Buscar

Cidadania dilemas e perspectivas na República Brasileira

Prévia do material em texto

Cidadania: dilemas e perspectivas na República Brasileira
Lucilia de Almeida Neves
Ao longo da história republicana, há um desafio permanente à consolidação da
democracia. A tradição tem sido marcada por 2 movimentos: 1) a facilidade com que
experiência democráticas instituídas foram interrompidas durante o período republicano; 2) a
permanência residual e paradoxal de práticas autoritárias em fases de regimes
democráticos.
Retrocedendo às origens do Estado brasileiro, identifica-se vários obstáculos à
plena realização da cidadania. Era difícil, constituir formas de participação política e social
ampliadas ao mais amplo espectro da população. No início da luta pela constituição da
nacionalidade brasileira, os esforços para conquista e estabelecimento dos direitos da
cidadania confundiram-se com movimentos em prol da independência nacional. Fato que se
repetiu em diferentes conjurações reivindicativas da liberdade para o país. Cidadania e
identidade nacional, desde então passaram a constituir dois lados de uma mesma moeda. A
identidade nacional quase sempre está estreitamente vinculada aos direitos, sobretudo os
civis.
Projetava-se que os cidadãos brasileiros participassem da construção do destino
do país através da república representativa. Entendia-se que a cidadania poderia ser
definida por dois aspectos de interação: a independência nacional e a ideia de a constituição
da nova nação ser elaborada por representantes eleitos pela população. Não se realizando
a utopia no século XVIII, e promulgada a independência mantendo-se o regime monárquico,
as dificuldades de ampliação da cidadania permaneceram. Monarquia e escravidão
(expressão máxima da anticidadania) conviveram até a proclamação da republica. No
período republicano essas realidades se reproduziram sob novas roupagens,
transmutando-se ora em dominação patrimonial, ora em experiências ditatoriais, tais como
crimes raciais, mandonismos locais, restrições à liberdade de expressão, violação de direitos
civis e coerção política.
Como afirma Margarida Vieira, a cidadania com vivência histórica, como resultado
de lutas, como processo, contém em si mesma a ideia de expansão (...) Mais que um ponto
de deslocamento talvez pudéssemos usar a imagem de um horizonte que se amplia,
abarcando novos desejos ou carecimentos, e que se contrai frente a obstáculos. Tal qual a
democracia, é um processo, uma criação ininterrupta de novos direitos. Para Marshall, os
direitos de cidadania são de 3 tipos: civis, sociais e políticos. Os civis são fundamentais a
liberdade, a vida, a igualdade formal de oportunidades e a propriedade. Os políticos
relacionam-se a participação política, a liberdade de expressão, direito de votar e ser votado,
liberdade de organização dos cidadãos. Os sociais vinculam-se à justiça social e redução
das desigualdades, destacando-se o direito à educação, saúde, trabalho e proteção aos
trabalhadores.
Os direitos civis se relacionam ao liberalismo clássico nos séculos XVII e XVIII. A
conquista e a legitimação desses direitos ocorreram concomitantemente à expansão da
economia de mercado e a efetiva implantação da ordem capitalista. A conquista dos direitos
políticos pode ser identificada como sucessora da conquista dos direitos civis. Seu apogeu
acompanha os desdobramentos da Revolução Francesa, aprofunda-se com a
liberal-democracia e se consolida com a expansão do direito ao voto nos séc XIX e XX. Os
direitos sociais têm o primeiro patamar de luta por sua conquista nas contradições
capitalistas.
Ao longo do século XIX em países da Europa ocidental, trabalhadores e
pensadores socialistas, lutaram objetivando a conquista de direitos sociais. Os reformistas
pretendiam aperfeiçoar o sistema e os socialistas pretendiam superá-la e substituí-la por
uma nova ordem econômica e social. Bobbio classifica os direitos civis e políticos como
sendo de primeira geração e os sociais como de segunda. A eles acrescenta um elenco de
novos direitos, os ecológicos, que considera como de 3ª geração. Todos nacidos quando
devem e podem nascer.
A referência à realização da cidadania é uma recusa a concepções
conservadoras que pretendem estabelecer mecanismos de controle da potencial extensão
dos direitos já consolidados e também a concepções regressivas que pretendem reduzir
esses direitos. Para Sérgio Abranches, existem 2 matrizes políticas clássicas inspiradoras
dos modelos de cidadania da modernidade: uma coletiva (polis grega) e uma privatista
(civitas romana). Os socialistas geralmente se vinculam à tradição grega. Os liberais
vinculam-se à tradição privatista.
A cidadania desabrochou gradativamente, através de uma rede complexa de
relações e interações entre doutrinas, correntes de pensamento, cultura, estado e sociedade
civil. Ela se caracteriza por uma busca de um horizonte alternativo ao presente dado. A
história da humanidade revela o embate de projetos de cidadania que se distinguem pela
ênfase maior ou a liberdade ou a igualdade.
No modelo liberal, valoriza-se os direitos civis ou individuais. A soberania pública
é limitada pela soberania individual. Vindo da tradição jusnaturalista, esse modelo coloca os
direitos civis à vida, à liberdade, e a propriedade como fundamentais. O estado deve
restringir ao máximo sua atuação, pois a centralização de poder atinge a liberdade e tende a
ferir os seus direitos fundamentais.
Toda participação está vinculada a representatividade constituída por garantias ao
pluralismo, a rotatividade no poder e a renovação periódica dos mandatos eleitorais, a
definição de legitimidade do poder político situa-se no consentimento dos homens, por
natureza livres. Para limitar a competência do estado, institui-se a tripartição de poderes. A
efetivação desse modelo não proporcionou a ampliação dos direitos civis para todos os
segmentos da sociedade. A representação política também se limitou a setores sociais
específicos.
O modelo liberal-democrático nasce das críticas à limitação do modelo liberal. É
vista como um aperfeiçoamento do sistema anterior. Na aplicação da cidadania civil é válido
para todos, mas na cidadania política limita-se aos possuidores de determinada renda.
Reconhece o cidadão como ser político atuante e não como mero consumidor de bens e
direitos. Nesse regime, a democracia representativa se aprofunda/amplia através da
universalização do direito de voto. O dissenso, essencial à democracia, passa a ser
elemento natural na vida política. Para sua expressão formam-se inúmeros canais
institucionais, como os partidos, instrumentos privilegiados de participação política,
sobretudo no jogo eleitoral.
À medida que a vida em sociedade tornou-se mais complexa e os processos
produtivos mais socializados, novas demandas por direitos se constituíram. Como acentua
Bobbio, ocorreu a passagem dos direitos da liberdade para os direitos políticos e depois
para os sociais. Os direitos sociais abrangem desde a proteção ao trabalho até os de
garantia à saúde e à educação. Começou no século XIX a luta por eles. Tornou-se mais
desejável a proteção social que a liberdade individual. A intervenção do Estado se amplia e
suas funções se multiplicam.
Na social-democracia, os direitos da cidadania referem-se prioritariamente, aos
critérios de justiça distributiva, provocando uma ampliação das demandas da sociedade civil
e sua maior organização. Seguindo a dinâmica de extensão da participação, são ampliadas
ainda mais as instâncias de decisão para a sociedade civil (empresas, bairros, escolas,
fábricas).
Em países de passado colonial, a evolução da conquista dos direitos da cidadania
não foi retilínea. No Brasil, algumas características estruturais da realidade sociopolítica
podem ser consideradas fundamentos de tal situação. O país é marcado por uma cisão
profunda entre o país legal e o país real. Em países de tradição ibérica e passado colonial,
revela-se no decorrer de sua história, uma tendência a hipertrofia do estado. Sem uma
sociedade civil forte e atuante, a cidadania se vê ameaçada nos direitos que a constituem.Paradoxalmente existe uma convivência entre liberalismo e autoritarismo. Como
exemplo, na República velha, quando o regimento era liberal, mas se reproduzia o
autoritarismo oligárquico. Contemporaneamente, os governantes usam de métodos
autoritários para implementar reformas liberais.
Margarida Vieira enquadra a cidadania brasileira em 4 linhas de abordagem: 1) A
ausência de cidadania no Brasil, com o povo animalizado, assistindo as transformações
conduzidas pela elite na Primeira República; 2) A precariedade da cidadania, ter a ver como
fato de na sociedade brasileira existirem dois tipos de orientações: uma tomista e
centralizadora e outra individualista e liberal; 3) Uma cidadania regulada, ambígua, pois a
participação dos cidadãos na política e na sociedade se dá sobre o controle estatal; 4) Uma
construção da cidadania como processo histórico, marcado por lutas políticas e sociais,
avançando e recuando na conquista de direitos civis, políticos e sociais e por "vivências
diferenciadas de direitos, maiores para uns, menores para outros". A cidadania é um
horizonte que se amplia quando a democracia avança e se comprime quando predomina o
autoritarismo em fases de sedução por governos centralizadores. Portanto, a ambiguidade e
a ausência de linearidade nos avanços da conquistas cidadãs, são recorrentes na nossa
história.
A primeira fase dos governos republicanos no BR apresentou como característica a
exclusão e a restrição. Os direitos civis não estavam consolidados e nem eram afeitos a
maioria dos brasileiros. Os direitos políticos eram restritos, pois segmentos expressivos da
população não exerciam o direito de votar e ser votado. Os sociais inexistiam, e o
trabalhador ficava submetido à selvageria do mercado.
Em seus primeiros anos, o Brasil foi marcado pelo federalismo, que convivia com o
ideário positivista predominante nos anos subsequentes à Proclamação. Esse federalismo
liberal era individualista, e reprimia articulações de sujeitos políticos coletivos e excluía o
povo do espaço público. As mulheres, analfabetos e militares de baixa patente não votavam.
O sistema partidário regionalizado reforçava uma política elitizada e oligárquica. Era comum
o voto de cabresto e a eleição a bico de pena, controladas pelo coronelismo/mandonismo
locais. O direito civil era privilégio dos mais abastados, que tinham acesso ao saber e à
propriedade.
Durante a República Velha, com a implantação das primeiras indústrias e com a
entrada de um grande contingente de trabalhadores imigrantes, a busca pela realização dos
direitos sociais adquiriu uma dimensão conflituosa com a ordem estabelecida, que recorreu
permanentemente à coerção para reprimir os movimentos. O governo implantado em 1930
se orientou para constituir um Estado orgânico, hipertrofiado, centralizador, modernizador e
assistencialista. As funções governativas adquiriram características de um paternalismo
autoritário, em consonância com uma concepção tutelar, que se orientava por objetivos
modernizantes e conservadores ao mesmo tempo. De maneira aparentemente contraditória,
a ausência de liberdade de expressão e de participação política conviveu com instrumentos
legislativos bastante modernos de proteção e assistência ao trabalhador.
Antes do governo Vargas, governantes e proprietários desconheciam o sujeito
coletivo como construtor da cidadania, mas após 1930, o estado passou a reconhecê-lo. Ao
mesmo tempo, o governo recorrentemente tentou impedir qualquer ação mais independente
por parte da sociedade civil. A cidadania passou a ser regulada sem se tornar abrangente.
Quanto aos direitos civis e políticos, o governo após 1930, adotou uma linha de ação que
acabou não só por limitá-los, mas também esmagá-los. No decorrer de 1930, apesar da
resistência de grandes segmentos populacionais, o exercício dos direitos políticos tornou-se
praticamente inexistente.
Em 1937, quando fecharam todas as casas legislativas do país, o governo central
propalou a ideia de que uma sociedade unida pela busca de objetivos comuns não precisava
criar canais de representatividade para expressão de interesses conflitantes, pois estariam
irmanados pela grandeza da nação, e isso neutralizaria qualquer contradição política,
econômica e social. O livre exercício dos direitos civis, especialmente o da liberdade, foi
também abandonado. Para o governo, uma ordem política eficiente, homogeneizada e
hierarquizada, não devia ficar à mercê da livre ação de contestadores isolados e resistentes
ao projeto modernizador.
A década de 1940 foi marcada internacional por um gradativo retorno às ideias
liberais, o que levou à queda de Vargas em 1945. O processo de construção da democracia
seria consolidado a médio prazo, já nos anos de 1950. Se por um lado representou uma
ruptura relevante no processo de desmantelamento da ditadura estadonovista, foi
simultaneamente, uma conjuntura na qual elementos da continuidade articularam-se por
dentro do processo de transição, representando uma continuidade na transformação.
A república democrática populista, em seus primeiros anos, ainda era marcada em
demasia por práticas corporativistas da década anterior. A democratização foi processada
pelo alto e de dentro pra fora do regime. Nesse período o implemento da política
liberal-democratica (representatividade, competição e pluralismo partidário) conviveu com o
controle corporativista orgânico do mercado de trabalho e dos sindicatos.
A evolução do período que vai de 1945 - 1964 foi caracterizada por avanços
significativos das práticas democráticas, pela consolidação efetiva dos direitos civis e
políticos e pela ampliação dos direitos sociais. Em 1960 o Estatuto do Trabalhador Rural,
pela primeira vez na história regulamentou amplamente o trabalho nas áreas rurais. O
período caracterizou-se por um avanço da urbanização e pela crescente organização da
sociedade civil em associações, sindicatos e partidos. Essa dinâmica chegou ao campo
onde foram organizados sindicatos e ligas camponesas.
Também foram marcas do período: crescente aprofundamento da democracia,
pluripartidarismo efetivo, respeito aos institutos da prática liberal-democratica e
movimentação mais autônoma da sociedade civil. Em decorrência desse último fator,
processou-se uma rearticulação das forças políticas conservadoras que, através de uma
intervenção golpista na ordem constitucional, provocaram a interrupção da experiência
democrática vigente.
Com a derrubada de Jango, novamente o exercício da cidadania se viu limitado.
Segundo José Murilo de Carvalho, o incremento da participação política conduziu em 1964 a
uma reação defensiva, que se caracterizou por intervenções em todas as esferas de
organização da sociedade civil e também em instituições. A participação política ativa e
autônoma era identificada, pelos poderosos como uma base para dissenso e prejudicial ao
interesse nacional. Por esse motivo, o período teve como linha de ação, a restrição de
alguns direitos da cidadania e a eliminação de outros.
Após 1964, havia uma precária situação dos direitos civis e restrição dos direitos
políticos, somando-se a manutenção dos processos eleitorais e mecanismos de participação
oficial na política. Após 1968, a prática política revelou-se mais latentemente autoritária e
excludente. As funções estatais hipertrofiaram-se e a sociedade civil e política minimizou
sua atuação. O Estado desestruturou sindicatos, organizações e associações atuantes pré
64. Sucedendo o pluripartidarismo, criou-se um bipartidarismo, após a cassação de
lideranças políticas. Quanto aos direitos civis, uma ampla legislação de exceção ampliou o
poder do Estado e de seu aparato repressivo. A liberdade de expressão foi cerceada e os
opositores do regime sujeitos a uma ação coercitiva Estatal.
Os direitos sociais também foram restritos. Sindicalistas foram presos e a ação
organizada dos trabalhadores foi desarticulada por longo tempo. O distributivismo populista
foi sucedido por um modelo de desenvolvimento econômico em detrimento do
desenvolvimento social.A burocracia, a tecnologia estatal e os órgãos de segurança
adquiriram poder crescente. O período pode ser identificado como de estado forte e
sociedade civil fraca.
Foi graças a uma reativação gradual dos movimentos sindicais, movimentos pela
anistia, sociedade de bairros, pastorais e movimentos de mulheres que o país retornou
gradativamente à democracia. A partir de 1985, uma nova ordem política se implantou no
Brasil. Como ocorreu na época do Estado Novo, a transição para a democracia foi
controlada pelo Estado. Desde as eleições de 1974, quando o MDB tornou-se vitorioso, o
Estado autoritário posicionou-se de um lado, pois não queria perder as rédeas do processo,
e a sociedade civil de outro. Esse embate de mais ou menos 10 anos, culminou com a
promulgação da Constituição de 1988.
Em 1980 foram criados novos partidos políticos que sucederam a Arena e o MDB.
Lentamente reativou-se a democracia: volta do movimento sindical, anistia aos presos e
exilados, retorno ao pluripartidarismo, eleições para governadores/ prefeitos de capitais,
extinção gradativa da legislação de exceção, eleição indireta de um presidente civil, eleição
de uma Assembleia Nacional Constituinte, promulgação de uma nova Constituição e
eleições diretas para presidente da República. Essa constituição de 1988 obtêm pela
primeira vez a estatura de direitos fundamentais do ser humano e consagra os direitos de
terceira geração (ecológicos/ambientais).
Hoje em dia persiste uma lacuna entre o mundo real e o legal, e projetos
neoliberais descaracterizam definitivamente a Carta Constitucional Brasileira. O país na qual
a sociedade civil tenha real importância e o Estado garanta e implemente efetivamente os
direitos sociais, tende a ser mero horizonte histórico.

Continue navegando