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Conflitos no território caiçara

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
RAFAELA VIANNA WAISMAN
RESERVA DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DE BARRA DO UNA:
CONFLITOS AMBIENTAIS NO TERRITÓRIO CAIÇARA
Belo Horizonte
2019
Rafaela Vianna Waisman
RESERVA DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DE BARRA DO UNA:
Conflitos ambientais no território caiçara
Trabalho apresentado na disciplina de Ecologia Política, como requisito parcial para obtenção do título de bacharel em Ciências Socioambientais na Universidade Federal de Minas Gerais.
BELO HORIZONTE
2019
RESERVA DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DE BARRA DO UNA: Conflitos ambientais no território caiçara
INTRODUÇÃO
Em outubro de 2019 estive participando do Encontro Nacional dos Estudantes de Ciências Ambientais (ENECAMB), evento que foi hospedado pela comunidade de Barra do Una, atualmente catalogada no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) como uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS). Localizada no litoral sul do estado de São Paulo, Barra do Una é um território tradicional caiçara, marcado por conflitos socioambientais tão antigos quanto a colonização portuguesa, no século XIV. A RDS Barra do Una compõe o Mosaico de Unidades de Conservação da Jureia-Itatins. 
No curto período em que estive na comunidade, tive a oportunidade de, muito informalmente, conversar com alguns moradores sobre sua vida na vila, suas visões sobre certos conflitos, sua relação com o passado, entre outros temas que eram trazidos à tona pelos moradores com quem conversei. A partir dessas conversas, me interessei em buscar notícias e trabalhos sobre as comunidades caiçaras da região, para analisar os relatos sob o olhar da ecologia política. Pesquisei e selecionei em sites ligados às questões socioambientais e políticas notícias sobre os conflitos relatados pelos moradores da Vila de Barra do Una. 
 Para compreender o contexto social investigado, me apoiei em dados secundários das seguintes fontes:
1) “Do passado ao futuro dos moradores tradicionais da Estação Ecológica Jureia-Itatins/SP”. Dissertação de Márcia Nunes, do NUPAUB - Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas e Áreas Úmidas Brasileiras, da Universidade de São Paulo
2) “Carta aberta sobre os recentes eventos na E.E. Jureia-Itatins”, publicada em 27 de julho de 2019, assinada por 219 pesquisadoras/es de diversas Universidades do Brasil e do Mundo, além de outras 63 pessoas de organizações governamentais e não-governamentais. 
Os moradores com quem conversei na vila de Barra do Una se reconhecem e se auto identificam como Caiçaras, devido ao que compartilham como o território, a ancestralidade, os conhecimentos e os modos de vida tradicionais preservados, ainda que alguns hoje somente em memória. Não entrarei na discussão antropológica sobre territorialidade e etnicidade, adotando o termo “caiçara” conforme utilizado pela própria comunidade.	Comment by Rafaela Vianna Waisman: corrigir
 Começo com um panorama sobre os conflitos conhecidos e como esses grupos se organizaram politicamente em resistência. Em seguida vou apresentar trechos de notícias nas quais identifiquei queixas e denúncias semelhantes às dos moradores com quem conversei na vila de Barra do Una, para então discuti-las. Pretendo com isso explicitar as práticas de governança e os desdobramentos dos conflitos ao longo do tempo.
Desenvolvimento sustentável, Unidades de Conservação e participação social
	No Brasil, a década de 1980 foi marcada pelo avanço das fronteiras desenvolvimentistas, passando por cima de povos, territórios, e ecossistemas, causando muita degradação ambiental e levando a diversos conflitos ambientais. Esta foi também a década do surgimento de movimentos socioambientalistas, quando os “povos da floresta” - grupos indígenas, ribeirinhos, seringueiros, entre tantos outros grupos tradicionais - surgem organizados politicamente, tornando-se “protagonistas na história de superação da dicotomia sociedade-natureza e da promoção do desenvolvimento sustentável” (ANDRÉA ZHOURI; KLEMENS LASCHEFSKI, 2010, p.12). 
	Três décadas se passaram e o modelo de “desenvolvimento sustentável” que foi institucionalizado não é aquele idealizado e reivindicado pelos movimentos e ativistas. Com a publicação do relatório Brundtland (1987), o conceito de “desenvolvimento sustentável” admite que o modelo exploratório industrial encontra em sua própria lógica as limitações para seu crescimento e continuidade. Entretanto, oferece como solução o desenvolvimento de tecnologia “verde” e o desenvolvimento econômico dos países de “terceiro mundo”. Isso erradicaria a pobreza, e com ela, a degradação ambiental. 
A ideologia da modernização ecológica é adotada pelo mercado como novo paradigma, numa adaptação aos ideais da economia de mercado, com argumentos baseados na crença de que o desenvolvimento da ciência e de novas tecnologias mais “eficientes” serão capazes de garantir a exploração perpétua dos “recursos naturais”, pelo emprego do manejo técnico dos ambientes (racionalidade ambiental).
O paradigma da modernização ecológica e suas instâncias de poder hegemônico desqualificam conhecimentos tradicionais e se apropriam de territórios para impor seu uso dos espaços, gerando conflitos ambientais territoriais:
Conflitos ambientais territoriais: [...]conflitos entre grupos hegemônicos da sociedade urbano-industrial-capitalista e os grupos chamados tradicionais, que não são ou apenas parcialmente encontram-se inseridos nesse modelo de sociedade. Para os últimos, a comunidade e o território, com suas características físicas, representam uma unidade que garante a produção e a reprodução dos seus modos de vida - entendidos em suas facetas econômicas, sociais e culturais - algo que resulta numa forte identidade com o espaço onde se vive. (ZHOURI; LASCHEFSKI, 2010, p.23)
Para suprimir os conflitos que poderiam se tornar obstáculos ao crescimento econômico, a perspectiva política que se consolida faz surgir dispositivos de governança social, como a participação na gestão ambiental e social. Mas o que é apresentado como um espaço de diálogo e de autonomia para as comunidades vai na prática funcionar como um meio de “conciliação de interesses econômicos, ambientais e sociais” (Ibid. p.13). Ao invés de conceder às comunidades o poder de decidir sobre seus territórios, como era reivindicado pelos movimentos, a participação social é instrumentalizada a fim de legitimar decisões tomadas, em grande parte, de forma vertical entre políticos e grandes empreendedores, ou pelos agentes dos órgãos de governo.
Mosaico de U.C. Jureia/Itatins e a RDS Barra do Una
Figura 1: Mosaico Jureia-Itatins (Boletim. Governo do Estado de São Paulo, 2006 <http://arquivos.ambiente.sp.gov.br/fundacaoflorestal/2012/03/Anexo1_Boletim_Mosaico_Jureia.pdf> )
É neste lugar entre a autonomia sobre seu território e a governança ambiental que se encontram os moradores da Vila Barra do Una. Submetidos pelo Estado desde a criação da E.E. Jureia, vivem sob pressão constantemente, conforme pude perceber na minha visita à comunidade e na leitura da Carta:
“O modelo de conservação ‘Estação Ecológica’, teve origem inicialmente no Decreto Federal 84.771, de 1980, que previa a construção das Usinas Nucleares 4 e 5 na região da Jureia, e pelo Decreto Federal 84.973/80, que tornava obrigatória a criação de Estações Ecológicas onde houvesse usinas nucleares. Com as mudanças nesse decreto, a desistência do governo federal em construir as usinas nucleares, e a pressão imobiliária crescente no litoral sul paulista, os caiçaras se aliaram aos ambientalistas para resistir às sucessivas investidas na região. A pressão do movimento ambientalista paulista, por fim, resultou na criação da EEJI. Para os caiçaras, porém, essa Estação Ecológica acarretou em obstáculos crescentes a sua permanência na região.” (CARTA ABERTA SOBRE OS RECENTES EVENTOS NA E.E. JUREIA-ITATINS, 2019, p.1) (grifo meu).
Desde a criação da E.E. os moradores vêm relatando a crescente proibição aosmodos de vida tradicionais caiçara. As pessoas com quem conversei me contaram como era a vida antes da criação da E.E: haviam as roças familiares, no alto do morro, na qual trabalhavam em regime de mutirão; praticavam a pesca e coletavam na mata outros alimentos, principalmente o palmito jussara. Era comum que os pais levassem os filhos nessas atividades, o que fortalecia os laços entre as gerações e garantia a continuidade das tradições. Os moradores relatam que, desde a criação da U.C., tais atividades foram proibidas: 
“Acontece uma expulsão pelo cansaço porque o governo não veio e tirou cada um de uma vez, nem tirou todo mundo de uma vez só, mas foi tirando o direito de plantar, de pescar, da convivência, negou escola, tirou as estradas e caminhos. As pessoas começam a passar fome, necessidade. O Estado foi impedindo a liberdade que as comunidades tinham, foi fazendo com que nosso modo de vida deixasse de existir.” (BRASIL DE FATO, 2019)
Após anos de luta, os caiçaras conseguiram que duas áreas deixassem a categoria de Estação Ecológica para Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS). Despraiado e Barra do Una passam a RDS em 2006. Entretanto, a proibição aos modos de vida caiçara já causou o efeito de uma descontinuidade cultural, como o gradual abandono de suas antigas casas. "A gente não podia mais abrir roças, caçar ou retirar palmito. Só sobrou a pesca" (BBC, 2018) Isso tem acontecido pois há anos não conseguem autorização da Fundação Florestal para reformar suas casas ou construir novas. 
A Fundação Florestal é o órgão responsável pela fiscalização e administração das U.C.s no âmbito estadual em São Paulo. Entretanto, não são incomuns ações de criminalização dos moradores, como nos eventos que levaram à publicação da Carta Aberta dos pesquisadores, em apoio aos caiçaras da Jureia, quando a polícia ambiental derrubou três casas de caiçaras na Estação Ecológica, sob argumento de que ocupavam uma área ilegal (ibid).
Na Barra do Una a situação é bem parecida. Ouvi relatos de que recentemente diversas famílias tiveram suas casas derrubadas e foram expulsas da Vila. Famílias estabelecidas há mais de 50 anos no lugar, cujos filhos nasceram e cresceram lá. O argumento é de que “não eram caiçaras de verdade”. Todavia, os moradores discordam e vêm isso como uma estratégia para enfraquecer a comunidade. Relatam que pessoas “vindas de (cidade de) São Paulo com dinheiro” conseguem comprar lotes e construir casas, que serão usadas para turismo. O acesso aos recursos das florestas e das águas, nos territórios onde os povos caiçaras têm vivido desde o século XIX, é negado a eles, ao mesmo tempo em que se permite a exploração turística. Assim, como existe uma dinâmica dialética entre os conflitos ambientais, territoriais e distributivos (ZHOURI et al, 2010), neste caso observa-se também um conflito distributivo.
Da mesma forma, a extração de palmito das florestas e a pesca nos territórios caiçaras tem sido usado como forma de criminalização dos moradores, que relatam violência descabida por parte dos agentes do Estado. Invasão de casas, multas, perseguição são algumas das violências relatadas. Por fim, a marginalização e criminalização desses povos fica evidente ao consultar alguns dicionários, que ainda registram "sujeito ordinário, sem serventia", "malandro", vagabundo" e "bronco" como significados do termo caiçara (BBC, 2018).
Considerações 
	A criação de Unidades de Conservação tem o intuito de preservar o ambiente da degradação ambiental. Entretanto, a ciência já superou o paradigma da dicotomia “sociedade X natureza”. É preciso conceder de fato o poder de decisão sobre suas vidas e territórios aos povos tradicionais. Se existem florestas em pé, se há biodiversidade conservada atualmente em seus territórios, essa é uma prova de que os modos de vida caiçara são capazes de promover a desejada conservação ambiental.
	
ACSELRAD, Henri. Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2004 (cap. 1).
ESTEVA, Gustavo. "Desenvolvimento" In. W. Sachs (org.) O Dicionário do Desenvolvi-mento. São Paulo: Editora Vozes, 2000.
FUHRMANN, Leonardo. A luta dos caiçaras para não perder heranças do passado após ver terras virarem reservas ou condomínios. BBC, 2018. <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46243374> Acessado em 27/11/2019
Fundação Florestal. <https://www.infraestruturameioambiente.sp.gov.br/fundacaoflorestal/institucional/missao/> Acessado em 27 de nov de 2019
NOGUEIRA, Pedro Ribeira. Polícia derruba casas de caiçaras na Estação Ecológica Juréia-Itatins. Brasil de fato, 2019. <https://www.brasildefato.com.br/2019/07/04/policia-derruba-casas-de-caicaras-na-estacao-ecologica-jureia-itatins/> Acessado em 27 de nov de 2019
NUNES, Márcia. Do passado ao futuro dos moradores tradicionais da Estação Ecológica Jureia-Itatins/SP. Dissertação de mestrado. NUPAUB - Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas e Áreas Úmidas Brasileiras. Universidade de São Paulo, 2003.
ZHOURI, Andréa; Klemens Laschefski. "Conflitos ambientais." Publicação do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais da Universidade Federal de Minas Gerais–GESTA/UFMG (2010)
ZHOURI, Andréa, Laschefski, Klemens e Pereira, Doralice (orgs) “A Insustentável leveza da Política Ambiental. Desenvolvimento e Conflitos Socioambientais. Belo Horizonte, Autêntica, 2005.
ZHOURI, Andréa. O ativismo transnacional pela Amazônia: entre a ecologia política e o ambientalismo de resultados. Horiz. Antropol., Porto Alegre , v. 12, n. 25, p. 139-169, June 2006. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-71832006000100008&lng=en&nrm=iso>.
ZHOURI, Andréa, LASCHEFSKI, Klemens e PEREIRA, Doralice. “Introdução. Desen-volvimento, Sustentabilidade e Conflitos Socioambientais. IN: ZHOURI, Andréa, LAS-CHEFSKI, Klemens e PEREIRA, Doralice (orgs) A Insustentável leveza da Política Ambi-ental. Desenvolvimento e Conflitos Socioambientais. Belo Horizonte, Autêntica, 2005.

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