Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 2 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................. 3 2 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE BILINGUISMO ..................................... 4 3 BILETRAMENTO ....................................................................................... 20 4 ALFABETIZAÇÃO ...................................................................................... 22 5 BILINGUISMO E BILETRAMENTO: UMA BREVE RETOMADA DE CONCEITOS .............................................................................................................. 25 6 A TEORIA SOCIOCULTURAL E O ENSINO-APRENDIZAGEM DE SEGUNDA LÍNGUA.................................................................................................... 32 7 TAREFAS COLABORATIVAS E O ENSINO-APRENDIZAGEM DE SEGUNDA LÍNGUA.................................................................................................... 38 7.1 O Diálogo Colaborativo e o Ensino-Aprendizagem de Segunda Língua............... ...................................................................................................... 41 8 EDUCAÇÃO BILÍNGUE ............................................................................. 45 8.1 Educação Bilíngue de Enriquecimento no Contexto Brasileiro ............ 51 9 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ........................................................... 55 3 1 INTRODUÇÃO Prezado aluno! O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma pergunta , para que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em tempo hábil. Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora que lhe convier para isso. A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser seguida e prazos definidos para as atividades. Bons estudos! 4 2 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE BILINGUISMO Fonte: direcionalescolas.com É difícil começar qualquer discussão sobre bilinguismo postulando uma definição geralmente aceita do fenômeno e não encontrar algum tipo de crítica. Bilinguismo enquanto conceito é carregado de significados infinitos. As definições são inúmeras e estão sendo continuamente proferidas sem nenhum senso real de progresso, como se a lista continuasse a se estender. Se nos voltarmos para algumas poucas definições, suas inadequações tornam-se imediatamente aparentes.” (BAETENS BEARDSMORE, 1986 apud VITOR, 2016). Definir o que vem a ser bilinguismo é muito mais complexo do que podemos inicialmente imaginar. Isso porque são variados os motivos e os contextos que levam à necessidade de comunicação em mais de uma língua. Esses motivos podem estar ligados a fatores políticos, sociais, econômicos, religiosos, culturais, educacionais. E os contextos que levaram e levam ao contato entre línguas na história da civilização são diversos: invasão militar, urbanização, industrialização, imigração, comunidades de fronteiras, comunidades indígenas que não estão isoladas, o domínio de determinadas línguas no mundo, como já foi o caso do grego, do latim, do francês, e atualmente do inglês etc. Além disso, para complexar ainda mais, diversificados padrões de bilinguismo podem ser desenvolvidos. Levemos em consideração o 5 contexto de imigração –os grupos que entram em contato podem ambos aprender um a língua do outro grupo; o grupo que imigra aprende a língua da área para onde se mudou; e ainda, os habitantes originais de uma terra podem adotar a língua de seus colonizadores (VITOR, 2016). Em estudos iniciais acerca do tema, por volta dos anos 1950 e 1960, pesquisadores preocupavam-se em medir graus de bilinguismo objetivamente em termos quantitativos. Tal fator levou a uma grande concentração de estudos acerca de aspectos que são mais facilmente medidos, como a quantidade de vocábulos. A partir desses estudos, termos como bilíngue ideal (ideal bilingual), bilinguismo completo (fullbilingualism) e bilinguismo equilibrado (balanced bilingualism) foram cunhados. Entre os leigos, a falta de familiaridade com o tema leva à permanência de mitos acerca do que caracteriza um indivíduo bilíngue –por exemplo: falantes monolíngues são a maioria no mundo; indivíduos bilíngues têm controle nativo de ambas as línguas que falam em todas as quatro habilidades (fala, compreensão, leitura e escrita); indivíduos bilíngues aprenderam suas línguas durante a infância e não falam com sotaque em nenhuma delas; para os bilíngues é fácil fazer tradução de uma língua para a outra; todos os indivíduos bilíngues são também biculturais etc. (VITOR, 2016). No entanto, segundo o autor, se paramos para dar um pouco mais de atenção à questão da fluência nativa e ao desempenho proficiente em todas as habilidades, por exemplo, como qualificamos, então, uma pessoa que sabe o suficiente de uma segunda língua para se expressar em contexto informal, mas que não consegue se comunicar com desenvoltura em ambiente acadêmico? Não devemos considerá-la bilíngue? E o que dizer de pessoas que leem e escrevem bem, mas que não conseguem se expressar oralmente com naturalidade em uma L2? “Bilinguismo deveria, então, ser um termo relativo?” Existem níveis diferentes de bilinguismo? Uma pessoa pode deixar de ser bilíngue? O que é ser bilíngue afinal? O significado do conceito de bilinguismo foi se transformando, evoluindo e mudando com o tempo. Na academia, a ideia de “controle nativo” de uma segunda língua como uma característica que define o conceito foi perdendo força entre os estudiosos do tema. Outras diversas questões começaram a 6 ser levadas em consideração e o termo foi ganhando diferentes acepções quando passado de um autor a outro, de um contexto a outro. Como nos aponta Benedetta Bassetti e Vivian Cook (2011), as primeiras definições do conceito de bilinguismo se dividem na sua maioria em dois grupos. Um primeiro grupo assume que ser bilíngue significa ter conhecimento de duas línguas e ser capaz de fazer uso delas com o mesmo alto nível de proficiência em qualquer situação (VITOR, 2016). Com o desenvolvimento dos estudos acerca do tema, o leque foi se abrindo e dando espaço ao segundo grupo, para o qual o simples fato de um indivíduo ser capaz de fazer uso de duas línguas “em qualquer nível” indica sinal de bilinguismo. Bassetti e Cook (2001) afirmam, Essas definições opõem um ‘completo’ conhecimento de duas (ou mais) línguas a ‘qualquer’ habilidade de uso da segunda língua; elas diferem no quanto de uma segunda língua (L2) se é considerado para definir um indivíduo como bilíngue. Por trás desta oposição, encontra-se uma segunda questão de ‘conhecimento’ de uma outra língua versus‘habilidade de uso’ de uma outra língua. (2011: parte B, cap. 7, p. 5 apud VITOR, 2016). Leonard Bloomfield é dos linguistas que se encaixam no primeiro grupo e foi dos teóricos que entendiam que um indivíduo só poderia ser considerado bilíngue se tivesse “o controle nativo de duas línguas”. Para ele, quando o indivíduo alcança um nível de proficiência na L2 que o torna indistinguível dos falantes originais daquela língua,e quando isso acontece sem haver perda da sua primeira língua, o resultado é o bilinguismo. Segundo o linguista, isso acontece ocasionalmente entre adultos e com mais frequência entre crianças, que fariam a aquisição da L2 com mais facilidade em contextos propícios, como por exemplo em comunidades em área de fronteira, famílias com pais de diferentes nacionalidades etc. É interessante notar que o próprio Bloomfield afirma que “não se pode definir um grau de perfeição que um indivíduo possa alcançar para se tornar bilíngue: tal distinção é relativa”(1933: 55, 56).A afirmação de Bloomfield tem força ainda nos dias de hoje. Para o senso comum, é bilíngue o indivíduo com fluência nativa em dois idiomas (VITOR, 2016). Mas de acordo com o autor, bem nos lembra, se formos considerar bilíngue somente aqueles capazes de se passarem por monolíngues em cada uma das línguas 7 que fala, deveríamos começar a pensar em como rotular todas as pessoas que fazem uso de duas ou mais línguas regularmente no seu dia a dia, mas que não possuem fluência nativa, que falam com sotaque. Segundo a definição acima, esse grupo não poderia ser considerado bilíngue, mas podemos afirmar que monolíngues essas pessoas também não são, pois vivem suas vidas com mais de uma língua. No segundo grupo, destacam Einar Haugen, para quem poderia se considerar um indivíduo bilíngue a partir do momento em que ele fosse “capaz de produzir enunciados com sentido na outra língua”. Haugen dizia ser praticamente impossível manter puros os padrões de duas ou mais línguas de forma que uma pessoa falasse e entendesse perfeitamente e fosse capaz de reproduzir em uma língua o sentido da outra sem violar o uso de nenhuma delas. Em outras palavras: o bilíngue não é dois monolíngues em uma única pessoa. Um pouco mais tarde, Einar Haugen (1974) volta a definir o conceito de bilinguismo dizendo este ser um termo que cobre pessoas com diversas habilidades linguísticas, que têm em comum o fato de não serem monolíngues. O autor esclarece que sua definição não especifica o quanto o falante deve saber de cada língua nem o quão diferentes são os idiomas, devendo tais fatores serem uma questão de decisão arbitrária. Ou seja, estariam incluídos na definição um completo bilinguismo passivo – quando uma pessoa entende, mas não fala um idioma –e dialetos –seria considerado bilíngue também o indivíduo que falasse dois ou mais dialetos, além de línguas. Bassetti e Cook (2011) explicitam o fato de que, de uma forma ou de outra, ambos os grupos definem o conceito de bilinguismo tendo como base falantes nativos monolíngues. Para o primeiro grupo, o indivíduo bilíngue deve ter a competência linguística de um falante monolíngue em ambas as línguas. Para o segundo grupo, o indivíduo bilíngue deve fazer uso de cada uma delas do mesmo jeito que um indivíduo monolíngue. Os autores sublinham que os teóricos desconsideram o fato de que falantes de mais de uma língua têm um conhecimento delas e produzem de forma diferente do falante monolíngue –por exemplo, indivíduos bilíngues fazem uso de code- switchinge tradução. Concordamos em parte com os autores e vemos como de extrema importância o fato de que é preciso esse reconhecimento de que falantes bilíngues 8 produzem de forma diferente de falantes monolíngues. No entanto, não encontramos em Haugen provas de que para um indivíduo ser considerado bilíngue ele deva fazer uso da língua como um monolíngue. Mesmo porque o autor, ele próprio um indivíduo bilíngue (nascido nos Estados Unidos, filho de noruegueses), tinha consciência da complexidade do tema (VITOR, 2016). Assim como Haugen, Uriel Weinreich, o autor afirma que também ultrapassa a ideia de “controle nativo”, afastando-se da problemática da fluência, para optar pelo uso da língua como critério para definir o conceito. Para Weinreich, aquele que alterna habitualmente em duas línguas é bilíngue. O autor apresenta três tipos de bilinguismo: coordenado, composto e subordinado. Nobilinguismo coordenado, o falante teria controle do sistema linguístico de cada uma das línguas, mantendo os sinais linguísticos de ambas separados. No bilinguismo composto, o falante teria controle do sistema sonoro de cada uma das línguas, porém os significados e as estruturas de uma língua podem ser aplicados à outra. No bilinguismo subordinado, o falante estrutura a segunda língua baseando-se na primeira. Desta forma, Haugen e Weinreich tornam a definição do conceito de bilinguismo mais abrangente. E como bem afirma Grosjean: número de pessoas que podemos considerar bilíngues aumenta consideravelmente quando concentramos na língua em seu uso. Em um extremo, encontramos o trabalhador imigrante que fala um pouco da língua do país que o recebe, mas que não lê nem escreve na mesma. No outro extremo, temos o intérprete profissional que fala fluentemente duas línguas. No entremeio, encontramos o cientista que lê e escreve artigos em uma segunda língua, mas raramente causa para se comunicar oralmente, o esposo estrangeiro que interage com seus amigos na sua primeira língua, o membro de uma minoria linguística que usa essa língua somente em casa e que usa a língua dominante em todos os outros meios, o surdo que usa língua de sinais com seus amigos, mas usa uma língua falada (na forma escrita normalmente) com uma pessoa ouvinte, e por aí vai. Apesar da grande diversidade dentre essas pessoas, todas elas têm uma característica em comum: elas levam suas vidas com duas ou mais línguas (2010 apud VITOR, 2016). O autor vai mais além, dando status de bilíngue a um indivíduo ainda nos primeiros estágios de aquisição de uma L2. O autor cunha o termo ‘bilinguismo incipiente’ referindo-se a um estágio embrionário de contato entre duas línguas. Desta forma, o teórico considera bilíngue mesmo uma pessoa que esteja na fase inicial de aprendizagem de uma L2, incapaz ainda de produzir enunciados com sentido – 9 incluindo nessa ideia as quatro competências linguísticas: fala, audição, leitura e escrita. Baker aponta para o fato de que ser muito inclusivo é quase tão perigoso quanto ser muito exclusivo (2002: 6 apud VITOR, 2016). Desta forma, assim como Bloomfield termina por excluir a maior parte dos indivíduos bilíngues com a sua ideia de “controle nativo” da língua, Diebold termina por incluir praticamente o mundo inteiro, visto que hoje em dia quase todos temos algum conhecimento de uma L2, e desta forma pode tornar a discussão acerca do tema por demais ambígua e imprecisa. Baker define o indivíduo bilíngue como aquele capaz de usar mais de uma língua (BAKER, 2002 apud VITOR,2016). O autor afirma que o termo define indivíduos que possuem mais de duas línguas, devendo-se incluir nesse grupo pessoas com diferentes graus de proficiência, assim como pessoas que fazem uso de três ou mais línguas. Para Baker (2002) dizer quem é ou não bilíngue dependerá do propósito da definição, logo, diferenças na classificação continuarão a existir. Para o autor, focar no uso da língua no seu dia a dia é a melhor saída. Grosjean afirma que são bilíngues aqueles que fazem “uso de duas ou mais línguas (ou dialetos) em seu dia a dia”. Para o autor, a maioria dos falantes bilíngues usam suas línguas para propósitos distintos, em diferentes situações, com diferentes pessoas. Logo, não precisam ter o mesmo nível de proficiência nas línguas que falam. Ele completa: O nível de fluência que eles atingem em uma língua (mais especificamente, em uma habilidade da língua) dependerá do quanto eles precisam daquela língua, além de ela se ater a um meio específico. Consequentemente, muitos indivíduos bilíngues dominam uma das línguas, alguns não sabem ler nem escrever em uma das línguas e outros têm um conhecimento passivo da língua (compreendem, mas não falam). Pode ser que alguns poucos bilínguessejam fluentes igual e perfeitamente nas línguas que fala [...]. (2010: 21 apud VITOR 2016). O indivíduo bilíngue pode compreender uma de suas línguas em um nível de proficiência diferente do que ele produz. Logo, o indivíduo capaz de compreender e ler bem, mesmo sem saber falar esse idioma, deve ser considerado bilíngue. E completam que para os teóricos que estudam o bilinguismo relacionado à cognição, uma pessoa que tenha aprendido Latim e entendido a complexidade do seu sistema gramatical, mesmo sem falar Latim, não poderá mais ser visto como um monolíngue. Para eles, o 10 impacto de uma segunda língua no pensamento deve se estender a diferentes tipos de conhecimento de uma L2, como por exemplo o do pesquisador que escreve a gramática de uma língua que ele não sabe falar ou de crianças que aprendem conteúdos gramaticais de uma L2 na escola sem saber se expressar oralmente no idioma. E mais, a diferentes grupos de pessoas cabem diferentes definições, dependendo de seus objetivos. Os autores afirmam: “para educadores, uma definição focada no uso será mais útil, por exemplo, ‘uma criança bilíngue é aquela que regularmente precisa compreender ou falar (use) mais de uma língua’. Para os propósitos de um pesquisador da cognição bilíngue, bilíngue é uma pessoa que sabe mais de uma língua, independente da habilidade de produção, e independente de qualquer das línguas ser falada, escrita ou em sinais” (VITOR, 2016). De acordo com o autor, a partir da década de 1970 novos campos de estudos foram desenvolvendo pesquisas acerca do tema, o que foi levando à discussão de aspectos em torno do conceito que ainda não vinham sendo explorados. A começar pelo amplo e especializado campo da Linguística, vimos diversos aspectos relacionados aos estudos sobre bilinguismo serem espalhados pelas subdisciplinas e campos de pesquisas afins –Linguística Aplicada, Linguística Histórica, por exemplo. O tema também chama atenção de pesquisadores de disciplinas com interesse em aspectos da linguagem, porém, a tendência tem sido focar em apenas alguns aspectos do bilinguismo e negligenciar outros. Psicólogos, por exemplo, investigam o que acontece na mente de indivíduos bilíngues; sociólogos enxergam indivíduos bilíngues como elementos em conflitos culturais; educadores atêm-se a questões entre bilinguismo e inteligência, se há tipos bons e ruins de bilinguismo e em que circunstâncias eles surgem, além de preocuparem-se também com o bilinguismo em relação a políticas públicas; pesquisadores do campo de estudos internacionais veem bilinguismo como elemento essencial na comunicação entre culturas. Romaine afirma: Em cada uma dessas disciplinas, porém, obilinguismo é normalmente visto como incidentale tem sido tratado como um caso especial ou como um desvio da norma. Logo, cada disciplina por si só parece adicionar uma certa fatia detendência ao nosso entendimento do que vem a ser bilinguismo com suas complexas inter-relações psicológicas, linguísticas e sociais (1996: 573 apud VITOR, 2016). 11 Romaine nos lembra que Mackey (1968) defende o ideal de uma perspectiva que reúna os diversos interesses citados acima e os faça complementarem-se uns aos outros, uma vez que, segundo o autor, isso faria sentido pois o bilinguismo é um fenômeno não da língua, mas de seu uso. E complementa: “o estudo do bilinguismo pode ser dito como parte do campo da sociolinguística na medida em que está se preocupa com a forma como a língua é usada na sociedade. Mesmo comunidades monolíngues não são homogêneas porque há normalmente variedades regionais, sociais e estilísticas dentro do que é visto como ‘uma língua’”. É direto ao definir o conceito de bilinguismo simplesmente como o uso alternado de duas ou mais línguas. No entanto, o autor afirma que definir o pontoem que um indivíduo alcança a condição de bilíngue é arbitrário e pode ser até mesmo impossível. Logo, para estudar o conceito de bilinguismo, devemos levar em consideração sua relatividade e a complexidade em que ele se dá em seus diversos contextos devendo dar atenção às seguintes questões segundo Vitor (2016): 1) o grau de proficiência do falante – o nível de proficiência não precisa ser equivalente em todas as habilidades, desta forma, o indivíduo pode apresentar vasto vocabulário, mas apresentar pronúncia deficiente em uma das línguas; 2) a função e o uso das línguas –as situações em que o indivíduo faz uso de suas línguas; 3) a alternância de código –como e com qual frequência o indivíduo alterna entre as línguas; 4) a interferência –como uma língua influencia a outra e como uma interfere na outra. O autor torna a definição mais abrangente partindo do individual para o social, pensando a língua como instrumento “de comunicação que só tem sentido na interação”. Segundo o autor, a maioria das propostas oferecidas apresentam pontos falhos. Um primeiro ponto falho seria as pesquisas serem baseadas em uma visão unidimensional –dá-se atenção somente ao aspecto da proficiência, da competência do falante. Ao contrário, os autores enxergam a necessidade de uma abordagem multidisciplinar para analisar o tema, e visto que a aquisição da língua faz parte de um 12 processo multidimensional, partem desse ponto de vista para buscar definir o conceito de bilinguismo. Além disso, os autores consideram necessário abordagens disciplinares específicas para diferentes níveis de análises, logo, uma abordagem psicológica a nível individual, sociopsicológica a nível interpessoal e sociológica a nível intergrupal (VITOR, 2016). Por fim, para eles, qualquer modelo de comportamento bilíngue deve ser consistente com um modelo mais geral de comportamento linguístico, que tem como princípios básicos “a constante interação de dinamismos sociais e individuais da língua, os complexos processos entre as formas de comportamento linguístico e as funções em que são utilizados, a interação recíproca entre língua e cultura –autorreguladores que caracterizam todos os comportamentos de ordem elevada – e consequentemente a língua e a valorização que é central para toda esta dinâmica e interação” (VITOR, 2016). Na busca por uma definição mais precisa, os autores optam por dar duas faces que se complementam para melhor definir o fenômeno: bilinguismo e bilingualidade. O termo bilinguismo seria aplicado no nível social, no campo das línguas em contato, enquanto o termobilingualidade, a sua outra face, se aplicaria ao nível individual. Mais especificamente, os autores definem bilinguismo e bilingualidade da seguinte forma: O conceito de bilinguismo refere-se ao estado de uma sociedade linguística em que duas línguas encontram-se em contato, e como resultado dois códigos linguísticos são usados na mesma interação e há um número de indivíduos bilíngues (bilinguismo social/ societal bilingualism); aí inclui-se também o conceito de bilingualidade (ou bilinguismo individual). Bilingualidade é o estado psicológico de um indivíduo que tem acesso a mais de um código linguístico como meio de comunicação social; o nível de acesso varia de acordo com um número de dimensões (HAMERS, 1981 apud VITOR, 2016). Ao abordar o tema, os autores determinam que deve-se levar em consideração alguns fatores. Com relação ao indivíduo, deve-se analisar não só a competência do indivíduo bilíngue, mas também outras dimensões de igual importância como organização cognitiva, idade de aquisição da L2, presença ou não de indivíduos falantes da L2 no ambiente em questão, status das línguas envolvidas e identidade cultural. Na dimensão referente à competência relativa, é analisada a relação entre as duas competências linguísticas, chegando a uma distinção entre bilingualidade 13 equilibrada e bilingualidade dominante. A bilingualidade equilibrada refere-sea um estado de equivalência de competência nas duas línguas, e não deve ser confundida com um alto nível de competência nas duas línguas. Segundo os autores, ela refere- se a um “estado de equilíbrio alcançado pelos níveis de competência nas duas línguas comparado à competência monolíngue”. Já a bilingualidade dominante indica o domínio da competência em uma língua com relação à outra (VITOR, 2016). Ainda segundo o autor, com relação à organização cognitiva, chega-se à distinção entre bilingualidade composta e bilingualidade coordenada. A bilingualidade composta refere-se a um sistema em que dois signos linguísticos são associados a somente uma representação cognitiva (ex. Família [signo] e Family [signo] = Família/Family [uma representação cognitiva]). Por outro lado, em um sistema coordenado, dois signos linguísticos encontrarão, cada um, duas formas distintas de representação (ex. Família [signo] = Família [representação linguística] e Family [signo] = Family [representação cognitiva]). Essa distinção relaciona-se a diferenças de organização cognitiva. Uma pessoa que tenha aprendido ambas as línguas em um mesmo contexto quando criança está propícia a ter uma única representação cognitiva para duas traduções equivalentes. Por outro lado, uma pessoa que tenha aprendido a L2 em contexto diferente da L1 muito provavelmente terá representações separadas para cada uma das representações de traduções equivalentes. De acordo com a idade de aquisição, identifica-se três tipos de bilingualidade: infantil, adolescente (quando ocorre a aquisição da L2 durante essa fase) e adulta (aquisição da L2 que ocorre durante a idade adulta). À bilingualidade infantil são identificadas duas subdivisões: bilingualidade simultânea e bilingualidade sequencial. A bilingualidade simultânea refere-se à aquisição de duas línguas ao mesmo tempo. Neste caso, a criança adquire duas línguas maternas, denominadas La e Lb (ex. crianças filhas de pais falantes de línguas distintas). Identifica-se a bilingualidade sequencial quando a criança adquire a segunda língua ainda na infância, mas antes de alcançar a maturidade na língua materna. Neste caso, denomina-se L1 a língua materna e L2 a segunda língua. A quarta dimensão reporta-se à existência ou não de comunidades falantes de ambas as línguas no ambiente em questão. Quando uma 14 língua é tida como materna em uma comunidade e pode ser usada ou não para propósitos institucionais, refere-se a essa língua como endógena. Denomina-se exógena a língua que é tida como oficial, mas é utilizada somente para propósitos institucionais. De acordo com o status das línguas em uma determinada comunidade, são identificados diferentes tipos de bilingualidade. Refere-se a bilingualidade aditiva quando ambas as línguas são valorizadas no desenvolvimento cognitivo do indivíduo (VITOR, 2016). Desta forma, a aquisição da língua estrangeira ocorre sem prejuízos para a língua materna e sem haver a perda desta. Em oposição, encontramos a bilingualidade subtrativa, em que identifica-se a perda da língua materna ou prejuízos no desenvolvimento cognitivo da criança com relação à L1 durante a aquisição da L2. Finalmente, no que remete à identidade cultural, são identificados quatro tipos diferentes de bilingualidade segundo o autor: 1) bicultural, 2) monocultural em L1, 3) bilingualidade aculturada em L2 e 4) bilingualidade descultural. No caso da bilingualidade bicultural, inclui-se o indivíduo que se identifica com a cultura das duas línguas que fala e é aceito por ambos os grupos culturais. No segundo tipo, o indivíduo se identifica e é aceito por apenas um grupo cultural –o da sua língua materna. Esse fator não sugere que o indivíduo não faça uso de duas línguas no seu dia a dia – ele é considerado bilíngue, mas não bicultural. O tipo de bilingualidade aculturada em L2 aponta para um indivíduo que renunciou a sua identidade cultural relacionada à língua materna e passou a adotar os valores culturais referentes ao grupo de falantes da L2. Por último, identifica-se bilingualidade descultural quando um indivíduo renuncia sua própria identidade cultural e falha ao tentar adotar a cultura dos falantes da língua estrangeira (VITOR, 2016). 15 Fonte: VITOR, 2016 16 Megale (2012) nos apresenta a visão de Dias e Salgado (2010) que complementa que cada indivíduo possui um grau de bilingualidade. Tal grau de bilingualidade “é mutável e dinâmico de acordo com as situações de bilinguismo que lhes são apresentadas, assim, significando que a manifestação da bilingualidade está diretamente relacionada às necessidades apresentadas pelos contextos.” (VITOR, 2016). Levando esse fato em consideração, os autores atestam que a primeira pergunta a ser feita para identificar se um indivíduo é bilíngue ou não deve ser: “Quem decide que alguém é bilíngue?”. Para os autores, muitas vezes um indivíduo entende-se como bilíngue, mas na verdade não o é. Os fatores que definirão sua condição de bilíngue estão ligados a “critérios e exigências da situação ou evento social em questão” e “é necessária a identificação do contexto no qual esse bilinguismo se manifesta e a análise de quais fatores relevantes, nesse contexto, devem ser levados em consideração para a identificação do indivíduo bilíngue.” (MEGALE, 2012: 82 apud VITOR, 2016). De acordo com o autor, Savedra também opta pelo desdobramento da definição, apostando nos conceitos de bilinguismo e de bilingualidade. A autora define o conceito de bilinguismo como “a situação em que coexistem duas línguas como meio de comunicação num determinado espaço social, ou seja, um estado situacionalmente compartimentalizado de uso de duas línguas” (SAVEDRA, 2009: 127-128 apud VITOR, 2016). E distingue bilinguismo do conceito de bilingualidade, que representaria “os diferentes estágios de bilinguismo, pelos quais os indivíduos, portadores da condição de bilíngue, passam na sua trajetória de vida”. Partindo da defesa de que as situações de bilinguismo são relativas, a autora identifica duas dimensões de bilingualidade: contexto de aquisição das línguas e uso funcional variado. O contexto de aquisição tem dois elementos diferenciadores: idade e maturidade linguística. Nessa dimensão, é analisado o momento em que se dá início a condição de bilíngue. Ambas as línguas são consideradas L1 (L1a + L1b) se foram adquiridas conjuntamente; no caso de uma língua ter sido adquirida após a outra, estando a primeira ainda em processo de maturação, temos L1 + L2; se a segunda língua adquirida após a primeira já tiver alcançado um estágio de maturação, temos LM+ LE (língua materna + língua estrangeira) ou LM + LA (língua materna + língua alvo) (VITOR, 2016). 17 Fonte: VITOR, 2016 Através da dimensão do uso funcional variado, a autora identifica qual de duas línguas predomina nos distintos ambientes de comunicação: familiar, social, escolar e profissional. Dependendo do contexto das situações e dos indivíduos participantes, ambas as línguas podem ser dominantes (quando há uso paralelo e constante) ou uma língua pode ser mais dominante que a outra. A começar, no que diz respeito à bilingualidade equilibrada, a autora atesta que não devemos pensar o bilinguismo como uma fórmula de 1 + 1 = 2. Para ela, acreditar nesse tipo de bilinguismo implica entender o indivíduo como duas pessoas diferentes, uma fluente em cada língua, no entanto, “mais realisticamente, uma pessoa bilíngue é aquela que língua de maneira diferente e que tem experiências diversas e distintas em cada uma das duas línguas” (VITOR, 2016). Maher (2007) apud Vitor (2016) posiciona-se de forma parecida: O bilíngue –não o idealizado, mas o de verdade –não exibe comportamentos idênticos na língua X e na língua Y. A dependerdo tópico, da modalidade, do gênero discursivo em questão, a depender das necessidades impostas por sua história pessoal e pelas exigências de sua comunidade de fala, ele é capaz de se desempenhar melhor em uma língua do que na outra –e até mesmo de se desempenhar em apenas uma delas em certas práticas comunicativas. Com relação aos tipos de bilingualidade subtrativa e aditiva expostos por Hamers e Blanc (2000), podemos observar que o bilinguismo ainda é visto por eles a partir de uma norma monolíngue. Os autores criam suas definições levando em conta que o indivíduo bilíngue tenha uma relação com ambas as suas línguas da mesma forma que um monolíngue. Isso fica claro quando os 18 autores nomeiam e separam claramente as duas línguas em L1, referindo-se à língua materna, e L2, referindo-se à língua estrangeira. Mas para além desta separação de início óbvia, García (2009) julga necessário repensar o conceito de bilinguismo e o sujeito bilíngue para melhor se ajustar às exigências comunicativas do século XXI. Desta forma, a autora considera imprescindível desviar-se da ideia de bilinguismo como duas línguas separadas. Os tipos de bilinguismo apresentados até então partem de uma visão monoglóssica. No entanto, como bem atesta García (2009), para dar conta da complexidade linguística atual é necessário definir os tipos de bilinguismo partindo de práticas linguísticas heteroglóssicas. Partindo dessa ideia, García (2009) nos abastece com os conceitos de linguar (languaging) e translinguar (translanguaging) (VITOR, 2016). Com uma obra extensa e uma vida de pesquisa voltada para o campo da educação bilíngue, a autora vê como necessárias mudanças conceituais no nosso entendimento de língua, mudanças essas que deem suporte às práticas linguísticas das crianças em sala de aula –tendo sempre em mente que a língua, além de uma disciplina importante, é também o meio como as disciplinas são ensinadas na escola. García atribui a linguaro que entendemos como práticas linguísticas, ou seja, a forma como usamos a língua para nos expressarmos, para interagirmos etc. O termo não é usado para focar na língua em si, mas nas múltiplas práticas discursivas. Já o termo translinguar, a autora pega emprestado de Cen Williams (citado em BAKER, 2002), para quem o termo nomeava uma prática pedagógica que consiste na alternância das línguas em salas de aula bilíngues. Quando, por exemplo, a leitura é feita em uma língua e a escrita, em outra; ou os alunos fazem uma atividade em que ouvem algo em uma língua e devem discutir sobre o que acabaram de ouvir, na outra língua. García aplica o termo para indicar o engajamento de indivíduos em “práticas discursivas bilíngues ou plurilíngues” (2009: parte II, cap. 3, p. 6). Para ela, translinguar é uma “abordagem ao bilinguismo centrada não apenas nas línguas, como é o caso normalmente, mas em práticas bilíngues” (2009: parte II, cap. 3, p. 6). Indivíduos e comunidades bilíngues precisam translinguar para construir significados, para incluir- se e incluir outros em uma conversa, para facilitar a comunicação, assim como também 19 para “construir significados mais profundos e dar sentido aos seus mundos bilíngues” (2009: parte II, cap. 3, p. 14) (VITOR, 2016). De acordo com o autor, observemos os exemplos que a autora nos oferece: 1) uma família bilíngue, que pode ser composta com indivíduos bilíngues em diferentes graus e por indivíduos monolíngues, fazendo refeição à mesa –os indivíduos precisam translinguar para que haja a inclusão de todos os membros; 2) crianças de origem hispânica, bilíngues em espanhol e inglês, nos Estados Unidos, que têm que optar por livros infantis em inglês por não haver opção de livros em espanhol –elas translinguam ao usar suas línguas para diferentes modalidades. Indivíduos bilíngues linguam de forma bilíngue, ou seja, eles translinguam. Desta forma, considerando as práticas discursivas das comunidades linguísticas, o seu translinguar, García (2009) expande os modelos de bilinguismo. E vê como essencial partir do bilinguismo em si, e não do monolinguismo. A autora nos aponta para Baker (2001: 4) que declarou que “possuir duas línguas não é tão simples como ter duas rodas ou dois olhos”, e completa que não podemos pensar o bilinguismo como as duas rodas de uma bicicleta que funcionam juntas em perfeita concordância, mas sim em rodas que se expandam, se contraiam, que se sustentem uma à outra, mas também que girem em diversas direções. Isto posto, a autora cita Cummins (1984) e sua proposta do que veio a chamar de Common Underlying Proficiency –a ideia de que as línguas não são armazenadas separadamente, e que, além disso, elas interagem entre si (VITOR, 2016). Tendo isso em mente, a autora nomeia e acrescenta dois modelos de bilinguismo: recursivo e dinâmico. O modelo recursivo refere-se a casos em que há revitalização das práticas linguísticas de uma comunidade que haviam sido suprimidas. Logo, não parte-se aqui de uma estaca zero. Não parte-se aqui de um ponto de vista monolíngue, como no caso do bilinguismo aditivo. O que se vê não é apenas a adição de uma outra língua, uma vez que essa língua ainda era usada em cerimônias tradicionais e por membros da comunidade em diferentes graus, mas uma reconstituição de práticas linguísticas ancestrais. Para García (2009), esse modelo de bilinguismo é recursivo pois vai buscar no passado fragmentos de práticas linguísticas 20 ancestrais que serão reconstituídas com o objetivo de dar conta de novas funções, ganhando assim um impulso para serem projetadas no futuro (VITOR, 2016). Ainda segundo Vitor (2016) o modelo de bilinguismo dinâmico vem dar conta de um bilinguismo que se desenha a partir dos diferentes contextos em que se desenvolve e funciona. Refere-se a práticas linguísticas que são múltiplas e que se ajustam a uma esfera multilíngue e multimodal do ato comunicativo. A autora usa o termo ‘bilinguismo dinâmico’ de forma similar ao termo ‘plurilinguismo’ usado por pesquisadores europeus. O plurilinguismo diz respeito à compreensão de que os cidadãos europeus do século XXI devem dispor de um variado repertório de práticas linguísticas para dar conta de diferentes propósitos. Segundo os pesquisadores, a atualidade requer habilidades diferenciadas e usos de múltiplas línguas, pois os indivíduos cruzam fronteiras físicas e virtuais a todo momento. Além de serem estimulados a desenvolverem competência plurilíngue, os cidadãos europeus aprendem a valorizar práticas linguísticas diferentes das suas, desenvolvendo, assim, tolerância linguística. 3 BILETRAMENTO Fonte: direcionalescolas.com 21 Atualmente, os estudos sobre biletramento têm ganhado cada vez mais atenção, principalmente pela visibilidade que o bilinguismo infantil tem recebido em todo o mundo (FINGER et al, 2019). De acordo com o autor, há um real interesse em elucidar como se dá o desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita quando essas ocorrem simultaneamente em duas línguas, bem como mensurar os impactos que tal experiência ocasiona não só na cognição, mas, principalmente, na competência linguística das crianças bilíngues. Entretanto, as pesquisas sobre educação bilíngue com foco na realidade brasileira ainda são ainda incipientes. Além disso, no Brasil essa modalidade educativa está ancorada principalmente nos princípios do bilinguismo de prestígio (duas línguas valorizadas na escola e na comunidade) e não na realidade de países em que uma das línguas é a língua minoritária necessitando, portanto, de espaço para ser respeitada e valorizada no ambiente escolar e social. Apesar dessa lacuna nas pesquisas, estudos desenvolvidos em outros países têm servido de embasamento teórico para as discussões em relação ao bilinguismo, ao biletramentoe à educação bilíngue no Brasil. Nesse sentido, para que possamos aprofundar a discussão sobre biletramento, torna-se necessário abordar alguns conceitos relacionados à temática do aprendizado da escrita em duas línguas, como também do contexto das crianças que se constituem bilíngues. Para isso, iremos discutir brevemente o conceito de alfabetização para, a seguir, tratarmos das definições atualizadas de bilinguismo e de biletramento (FINGER et al, 2019). 22 4 ALFABETIZAÇÃO Fonte: wreducacional.com As abordagens adotadas nas políticas de alfabetização no Brasil têm passado por muitas transformações nas últimas décadas. Até a década de 1980, os métodos eram baseados em cartilhas que ensinavam das “partes” para o “todo” e tinham como ponto de partida as letras, os fonemas, as sílabas, e depois as palavras para finalmente chegar até o texto. Entretanto, todos os métodos se baseavam em uma concepção de leitura e escrita reduzidos a processos de decodificação e codificação de palavras (FINGER et al, 2019). Segundo o autor, a partir da década de 1980, as práticas de alfabetização baseadas em métodos sintéticos, ou seja, aqueles que ensinavam das partes para o todo (como, por exemplo, soletração, silabação e fônico) passaram a ser amplamente criticadas a partir dos modelos teóricos construtivistas e interacionistas que surgiram no âmbito da Educação. Os estudos psicogenéticos de Piaget influenciaram de forma importante a visão que se tinha a respeito da aprendizagem da leitura e os métodos de ensino baseados em processos de codificação e decodificação de sinais gráficos deixaram de ser 23 populares. Foi nesse contexto que, na década de 1980, a preocupação com as práticas sociais de leitura e de escrita começou a ser considerada como uma questão importante e fundamental em vários países, dando origem ao termo literacy. Esse termo surgiu quando as novas teorias mostraram que o aprendizado da escrita não poderia ser reduzido ao domínio da correspondência entre grafemas e fonemas e passou-se a reconhecer a exigência de se preparar as crianças para darem conta de práticas sociais de leitura e de escrita mais avançadas e complexas que vão além da decodificação do código escrito (FINGER et al, 2019). Ainda de acordo com o autor, no Brasil, o termo literacy foi traduzido por ‘letramento’ e surgiu simultaneamente aos termos illetrisme, usado na França, literacia, usado em Portugal, e literacy, usado nos países de fala inglesa para nomear fenômenos distintos do denominado fenômeno da alfabetização. Embora alfabetizar e letrar sejam processos distintos, Soares (2004; 2016) defende que não podemos tratar a alfabetização e o letramento como dois processos separados, uma vez que a entrada da criança no mundo da escrita se dá simultaneamente por esses dois processos: pela aquisição do sistema convencional da leitura e escrita (alfabetização), e pelo desenvolvimento de habilidades de uso desse sistema, em atividades de leitura e escrita que envolvem práticas sociais complexas (letramento). De fato, alfabetização e letramento são processos indissociáveis e complementares. Nessa perspectiva, o aluno é visto como sujeito do seu aprendizado necessitando, portanto, não somente compreender as relações entre sons e letras, mas principalmente atribuir significados à escrita, aprendendo a identificar o contexto no qual a mesma se insere (ou seja, a escrita com objetivo de comunicar algo a alguém).Na área da Psicolinguística, os achados cognitivos têm trazido um olhar atualizado para os processos subjacentes à alfabetização das crianças, inclusive alertando que aprender a ler e escrever não são processos simples e automáticos como por muito tempos e assumiu. O surgimento da leitura afirmando que a capacidade humana de aprender a ler não é inata como a capacidade que os indivíduos possuem de se comunicar oralmente. Nosso cérebro foi programado para lidar com a língua oral, mas não com a língua escrita, e ao longo dos milênios nosso aparato cognitivo precisou se adaptar para 24 acolher e processar essa invenção cultural, que é a escrita. Tal processo de adaptação é chamado de reciclagem neuronal que, na visão do pesquisador, nada mais é do que o processo cognitivo que modificou circuitos cerebrais pré-existentes e fez com que uma área do cérebro, concebida originalmente para perceber objetos e rostos, tivesse que se reciclar ao longo dos milênios para decifrar a modalidade escrita da língua. Trata-se, portanto, de uma reconversão lenta, parcial e difícil, e isso explica, em parte, algumas das dificuldades que certas crianças apresentam durante o processo de alfabetização. Mesmo partindo de uma perspectiva teórica diferente, Soares (2016) parece concordar com Dehaene (2012) ao reconhecer que a maioria das crianças não descobre os princípios alfabéticos sozinha, necessitando de orientação específica para aprender as relações entre fonemas e grafemas, o que exige do professor conhecimento para apresentar de forma organizada um sistema convencional e arbitrário de representação da cadeia sonora da fala. Segundo os dois autores, portanto, fica evidente que tanto o sistema alfabético quanto as normas ortográficas precisam ser ensinadas e praticadas para que seu uso se torne automático por parte das crianças. Cardoso-Martins (2008) complementa essa ideia, afirmando que, sem automatizar o processo de transformar sinais gráficos lidos (grafemas) em fonemas, a criança não pode ser considerada uma leitora competente. Isso significa que, para o alcance da leitura fluente, é essencial que a criança passe desse estágio inicial de decodificação dos grafemas em fonemas para o estágio de leitura ou identificação automática de palavras, deixando, com isso, de sobrecarregar sua memória de trabalho e sua atenção, podendo dedicar mais recursos cognitivos para uma compreensão mais global do texto. É exatamente por essa razão que o desenvolvimento da leitura fluente, que se intensifica pelo encontro sistemático com as palavras, deve ser um dos objetivos fundamentais do processo de alfabetização (FINGER et al, 2019). Apesar de a compreensão acerca do desenvolvimento da leitura e da escrita em contextos monolíngues a partir de uma perspectiva cognitiva ter avançado consideravelmente nas últimas décadas, nos contextos de aprendizagem bilíngue a lacuna existente ainda é grande, principalmente no Brasil. Além disso, na última 25 década, houve um crescimento acelerado dos contextos de escolaridade bilíngue no país, mas não identificamos o mesmo crescimento nas pesquisas que tentam explicar os processos cognitivos subjacentes a esse aprendizado em duas línguas (FINGER et al, 2019). 5 BILINGUISMO E BILETRAMENTO: UMA BREVE RETOMADA DE CONCEITOS Fonte: clil.eadbox.com Hoje vivemos em um mundo cada vez mais multilíngue e sabemos que, na maior parte do planeta, várias línguas diferentes coexistem em um mesmo espaço geográfico. Apesar disso, os termos ‘bilinguismo’ e ‘multilinguismo’ têm sido definidos de forma muito variada (e ainda equivocada) na literatura e principalmente na mídia. O que é considerado consenso na literatura atual é que o conceito de Bloomfield (1935) de bilinguismo como controle nativo de duas línguas não se encaixa mais na perspectiva atual e dinâmica de bilinguismo empregada nos estudos da área (FINGER et al, 2019). Sabemos também, que o falante bilíngue/multilíngue4adquire e usa suas línguas com diferentes propósitos, em diversos domínios da vida e com pessoas e contextos 26 distintos, porque aspectos da vida e contextos diferem e exigem o uso de diferentes línguas. Alguns autores concordam que o bilinguismo é um contínuo com domínio e desenvolvimento variado ao longo da históriapessoal de cada um e, exatamente por isso, o bilinguismo deixa de ser visto como um fenômeno de linguagem para ser visto como uma habilidade com relação direta ao seu uso. Ou seja, é a quantidade e intensidade de uso das línguas que vai determinar o nível de proficiência atingido pelo bilíngue em cada uma de suas línguas (FINGER et al, 2019). A partir da divulgação de evidências que comprovam que o bilinguismo gera diversos benefícios sociais e cognitivos, nas últimas décadas tem havido um crescimento significativo no número de escolas ofertando currículos ou programas bilíngues no Brasil. Nesse contexto em expansão, as dúvidas acerca do melhor tipo de metodologia de ensino a ser empregada nas escolas bilíngues se tornam cada vez mais frequentes. De fato, como a educação bilíngue já é comprovada como uma proposta educacional alinhada às competências necessárias para o século 21, muitas escolas começam a vislumbrar esse tipo de educação, o que justifica o aquecimento no mercado do ensino bilíngue. As evidências científicas sugerem que uma educação mais colaborativa, multilíngue e compatível com os cérebros da nova geração torna-se necessária; entretanto, o trabalho pedagógico frente a esses novos paradigmas também se tornou mais complexo, exigindo maior conhecimento sobre os processos de aprendizado em contextos bilíngues. Reyes (2012) reconhece que há diversas comunidades no mundo nas quais as crianças estão crescendo bilíngues e biletradas e isso tem contribuído para dar ainda mais visibilidade ao interesse pelo biletramento. Da mesma forma, as pesquisas na área têm crescido consideravelmente devido à necessidade de se compreender e aperfeiçoar as experiências de aprendizagem de crianças de diferentes origens linguísticas em idade escolar. É interessante notar que, ao contrário do que se pensa hoje, do início do século XIX até aproximadamente 1960, a crença vigente era de que o bilinguismo acarretava efeitos cognitivos prejudiciais ao falante de duas línguas. Baker e Wright (2017), acompanhando essa trajetória, relatam que até os anos 27 1960 acreditava-se que, em termos cognitivos, os bilíngues eram inferiores aos monolíngues. Essa crença baseava-se no pressuposto de que, quanto mais informação e proficiência os bilíngues adquiriam na L2, menor seria sua proficiência na L1, ou seja, o desenvolvimento linguístico em uma língua acontecia em detrimento do domínio da outra língua. Supunha-se ainda que o cérebro dos bilíngues podia ser representado através de dois balões, sendo um para cada língua. No início das suas pesquisas, atribuiu a esse modelo o nome de Modelo de Proficiência Subjacente Separada (Separate Underlying Proficiency Model – SUP). Segundo essa proposta, as duas línguas operariam separadamente no cérebro do bilíngue, sem que houvesse qualquer tipo de transferência de conhecimento entre as suas línguas, supondo-se que o cérebro teria uma quantidade restrita de “compartimentos” para armazenar as línguas. (FINGER et al, 2019). Modelo de Proficiência Subjacente Separada Fonte: SÁ, 2019. Com o tempo, entretanto,os pesquisadores constataram que não fazia sentido assumir que o cérebro tinha apenas alguns compartimentos para armazenar todas as habilidades linguísticas das duas línguas do bilíngue. A teoria dos balões separados não foi mais sustentada pelos estudos, visto que as evidências mostravam o oposto: 28 os atributos linguísticos não são separados no sistema cognitivo, e sim prontamente transferidos de forma interativa ((FINGER et al, 2019). Além disso, aideia de que uma língua pudesse vir a “sofrerprejuízos” em benefício de outra deixou de ser aceita, principalmente porque dados das pesquisas que foram realizadas depois de 1960 mostraram que os conceitos aprendidos em uma língua poderiam ser rapidamente transferidos para a outra, independentemente da língua. Essa mudança de paradigmas levou Cummins (1979) a desenvolver uma proposta alternativa, que recebeu o nome de Modelo de Proficiência Subjacente Comum (Common Underlying Proficiency Model–CUP (FINGER et al, 2019). Modelo de Proficiência Subjacente Comum Fonte: SÁ, 2019. Ainda segundo o autor essa proposta de proficiência subjacente comum postulada por Cummins (1979; 1981) foi representada na forma de dois icebergs separados acima da superfície, que representam as duas línguas do bilíngue visivelmente diferentes na conversação superficial. Abaixo da superfície, entretanto, os dois icebergs se fundem de forma que as duas línguas constituem um só sistema.Assim, segundo essa proposta, as duas línguas operam através do mesmo 29 sistema de processamento central, ou seja, as habilidades que acompanham o falar, o ler, oescrever e o escutar são originadas em ummesmo “repositório” centralcomum. Além da questão da transferência, um outro aspecto importante que foi sendo evidenciado nas pesquisas dizia respeito à compreensão sobre o nível de proficiência exigido para que uma língua pudesse se beneficiar dos conhecimentos adquiridos na primeira. A fim de dar conta dessa questão, Cummins e Mulcahy (1978) criaram a Hipótese da Interdependência do Desenvolvimento (Developmental Interdependence Hypothesis), que sugere que a competênciada criança na L2 é parcialmente dependente da competência já alcançada na L1. Portanto, quando a competência linguística na L1 está num estágio muito inicial, é mais difícil a criança alcançar a competência na L2 e,por consequência, obter sucesso em situação debiletramento. Cummins (1979) encontrou evidências para sua hipótese a partir de pesquisas realizadas com imigrantes e descendentes de imigrantes de vários países que se tornavam rapidamente fluentes em um período de cerca de dois anos, se expostos a situações de interação conversacional na língua dominante na sociedade anfitriã. As pesquisas realizadas pelo autor, entretanto, revelaram que, para que o indivíduo desenvolvesse um nível de proficiência acadêmico nessa língua dominante que pudesse ser comparado ao de um estudante monolíngue, era necessário um período de cinco a sete anos de exposição intensa à L2 (FINGER et al, 2019). Tal descoberta levou Cummins (1986) a defender a distinção entre “proficiência linguística conversacional” e “proficiência linguística voltada para fins acadêmicos”. Isso porque é evidente que os recursos linguísticos utilizadospara brincar no playground sãomuito distintosdalinguagemusadapelas mesmas crianças em uma aula de ciênciasou de geografia, porexemplo, pois aproficiência na língua necessária para dar conta das demandas cognitivas e acadêmicas de aulas ministradas em uma L2 é muito maior. O autormostrou essa distinção através dos termos “habilidades comunicativas interpessoais básicas” (Basic interpersonal communicative skills–BICS) e “proficiência linguística acadêmico/cognitiva” (Cognitive/Academic language proficiency–CALP). Essa diferenciação entre BICSe CALP também é representada pos Cummins (1986) através de um iceberg (FINGER et al, 2019). 30 Acima da superfície, estão as habilidades na língua chamadas de“habilidades comunicativas interpessoais básicas” como, por exemplo, a compreensão, a fala e o domínio da pronúncia, do vocabulário e da gramática. Abaixo da superfície, por outro lado, encontram-se as habilidades mais profundas, chamadas de“proficiêncialinguística acadêmico/cognitiva” como, por exemplo, a análise, a síntese e a avaliação (FINGER et al, 2019). Distinção entre Proficiência Linguística Conversacional e Proficiência Linguística Fonte FINGER et al, 2019. Essa proposta, apesar de antiga, parece ainda estar em consonânciacom autores atuais que também defendem a existência detransferência de habilidades entre línguas no processo de biletramento: Há duas razões pelas quaisa alfabetização pode ser diferente para crianças bilíngues e monolíngues. A primeira é que os bilíngues desenvolvem várias habilidades para alfabetização de maneira diferente dos monolíngues. A segunda é que os bilíngues podem ter a oportunidade de transferir as habilidades adquiridas para ler em um idioma e ler no outro (FINGER et al, 2019). 31 Em ambos oscasos, a relação entre os sistemas de escrita nas duas línguas determina a semelhança nas habilidades cognitivas necessárias para a leiturae também pode determinar até que ponto o bilinguismo afeta a alfabetização. Jasińska e Petitto (2013) e Jasińska et. al. (2017) não apenas concordam com os pesquisadores acima ao afirmar que os bilíngues desenvolvem habilidades diferentes dos monolíngues, como também apresentam evidências de estudos com neuroimagem que sugerem que a exposição bilíngue precoce e sistemática pode resultar em uma “assinatura neural” do bilinguismo. Em outras palavras, segundo as autoras, a experiência de uso intenso em duas ou mais línguas acarreta mudanças na estrutura e funcionamento do cérebro bilíngue.Da mesma forma, Reyes (2012) afirmaque quando é dada às crianças oportunidade de usar ambas as línguas nas modalidades oral e escrita elas se tornarão bilíngues e biletradas, desenvolvendo uma gama maior de recursos para dar conta das demandas cognitivas e sociais em todos os contextos em que estão inseridas, tais como na escola, em casa, na comunidade e possivelmente em suas carreiras futuras. Na mesma linha de raciocínio, também expandem a ideia antiga de dois sistemas separados para uma conceituação mais atualizada do bilinguismo, que vai além da noção de duas línguas autônomas, ou deuma L1 e uma L2 e de um bilinguismo aditivo ou subtrativo. Em vez disso, reforçam a ideia do bilinguismo dinâmico, que vê as práticas linguísticas dos bilíngues como complexas e inter-relacionadas e que não emergem de maneira linear e nem funcionam separadamente. Finalmente, tanto Yaden e Tsai (2012) quanto Bialystok et. al (2005) concordam com a necessidade de se olhar para as línguas envolvidas no currículo, ou para as línguas trazidas para a sala de aula, como reflexo da pluralidade linguística que caracteriza a comunidade na qual as crianças estão inseridas. O entendimento dos efeitos do biletramento na sala de aula e no desenvolvimento social e cognitivo das crianças é fundamental para evoluirmos no desenvolvimento de práticas pedagógicas apropriadas ao contexto de educação bilíngue (FINGER et al, 2019). Assim, estudos com essa temática se tornam fundamentais para que haja mais conhecimento sobre o processo de ensino-aprendizagem e possíveis resultados da 32 educação bilíngue em diferentes contextos. A seguir, faremos uma breve revisão de algumas pesquisas recentes que investigam como se dá o aprendizado simultâneo de duas línguas quando ele ocorre em contexto escolar (FINGER et al, 2019). 6 A TEORIA SOCIOCULTURAL E O ENSINO-APRENDIZAGEM DE SEGUNDA LÍNGUA Fonte: educacaoinfantil.aix.com A teoria sociocultural da mente de Lev Semeonovich Vygotsky, que trata da aprendizagem como um todo, tem sido foco de atenção por estudiosos para explicar o processo de aquisição de L2. Trata-se de uma teoria cognitiva que defende que a origem da cognição é a atividade social (GONÇALVES, 2015). Nesse sentido, os princípios socioculturais preconizam que os seres humanos se desenvolvem mentalmente a partir da interação com o seu meio social. O diálogo entre cognição e social ocorre de forma mediada por artefatos culturalmente construídos, podendo ser esses ferramentas físicas (martelos, tratores, computadores) e/ou simbólicas (números, diagramas, gráficos, música, arte, linguagem). Artefato é qualquer objeto material e/ou simbólico criado pelo homem que tem a potencialidade de ser um instrumento de mediação, ou seja, que é capaz, através da sua existência, 33 de dar forma ou transformar a interação do homem com o mundo. Contudo, nem todo artefato é considerado um instrumento de mediação. Por meio dos artefatos culturais, o indivíduo pode organizar e controlar o seu mundo físico, bem como as suas atividades sociais e mentais reciprocamente, como atenção voluntária, lógica de resolução de problemas, planejamento e ação, avaliação, memória voluntária e intencional e aprendizagem. Dentre os artefatos culturais que medeiam a interação entre o indivíduo e o seu ambiente físico e social, a linguagem é considerada a mais importante. Pois, além do papel exercido como ferramenta social, possibilitando a interação, ela também desempenha a função de ferramenta cognitiva (GONÇALVES, 2015). De acordo com o autor, a exemplo disso, Vygotsky (1986) advoga que o pensamento não está meramente expresso em palavras, ele vem a existir através delas. Dessa forma, a língua é vista como ferramenta para o conhecimento e não como um simples meio de transmissão de conhecimento. Nesse sentido, Vygotsky (1997) esclarece que a linguagem ocorre primeiramente através da fala da criança estabelecida inicialmente na interação com os adultos. Após, converte-se para um discurso interno que organiza o pensamento da criança e transforma-se numa função mental interna. Assim, a língua completa os pensamentos, os processos cognitivos, as ideias, ao mesmo tempo em que se torna um instrumento para a interação externa, repetindo, de forma cíclica, todo o processo da internalização. Vygotsky (1991) preconiza que a fala da criança, inicialmente usada como instrumento de interação, torna-se egocêntrica. Esta fala egocêntrica auxilia na solução de um determinado problema, de forma a superar a ação impulsiva, a planejar uma solução antes de sua execução e a controlar seu próprio comportamento (GONÇALVES, 2015). Ainda segundo o autor, enquanto as crianças agem na tentativa de atingir um determinado objetivo, elas também falam. Quanto mais complexa a ação exigida pela situação e menos direta a solução, maior a importância que a fala adquire na operação como um todo. Vygotsky defende, a partir dessas observações, que as crianças resolvem suas tarefas práticas com a ajuda da fala. A fala egocêntrica das crianças é 34 a transição entre a fala exterior e a interior1, adquirindo uma função intrapessoal além do seu uso interpessoal. Em outras palavras, um processo interpessoal é transformado num processo intrapessoal. Isso significa dizer que todas as funções no desenvolvimento da criança aparecem duas vezes: primeiro, no nível social, e, depois, no nível individual; primeiro, entre pessoas (interpsicológico), e, depois, no interior da criança (intrapsicológico). Esse movimento do externo para o interno, também conhecido como internalização, ocorre igualmente com a atenção voluntária, a memória lógica e a formação de conceitos. (GONÇALVES, 2015). De acordo com o autor, muitos estudiosos da área da aquisição 2 de L2 afiliam- se à teoria sociocultural, por entenderem que o conhecimento encontra-se primeiramente no social, nas interações entre aprendizes de L2 e, por meio da interação e colaboração com outros indivíduos, os aprendizes negociam significados, na tentativa de interiorizar o conhecimento. Esse processo de interiorização é facilitado pela zona do desenvolvimento proximal (ZDP). O teórico explica que há dois níveis de desenvolvimento: o primeiro nível é chamado de nível de desenvolvimento real, que é o nível de desenvolvimento das funções mentais que se estabeleceram como resultado de certos ciclos de desenvolvimento já completados na criança. Em outras palavras, esta etapa concerne à experiência ou conhecimento já internalizados por ela. Neste nível, o indivíduo realiza determinada atividade de forma independente. O nível de desenvolvimento potencial, por sua vez, refere-se àquiloque o aprendiz consegue realizar se assistido por uma pessoa mais experiente. Nesta etapa, necessitam-se artefatos como diálogo, colaboração, imitação, experiência compartilhada e pista. A ZDP seria o que Vygotsky preconiza como a distância entre o nível de desenvolvimento real e o nível de desenvolvimento potencial, ou seja: é a distância entre aquilo que a criança consegue resolver autonomamente e o que ela realiza em colaboração com outros indivíduos mais experientes. Segundo as palavras do autor, a ZDP é: [...] a distância entre o nível de desenvolvimento atual determinado pela independência na resolução de problemas e o nível de desenvolvimento potencial determinado através da resolução de problemas sob a assistência de um adulto ou em colaboração com uma criança mais experiente. 35 Em consonância com Lima (2011), a ZDP é um local metafórico que representa o domínio do conhecimento ou habilidade em que o aprendiz ainda necessita de auxílio. Isso significa que a criança é capaz de executar uma determinada atividade com a ajuda de outra pessoa mais experiente, que, em contexto de sala de aula, pode ser o professor ou os colegas, por meio de uma construção colaborativa. A ZDP refere-se àquelas funções mentais que ainda não amadureceram, mas que estão em processo de maturação. Funções que amadurecerão, mas que estão presentemente em estado embrionário (GONÇALVES, 2015). Dessa forma, segundo o autor: O que está na zona do desenvolvimento proximal hoje estará na zona do desenvolvimento atual amanhã [...] o que a criança consegue realizar com assistência hoje ela será capaz de realizar sozinha amanhã. O trabalho em colaboração com um participante mais experiente, que auxilia o aprendiz menos capaz a interiorizar o conhecimento, por meio da ZDP, vai ao encontro de mais um conceito da teoria sociocultural, conhecido como andamento (scaffolding). Este conceito, atribuído a Wood et al. (1976), concerne ao processo em que o especialista (expert), o participante mais experiente, oferece o auxílio necessário para que o indivíduo menos experiente (novice) seja capaz de resolver um problema, uma tarefa ou alcançar um objetivo, o qual está além dos seus esforços individuais. Nesse sentido, a assistência do indivíduo mais experiente promove o movimento da colaboração para a internalização de conhecimento(s) do menos experiente (GONÇALVES, 2015). Segundo o autor, a partir de um diálogo de apoio, o adulto ou o indivíduo mais experiente controla os elementos da tarefa que está além das capacidades do aprendiz, permitindo-lhe concentrar na conclusão da tarefa. O processo de andamento se dá por meio de uma série de funções; dentre elas estão: “recrutamento, redução do grau de liberdade, manutenção da direção, criação de características críticas, controle da frustração e demonstração”. Na visão sociointeracionista3, o desenvolvimento de L2 não ocorre de forma individualizada. Este processo contará com a frequência e qualidade do andamento estabelecido pelos participantes mais e menos experientes nas suas interações. Com isso, baseados na teoria vygotskyana, o ensino- aprendizagem de L2 ocorre de forma processual, via diálogo, pelo qual o conhecimento 36 é construído. Sendo assim, enfatiza-se a interação como propulsora da aprendizagem de L2, através da língua. Isso significa dizer que, a aprendizagem de L2 coocorre com o seu uso. Dessa forma, destaca-se a importância do trabalho colaborativo realizado em pares, ou em pequenos grupos, via tarefas colaborativas, uma vez que neste tipo de atividade, os aprendizes se engajam na solução de problema(s) e constroem os seus conhecimentos, na medida em que fazem uso da L2 e refletem sobre ela. Partindo desse pressuposto inicial, procuramos observar, neste estudo, as ocasiões de aprendizagem de L2 decorrentes do DC produzido no trabalho em colaboração entre aprendizes de inglês, nas aulas de língua inglesa de currículo bilíngue, ao tentarem resolver problemas propostos, a partir de tarefas colaborativas, tendo em vista que a colaboração, advinda da realização deste tipo de tarefa, contribui para o surgimento de ocasiões promotoras de aprendizagem de L2 (GONÇALVES, 2015). Com o entendimento de que o ensino-aprendizagem de L2 é visto como essencialmente social, entende-se que nós aprendemos a “[...] fazer ações com as nossas palavras [...]”. A partir deste pressuposto, quanto mais oportunidades interacionais forem dadas aos aprendizes, mais momentos de trocas eles terão para participar de atividades e ações com a língua. Como consequência, mais conhecimento e habilidades linguísticas, sociais e cognitivas resultarão desse processo de trocas. Dentro de um contexto sociocultural, a escola, em especial a sala de aula, é considerada um lugar fundamental para a aprendizagem de L2, uma vez que muitas das oportunidades de aprendizagem advêm das interações face-a-face e dos processos compartilhados como a resolução de problemas e discussões com especialistas e também como outros aprendizes. Dessa forma, a aprendizagem envolve o movimento entre a atividade intermental colaborativa e a atividade intramental autônoma, sustentada pelo andamento e facilitada pela ZDP. No entanto, a criação de oportunidades para a aprendizagem de L2, através da interação na sala de aula, dependerá do tipo do ambiente interativo proposto pelo professor, bem como do tipo de assistência que o educador proverá aos seus estudantes. Com isso, percebemos a necessidade de promover interações motivadoras e desafiadoras. 37 Tratando-se de ambiente interativo, outro ponto importante para reflexão acerca da interação entre aprendizes de línguas na sala de aula seria a configuração espacial. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) comparam o arranjo espacial da maioria das escolas brasileiras com a metáfora do ônibus4. Neste arranjo, espera-se que a interação seja desenvolvida pelo professor, que pergunta, e o aluno, que responde, caracterizando a típica organização discursiva IRA (iniciação – resposta – avaliação). De um modo geral, é assim que se configuram os arranjos interacionais na maioria das salas de aula. Esta configuração já faz parte do conhecimento implícito do aluno sobre como interagir nesse contexto (GONÇALVES, 2015). No entanto, com este arranjo espacial e, por sua vez, interacional, não se fomenta a 18 aprendizagem de L2, já que a construção do conhecimento, e, portanto, a aprendizagem de L2 é vista pela teoria sociocultural como uma comunicação dialógica. Além disso, segundo as mesmas autoras, os aprendizes são vistos na teoria vygotskyana como construtores ativos de seu próprio ambiente de conhecimento, a partir dos seus objetivos e como operam para atingir tais objetivos. No que concerne ainda às interações em sala de aula, estas nem sempre são constituídas amigavelmente. Questionamentos, divergências e conflitos são muito frequentes nas trocas dos alunos, entretanto, importantes para a aprendizagem de L2, pois os alunos recebem a chance de negociar, mudar sua opinião, refletir sobre um ponto de vista diferente do seu. A partir desses momentos, observam-se os episódios de conflitos cognitivos (ECCs), os quais consistem em ideias contraditórias advindas dos aprendizes interagentes que podem promover aprendizado (GONÇALVES, 2015). Segundo o autor, os ECCs são importantes nos processos interativos, pois eles fomentam a negociação e a mudança na produção dos alunos; na medida em que percebem as divergências, os pares negociam novas soluções para a realização de uma determinada atividade. Esse processo pode contribuir para a aprendizagem da L2. A mudança na produção de um dos participantes da interação também pode ser motivada pelo feedback negativo recebido por outro interagente. Este feedback negativo evidencia a faltade entendimento do que foi produzido pelo participante anterior na interação. Assim, o feedback provido pelo interagente B sinaliza ao 38 interagente A que há inconsistência na sua produção. Este evento interacional, segundo Swain e Lapkin (2001), fomenta o ensino-aprendizagem de L2 na medida em que a negociação de sentido e a mudança na produção do aluno são requeridas para que haja entendimento do que foi dito. Tendo em vista a natureza social do processo de aquisição de L2, o qual se constitui na interação entre aprendizes, trataremos, a seguir, de tarefas colaborativas no ensino-aprendizagem de L2 (GONÇALVES, 2015). 7 TAREFAS COLABORATIVAS E O ENSINO-APRENDIZAGEM DE SEGUNDA LÍNGUA Fonte: blog.lyceum.com Segundo Gonçalves (2015), a colaboração sempre esteve no centro das pesquisas de Vygotsky. Nessa direção, partindo do pressuposto de que o conhecimento é mediado por artefatos culturais, dentre os quais está a língua, entendemos que é por meio da interação entre aprendizes, os quais executam tarefas em colaboração, que demandam o uso da L2 para a resolução de problemas, que se conduzirá a aprendizagem desta língua. Dessa forma, seguimos a noção trazida por Barcellos (2014) de que a aprendizagem ocorre durante a atuação dos indivíduos, quando eles realizam uma tarefa em colaboração. A partir da perspectiva sociocultural, 39 da qual a mediação é considerada a palavra-chave para a aprendizagem, advogamos a importância de fomentar ocasiões de aprendizagem em L2, através da promoção de tarefas colaborativas executadas em duplas ou em pequenos grupos, proporcionando aos aprendizes de L2 múltiplas e frequentes oportunidades de interagir e produzir na língua, uma vez que a produção na L2 medeia a aprendizagem desta língua (GONÇALVES, 2015). O conceito de tarefa apresentado nesta pesquisa vai ao encontro do que defende David Nunan (2004) como tarefas comunicativas inseridas na sala de aula de L2 que envolvem os aprendizes na compreensão, manipulação, produção e interação na L2, enquanto sua atenção está focada principalmente no sentido e não apenas na forma da língua. O autor explica que isto não significa dizer que a forma não seja importante. Ele destaca que, na sua concepção, significado e forma estão altamente relacionados, e a função da gramática consiste na viabilização dos diferentes significados comunicativos existentes na língua. Para Lima e Costa (2010) uma tarefa é concebida como uma atividade contextualizada, que se conecta ao mundo real e visa a alcançar um determinado objetivo. Além disso, o uso da L2 se faz necessário ao longo do processo de realização desta tarefa. Da mesma forma, Pinho e Lima (2010) defendem o uso de tarefas colaborativas executadas em duplas ou em grupos, pois preconizam que este tipo de proposta conduz ao êxito na aprendizagem de línguas, uma vez que a interação, a colaboração e a negociação de conhecimentos apoiam o desenvolvimento de atividades de produção oral ou escrita, “[...] na medida em que os aprendizes constroem seus conhecimentos de forma facilitada pela ZDP e garantem uma aprendizagem significativa” (GONÇALVES, 2015). Segundo Lima (2011), as tarefas colaborativas na aprendizagem de línguas são fundamentais para promover interação, a qual desenvolve um papel central na aprendizagem de L2. O objetivo de uma tarefa colaborativa deve ser a motivação em comunicar na L2, criando um propósito real para o uso da língua. Ainda, segundo Lima, a língua será a ferramenta para solucionar o problema proposto pela tarefa, dando-se ênfase nesse processo ao sentido e à comunicação. Os aprendizes necessitam testar 40 suas hipóteses sobre como a língua funciona para confirmar o entendimento dos interlocutores. Este processo, em consonância com Lima, contribuirá para a aprendizagem da L2. Além disso, o trabalho colaborativo por meio de tarefas traz benefícios no sentido de que muitos aprendizes não se sentem à vontade ao se expor no grande grupo, evitando arriscar testagem de hipóteses na L2. Ao executarem as tarefas colaborativas, os aprendizes ficam mais propícios à tomada de riscos com a língua. Por isso, uma forma de fomentar a aprendizagem de L2 seria ao longo desses momentos de interação, através dos quais os aprendizes teriam a oportunidade de experimentar com a língua, testando hipóteses e monitorando os erros (GONÇALVES, 2015). De acordo com o autor, esse processo de manipulação de L2 empurra (push) os aprendizes para além do seu desempenho atual, conduzindo-os para a internalização de novos conhecimentos linguísticos ou a consolidação dos conhecimentos já existentes. (SWAIN, 2000). Partindo da perspectiva sociocultural, o processo de aprendizagem deve ser visto como essencialmente social. Nesse sentido, os aprendizes de L2 ao realizarem as tarefas, utilizam a L2 para um propósito comunicativo, a fim de atingir um resultado. Com isso, a língua torna-se um meio para alcançar resultados, tendo como objetivo a comunicação na L2, enfatizando o significado. Dessa forma, além do ganho social advindo do trabalho colaborativo, o ganho é também cognitivo, uma vez que o diálogo produzido na realização das tarefas é mediador do aprendizado, pois a língua medeia o processo de aprendizagem da própria língua. Em consonância com Lima (2011), participar de práticas sociais é aprendido através do engajamento constante em atividades com membros competentes de seu grupo. A aprendizagem e o desenvolvimento acontecem quando os indivíduos participam de atividades socioculturais da sua comunidade. Partindo dessa perspectiva, as tarefas de sala de aula são vistas igualmente como atividades que promovem engajamento social, uma vez que, a tarefa abrange processos de uso da língua relacionados ao mundo externo à sala de aula, permitindo que o uso linguístico 41 seja vinculado a práticas extraclasse. Como já dito anteriormente, as tarefas colaborativas enfatizam a importância do foco no sentido. No entanto, de acordo com o autor, as tarefas podem ainda ser consideradas colaborativas mesmo quando o foco está na forma, pois o foco na forma se dá na tentativa que os aprendizes fazem de expressar seus significados da forma mais precisa e coerente possível. Construída colaborativamente, a tarefa guia o aprendiz para o foco na forma, uma vez que a construção do sentido é requerida pela tarefa. Por fim, conforme os princípios socioculturais, o conhecimento está sempre em reconstrução, calçado nas relações dialógicas estabelecidas pelos indivíduos e seus pares, de modo que a colaboração, por meio das tarefas, torna-se uma oportunidade de aprendizagem de línguas. 7.1 O Diálogo Colaborativo e o Ensino-Aprendizagem de Segunda Língua A inserção de crianças em programas de estudos que contemplem duas línguas como a educação bilíngue tem aumentado significativamente nos últimos tempos. Entretanto, sabe-se que a simples exposição de uma criança a um segundo idioma não é sinônimo de aprendizagem desta língua, da mesma forma que este processo não ocorre apenas de forma individualizada (GONÇALVES, 2015). Nesse sentido, segundo o autor, as investigações desenvolvidas no contexto canadense, sobre a produção (output) na L2 e sobre o DC resultante destas produções realizadas com aprendizes em programas de imersão de francês como L2, bem como pesquisas desenvolvidas no contexto brasileiro nos mais variados contextos educacionais, com aprendizes de diferentes faixas etárias e com distintos níveis de proficiência na língua inglesa como LE, têm trazido resultados que sugerem que o diálogo produzido no trabalho colaborativo fomenta o aprendizado de L2. Com o objetivo de adequar-se à teoria vygotskyana, Merrill Swain (2000) faz uma reinterpretação da sua hipótese inicial acerca da produção compreensível.
Compartilhar