ..................................................... 151 9 APRESENTAÇÃO “A História é a ciência dos homens no tempo” (Marc Bloch) Algumas obras têm o poder de ultrapassar a força do tempo, deixando marcas profundas no campo do conhecimento. Entre estas, destaco Apologia da História ou o Ofício de Historiador, de Marc Bloch, que, apesar das circunstâncias de sua inacabada elaboração (Segunda Guerra Mundial), mantêm-se viva por uma atualidade es- pantosa, dada sua refi nada contribuição ao debate contemporâneo travado por historiadores, numa época de transição e impactos nas ciências humanas, em particular, os desafi os do saber humanístico, nas primeiras décadas do século XX. Bloch foi um dos fundadores da renomada Escola dos Anna- les, tarefa intelectual iniciada, ainda nos anos 1920, com a criação da renomada revista Annales d’Histoire Économique et Sociale que, ao longo do tempo tornou-se uma referência para as gerações seguintes de historiadores contribuindo, sobremaneira, com o que compreen- demos atualmente como Nova História e História das Mentalidades. Intelectual à frente do seu tempo, Bloch conseguiu afi rmar o conhecimento histórico em suas possibilidades científi cas, defi nin- do assim, práticas, objetivos e dimensões éticas, atribuindo a esta, uma condição de ofício, ou seja, de trabalho do historiador. Mesmo 10 após sua morte pelos nazistas, ocorrida em 1944, durante a Segunda Guerra Mundial, seu pensamento continua presente, sempre revigo- rado em estudos, pesquisas e debates acadêmicos. Nesse sentido, a coletânea Teorias da história e pesquisa em educação, sob a cuidadosa organização de Rui Martinho Rodrigues, Jeimes Mazza Correia Lima e Janote Pires Marques, é resultante das refl exões em torno da obra Apologia da História ou o Ofício de His- toriador e, por conseguinte, de alguns dos temas sugeridos por Marc Bloch para instigar o debate entre historiadores de sua época, a partir do prisma da legitimidade do conhecimento científi co e do campo de atuação do historiador. Assim, produzida no interior da disciplina Teorias da Histó- ria e Educação, no PPGEB/FACED/UFC, sob a responsabilidade intelectual do historiador Rui Martinho Rodrigues, a referida coletâ- nea é composta por sete capítulos e aponta de forma criativa para o diálogo interdisciplinar, em favor de uma leitura mais pluralista em torno do saber histórico, questão decisiva na obra de Marc Bloch. A incursão teórica traz como ponto abertura, o capítulo “O ídolo das origens”, autoria de Rui Martinho Rodrigues, cuja questão central é tomar como ponto de análise, algumas inquietações colo- cadas por Bloch acerca do argumento “inquestionável” dos histo- riadores da sua época que, entre outras questões, preconizavam a perspectiva determinista pela origem dos fatos, “como chave para a solução dos problemas históricos que desafi am a nossa compreen- são”. O diálogo é posicionado na perspectiva da crítica de Bloch ao 11 modelo obcecado da época, na busca pelas origens históricas, “indu- zindo às explicações equivocadas ou empobrecedoras”. O capítulo “O desenvolvimento do espírito crítico no estudo da história”, autoria de Regina Cláudia Oliveira da Silva e Francisco Ari de Andrade, traz à baila preocupações expostas por Marc Bloch acerca da necessidade do alcance do imperativo da crítica no co- nhecimento histórico, por conseguinte, da condição fundamental do historiador se colocar, interrogar, realizar leituras, apontar possibili- dades interpretativas da documentação histórica, outrora tida como inquestionável em sua essência, no sentido conceitual clássico, pre- conizado por historiadores positivistas. O capítulo intitulado “O discurso histórico, o texto historio- gráfi co e a história da educação”, autoria de Janote Pires Marques, propõe uma análise sobre o conceito de discurso histórico, destacan- do suas interligações com o textohistoriográfi co e seus signifi cados na História da Educação. Metodologicamente, o autor se apoia na leitura do conceito de discurso histórico sob “a ótica da teoria dos gêneros do discurso e da noção de escrita historiográfi ca” a partir das elaborações sugeridas por teóricos da história. No capítulo “A necessidade da explicação histórica na edu- cação”, autoria de Ana Maria Leite Lobato e Haroldo de Vascon- celos Bentes, os autores partem de uma indagação central: “qual o sentido da explicação histórica na pesquisa em história da educa- ção?”. Nesse sentido, trazem para o debate as contribuições teóricas de Marc Bloch e outros autores, com especial atenção à necessidade 12 da explicação histórica na educação enquanto objeto, apontando as- sim, as tensões permanentes do referido debate. O capítulo “A natureza e construção do fato histórico: limites e possibilidades do fazer histórico”, autoria de Roberto da Silva Jú- nior, trata, particularmente, da discussão sobre a natureza e constru- ção do fato histórico, a partir das referências e debates travados entre positivistas oriundos do século XIX e dos intelectuais vinculados a corrente da História-problema, já nos primórdios do XX, tomando como ênfase a “possibilidade de analisar e comparar as perspecti- vas tradicionais do positivismo e na perspectiva da escola nova”, na perspectiva de algumas indagações chave. O capítulo “A complexidade do tempo histórico para os his- toriadores da educação”, autoria de Jeimes Mazza Correia Lima, in- veste na discussão conceitual sobre “o tempo histórico”, propondo assim, uma leitura de base teórica sobre as constantes preocupações que permeia o debate acerca da relação entre passado/presente, na elaboração da narrativa histórica. O capítulo “Historiofotia: a escrita cinematográfi ca da his- tória”, autoria de Sander Cruz Castelo, apoia-se na preocupação de situar o cinema como instrumento fundamental da prática historio- gráfi ca, sempre na referência de sua própria linguagem, consideran- do o autor que cabe ao cineasta o uso permanente de recursos em sua produção, tais como, “fotografi a, montagem, música e enquadra- mento, para lidar com a duração, objeto da História”. Assim, busca transpor limites que separam e contrastam a “Historiofotia” (história audiovisual) da “Historiografi a” (história escrita). 13 Por fi m, o capítulo “Educação, história, ciência e tecnologia numa manchete sobre a medicina: um debate (im)provável?”, autoria de Felipe Franklin de Lima Neto, parte do diálogo interdisciplinar entre au- tores para problematizar as relações necessárias entre Educação, Ciên- cia, Tecnologia, Meios de Comunicação e Medicina, tendo como ponto de partida (fonte) a publicação de um artigo, de autoria do presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica, Antônio Carlos Lopes, no jornal cearense O Povo, de 23 de julho de 2012. Portanto, a presente coletânea Teorias da história e pesquisa em educação, com a marca da vigorosa produção dos autores, certa- mente, no sentido mais concreto da expressão, representa relevantes contribuições ao debate entre historiadores, em particular, aos his- toriadores da educação, que, inspirados nas inquietações de Marc Bloch e seus interlocutores clássicos, apontam de forma crítica, pos- sibilidades de (re)pensar teoria, método, problema, fontes etc, sob o prima da interdisciplinaridade no cenário acadêmico da atualidade. Prof. Dr. Charliton José dos Santos Machado Universidade Federal da Paraíba (UFPB) 15 O ÍDOLO DAS ORIGENS Rui Martinho Rodrigues rui.martinho@terra.com.br Mestre em Sociologia (UFC). Doutor em História (UFPE) Professor associado do Departamento de Funda- mentos da Educação, da Faculdade de Educação da UFC e do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da mesma universidade. Introdução O ídolo das origens é um dos muitos temas indicados para estudo, por Jacques Le Goff, no prefácio da obra de Marc Bloch, Apologia da História. O prefaciador citado inspirou-se, ao listar di- versos temas relevantes para o estudo da História, na leitura da obra apresentada. Sobre a complexidade do tempo histórico, sobre a necessidade da explicação histórica, sobre a na- tureza da história, sobre a noção de “causa” em História, sobre a natureza e a construção do fato histórico, sobre o papel da tomada de consciência, o tratamento do “acaso” e as formas da mentira e do erro em história, sobre o discurso histórico, so- bre as maneiras legítimas de fazer história, sobre a defi nição de uma busca necessária da “verdade” (sob o pretexto de não ser enganado pela artifi - cialidade da história, a qual partilha com todas as ciências, pois só existe conhecimento a esse preço, quis-se negar a existência de uma verdade históri- 16 ca para se entregar a uma prática pretensamente nietzschiana de um jogo histórico com regras ar- bitrárias), [...] é preciso partir de novo deste livro. (LE GOFF In: BLOCH, 2001, p. 32-33). Le Goff percebeu a importância do “ídolo das origens”, len- do Bloch, como dito. Dois grandes historiadores, um como inspira- dor e outro se sentindo inspirado pelo primeiro, dariam importância ao ídolo das origens. Devemos começar indagando o que seria o tal ídolo. Depois devemos perquirir acerca da sua importância. Falar no ídolo das origens, quando se trate de conhecimento histórico, cer- tamente remete à preocupação com origem, gênese, início, começo e advento dos fenômenos históricos. Mais do que isso, insinua um curso evolutivo com um forte odor de determinismo histórico. A in- vestigação seguinte deve ser sobre o signifi cado de tais vocábulos, verifi cando se eles são sinônimos perfeitos ou se apresentam alguma diversidade semântica. Finalmente devemos buscar o alcance das origens considera- das na perspectiva da explicação ou da compreensão histórica, con- siderando a idolatria de muitos historiadores pelas origens, como sugere a expressão. A palavra ídolo, usada por Le Goff, parece uma alusão a um exagero. As origens estariam sendo supervalorizadas, com frequência, por historiadores, mas não só nem principalmente por estes profi ssionais. A lógica classifi caria tal raciocínio como falácia genética. A discussão epistemológica concernente à causalidade dos fenômenos é assim lembrada, convidando-nos a discernir entre início, começo, advento, origem, causa, constelação de fatores, mera concomitância, 17 correlação, determinismo, voluntarismo, possibilismo, probabilis- mo, sopesando ainda o que seja mera tendência, sem negligenciar o elemento aleatório nos sucessos históricos. A expressão ‘ídolo das origens’ sugere, ainda, algo asseme- lhado a um fetichismo, um fator capaz de afastar o uso judicioso da razão, induzindo a uma espécie de cegueira, limitando a compreen- são do pesquisador, induzindo às explicações equivocadas ou em- pobrecedoras, pelo que no mínimo confi guraria algo assemelhado a uma espécie de reducionismo genético ou originário, sem nenhuma alusão à biologia. A inspiração de Le Goff A leitura da última obra de Marc Bloch despertou em Le Goff preocupação por ele manifesta no prefácio de Apologia da História, referente ao ídolo das origens, por ser o renomado medievalista sen- sível aos problemas epistemológicos, com especial atenção ao tema da causalidade, havendo discutido o determinismo e o eterno retor- no. Mais do que isso: Le Goff debruçou-se sobre as idades míticas: Para dominar o tempo e a história e satisfazer as próprias aspirações de felicidade e justiça ou os temores face ao desenrolar ilusório ou inquietude dos acontecimentos, as sociedades humanas ima- ginaram a existência, no passado e no futuro, de épocas excepcionalmente felizes ou catastrófi cas e, por vezes, inseriram essas épocas originais ou derradeiras numa série de idades, segundo uma certa ordem. (LE GOFF, 1996, p.283). 18 As idades míticas, sobretudo quando originárias guardam, por certo, estrita relação com o “ídolo das origens”. O mundo é des-crito, de certa forma, no momento do aparecimento de um fenômeno ou da ocorrência de um sucesso, nas idades míticas, relacionada tal descrição com alguma explicação. Não se trata de descrição gratuita, destituída de fi nalidade, sem nenhum signifi cado para a compreen- são do mundo e da relação do homem com o mundo e com o próprio homem. Idades míticas são uma espécie de história, ainda que de um tipo especial, lenda, proto-história, abrigam em si o germe do que mais tarde desabrocharia como História, como tentativa de explica- ção ou compreensão da experiência humana. Situadas no passado, as idades míticas originárias apresentam grande afi nidade com o “ídolo do passado”, colhido por Le Goff das páginas da Apologia da Histó- ria, de Marc Bloch. A importância das explicações fundadas nas origens do obje- to de estudo merece destaque, na análise histórica. Primeiro porque a origem dos fatos e fenômenos realmente pode contribuir signifi cati- vamente para elucidar a ação social dos sujeitos históricos. Também porque pode induzir a graves e numerosos equívocos. As circuns- tâncias do advento do fenômeno ou do fato pesquisado é relevante, constitui o contexto, enseja a busca da constelação de fatores rela- cionados ao fato ou fenômeno nas circunstâncias do seu surgimento. O desafi o consiste em decifrar a natureza da relação entre as circuns- tâncias e o objeto de estudos após o curso do tempo, com as injun- ções daí decorrentes. Tal relação pode assumir diferentes sentidos, conforme a natureza do fenômeno, que pode ser (I) do tipo determinista; (II) probabilístico; (III) mera tendência não susceptível de estimativa 19 quantifi cável; ou (IV) aleatório, a semelhança da dinâmica caótica dos movimentos brownianos verifi cados nas micelas de certos tipos de coloides. Nos fenômenos deterministas as relações de causa e efei- to são bem defi nidas, comportando-se segundo o padrão “dado ‘A’ necessariamente teremos o resultado ‘B’. Nesta classe de fenôme- nos, a origem é plenamente esclarecedora, distinguindo-se de mero fetichismo das origens. Tal é a dinâmica dos fenômenos estudados pelas ciências da natureza, a exemplo da queda dos corpos cuja ori- gem pode ser explicada pela simples invocação da lei da gravidade. Ressalte-se, porém, que os fenômenos históricos em geral não se enquadram nesta categoria. A condição de sujeito implica relativo grau de voluntarismo, nos limites das possibilidades da ação social. A ação voluntária do sujeito afasta o determinismo das explicações e da compreensão histórica. Os fenômenos probabilísticos podem ser expressos por uma relação numérica entre o conjunto das suas ocorrências possíveis e a frequência da sua manifestação concreta. São adequados à análise de numerosas ocorrências de uma mesma classe de fenômenos. Su- cede, todavia, que a História tem um largo interesse por fenômenos idiossincráticos, caracterizados por manifestarem-se uma só vez. Os objetos de estudo assim classifi cados não podem ser objeto de aná- lise baseadas no instrumental probabilístico. E a pesquisa histórica, como a pesquisa social em geral, muita vez se defronta com fenôme- nos singulares. Quem pesquisar as probabilidades do suicídio em ge- ral, para esclarecer o caso singular do suicídio do presidente Vargas 20 não terá muito proveito. Por isso, a consulta das probabilidades de suicídio em geral, de fatores classifi cados como idade, gênero, es- tado civil, profi ssão ou outro atributo do suicida será de interesse restrito para a citada pesquisa, porque a morte do presidente Vargas é singularíssima, ou porque o interesse histórico se concentra nas suas singularidades. O que interessa na pesquisa histórica, quando se tenha por objeto uma singularidade, como o suicídio do presidente Vargas, é um conjunto de fatores únicos diretamente relacionados com as cir- cunstâncias sociais, políticas e pessoais do suicida. Assim o perigo do “ídolo das origens” fi ca bastante mitigado, porque o estudo pas- sa a incidir inteiramente sobre os conteúdos da pesquisa histórica, afastando-se do fetichismo das origens, análogo ao fetichismo do conceito.1 Os fenômenos históricos podem apresentar um tipo de rela- ção com fatores identifi cáveis, mas, diferentemente dos fenômenos probabilísticos, sem possibilidades de quantifi cação das probabili- dades de ocorrência. A isso chamamos vagamente de tendência. Os concludentes de um curso superior, suponhamos, encontram-se dez anos depois de formados. Algumas daquelas jovens esbeltas, à época da conclusão do curso, poderão apresentar um corpo modifi cado, com alguns acréscimos na região abdominal, também poderão ter 1 GUSMÃO, Luís de. O fetichismo do conceito (limites do conhecimento teó- rico na investigação social). 2.ed, Rio de Janeiro: Topbooks, 2012. Trata-se de uma defesa da pesquisa histórica e social baseada mais nos conteúdos do que nos pressupostos teóricos e metodológicos. Valoriza a consideração dos conteúdos amealhados pelo pesquisador e a capacidade de análise e interpretação do sujeito cognoscente. Procura libertar o pesquisador da condição de repetidor ou aplicador de fórmulas adrede produzidas por pensadores. 21 um ou mais fi lhos e encontrar-se casadas, descasadas e recasadas. A relação entre o tempo decorrido, a condição inicial de jovens esbel- tas e os fatos supervenientes retroaludidos difi cilmente será estima- da quantitativamente, na forma de probabilidades, embora haja uma relação entre tais variáveis, cujo resultado não pode ser previsto com precisão, mas admitido como possibilidade a ser considerada vaga- mente, na forma de tendência. As relações aleatórias ou caóticas entre fatores históricos vislumbrados na pesquisa histórica reforçam a ideia do estudo mais centrado nas singularidades do que nas regularidades expressas pe- las teorias hoje descritas como grandes narrativas. Outra conside- ração que brota do convite à refl exão sobre “o ídolo das origens” é aquela pertinente à própria lógica das inferências formuladas pelo pesquisador. Assim chegamos, no estudo do “ídolo das origens”, ao exame da falácia genética. A falácia genética A invocação das origens, quando se queira explicar ou com- preender um fenômeno, no campo da pesquisa histórico-social, re- mete-nos mais ao debate pertinente à validação do que a descoberta dos fatos em estudo. A validação se benefi cia do “ídolo das origens” quando se considere que as condições que cercam o advento de fato determinam o signifi cado e o alcance dele. Será tal raciocínio con- sistente ou falacioso? O termo ‘falácia’ às vezes é utilizado como equi- valente de ‘sofi sma’, isto é, no sentido de “argu- 22 mento” aparente ou argumentação que não é, real- mente, argumento [...]. Uma falácia, assim como um sofi sma, é uma forma de argumento não váli- da. (MORA, 2000, p. 989). A origem dos sucessos históricos, caso não seja razão sufi - ciente para validar uma versão histórica, quando apresentados como se tal fosse possível, estarão confi gurando uma falácia do tipo gené- tico, porque baseada na gênese do fenômeno estudado. Sopesemos o signifi cado da condição falaciosa. Costuma-se chamar deste modo [falácia genética] o tipo de raciocínio que pode dar conta de algo mediante uma descrição do processo que esse algo seguiu para chegar ao estado em que se encontra e que se trata justamente de explicar. [...]. o mais comum é falar de falácia genética em relação a al- guma proposição ou teoria [...] Dada uma teoria T, se diz que se comete uma falácia genética quan- do se tenta explicar o signifi cado, o alcance ex- plicativo etc, de T apelando para as condições ou circunstâncias, geralmente humanas e históricas, que contribuíram para a formação de T. (MORA, 2000, p. 991, acréscimo nosso, entre colchetes). Falácias e sofi smas são diferenciados por alguns autores que atribuem à primeira o sentido de erro involuntário, dando ao segun- do o signifi cado de erronia praticada de má-fé. Outros, porém, con- sideramos dois vocábulos sinônimos. Acompanhemos a exposição de Imideo Giuseppe Nerici, que usa indistintamente os dois termos. Discorrendo sobre sofi smas e falácias, o autor aludido preleciona: 23 Sofi sma não é mais do que um raciocínio falso. Esta falsidade pode nascer da má aplicação do ra- ciocínio em premissas falsas. [...] Da maneira de processar o mau raciocínio nasce a divisão dos sofi smas em formais e materiais. [...] Sofi smas formais são os que têm defeito na forma de racio- cinar. Eles podem ser de oposição, conversão, am- biguidade, composição e divisão. [...] Sofi sma de conversão é o que procede da conversão de uma proposição e da verdade desta conclui para a ver- dade da convertida. [...] Sofi smas materiais são os que apresentam defeito nas premissas, por falsas ou insufi cientes. Estes podem ser de ignorância da questão, petição de princípio, círculo vicioso, aci- dente, enumeração imperfeita e falsa analogia. [...] O sofi sma da petição de princípio é o que toma por aceito o que ainda precisa ser demonstrado. [...] Sofi sma do acidente é o que toma o acidental pelo essencial. [...] O sofi sma de enumeração consiste em uma indução baseada em casos insufi cientes. (NERICI, 1985, p.77-79). Resta saber se o ídolo das origens induz o pesquisador a algu- ma forma de sofi sma. Isto é, a falácia genética corresponde a algum modelo clássico de sofi sma? O sofi sma de conversão consiste em converter uma propo- sição e validar a proposição assim obtida com base na validade da primeira. O ídolo das origens consiste em propor a validação de uma explicação, que no caso é uma proposição derivada, com fundamento na origem do fenômeno que se pretende explicar. A origem corresponde a uma proposição originária cuja conversão permitiria validar a expli- cação. Exemplifi cando: muitas análises históricas respeitáveis dizem 24 que as garantias jurídico-formais do Estado de direito originaram-se da revolução burguesa, aludindo assim à Grande Revolução francesa. Esta proposição original, sendo válida, convalidaria a proposição derivada de uma conversão. Assim, as citadas garantias fundamentais inerentes aos direitos universais, na proposição convertida, poderiam ser apresentadas como estritamente vinculadas aos interesses particularistas da burgue- sia. Tal conversão lembra o determinismo genético do brocardo popular segundo o qual “fi lho de peixe peixinho é”. A revolução em comento seria de inspiração burguesa; os direitos fundamentais teriam sido uma conquista desta revolução, logo os citados direitos seriam a expressão dos interesses burgueses. Os determinismos em geral expressam reducionismos. Dizer que as garantias do Estado liberal se limitam a defender os inte- resses da burguesia, baseando tal proposição unicamente na origem burguesa de uma revolução que fortaleceu tais direitos é, antes de tudo, um reducionismo. Nem é preciso discutir a origem burguesa da citada revolução. Os direitos em discussão foram fortalecidos pela revolução em apreço, mas já haviam sido afi rmados séculos antes por exigência da nobreza. Sim, foram os barões que exigiram do rei uma carta de direitos que passaria a História com o nome de “Car- ta do Rei João Sem Terra”, de 1215. A Carta a que nos referimos é também uma das origens das garantias constitucionais que mais tarde seriam fortalecidas pela Revolução francesa. A propósito das garantias individuais insertas no direito medieval Uadi Lammêgo Bulos preleciona: É engano pensar que na Idade Média o constitucionalismo fi cou sufoca do, em virtude do 25 feudalismo, da rígida separação de classes e do vínculo de subordinação entre suseranos e vassa- los [...] na era medieval encontram-se as mais cla- ras apologias ao poder limitado dos governantes e as mais explícitas reivindicações do primado da função judiciária [...] Nesse articular, eclodiram concepções jusnaturalistas, pondo o direito natu- ral no patamar de norma superior. E, se os atos dos soberanos fossem de encontro ao jus naturale, eram declarados nulos pelo juiz competente, per- dendo seus efeitos vinculatórios [...] Exemplo vigoroso pela busca da limitação do po- der foi o advento da Magna Carta Libertatum, de 15 de junho de 1215, outorgada na Inglaterra, pelo Rei João, fi lho de Henrique II, sucessor de Ricar- do Coração de Leão, que se tornaria o legendário João Sem Terra. É que a Magna Carta foi o refl exo das necessidades sociais do seu tempo, abrindo precedentes que se incorporariam, em defi nitivo, às constituições vindouras. Mencione-se, a propósito, o direito de petição, a instituição do júri, a cláusula do devido processo legal, o habeas corpus, o princípio do li- vre acesso à justiça, a liberdade de religião, a apli- cação proporcional das penas etc. Além da Magna Carta, existiram outros documen- tos de garantia dos direitos fundamentais que an- tecederam a moderna disciplina constitucional das liberdades públicas. (BULOS, 2009, p.15-16). O ídolo das origens e um exemplo de sofi sma de conversão A proposição originária, segundo a qual a Revolução France- sa de 1789 foi uma expressão da burguesia ascendente por mais que seja havida como procedente, não pode ser usada como fundamento 26 para a conclusão que aponta os direitos fundamentais, ínsitos no constitucionalismo do Estado liberal, como mera expressão dos in- teresses burgueses. A conversão da primeira proposição na segunda seria assim: “a burguesia comandou a revolução que criou as garan- tias fundamentais (proposição originária); os direitos fundamentais desde o nascedouro existem para defender os interesses burgueses” (proposição derivada por conversão). Temos aqui um caso de sofi s- ma formal caracterizado pela conversão falaciosa baseada na origem histórica. O fato de uma revolução burguesa haver fortalecido certos direitos não signifi ca que tais direitos representem interesses especí- fi ca e unicamente burgueses. O ídolo das origens e um exemplo de sofi sma por petição de princípio Some-se a este sofi sma formal um outro, do gênero material. Sim, temos o chamado sofi sma por petição de princípio, caracteri- zado por tomar como válido algo que não está demonstrado. A pro- posição segundo a qual os direitos robustecidos pelo Estado liberal nasceram com a revolução burguesa, por ela e para a classe que a comandou é uma proposição não demonstrada, posto que na Idade Média, quando a burguesia ainda não havia se fortalecido ou até nem existia, já se encontram abundantes registros dos mesmos direitos, conforme lição de Uadi Bulos, anteriormente transcrita. O ídolo das origens e um exemplo sofi sma do acidente Podemos identifi car o sofi sma do acidente, que também per- tence ao gênero material. Nele, o raciocínio confunde o acidental com o essencial. O fato de uma revolução burguesa haver fortalecido 27 os direitos fundamentais é um mero acidente, relativamente a tais direitos; a essência deles não está nas circunstâncias históricas de um dos momentos em que foram fortalecidos. O ídolo das origens e um exemplo de sofi sma da enumeração Temos o sofi sma da enumeração, caracterizado pela insufi ciên- cia dos casos enumerados, que fere o quarto princípio da lógica, a saber, o princípio da razão sufi ciente2. Sim, os direitos fundamentais foram fortalecidos por uma revolução havida como burguesa. Não obstante manifestaram-se também em outras circunstâncias históricas, impulsio- nados por outras forças sociais, conforme lição de Bulos. Nas civilizações antigas, o constitucionalismo aparece com contornos específi cos. Basta ver que o termo constituição (constitutivo) era utilizado, no Baixo Império Romano, [...]. Vale lembrar que, na República romana, o constitu- cionalismo se desintegrou com as guerras civis dos primeiros séculos antes de Cristo [...]. Antes disso, contudo, despontaram os interditos, que procuravam proteger os direitos individuais contra o arbítrio e a opressão do Estado. (BULOS, 2009, p.14). 2 “Este princípio foiformulado por Leibniz e diz que ‘todas as coisas devem ter uma razão sufi ciente pela qual são o que são e não são outra coisa’. Há conhe- cimentos aos quais damos crédito devido às razões de que são acompanhados e que são tidos como sufi cientes para garantirem a autenticidade”. (NERICI, Imideo Giuseppe. Introdução à lógica. 9 ed. São Paulo: Nobel, 1985, p. 30). 28 Percebe-se que a falácia genética é um raciocínio falho, su- postamente apto a validar pela origem uma dada proposição. As fa- lhas do “ídolo das origens” ou origem histórica como fonte de expli- cação ou interpretação por si só plenamente satisfatória de um fato pode abrigar inúmeras outras falácias ou sofi smas mais específi cos. No exemplo dado, vimos que a falácia genética que assimila os di- reitos fundamentais fortalecidos pelo Estado liberal aos interesses da burguesia incorre e veicula, no mínimo, as seguintes outras falácias ou sofi smas: tanto de natureza formal, (I) do tipo conversão; como do gênero material, dos tipos (II) petição de princípio; (III) acidente; e (IV) enumeração. A falácia genética é um conceito do tipo guar- da-chuva, que abriga vários sofi smas, buscando em vão validar uma tese pela sua origem. Não se alegue, para refutar esta linha de raciocínio, que tudo isso é lógica formal. Sim, de fato, tudo isso é lógica formal, mas não basta lembrar este fato para desqualifi car a argumentação. A lógica aris- totélica cuida de um aspecto apenas: a compatibilidade das partes do discurso, consideradas umas em face das outras. Por isso, é chamada de lógica formal. Não cuida dos aspectos materiais das proposições. Tal não signifi ca, porém, que a análise da lógica interna do discurso seja ir- relevante. As limitações de tal lógica, quando circunscrita ao isolamento de cada silogismo poderá esvaziá-la. Não é este, todavia, o procedimen- to aqui adotado. Ademais, o exame da coerência formal do discurso não afasta a crítica dos conteúdos materiais das proposições. Só a vontade de sofi smar conduz aos artifícios com os quais se busca desmoralizar o raciocínio coerente e consistente. 29 O formalismo lógico ama a clareza, desnuda os enganos, afasta os sofi smas. O reconhecimento das contribuições da lógica é assim descrito por Nicola Abbagnano: O renascimento da lógica formal pura, característi- ca da época contemporânea, viria porém mediante uma retomada e um desenvolvimento, com ideias mais claras e maior independência das doutrinas metafísicas, das malogradas tentativas leibnizia- nas para construir a nossa disciplina na forma de cálculo simbólico. (ABBGNANO, 1982, p.599). Passemos à distinção da diferença entre origem e causalidade. Origem e causalidade A interpretação histórica, como toda interpretação, pode ser encaminhada pelas diversas vias prescritas pelos cânones da herme- nêutica. Não se pense que os equívocos da falácia genética, ou do “ídolo das origens” possam simplesmente afastar interpretação his- tórica. É de bom alvitre que o intérprete sopese a conveniência e a oportunidade de fazer uso das várias opções que múltiplos caminhos oferecidos pela boa hermenêutica, ressaltando que interpretação e hermenêutica não se confundem. [...] os termos interpretação, hermenêutica e exe- gese não se confundem. Hermenêutica (do grego hermeneutiké, arte de interpretar) é uma palavra grega que deriva de Hermes Trimegisto, deus egípcio cultuado também na Grécia antiga, ao qual os alquimistas atribuíam a criação da sua arte. 30 Era portanto uma divindade exotérica, guardado- ra de mistérios. Daí a expressão hermético, isto é, fechado, termo utilizado pelos alquimistas para denominar a lacração de determinados vasos. Her- mes Trimegisto era o deus revelador dos segredos da alquimia, e atribuía-se-lhe a invenção de uma fechadura perfeita [...]. Hermenêutica é a teoria geral da interpretação. Seu objetivo [...] a descoberta e a fi xação dos prin- cípios reguladores da interpretação em geral. (AC- QUAVIVA, 2000, p.728). A hermenêutica oferece vários caminhos aos que buscam o signifi cado e o alcance de fatos ou de textos. A interpretação pode ser gramatical, lógica, teleológica, sistemática, autêntica. Tais op- ções não se excluem, antes representam importantes oportunidades de complementação umas em face das outras. O primeiro caminho a ser examinado, se estamos pensando em fontes discursivas, quer sejam escritas ou orais, é o da interpretação literal, também chamada gramatical, fi lológica ou sintática. Refere-se aos elementos puramente verbais [...] ao real signifi cado dos seus termos e períodos que informa o texto. A etimologia e a sinonímia são inestimáveis auxiliares do emprego desse método. Formulada segundo os usos linguísticos da coleti- vidade, verifi ca tal método que o sentido de cada palavra varia no tempo e no espaço. A interpreta- ção gramatical busca estabelecer a coerência entre o signifi cado [...] e os usos linguísticos. (ACQUA- VIVA, 2000, p.730). 31 Busquemos o signifi cado dos “ídolos das origens”, segundo os usos linguísticos das palavras ídolo e origem, na forma da inter- pretação fi lológica. Ídolo, s.m. 1 imagem que representa uma divinda- de e que se adora como se fosse a própria divinda- de 2 fi g. Pessoa ou coisa intensamente admirada, que é objeto de veneração 3 rel. na tradição judai- co-cristã, individuo real, imagem representativa de uma entidade fantástica, ou a própria, consi- derados de maneira equivocada e herética, por- tadores de atributos divinos 4 fi l. Ideia ilusória, preconceito, equívoco usual que sacrifi ca a vera- cidade do conhecimento científi co e fi losófi co [...] (HOUAISS; VILAR; 2001, p.1.567, grifo nosso). Ídolo das origens aparece na escrita de Le Goff no quarto sentido entre os signifi cados listados pelo dicionarista retrocitado, indicando ideia ilusória, capaz de obscurecer a percepção do real. Só este sentido poderia provocar uma preocupação inserta nas cogita- ções ligadas à teoria e à metodologia da História. A palavra origem pode expressar diversos signifi cados semânticos: Origem: s.m. 1 – ponto inicial de uma ação ou coi- sa que tem continuidade no tempo e/ou no espaço; ponto de partida, começo, procedência 2 – local de nascimento [...] 4 – nascente de um rio 6 – fi g. Aquilo que provoca, ocasiona ou determina uma atitude, um acontecimento, a existência de algo; causa, razão [...]. (HOUAISS; VILAR; 2001, p. 2080, grifos nossos). 32 A origem histórica ou o “ídolo das origens” pode induzir o intérprete dos fatos e atitudes quando se expresse os seguintes senti- dos, dentre aqueles enumerados pelo dicionarista susotranscrito: pri- meiro quando se refi ra ao ponto inicial de ação ou coisa que tem con- tinuidade no tempo e/ou no espaço. É um erro supor que a História se mova sem rupturas. As permanências ou continuidades convivem, nos processos históricos, com as rupturas. Desprezá-las é equívo- co tão grave como superestimá-las. Não existem por certo, rupturas radicais, nos termos das ilusões revolucionárias que acalentavam o sonho do radicalmente novo. Igualmente necessário é reconhecer que a marcha da Histó- ria é implacável, não preserva continuidades integrais. Não existem origens cuja virgindade do signifi cado contemporâneo de sua gênese seja preservado. A ilusão da continuidade é uma das muitas pedras no sapato da falácia genética. O segundo motivo pelo qual a origem histórica ou o “ídolo das origens” induz a equívocos é que ele também signifi ca “aquilo que provoca, ocasiona ou determina uma atitude, um acontecimen- to, a existência de algo, causa, razão [sufi ciente] [acréscimo nosso]”, conforme registra o dicionarista retrocitado. Causalidade é algo mais complexo do que simplesmente a origem. Concomitância, ao lado da correlação em seus diversos graus, juntamente com a simples conti- guidade impedem a assimilação da causalidade pela simples origem. Esta é a outra razão pela qual as explicações genéticas ou arqueoló- gicas, fundadas nas origens históricas,quando postas nos termos do “ídolo das origens” constituem sofi smas. 33 A interpretação histórica tem o seu valor. Basta que seja es- coimada dos vícios aqui apresentados. A interpretação histórica dos textos contidos nas fontes escritas, como naqueles discursos colhi- dos nas fontes orais, consiste na investigação dos elementos remotos e próximos não explicitados. Trata-se de uma técnica que procura revelar o estado de espírito, as preocupações e os propósitos dos autores das informações veiculadas pelo referido discurso (ACQUA- VIVA, 2000, p. 731). A simples origem não se confunde com explicação causal, não confi gurando, por si só, razão sufi ciente para validar proposi- ções que se escudem em tal argumento. Assim também a origem pura e simples não serve para validar a compreensão. Causalidade é o que propõe em uma pesquisa explicativa. Estas assim se caracte- rizam como: Explicativa é a pesquisa que busca relações do tipo causa e efeito. Não basta que procure relações de quaisquer espécies. É preciso que vise àquelas relações pertinentes ao nexo de causalida- de. [...] O estabelecimento de um nexo de causali- dade quando apoiado em lei, no sentido científi co, como no exemplo [...] da queda dos corpos graví- dicos. (MARTINHO RODRIGUES, 2007, p. 30). Origem e compreensão A origem dos fenômenos, como dito, não pode ser explica- da simplesmente pela sua origem histórica. Existem, ainda, outras limitações aos estudos explicativos, quando se trata de fenômeno 34 histórico-social. Assim o é nos termos do entendimento segundo o qual explicação, no sentido causal, deve ensejar previsibilidade ou a explicação, sob pena de não ser válida. A previsibilidade, por isso, exige lei, no sentido científi co. Esta, por sua vez, é aqui defi nida como (I) um conjunto de fatores, que (II) em condições defi nidas (III) necessariamente causa um resultado previsto. Tal não existe nos fenômenos históricos. Esta classe de fenômenos tem um agente e este é sujeito da ação. A condição de sujeito exige ação voluntária. Caso condições defi nidas e conjuntos de fatores possam ne- cessariamente determinar um resultado, não haverá ação voluntária; nem haverá sujeito. Caso a História não tenha sujeito nós não somos sujeitos, nem somos responsáveis pelos nossos atos. Não ser sujeito é não alcançar a condição humana. Caso na História não haja ação voluntária não haverá história, mas unicamente fenômenos naturais. A falta de explicações em sentido estrito, a pesquisa histórica tem a oportunidade de se voltar para a compreensão dos fenômenos, ao invés de tentar explicá-los. Renunciando ao rigor das proposições armadas de leis e dotadas de previsibilidade, a metodologia com- preensiva busca os conhecimentos singulares; tenta alcançar o sig- nifi cado da ação social para o sujeito que a pratica. A pesquisa com- preensiva se propõe a agregar aos aspectos objetivos da investigação social os fatores subjetivos. Ambientes e fatos devem ser cuidadosa- mente pesquisados, componentes objetivos que são da história. A ação social infl uenciada pelas motivações subjetivas do su- jeito da história é o diferencial que distingue os estudos históricos e sociais da pesquisa dos fenômenos naturais. A origem histórica de um objeto de pesquisa pode revelar muito daquilo que é pertinente 35 aos fatores objetivos presentes na pesquisa. A subjetividade dos su- jeitos dos fenômenos históricos não pode ser objeto de generaliza- ções. A natureza política das decisões humanas se insinua em todos os domínios da História. As decisões políticas não são subsumidas às ponderações de ordem técnica, nem à racionalidade dos interesses matérias entendidos como cálculo. O caráter político-social de um problema consiste, precisamente, no fato de não se poder resolver a questão com base em meras considerações técni- cas, a partir de fi ns preestabelecidos e de os crité- rios reguladores de valor poderem ser postos em discussão, pois o problema faz parte de questões gerais de cultura. (WEBER, 1992, p. 112). A origem de um fenômeno natural pode elucidar todo o pro- blema de uma pesquisa. A origem de uma reação química ou de uma gravidez pode ter um fator ou conjunto de fatores determinantes, nas condições do fato, oferecendo sempre a previsão precisa de um resultado necessário. Para dominar o tempo e a história e satisfazer as próprias aspirações de felicidade e justiça ou os temores face ao desenrolar ilusório ou inquie- tante dos acontecimentos, as sociedade humanas imaginaram a existência, no passado [mito das origens?] e no futuro, de épocas excepcionalmen- te felizes ou catastrófi cas e, por vezes, inseriram essas épocas originais ou derradeiras numa série de idades, segundo uma certa ordem. (LE GOFF, 1996, p.283, acréscimo nosso, entre colchetes). 36 A ação social dos sujeitos da História não é assim. A contri- buição da origem histórica para a formulação de uma interpretação da conduta dos agentes é muito mais limitada porque este é o campo por excelência da pesquisa compreensiva. A investigação histórica enfrenta, além do problema da descoberta da realidade objetiva, o desafi o de entender o sentido da realidade.3 Devemos lembrar que entre a origem e o desenvolvimento do enredo histórico muitas coisas se juntam ao rio da História. Uma boa história é como um rio; as vezes ele pode ser rastreado até uma nascente nas colinas, mas o que ele se torna refl ete o cenário em meio ao qual fl ui. Há uma história, e essa história é marcada pela aparição de novos incidentes ou novos per- sonagens; sua cor muda; é contada em novos idio- mas; pode concentrar-se em uma balada ou uma canção, apenas para ser dispersa novamente, em formas narrativas mais prosaicas. (OAKESHOTT, 2003, p. 249). Algumas conclusões Marc Bloch deixou como legado, quando esperava a mor- te na prisão, uma agenda de estudos para os historiadores. Le Goff acolheu as indicações de estudo do citado mestre. Nós elegemos, em meio às numerosas sugestões de estudo, o “ídolo das origens”. Se- guir a senda indicada pelos mestres franceses levou à refl exão aqui apresentada. 3 Sobre o sentido da realidade, ver: BERLIM, Isaiah. O sentido da realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. 37 No curso das cogitações sobre a supervalorização da origem na pesquisa, como chave para a solução dos problemas históricos que desafi am a nossa compreensão, pude notar que o ídolo das ori- gens pode nos levar à falácia genética; ao reducionismo; ao determi- nismo; e à rendição às chamadas razões subjetivas, facilitadoras do autoengano. Também facilita a prática astuciosa do engodo e o ardil fraudulento. Tudo isso conspira contra a qualidade do trabalho do histo- riador. Digo isso sem nenhuma concessão às teorias conspiratórias. Bloch e Le Goff tinham fundadas razões para advertir-nos contra o perigo do ídolo das origens. Referências Bibliográfi cas ABBGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofi a. 2.ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982. ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário jurídico brasileiro Ac- quaviva. 11. ed. São Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 2000. BERLIM, Isaiah. O sentido da realidade. Rio de Janeiro: Civiliza- ção Brasileira, 1999. BLOCH, Marc. Apologia da história (ou o ofício do historiador). Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2001. BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. GUSMÃO, Luís de. O fetichismo do conceito (limites do co- nhecimento teórico na investigação social). 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2012. HOUAISS, Antônio; VILAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. 38 LE GOFF, Jacques. História e memória. 4. ed. Campinas: UNI- CAMP, 1996. MARTINHO RODRIGUES, Rui. Pesquisa acadêmica (como faci- litar o processo de preparação de suas etapas). São Paulo: Atlas, 2007. p. 30. MORA, J. Ferrater. Dicionário de Filosofi a. Tomo II, São Paulo: Loyola, 2000. NERICI, Imideo Giuseppe. Introdução à lógica.9.ed. São Paulo: Nobel, 1985. p. 77-79. OAKESHOTT, Michael. Sobre a história (e outros ensaios). Rio de Janeiro: Topbooks, 2003. p. 249. WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais. v. 1. São Paulo: Cortez, 1992. 39 O DESENVOLVIMENTO DO ESPÍRITO CRÍTICO NO ESTUDO DA HISTÓRIA Regina Cláudia Oliveira da Silva reginaclaudia@gmail.com Professora de História do Colégio Militar de Fortaleza (CMF) Doutora em Educação Brasileira (FACED – UFC) Francisco Ari de Andrade andrade.ari@hotmail.com Doutor em Educação Brasileira (UFC) Professor adjunto do Departamento de Fundamentos da Educação da Faculdade de Educação (FACED) e do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da UFC Introdução Papai, então me explica para que serve a história? (Étienne Bloch) Marc Bloch, francês e judeu, alistou-se ao exército de seu país aos 54 anos e foi fuzilado pela Gestapo em meados de junho de 1944, nos arredores de Lyon. Assim, Apologia da História ou o Ofício de Historiador, uma obra de metodologia histórica, inconclu- sa e escrita na prisão é, em sua essência, o produto de um momento histórico muito particular de seu autor tanto quanto esse momento foi marcante para a Humanidade: o da França subjugada, humilhada pela 40 derrota, pela ocupação e pela ignomínia de Vichy. Como bem observou Le Goff, “este livro inacabado é um ato completo de história”. Podemos dizer que é uma obra imprescindível à estante de qualquer historiador ou qualquer amante dos estudos da história e que sua admirável atualidade torna-a um clássico. Estruturada em cinco capítulos, principia por posicionar a história no tempo e por re- preender severamente a caça desesperada pela origem dos acon- tecimentos. Continua com um estudo da observação histórica por meio dos testemunhos e de sua transmissão. Segue com a críti- ca histórica, chamando a atenção para os erros e mentiras que se transformam em verdades históricas. No capítulo destinado à análise histórica, estabelece uma série de refl exões, através de um paralelo entre juiz e o historiador, questionando se a história pre- cisa julgar ou compreender. Por fi m, esboça um quadro refl exivo de indagações sobre fatos históricos. Obra póstuma, juntada e organizada por seu primogênito Étienne, faz perceber por Marc Bloch os elementares frêmitos de uma esperança, seja de uma libertação da história, seja de um avan- ço enquanto ciência histórica. O ponto de partida foi a questão de seu fi lho, que todos os historiadores ou professores de História têm grande chance de vivenciar, ou seja, a indefectível pergunta: para que serve a história? Essa ocorrência doméstica apresenta o núcleo de uma de suas convicções, isto é, do comprometimento do historia- dor em difundir e elucidar, “saber falar, no mesmo tom, aos doutos e aos estudantes”. A respeito dessa angústia professoral, é preciso destacar que é imperativo que se refl ita o ensino e o estudo da His- tória para além das dicotomias tradicionais que vemos normalmente 41 nas refl exões sobre didática, ensino e metodologia, ou seja, conser- vadora/renovada, clássica/atualizada, positivista/marxista, marxista/ culturalista, entre outras, e dar início a uma refl exão sobre o ensino e o estudo de História institucionalizado como um elemento social quase permanente, cujas motivações e lógica não estão restritas às discussões atuais a respeito de objetivos, conteúdos e métodos para a matéria, apenas. Uma de nossas principais afl ições como historiadores e pro- fessores de História incide na difi culdade de refl etir sobre a pesqui- sa e o ensino sem cair nos artifícios das “fi losofi as da história”. As implicações disto são muito sérias, uma vez que aludem tanto ao abandono da arrogância das pregações ideológicas quanto à concep- ção do ensino como um elemento meramente técnico e estratégico do ponto de vista da produção, que concentram os questionamentos curriculares, atitudes dos professores, reprovações e insucessos es- colares, enfi m, os debates sobre qualidade da educação, a uma mera lógica de prestação de serviço escolar. A docência faz parte do ofício de historiador. A didática da História, por sua vez, extrapola a discussão sobre métodos e técni- cas, tendo em vista que faz parte do seu perfi l o estudo da concepção e da dinâmica da consciência histórica (RÜSEN, 2006). A didáti- ca da história tende a evoluir para uma perspectiva refl exiva sobre a sociedade e o conhecimento histórico, desempenhando um papel analítico sobre a própria ciência da história, agindo como um recurso de autoconsciência desse campo. 42 É essencial, também, a compreensão da História que se aprende fora da escola, visto que diversas categorias sobre tempo, identidade, passado, são absorvidos antes, exterior e simultaneamen- te à educação formal. Quando chegam à aula de História, os alunos já trazem concepções, noções, ideias, conceitos, preconceitos e in- formações cujo aprendizado teve origem na experiência particular, na convivência em grupo e no contato habitual com os meios de comunicação de massa, especialmente a televisão. É importante que o professor contribua para a análise e entendimento desses proces- sos informais de aprendizado da História, sobretudo para identifi car eventuais fatores que motivam ou delimitam os alcances do apren- dizado e infl uenciam a compreensão da História, assim como para corroborar um processo educativo que cobice a criticidade, a criati- vidade e a tão ambicionada consciência histórica. A construção do espírito crítico a partir da obra de Marc Bloch O Capítulo III (A crítica) de Apologia da História ou o Ofí- cio de Historiador foi consagrado, obviamente, à crítica histórica, chamando a atenção para contra erros e mentiras que ganham ares de verdades para os homens. Bloch desenvolveu em suas refl exões, provavelmente, uma tentativa de fi xar uma lógica do método crítico que lhe consentisse recolocar, com suas particularidades, a história no contexto “das ciências do real”. Restringindo seu encargo pela garantia em dosar o provável do improvável, a crítica histórica não se caracteriza dentre a maioria das outras ciências do real, a não ser por um escalonamento de coefi cientes com nuances muito específi - cas. O capítulo se encerra em “horizontes bem mais vastos: a história 43 tem o direito de contar entre suas glórias mais seguras o fato de ter, ao elaborar sua técnica, aberto aos homens uma estrada nova rumo à verdade e, por conseguinte, à justiça.” (BLOCH, 2001, p.124). Apologia da História ou Ofício de Historiador foi a repre- sentação, em sua época, da atualização imprescindível e imperativa da crítica documental. Durante as duas Grandes Guerras Mundiais, Bloch foi testemunha da falência do espírito crítico e o império da propaganda, da manipulação assaz ameaçadora da documentação histórica no intuito de realizar a apologia de ideologias violentas. Bloch garante ter convivido com uma espécie de regresso à Idade Média durante a Primeira Guerra Mundial, quando a censura evitou qualquer mínima informação escrita, ou seja, foi o recuo à comuni- cação oral, que restituiu o ambiente medieval da crença, dos boatos, da contrainformação. Para Marc Bloch, o historiador necessita conservar-se “críti- co” e seu espírito investigativo precisa constituir a pesquisa estabe- lecendo problemas e conjecturas, além de apoiar-se em fontes pri- márias e secundárias, as mais variadas, criteriosas e criticadas com rigor máximo. Recomendou uma alteração de fontes, a fi m de avali- zar a segurança da informação. Como todo homem de ciência, este, conforme ex- pressão de Marc Bloch, deve, “diante da imensa e confusa realidade”, fazer “sua opção” – o que, evidentemente, não signifi ca nem arbitrariedade, nem simples coleta, mas sim construção científi - ca do documento cuja análise deve possibilitar a reconstituição ou a explicação do passado. (LE GOFF, 1995, p. 32). 44 Optou por “dar ouvidos” a códigos, tradições, representações culturais,princípios sociais, involuntária e inconscientemente his- toriados e quantitativamente tratáveis. A crítica documental carecia de uma revisão, uma transformação, para realmente se tornar uma prática científi ca. Sua lição segue moderníssima: “a investigação histórica admite, desde os primeiros passos, que o inquérito tenha já uma direção. De início, está o espírito. Nunca, em ciência alguma, foi fecunda a observação passiva, supondo, aliás, que seja possível.” (BLOCH, 2001, p.79). O acaso O acaso só favorece a mente preparada. (Louis Pasteur) Serendipidade, igualmente conhecido como Serendipismo4, Serendiptismo ou até mesmo Serendipitia, é um anglicismo que alu- de aos ditosos achados feitos, aparentemente, ao sabor do acaso. A história da ciência está cheia de episódios que podem ser considera- dos serendipismo. A apreciação original de serendipismo foi abun- dantemente usada em seus primórdios. Em nosso tempo, é mais es- timado como uma maneira particular de inventividade, ou uma dos 4 Serendib, por sua vez, é o nome que os mercadores árabes da antiguidade deno- minaram o Sri Lanka. Vale ressaltar que esse é apenas um entre múltiplos nomes postos nessa ilha na história em que conhecemos, dado que os cartógrafos gregos antigos a titulavam de Taprobana. A contemporânea denominação do país signifi ca Terra Resplandecente, no idioma sânscrito, segundo apontado nos antigos épicos indianos, como Mahabharata e Ramayana; enfi m, com a vinda dos portugueses, a ilha ganhou o nome lusitano de Ceilão, do qual resulta a variante inglesa Ceylon. 45 diversos artifícios de incremento da potencialidade criativa de um estudioso, um pesquisador, que congrega tenacidade, astúcia e senso de observação. O termo Serendipismo origina-se da expressão inglesa Seren- dipity, empregada pelo escritor britânico Horace Walpole em 1754, a partir da narrativa persa infantil Os Três Príncipes de Serendip. Esta história de Walpole descreve as aventuras de três príncipes do Ceilão, hoje Sri Lanka, que costumeiramente faziam descobertas repentinas, em que as implicações não estavam buscando efetiva- mente. Como fruto da habilidade deles de observação e esperteza, desvendavam acidentalmente a saída para dilemas imprevistos. Essa particularidade tornava-os especiais e admiráveis, por apresentarem um dom especial, além de exibirem uma mente aberta para as multí- plices possibilidades das coisas. Serendipidade (serendipity) é a faculdade de fa- zer descobertas interessantes por acaso, quando em busca de outra coisa. No caso da pesquisa científi ca, a ideia é a de que o objetivo é o avanço do conhecimento como um fi m em si mesmo; o que se descobre depois, “serendipicamente”, são as aplicações do conhecimento gerado. Em Bush (1990), os exemplos desse tipo de ocorrência na história da ciência são elevados a regra geral, re- sultando no princípio da serendipidade, ou seja, a proposição segundo a qual, entre as pesquisas científi cas, não se pode prever quais vêm de fato a proporcionar aplicações, nem o tipo de problema prático que as aplicações contribuem para resol- ver, quando existem. (OLIVEIRA, 2011, p. 532). 46 Seriam cientistas serendípicos, como Fleming e Röntgen, eram somente sortudos? Certamente que não. Sem as suas genia- lidades, os episódios acidentais que provieram na penicilina e nos raios-X não teriam sido observados. Tal qual citou Louis Pasteur, o grande nome da Medicina moderna, “o acaso favorece apenas as mentes preparadas”. Muitas vezes a vida da humanidade e a história das socieda- des, das civilizações, podem parecer uma trama do acaso. O acaso, essa ocorrência fortuita, a riqueza que aparece ou evanesce, o azar e a fortuna são dados permanentes da vida. Os religiosos veem no acaso um modo operacional da Divina Providência. Os ditos ateus raciocinam sobre ele quanto a uma revelação do caos absoluto e da ausência de signifi cado das coisas. Guerras foram vencidas pelo aca- so e descobrimentos da ciência que mudaram a vida da Humanidade sucederam acidentalmente. Mas, devemos refl etir, se é aceitável que existiria realmente um destino e o acaso seria tão somente a revela- ção de um projeto antecedente ou a imprevisibilidade seria uma mar- ca da existência humana, o acaso seria a intersecção da virtú e da for- tuna. Essas são questões da História e da Filosofi a: se há um projeto pré-concebido do desenrolar da história humana ou tudo é obra do acaso. Assim, caso haja uma “Providência” conduzindo os destinos da humanidade, haveria uma interferência no sentido de liberdade. Essas indagações atormentam o ser humano desde os seus primór- dios em toda a sua existência e fi zeram jus a distintas respostas no percurso humano. Em essência, trata-se de perquisição a propósito do próprio signifi cado da História: existe um sentido direcionador da marcha humana sobre a Terra? Sobre o tema, afi rma Marc Bloch, no item dois da Crítica denominado “a tentativa de uma lógica do método crítico”: 47 Avaliar a probabilidade de um acontecimento é estimar as chances que tem de se produzir. Pos- to isto, será legítimo falar da possibilidade de um fato passado? No sentido absoluto, evidentemente não. Só o futuro é aleatório. O passado é um dado que não deixa mais lugar para o possível. Antes do lance de dados, a probabilidade para qualquer das faces era de um sobre seis; lançados os dados, o problema desaparece. Pode ser que hesitemos mais tarde, se nesse dia desse o três ou então o cinco. A incerteza está portanto em nós, em nossa memória ou na de nossas testemunhas. Não nas coisas. Analisando com calma, no entanto, o uso que a pesquisa histórica faz da noção do provável nada tem de contraditório. Com efeito, o que tenta o historiador que se interroga sobre a probabilida- de de um acontecimento ocorrido senão transpor- tar-se, por um movimento ousado do espírito, para antes desse próprio acontecimento, para ponderar sobre suas chances tal como se apresentavam às vésperas de sua realização? A probabilidade per- manece, portanto, de fato no futuro. Mas tendo sido a linha do presente, de certo modo, imagina- riamente recuada, trata-se de um futuro de outrora, construído com um pedaço daquilo que, para nós, é atualmente o passado. Se o fato aconteceu de maneira incontestável, essas especulações não têm valor senão de jogos metafísicos. Qual era a pro- babilidade de Napoleão nascer? De Adolf Hitler, soldado em 1914, escapar das balas francesas? Não é proibido divertir-se com tais perguntas. Sob a condição de considerá-las apenas pelo que real- mente são: simples artifícios de linguagem desti- nados a trazer à luz, na marcha da humanidade, a parte de contingência e de imprevisibilidade. Elas nada têm a ver com a crítica do testemunho. A pró- pria existência do fato parece incerta, ao contrá- 48 rio? Duvidamos, por exemplo, de que um autor, sem ter copiado um relato alheio, esteja em condi- ções de repetir, espontaneamente, muitos de seus episódios e muitas de suas palavras; que só o aca- so ou não sei que harmonia divinamente preesta- belecida bastem para explicar, desde os Protocolos dos sábios de Sião até os panfl etos de um obscuro polemista do Segundo Império, semelhança tão espantosa? Conforme a coincidência pareça afeta- da por um maior ou menor coefi ciente de probabi- lidade, antes de o relato ter sido composto, admiti- remos sua verossimilhança hoje ou a rejeitaremos. A matemática do acaso, no entanto, repousa numa fi cção. Em todos os casos possíveis, postula, de saída, a imparcialidade das condições: uma cau- sa particular que, previamente, favorecesse um ou outro seria um corpo estranho no cálculo. O dado dos teóricos é um cubo perfeitamente equilibrado; se sob uma de suas faces insinuássemos um grão de chumbo, as chances dos jogadores deixariam de ser iguais. Mas, na crítica do testemunho, todos os dados estão viciados. Pois elementos muito de- licados intervêm constantemente para fazer a ba- lança pender para umaeventualidade privilegiada. (BLOCH, 2001, p. 117-118). Marc Bloch, para quem “a compensação dos erros é um dos capítulos clássicos da teoria do acaso (2001, p.119)”, faz um ensaio de uma lógica do método crítico e demonstra como o método crítico é fundamentado em alegorias e símbolos, pelo conjunto de objetos, documentos e outras marcas e resquícios encontrados no percurso, por exemplo, de uma série de escavações, achados etc., ponderamos so- bre o documento que está em nossa mão. Quando é impossível confron- tar, não podemos delinear o seu período, isto é, não temos condições de 49 contextualizar o documento. Quando disse que “na base de quase toda a crítica inscreve-se em trabalho de comparação” (BLOCH, 2001, p.143), buscou mostrar que a história tem o direito de narrar que em meio às suas glórias, já tem organizada uma técnica sua para entendimento do documento, o método crítico, assim, descortina um caminho novo para aquilo que é certo, tem verdade e justiça. A bem da verdade, diz Bloch, uma disciplina da história faz exceção: É a linguística, ou pelo menos aquela de suas ramifi cações que se empenha em estabelecer os parentescos entre as línguas. Bem diferente, por seu alcance, das operações propriamente críticas, essa investigação não deixa de ter com muitas delas, como característica comum, o esforço de descobrir fi liações. Ora, as condições sob as quais ela raciocina estão excepcionalmente próximas da convenção primordial de igualdade, familiar à teoria do acaso. Ela deve essa prerrogativa às próprias particularidades dos fenômenos da linguagem. Não apenas, com efeito, o imenso número de combinações possíveis entre os sons reduz a um valor ínfi mo a probabilidade de sua repetição fortuita, em grande quantidade, em diferentes falares. Coisa ainda muito mais importante: deixando de lado algumas raras harmonias imitativas, as signifi cações atribuídas a essas combinações são completamente arbitrárias. Nenhuma associação de imagens impõe que as associações vocais bastante vizinhas tu ou tou (“tu” pronunciado à francesa ou à latina) sirvam para notar a segunda pessoa [muito evidentemen- te]. Se portanto constatamos que têm esse papel, ao mesmo tempo, em francês, italiano, espanhol e romeno; se observamos, ao mesmo tempo, en- 50 tre essas línguas, uma multiplicidade [de outras] correspondências, igualmente irracionais, a única explicação sensata será que o francês, o italiano, o espanhol e o romeno têm uma origem comum. Porque os diversos possíveis eram humanamente indistintos, um cálculo das chances quase puro impôs a decisão. (BLOCH, 2001, p.118). Em busca da mentira e do erro Na concepção de Marc Bloch, o historiador deve estar per- manentemente prevenido à manipulação de documentos alusivos ao autor, à data e ao conteúdo. No prefácio da obra aqui estudada, Jac- ques Le Goff comenta: Marc Bloch estende-se longamente sobre um pro- blema caríssimo a ele, o da “busca do erro e da mentira” dos quais teve a experiência não apenas em seu trabalho de historiador, mas também em sua vida de homem e de soldado, através das fal- sas notícias da Grande Guerra. Experiência que o marcou a ponto, como observamos Carlo Gin- zburg e eu próprio, de ter infl uenciado sua pes- quisa sobre os Reis taumaturgos, benefi ciários da credulidade popular, que acreditou, durante sécu- los, no poder dos reis da França e da Inglaterra de curar os escrofulosos. Marc Bloch desfi a então minuciosamente as condições históricas dos tipos de sociedades sujeitas, como a do Ocidente me- dieval, a crer não no que se via na realidade, mas naquilo que, em uma certa época, “achava-se na- tural ver.” (BLOCH, 2001, p. 29). 51 As cartas assinadas por Maria Antonieta, como cita, são fal- sas porque foram escritas no século XIX. Essa constatação só admite comprovação pela comparação com cartas da época, a considerar os tipos de papel, os desenhos das caligrafi as e as fi guras de linguagem. Entretanto, o embuste igualmente é um testemunho histórico muito rico para que o historiador possa compreender as intencionalidades. Sobre mentira5 e erro é interessante essa opinião de Jacques Derrida: Em princípio, porém, e em sua determinação clássica, a mentira não é o erro. Pode-se estar no erro, enganar a si mesmo sem intenção de enga- nar os outros e, portanto, sem mentir. É verdade que mentir, enganar e enganar a si mesmo se ins- 5 A defi nição kantiana da mentira ou do dever de veracidade apresenta-se como tão formal, imperativo e incondicional, que parece excluir justamente qualquer consi- deração histórica, qualquer fator ligado a condições ou hipóteses históricas. Sem se debruçar, à maneira de um casuísta, sobre todos os casos difíceis e inquietantes analisados por Santo Agostinho, partindo no mais das vezes de exemplos bíblicos, Kant parece excluir todo conteúdo histórico quando defi ne a veracidade (Wahrha- ftigkeit: veracitas) como um dever formal absoluto: “A veracidade nas declarações é o dever formal (formale Pfl icht) do homem com relação a cada um, por mais gra- ve que seja o prejuízo que dela possa resultar” (DERRIDA, 1996, p.15). Alguns esclarecimentos julgamos importante pontuar, quais sejam: tal qual o pensamento de Martinho Rodrigues, “a verdade moral é a concordância entre o pensamento ou conhecimento e o que é declarado; a verdade objetiva é a concordância entre a declaração e os fatos; a verdade lógica é a concordância entre proposições e as conclusões; a verdade ontólogica é a concordância entre o declarado e a metafísica do ser. Provavelmente o sentido moral é o mais problemático de se distinguir em meio às fontes histórica, depois do metafísico, que é inatingível. Quem dizia que a terra era plana, em certa época, embora estivesse objetivamente errado, estava emitindo uma declaração em concordância com o que realmente pensava, verdade moral que pode ser descrita como declaração sincera, porém objetivamente errada. Poderia, talvez, referir-se à verdade lógica, já que falácia é um erro lógico involun- tário, o que exclui o propósito de enganar (havendo tal propósito temos sofi sma, engodo, mentira, simulação)”. 52 crevem igualmente na categoria do pseudológico. Pseudos, em grego, pode signifi car a mentira tanto quanto a falsidade, o ardil ou o erro, o engano pro- positado, a fraude, assim como a invenção poé- tica, o que multiplica os mal-entendidos sobre o que o mal-entendido pode signifi car – e isso não simplifi ca a interpretação de um diálogo refutati- vo tão denso e agudo quanto o Hippias menor (é peri tou pseudous anatreptikos). É verdade tam- bém que Nietzsche parece suspeitar o platonismo ou o cristianismo, o kantismo e o positivismo de terem mentido ao tentar nos induzir a acreditar no mundo verdadeiro. Mentir não é enganar-se nem cometer erro; não se mente dizendo apenas o fal- so, pelo menos se é de boa fé que se crê na verdade daquilo que se pensa ou daquilo acerca do que se opina no momento. É o que lembra Santo Agosti- nho na abertura de seu De mendacio no qual, aliás, propõe uma distinção entre crença e opinião que poderia ser para nós, ainda hoje, hoje de forma nova, de grande alcance. Mentir é querer enganar o outro, às vezes até dizendo a verdade. Pode-se dizer o falso sem mentir, mas pode-se dizer o ver- dadeiro no intuito de enganar, ou seja, mentindo. Mas não mente quem acredita naquilo que diz, mesmo que isto seja falso. Ao declarar: “Quem enuncia um fato que lhe pare- ce digno de crença ou acerca do qual formava opi- nião de que é verdadeiro, não mente, mesmo que o fato seja falso”, Santo Agostinho parece excluir a mentira a si mesmo, e aqui está uma pergunta que não nos deixará jamais: será que é possível mentir a si mesmo, será que qualquer forma de enganar a si mesmo, de usar de subterfúgio para consigo me- rece o nome de mentira? (DERRIDA, 1996, p. 8). 53 Cita Marc Bloch que o relato do soldado francês Marbot, que profere ter derrotado sozinho um batalhão na guerracontra a Alema- nha em princípios do século XIX, é uma notória mentira, uma vez que coisa nenhuma consta do acontecido nos documentos alemães, muito menos nos dos combatentes franceses. Não obstante, é sabi- do que posteriormente chegou uma solicitação de promoção militar feita a Napoleão, escrito por Marbot. É cabível destacar, no entanto, que erros propositados do próprio contexto podem ocorrer amiúde e, sendo assim, a historiografi a recorre à psicologia do testemunho, mormente para apreender como a familiaridade de uma circunstân- cia, a cotidianidade de uma experiência, pode torná-la praticamente invisível pela sociedade que a vivencia, ou, ainda, identifi car oca- siões de aversão, fadiga, temor e agonia que podem interromper ou cruzar os relatos, alterando-se de distintas maneiras. A maior parte desses aspectos pode ser entendida ou interpretada a partir do am- biente social do período. Uma passagem do texto de Bloch, por de- mais interessante, pode ilustrar essa assertiva: Para que um testemunho seja reconhecido como autêntico, o método, vimos isso, exige que ele apresente uma certa similitude com os testemu- nhos vizinhos. Se aplicarmos, entretanto, esse preceito ao pé da letra, o que seria da descoberta? Pois quem diz descoberta diz surpresa, e desseme- lhança. Uma ciência que se limitasse a constatar que tudo acontece sempre como se esperava não teria uma prática proveitosa, nem divertida. Até agora não se encontrou documento redigido em francês (em vez de sê-lo, como precedentemente, em latim) anterior ao ano 1204. Imaginemos que amanhã um pesquisador produza um documento 54 francês datado de 1180. Concluiremos daí que o documento é falso? Ou que nossos conhecimentos eram insufi cientes. (BLOCH, 2001, p. 115). Quando um historiador se utiliza de um documento, tem o de- ver de apontar, o mais concisamente possível, a sua origem, linhagem, genealogia, ou seja, a maneira de localizar, obrigação que equivale a mostrar submissão a um princípio universal de retidão, equidade. Por certo que grande parte dos registros assinados com um codino- me, faltam com a verdade igualmente pelo conteúdo. Os Protocolos dos Sábios de Sião, por exemplo, afora não serem dos Sábios de Sião, apartam-se na sua autoridade e valor da verdade tanto quanto imaginável. Há documentos ditos ofi ciais, usa- dos pelos pesquisadores como fontes documentais ofi ciais, que re- gularmente são elaborados repletos de inexatidão voluntária, ou não. Assinados por autoridades, sacralizam-se dentro da ofi cialidade da pesquisa e, vale lembrar, “por mais maravilhosamente atento que imaginemos o erudito, restarão sempre as armadilhas engendradas pelos próprios documentos (BLOCH, 2001, p. 114). Dessa maneira, verifi car a falsidade não é o sufi ciente. É fun- damental descobrir-se ainda os ensejos que levaram à elaboração desse documento. Afora uma mentira como tal, é à sua maneira um testemunho. Não é incomum que diversas testemunhas possam se enganar com plena boa fé. Além disso, não consistindo testemunhos propriamente apenas a expressão de recordações, as falhas iniciais da percepção estão sujeitas continuamente ao risco de se confundir com falhas de memória. 55 Jacques Le Goff, na sua biografi a de São Luís, nos oferece alguns exemplos sobre “as verdades” dos testemunhos. Na procura implacável de concretudes cobertas pelos estereótipos clericais e dos clichês instituídos pelos difusores da memória monárquica, Le Goff se comporta, como em suas próprias palavras, tal qual um “ogro his- toriador amador da carne fresca da história que lhe é tão frequente- mente recusada.” (1999, p. 129). A sua carne fresca, os indicativos de vida real, Le Goff descobriu nas memórias de um leal seguidor do rei, que não era monge, muito menos legista do palácio, porém um homem de armas: o cavaleiro Jean de Joinville. Assim, a biografi a de São Luís, estruturada por Joinville, octogenário em 1309, é o ex- clusivo testemunho de outra face do rei, que delineia seus gestos co- tidianos, suas linhas de conduta reservadas. Perante tal testemunho, Le Goff afi rma que o historiador tem então “o sentimento raro e sem dúvida enganador, mas ao qual fi nalmente, exercido todo o seu dever crítico, fi ca reduzido de confi ar para julgar sobre a autenticidade de um testemunho, de estar diante do ‘verdadeiro’ São Luís.” (1999, p. 430). Le Goff destrincha as intrigas que regem as diferentes faces que constituem a personalidade que biografa. Dessa maneira, São Luís não é tão somente o monarca que criou moedas de ouro, “o rei da prosperidade econômica e da riqueza fi nanceira”. É também vários reis ao mesmo tempo, como o rei “menino”, o “cavaleiro”, o “primeiro a levar à morte hereges condenados pela Inquisição”, o “primeiro capetiano legislador”, o “justiceiro”, o “pacifi cador”, o “feudal”, o “devoto”, o “das relíquias”, o “escatológico”, o “das fl o- res-de-lis”, o “Sol”, o “da escrita”, o “cruzado tradicional”, o “guer- reiro”, o “da derrota” e, não bastassem tantas denominações, era 56 também o rei “sofredor”, o “rei-Cristo”, o “rei-hóstia”, o “santo”, o “taumaturgo”, o “sagrado”6. Originárias de uma interpretação alicerçada por uma coleta extenuante de fontes manuscritas e impressas, conferidas, replicadas e contestadas, as diversas camadas, que se reúnem em torno de tão exponencial personagem político, cosem sua fi gura régia e a implan- tam na memória da monarquia francesa. Entretanto, não seriam re- veladas sem uma meticulosa crítica externa, que divulga os lugares de produção, movimentação e assimilação das falas a propósito de São Luís. É assim que Le Goff busca, antes de aventurar-se a deli- berar sobre o gênio, o humor ou o caráter pessoal dessa personali- dade histórica, conferir o que os contemporâneos proferiam sobre sua conduta com as categorias éticas de seu período histórico e o conjunto de conceitos dos autores de suas representações literárias. Discorrendo sobre a mentira da interpretação, Michel de Cer- teau aponta uma questão a refl etir e contribui com o discurso que buscamos construir com esse texto, quando diz: Estas poucas chamadas apenas situam o que se passa também em Loudun, quando o problema da verdade (ou da “adequação entre uma palavra e uma coisa”) toma a forma de um lugar instável. Uma verdade se torna duvidosa. No campo onde se combinam signifi cantes não se sabe mais se eles entram na categoria de “verdade” ou na de seu 6 Por toda a grandiosa obra de Le Goff sobre São Luís, muitas denominações serão conferidas na leitura. As que aqui citamos podem ser conferidas, em sequências de apresentação, nas páginas 53; 70; 84; 102 e 341; 59; 205, 215, 218 e 291; 62, 193, 238; 112, 115 e 130; 317; 285 e 378; 300-321; 166; 405-761; 168; 747, 755. 57 contrário a “mentira”, se eles se referem à realida- de ou à imaginação. Um discurso se desfaz então, como testemunham as possuídas, aproveitando-se deste jogo para nele insinuar “outra coisa” que as têm “tomadas” e esboça na linguagem da ilusão a questão do sujeito. (CERTEAU, 1982, p. 264). Finalmente, é da crítica do testemunho que nos fala Marc Bloch: aquela que atua sobre realidades psíquicas, continuará sem- pre uma arte sutil. Não há receita para a sua constituição, mas é ainda uma arte racional que abanca na prática metódica de determinadas grandes operações do espírito. No tempo presente, a época mais su- jeita às peçonhas do embuste e da boataria, seria escandaloso que o método crítico não existisse, mesmo que modicamente, nos pro- gramas de ensino e pesquisa, bem como nas pesquisas individuais daqueles que se interessam pelas artes da história. Podemos dizer que, para um trabalho sério em história, essa postura é fundamental. Conclusão No prefácio de Jacques Le Goff para Apologia da História ou o Ofício de Historiador, obra emblemática de Marc Bloch, lemos que esta não constitui um ponto de chegada, mas de partida. Em essência é uma defesa da História, que defende o historiador
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