Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO COPPEAD DE ADMINISTRAÇÃO GISELE ROSNER CHOUIN INTERAÇÕES, SIGNIFICADOS E PRÁTICAS DO VEGETARIANISMO NA MÍDIA SOCIAL: UM ESTUDO NETNOGRÁFICO RIO DE JANEIRO 2013 GISELE ROSNER CHOUIN INTERAÇÕES, SIGNIFICADOS E PRÁTICAS DO VEGETARIANISMO NA MÍDIA SOCIAL: UM ESTUDO NETNOGRÁFICO Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Administração, Instituto COPPEAD de Administração, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Administração. Orientadores: Leticia Moreira Casotti e Celso Funcia Lemme Rio de Janeiro 2013 Chouin, Gisele Rosner Interações, significados e práticas do vegetarianismo na mídia social: u estudo netnográfico./ Gisele Rosner Chouin. – Rio de Janeiro: UFRJ, 2013. 162 f.: Il; 30 cm. Orientadores: Leticia Moreira Casotti e Celso Funcia Lemme Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto COPPEAD de Administração, 2013. 1. Comportamento do consumidor. 2. Consumo ético. 3. Administração – Teses. I. Casotti, Leticia Moreira. II. Lemme, Celso Funcia. III. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto COPPEAD de Administração. IV. Título. GISELE ROSNER CHOUIN INTERAÇÕES, SIGNIFICADOS E PRÁTICAS DO VEGETARIANISMO NA MÍDIA SOCIAL: UM ESTUDO NETNOGRÁFICO Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Administração, Instituto COPPEAD de Administração, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Administração. Aprovada em: _______________________________________________________ Profa. Letícia Moreira Casotti, D.Sc. (COPPEAD/UFRJ) _______________________________________________________ Prof. Celso Funcia Lemme, D.Sc. (COPPEAD/UFRJ) _______________________________________________________ Profa. Maribel Carvalho Suarez, D.Sc. (COPPEAD/UFRJ) _______________________________________________________ Profa. Cecília Lima de Queirós Mattoso, D.Sc. (UNESA) À minha mãe, Roselee, sempre ao meu lado, oferecendo amor, carinho, paciência e conforto. AGRADECIMENTOS À minha mãe e à minha avó, pelo apoio e incentivo em todos os sentidos possíveis, pelo amor incondicional, por cada oração e por me ensinarem a perseguir as ideias e os ideais com coragem e dedicação. Aos professores Coppead pela qualidade e valor das aulas. Em especial, aos professores Letícia e Celso, por me adotar e me guiar com excelência, cuidado e dedicação neste caminho. A vocês, minhas sinceras manifestações de admiração, respeito e carinho. Às melhores amigas, Ilana e Marcia, por suportar pacientemente os desabafos, por comemorar comigo as vitórias e pelos incentivos nos momentos de cansaço e fraqueza. Aos quase irmãos Vinícius Pereira, Rebecca, Glauce, Vitor, João Guilherme e Luciana Alves, com quem compartilhei momentos de angústia e alegria. Aos novos amigos de infância Leo Sertã, Debora, Lucianinha e Jô, por tornar este processo mais suave e divertido. A todos os meus amigos, por compreender a longa ausência. Aos funcionários Coppead, sempre prestativos e dedicados. Aos colegas de turma, pelo rico intercâmbio de experiências e contribuições proveitosas. “Renda-se como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece, como eu mergulhei. Pergunte, sem querer, a resposta, como estou perguntando. Não se preocupe em ‘entender’. Viver ultrapassa todo o entendimento.” (Clarice Lispector) RESUMO Chouin, Gisele Rosner. Interações, Significados e Práticas do Vegetarianismo na Mídia Social: Um Estudo Netnográfico. Rio de Janeiro, 2013. Dissertação (Mestrado em Administração) – Instituto de Pós Graduação e Pesquisa em Administração, COPPEAD, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2013. O presente trabalho qualitativo e exploratório tem por objetivo principal explorar como o vegetarianismo é compartilhado em três comunidades das redes sociais construídas em torno desse tema, apontando riscos e oportunidades para as organizações ligadas à indústria alimentícia. O estudo buscou compreender diferentes aspectos do comportamento do consumidor vegetariano tais como significados atribuídos, associações com a prática cotidiana, influências e grupos de referência e utilizou como método de coleta de dados a netnografia. A literatura de apoio foi estruturada em dois pilares: o primeiro relacionando o vegetarianismo como resultado dos conceitos de sustentabilidade no comportamento de consumo; e o segundo, trazendo os conceitos de marketing que permeiam o tema e o ambiente virtual, incluindo os tipos de comunidades (subculturas de consumo e comunidades virtuais), identidade, grupos de referência, líderes de opinião e comunicação boca a boca. Os resultados sugerem diferentes abordagens para a subcultura dos vegetarianos, mas as três comunidades apresentam o mesmo valor de ligação quando defendem a vida dos animais e o não consumo de carne ou derivados. As mensagens vão além da dieta alimentar e caracterizam o vegetarianismo como “filosofia de vida”, “modelo de vida” ou “estilo de vida”. Essa ampliação do que significa ser vegetariano leva a questionamentos ao consumo de outras categorias de produto. Não foram encontradas associações entre a defesa da dieta vegetariana e a defesa do bem estar animal, já que essa última não defende a vida. Palavras-chave: Consumo, Vegetarianismo, Comunidades virtuais, Netnografia ABSTRACT Chouin, Gisele Rosner. Interações, Significados e Práticas do Vegetarianismo na Mídia Social: Um Estudo Netnográfico. Rio de Janeiro, 2013. Dissertação (Mestrado em Administração) – Instituto de Pós Graduação e Pesquisa em Administração, COPPEAD, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2013. This exploratory and qualitative study aims primarily to explore how vegetarianism is shared in three communities of social networks built around this theme, pointing out risks and opportunities for the companies linked to the food industry. The study sought to understand different aspects of consumer behavior such as vegetarian meanings, associations with daily practice, influences and reference groups and used as a method of data collection the netnography. The supporting literature was structured on two pillars: the first relating to vegetarianism as a result of sustainability concepts in consumer behavior; and the second, bringing the marketing concepts that permeate the theme and the virtual environment, including the types of communities (subcultures of consumption and virtual communities), identity, reference groups, opinion leaders and word of mouth. The results suggest different approaches to the subculture of vegetarians, but the three communities share the same linking value when defend the lives of animals and not eating meat or derivatives. The messages go beyond the diet and characterize the vegetarianism as "philosophy of life", "life model" or "lifestyle". This expansion of what means being a vegetarian leads to questions about the consumption of other product categories. No associations were found between advocating vegetarianism and animal welfare advocacy, since the latter does not defend life. Keywords:Consumption, Vegetarianism, Virtual Communities, Netnography LISTA DE ILUSTRAÇÕES FIGURAS Figura 1 - Diagrama - síntese da revisão de literatura ................................................................. 19 Figura 2 - Modelo das motivações, tensões, mecanismos para administração da situação e implicações de consumo do vegetariano ........................................................................................ 24 Figura 3 - Modelo de influência orgânica entre consumidores ................................................... 47 Figura 4 - Modelo de influência linear do profissional do marketing .......................................... 48 Figura 5 - Modelo de coprodução em rede .................................................................................... 48 Figura 6 - Elementos do modelo da coprodução em rede influenciando a expressão das narrativas do BAB ............................................................................................................................... 50 Figura 7- Resumo do método ........................................................................................................... 54 Figura 8 - Ilustração da imagem do vegetariano ........................................................................... 67 Figura 9 - Interpretação da imagem do vegetariano ..................................................................... 68 Figura 10 - Extremismo ..................................................................................................................... 69 Figura 11 - Apresentação .................................................................................................................. 70 Figura 12 - Comparação de preços de produtos no supermercado ........................................... 71 Figura 13 - União pelo ideal .............................................................................................................. 76 Figura 14 - Questionamentos de não vegetarianos ...................................................................... 82 Figura 15 - Imagem dos não vegetarianos ..................................................................................... 85 Figura 16 - Vegetarianismo como tradição .................................................................................... 90 Figura 17 - Improviso da blogueira .................................................................................................. 95 Figura 18 - Vaca Louca ................................................................................................................... 115 Figura 19 - Imagem para chocar .................................................................................................... 117 Figura 20 - Imagem para sensibilizar ............................................................................................ 119 Figura 21 - Touradas ....................................................................................................................... 122 QUADROS Quadro 1 - Tipos de Vegetarianismo .............................................................................................. 13 Quadro 2 - Comparação entre os hábitos de consumo entre os gêneros ................................ 16 Quadro 3 - Estratégias organizacionais diante dos mecanismos para administração das situações de tensão do vegetariano ................................................................................................ 26 Quadro 4- Comparação das comunidades .................................................................................. 133 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 - Mercado de alimentos sem carne no Reino Unido ................................................... 15 file:///C:/Users/gisele/Desktop/Dissertação/DISSERT/Tese%20Gisele%20-%2025%20OUT%2013.docx%23_Toc370464957 file:///C:/Users/gisele/Desktop/Dissertação/DISSERT/Tese%20Gisele%20-%2025%20OUT%2013.docx%23_Toc370464957 LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Quantidade de vegetarianos nos EUA em 2009 ........................................................ 15 Tabela 2 - Comunidades selecionadas: .......................................................................................... 58 Tabela 3 - Estatística das postagens - Vegetariano da Depressão ........................................... 60 Tabela 4- Estatística das postagens - Vegetarianos Pensam Melhor ....................................... 62 SUMARIO 1. INTRODUÇAO ................................................................................................................................ 11 1.1 CONTEXTO ................................................................................................................................. 11 1.1.1 Um Grupo em Ascensão ....................................................................................................... 13 1.1.2 Impactos na economia ......................................................................................................... 16 1.2 PERGUNTAS DE PESQUISA ........................................................................................................ 18 2. REVISÃO DE LITERATURA ............................................................................................................. 19 2.1 COMPORTAMENTO DE CONSUMO E SUSTENTABILIDADE ....................................................... 20 2.2 SUSTENTABILIDADE E O VEGETARIANISMO .............................................................................. 23 2.2.1 Preocupação com os direitos dos animais ........................................................................... 27 2.2.2 Razões espirituais ................................................................................................................. 29 2.2.3 Razões de saúde ................................................................................................................... 32 2.2.4 Ativismo Político ................................................................................................................... 34 2.2.5 Ambientalismo...................................................................................................................... 34 2.2.6 Não gostar de carne .............................................................................................................. 36 2.3 IDENTIDADE E COMUNIDADE ................................................................................................... 37 2.4 GRUPOS E INFLUÊNCIA .............................................................................................................. 42 2.5 INTERNET E BOCA A BOCA ........................................................................................................ 44 3. METODOLOGIA ............................................................................................................................. 53 3.1 DELIMITAÇÃO DA PESQUISA ..................................................................................................... 53 3.2 ESCOLHA DO MÉTODO .............................................................................................................. 54 3.3 NETNOGRAFIA ........................................................................................................................... 54 3.3.1 Comunidades Selecionadas .................................................................................................. 57 3.3.2 Entrada Cultural .................................................................................................................... 62 3.3.3 Coleta e Análise de Dados .................................................................................................... 63 3.4 LIMITAÇÕES DA PESQUISA .............................................................................................................. 63 4. DESCRIÇÃO E ANÁLISE DOS ACHADOS DA PESQUISA................................................................... 65 4.1 VEGETARIANO DA DEPRESSÂO ................................................................................................. 65 4.2 PAPACAPIM ............................................................................................................................... 91 4.3 VEGETARIANOS PENSAM MELHOR ......................................................................................... 112 5. DISCUSSÃO FINAL ....................................................................................................................... 131 5.1 DIFERENÇAS GERAIS DAS TRÊS COMUNIDADES ........................................................................... 131 5.2 OS SIGNIFICADOS DO VEGETARIANISMO...................................................................................... 133 5.3 AS PRÁTICAS VEGETARIANAS ........................................................................................................ 137 5.4 INTERAÇÕES E CONEXÕES ............................................................................................................. 139 5.5 COMENTÁRIOS FINAIS ................................................................................................................... 141 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................................................... 143 APÊNDICE ............................................................................................................................................ 150 ANEXO ................................................................................................................................................. 160 11 1. INTRODUÇAO O presente trabalho tem por objetivo principal explorar como o vegetarianismo é compartilhado em conteúdos que poderiam ser também chamados de “diários virtuais” de três comunidades das redes sociais construídas em torno desse tema e que foram acompanhadas durante um mês. Mais especificamente, o estudo buscou compreender diferentes aspectos do comportamento do consumidor vegetariano tais como significados atribuídos, associações com a prática cotidiana, influências e grupos de referência. De forma a buscar essas informações, este estudo qualitativo e exploratório utilizou como método de coleta de dados a netnografia seguindo as orientações de Kozinets (1998; 1999; 2002; 2006). Por meio desta técnica, é possível observar, com relativo distanciamento, a interação entre diferentes participantes. A dinâmica virtual, por ser caracteristicamente livre, tende a mostrar opiniões e ideias livres de julgamento. A rede mundial possibilita, também, a interconexão entre pessoas de diferentes pontos geográficos, diferentes valores sociais ou religiosos, possibilitando, portanto, uma discussão mais rica e proveitosa. Na literatura pesquisada de comportamento do consumidor foram encontrados poucos estudos em torno do vegetarianismo em que predominavam a busca por entender motivações que levam ao não consumo da carne (TWIGG, 1979; KLEINE; HUBBERT, 1993; JANDA; TROCCHIA, 2001; RUBY, 2011; FESSLER ET AL, 2003; KUBBEROD ET AL, 2006). 1.1 CONTEXTO O termo ‘vegetariano’ tem origem na palavra grega ‘vegetus’, que significa fresco, são, íntegro, segundo o site especializado em vegetarianismo Vegetarian Society (2012). Foi cunhado em 30 de setembro de 1847, na primeira reunião realizada pela Sociedade Vegetariana do Reino Unido em Kent, Inglaterra. Até então, os indivíduos que não ingeriam carne eram denominados ‘pitagóricos’ ou seguidores do sistema pitagórico, em decorrência da prática de alimentação restritiva do matemático grego Pitágoras (VEGETARIAN SOCIETY, 2012). Singer (1995) explica que, para os pitagóricos, a confecção do prato deveria ser completada sem nenhuma participação animal, em virtude da crença de que os homens e animais partilhavam a mesma alma, que estaria presa ao corpo. O 12 consumo de carne seria, então, um ato selvagem, que resultaria em uma punição maior e uma elevação menor das almas. Inúmeros nomes da antiguidade são citados por defender o estilo de vida sob a ideia da imortalidade da alma e a responsabilidade dos indivíduos para com ela durante a vida: Empédocles, Plutarco, Porfírio, Plotino e Platão são exemplos. Por outro lado, as pessoas que ingeriam carne justificavam o consumo por meio da superioridade humana sobre os animais. No século XIX, o argumento espiritual deu lugar ao que defendia o tratamento humanizado dos animais e de saúde. Razões éticas, como o direito dos animais, compunham a principal defesa para o não consumo de carne de acordo com autores como George Shaw, Henry Salt, Percy Shelley e Artur Schopenhauer. No século seguinte, marcado pela popularização da preocupação com a questão ecológica, a discussão foi ampliada, com a adição de tais valores em defesa da prática de não ingestão de produtos de origem animal (SINGER, 1995). De acordo com o site Vegetarian Society (2012), o vegetariano se alimenta de grãos, leguminosas, frutas oleaginosas (como castanhas, nozes, avelãs e amêndoas), sementes, vegetais e frutas, podendo ingerir ovos, leite e derivados ou não. O indivíduo, contudo, se abstém de carne bovina, carne suína, aves, peixes, mariscos ou quaisquer subprodutos do abate. Dentre os pertencentes ao grupo descrito acima, distinguem-se ainda os que consomem ovos, leite e derivados, conhecidos como ovolactovegetarianos (o tipo mais comum de vegetariano); os lactovegetarianos, que evitam os ovos; os veganos (vegans ou vegetarianos puros), que além de não consumirem produtos de origem animal, não usam artigos de lã, couro e seda, ou cosméticos cujos compostos incluam derivados ou que tenham sido testados em animais. Os crudívoros admitem a ingestão de alimentos crus ou aquecidos a no máximo 42°C e os frugívoros, apenas frutos, como pode ser observado no Quadro 1. 13 Quadro 1 - Tipos de Vegetarianismo *Admite-se parcialmente a ingestão destes alimentos. Fonte: Compilado pela autora a partir de dados coletados em Vegetarian Society (2012), Centro Vegetariano (2012) e Crudivorismo (2012). 1.1.1 Um Grupo em Ascensão O crescimento do volume de pessoas que seguem a dieta vegetariana pode ser verificado a partir de indícios como o crescimento na oferta de produtos e serviços voltados para seus integrantes e o aumento de publicações sobre o assunto. Itens comuns a esta dieta são encontrados em mais pontos de vendas e não somente em lojas especializadas. Adicionalmente, restaurantes e hotéis são abertos para o atendimento restrito a este grupo de pessoas, enquanto cresce o volume de livros com dietas baseadas no vegetarianismo e documentários acerca do tema (VEGETARIAN MEANS BUSINESS, 2011). A cidade de Haia, na Holanda, abriga o primeiro açougue vegetariano desde outubro de 2010, comercializando substitutos para carnes (PEQUENAS EMPRESAS & GRANDES NEGOCIOS, 2010). Em fevereiro de 2011, foi inaugurado o primeiro supermercado vegan em Dortmund, na Alemanha (WANDEL, 2011). Em 2003, a Perdigão, um dos grandes participantes em alimentos frigoríficos, investiu R$ 2,5 milhões para o lançamento de uma linha vegetal com cinco produtos a base de proteína de soja (salsicha, hambúrguer, mini quibe, cordon verde recheado e patitas), tendo em vista um mercado de proteínas vegetais e alimentos funcionais em crescimento de 10% a 20% ao ano (PORTAL DO AGRONEGOCIO, 2003). A demanda latente por tais produtos livres de derivados animais é observada ao se acompanhar o nascimento e crescimento de grandes marcas de fast food com o cardápio voltado ao atendimento de dietas restritivas, como por exemplo, Maoz Vegetarian, Real Food Daily, The Veggie Grill e Native Foods. Jennings (2011) cita a Dieta Carne vermelha e suína Carne branca Ovos LaticíniosMel e gelatina Frutos Verduras Cereais Semivegetarianismo Não Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Ovolactovegetarianismo Não Não Sim Sim Sim Sim Sim Sim Lactovegetarianismo Não Não Não Sim Sim Sim Sim Sim Ovovegetarianismo Não Não Sim Não Sim Sim Sim Sim Vegetarianismo semiestrito Não Não Não Não Sim Sim Sim Sim Vegetarianismo estrito (vegan) Não Não Não Não Não Sim Sim Sim Crudívoros Não Sim * Não Sim * Sim Sim Sim Sim Frugívoros Não Não Não Não Não Sim Sim * Sim * 14 criação dos “flexitarians”, que evitam o consumo de carne esporadicamente, sem comprometimento com uma dieta específica de longo prazo e aponta tendência de crescimento deste grupo. A jornalista menciona ainda a atuação da Vegan Mainstream, uma agência de marketing especializada em atingir o segmento de vegetarianos, confirmando mais um indício da perspectiva de crescimento e de relevância deste grupo. Outro exemplo da crescente importância que este público vem adquirindo pode ser observado a partir da aderência da Sodexo – empresa que atua no segmento de alimentação em âmbito mundial – ao projeto ‘Segundas Sem Carnes’, desde 2011, nos Estados Unidos (SODEXO, 2011). A iniciativa faz parte do projeto institucional ‘Plano para um Amanhã Melhor’ (Better Tomorrow Plan), empreendimento de responsabilidade social da companhia. Na fase inicial do projeto, a Sodexo forneceu entradas vegetarianas para os 900 hospitais que atende, e, logo após, começou a oferecer opções sem carne para as 2.000 empresas, 175 escritórios governamentais, 650 campi de faculdade, 500 escolas públicas e 150 escolas particulares com quem possui contrato. O impacto desta iniciativa seria de 520 milhões de refeições sem carne ao ano, caso todos os 10 milhões de clientes da Sodexo participem da Segunda Sem Carne. A empresa de análise de mercados britânica Mintel divulgou resultados da pesquisa Meat Free Foods – UK, realizada em 2010, que mostram que três em cada cinco adultos fazem refeições sem carne regularmente, apesar de apenas 6% dos indivíduos de autoclassificarem como vegetarianos (VEGETARIAN SOCIETY, 2012). A mesma pesquisa traz a evolução do valor de mercado de produtos alimentares sem origem animal desde £ 333 milhões em 1996, até £ 739 milhões em 2008, conforme mostrado na Tabela 1. 15 Gráfico 1 - Mercado de alimentos sem carne no Reino Unido Fonte: Análise de mercado Meat Free Food realizada pela Mintel em Dezembro de 2010 (VEGETARIAN SOCIETY, 2012). As últimas pesquisas da Cultivate Research – empresa especializada em pesquisa de mercado de comidas vegetarianas – em 2009 (sugerem que de 4 a 6% dos adultos americanos, o que representa cerca de 8 a 13 milhões de indivíduos, se intitulam vegetarianos (VEGETARIANS COUNT, 2009). Contudo, conforme mostra a Tabela 2, a análise da pesquisa revela um percentual menor, diante de respostas a perguntas mais específicas com relação às refeições. Apenas 1 a 3% dos adultos respondentes confirma não ingerir nenhum tipo de carne diariamente. Tabela 1 - Quantidade de vegetarianos nos EUA em 2009 Adultos (acima de 18 anos) Jovens (de 8 a 17 anos) % Absoluto % Absoluto Vegetarianos e Veganos 1 - 3% 2 - 6 milhões 2 - 3% 1 - 1,5 milhões Autoclassificados como vegetarianos 4 - 6% 8 - 13 milhões N/A N/A Fonte: Pesquisa realizada pela Cultivate Research nos EUA (VEGETARIANS COUNT, 2009). Segundo uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Opinião Publica e Pesquisa (IBOPE, 2011), 9% da população brasileira autodenomina-se vegetariana. Este percentual representa cerca de 17,5 milhões de pessoas, com tendência de crescimento conforme apontam as expectativas do instituto no estudo. A pesquisa foi realizada entre agosto de 2009 e julho de 2010, e promoveu comparação entre hábitos de consumo entre os gêneros feminino e masculino, conforme demonstra o Quadro 2. 333 548 626 739 0 200 400 600 800 1000 1996 2001 2004 2008 £ milhões 16 Quadro 2 - Comparação entre os hábitos de consumo entre os gêneros Fonte: IBOPE, 2011. 1.1.2 Impactos na economia Em 1996, o frango foi eleito o “herói nacional” pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. Após a instauração do instrumento de estabilização da economia brasileira – o Plano Real -, o alimento foi apontado como representante da elevação do poder de compra da população. Na medida em que o preço da proteína animal decaía, o seu consumo se elevava até atingir a média de 44 kg per capita em 2010, o dobro da média observada em 1996 (RUA, 2012). Também é apontada como uma das principais razões para a escalada no consumo desta proteína a substituição das carnes vermelhas pelas carnes brancas em virtude de uma busca por uma dieta mais saudável. Este exemplo de mudança nos hábitos alimentares pontua um Filtro: 18 anos ou mais Amostra total Masculino Feminino É importante manter a forma física 79% 78% 80% Eu pagaria qualquer preço por minha saúde 78% 77% 79% Estou de acordo com as restrições aos fumantes 70% 67% 72% Em algumas ocasiões me dou o prazer de ingerir comidas que não são boas para a saúde 62% 59% 65% Eu me informo bem antes de comprar novos produtos alimentícios 60% 55% 65% Tenho que estar realmente doente para ir ao médico 62% 64% 59% Confio na medicina homeopática/medicina caseira 53% 49% 56% Eu procuro ter uma dieta bem balanceada 52% 47% 56% Devido à minha vida pessoal tão agitada, não me cuido como deveria 53% 52% 53% Uso preservativos em todo novo relacionamento 52% 55% 49% Só utilizo serviços públicos de saúde 45% 43% 47% Eu sempre escolho meu médico por indicação 42% 37% 46% Quase sempre estou tratando de perder quilos 35% 29% 40% Sempre verifico o conteúdo nutricional dos alimentos 34% 29% 39% Eu não tenho tempo para preparar refeições saudáveis 37% 40% 35% Eu pratico esportes ou exercícios pelo menos uma vez por semana 38% 43% 34% Sempre procuro as versões diet/light dos alimentos e bebidas 23% 20% 26% Sou vegetariano 9% 10% 9% 17 momento histórico em que a economia influenciou o cardápio de muitas pessoas no país. O regime alimentar apresenta claras implicações nas indústrias de carnes e agricultura. A comercialização de carnes (de frango, bovina, suína e outras) representa mais de 19% do saldo da balança comercial brasileira, desde 2005 (PERIN, 2012). Dentre as exportações que o país promove, o segmento de carnes é responsável por 6,6% do montante total (CONAB, 2012). Desta parcela, destacam- se as participações de 47% do frango e 34% do setor de carne bovina. A importância da atividade pecuarista no Brasil é traduzida a partir das estatísticas de produção e de movimentação do comércio mundial. Os números mostram que o país é o terceiro maior produtor de carne de frango do mundo, segundo maior em carne bovina e ocupa o quarto lugar no caso da suinocultura (USDA, 2012), o tipo de carne mais consumido no mundo (ABIPECS, 2012). No mercado externo, as carnes de frango e bovina brasileiras são as mais demandadas pelos países consumidores, enquanto a carne suína brasileira ocupa o quarto lugar nas exportações mundiais (USDA, 2012). Além disso, o mercado interno absorve cerca de 69% da produção avícola de corte, 82% da produção de gado de corte e 83% de carne suína (CONAB, 2012). O setor agrícola responde por 30% do total de produtos exportados em 2010 (CONAB, 2012). Os produtos deste setor atendem a dois distintos públicos: consumo humano e consumo animal. No que tange ao vegetarianismo, é interessante verificar a relação de consumo de grãos pelos animais em comparação ao volume absorvido pelas pessoas. Segundo os cálculos de Greif (2002), o consumo de matéria vegetal pelos animais é dez vezes superior ao consumo humano. O mesmo autor cita também outras consequências para o ecossistema a partir do consumo carnívoro. Greif (2002) afirma que uma dieta centrada em carne requer terrenos de 35 acres de terrapor pessoa, ao passo que a dieta vegetariana demanda um quinto de acre por pessoa, além de contribuir para a desertificação, erosão e esgotamento do solo. A prática também apresenta diferenças no consumo de água por pessoa por dia: 4.200 galões/pessoa/dia são contabilizados para uma dieta nos padrões ocidentais, enquanto a dieta a base de vegetais demanda 300 galões/pessoa/dia. – As principais diferenças estão nas práticas de irrigação dos campos que fornecem alimentos aos animais, na quantidade de água necessária 18 para o consumo dos animais, no processamento e na lavagem das carcaças e na preparação do alimento final. 1.2 PERGUNTAS DE PESQUISA Diante dos objetivos após a contextualização, foi estabelecida a seguinte pergunta principal de pesquisa: Que aspectos do comportamento do consumidor vegetariano são compartilhados através da internet? Perguntas secundárias que apoiam a pergunta principal estão listadas abaixo: Como o vegetariano é descrito e caracterizado nos discursos compartilhados na web? De que forma o prazer/sabor dos alimentos e as questões econômicas aparecem no discurso dos vegetarianos? De que forma os aspectos relativos à saúde aparecem nos discursos de vegetarianos na web? Que valores éticos e aspectos dos direitos dos animais aparecem nos discursos compartilhados na web? Quais grupos de referência podem ser identificados nas informações compartilhadas pelos vegetarianos na web? Que diferentes lógicas de pertencimento ao grupo podem ser identificadas? O que é proibido e o que é incentivado nas discussões analisadas? Que aspectos podem ser identificados no processo de formação de escolha pelo caminho da dieta restritiva, na web. 19 2. REVISÃO DE LITERATURA Este capítulo tem por objetivo fornecer o suporte teórico para a pesquisa realizada no presente trabalho. São abordados primeiramente os argumentos que constroem a ideologia ética do consumidor e a consequente evolução desta consciência como forma de influência direta nas práticas de consumo. Em seguida, são apresentados os conceitos definidos pelo marketing pertinentes à compreensão das pessoas que praticam o vegetarianismo, por meio do estudo de tribos ou subculturas de consumo e a análise do consumo como reflexo da identidade. Adicionalmente, buscou-se, na literatura de apoio, a base para a formação de um grupo de referência, reforçando a relevância da internet como cenário do estudo. Em seguida, foi analisado o tipo de comunicação que se pretende explorar no ambiente virtual, chamado boca a boca, responsável pela característica viral da exposição das ideias e diálogo com o consumidor. A Figura 1 mostra a síntese das relações entre os tópicos que compõem a revisão de literatura. Figura 1 - Diagrama - síntese da revisão de literatura Fonte: Própria autora. 20 2.1 COMPORTAMENTO DE CONSUMO E SUSTENTABILIDADE A pesquisa na literatura sobre o comportamento do consumidor, no que tange à sustentabilidade, traz à tona distintos termos de referenciação, tais como: consumo ético (NEWHOLM; SHAW, 2007; CHERRIER, 2007), consumo verde (PEATTIE, 2001), consumo socialmente consciente (KINNEAR; TAYLOR; AHMED, 1974), consumo verde (MCDONALD ET AL, 2009) consumo sustentável, entre outros (ver APÊNDICE A). Newholm e Shaw (2007) argumentam que, a seu modo e em diferentes graus de extensão, os termos estão relacionados a projetos individuais de consumo ético. Um exemplo é o termo consumo verde, que reflete preocupação quanto ao meio ambiente. Contudo, apesar de apresentarem aspectos diferentes em seus significados, para efeito da presente pesquisa, optou-se por utilizar o termo Consumo Ético, que transparece a incorporação da cultura individualizada no padrão de consumo e exprime o ato de enfrentar as consequências das escolhas por parte do consumidor. A ideia por trás do consumo ético é a de que as pessoas têm a esperança de alterar o mundo a partir do ato de consumo, representante do contexto microssocial. Kinnear, Taylor e Ahmed (1974) ressaltam o dilema a que os consumidores se impõem ao adquirir este tipo de consciência, ao se darem conta da magnitude do impacto na deterioração do meio ambiente. Especialmente desde a década de 1960, o tema ambiental se faz presente na pauta mundial de discussão de problemas. De acordo com Kassarjian (1971), este período foi marcado pelo início da percepção da relação de custo-benefício imbuída em cada ato de consumo. A sociedade passou a compreender o dilema que envolve o seu estilo de vida, o que deu origem a uma revolução cultural, a que se chamou ambientalismo. Peattie (2001) ilustra tal revolução a partir de acidentes cujo impacto no meio ambiente foram devastadores, como o acidente nuclear de Chernobyl na Ucrânia, o derramamento de óleo do petroleiro Exxon-Valdez no Alasca e o grande incêndio em uma indústria de pesticidas em Severo, na Itália. Estes acidentes chamaram a atenção para a responsabilidade das empresas perante a sociedade como um todo. Os conceitos de desenvolvimento sustentável e consumo sustentável ganharam contexto mundial e o ativismo foi reforçado por meio de iniciativas como o Dia da Terra em 1970, criado pelo senador americano Gaylord Nelson como um ato de protesto ambiental (PEATTIE, 2001). 21 A preocupação com os problemas ambientais decorrentes dos processos de crescimento e desenvolvimento deu-se de forma diferenciada entre os mais diversos segmentos da sociedade, de governos, organizações e outros agentes. Gonçalves (1989) afirma que praticamente todos os problemas sociais se tornaram problemas ambientais e vice-versa. Questões como explosão demográfica, fome e pobreza, qualidade de vida, agrotóxicos, produção alimentar e outros temas podem ser abordados com enfoque tanto ambiental quanto social. Um exemplo de movimento recente, que imprime esta insatisfação com as estruturas socioeconômicas vigentes é o Occupy Wall Street. A manifestação tem como alvo específico o setor financeiro, mas a reflexão pretende ponderar relações desiguais sociais, econômicas e políticas (THISTLETHWAITE, 2012). A mobilização não se deu apenas a partir de ativistas. A Organização das Nações Unidas (ONU) organizou a sua primeira conferência em 1972, com a agenda dedicada exclusivamente aos impactos da degradação da natureza, exaltando a necessidade de medidas de controle. Nos Estados Unidos, também foram formuladas as primeiras regulações ambientais nesta mesma época, como o Clean Air Act e o Clean Water Act em 1970 e 1972, respectivamente (PEATTIE, 2001). A iniciativa privada enxergou neste movimento de caráter ideológico uma oportunidade lucrativa. Nascia um consumidor com novas características e critérios de decisão, não atendido, com forte tendência de crescimento, segundo Peattie (2001). Uma peculiaridade importante deste consumidor é a homogeneidade, independente de barreiras culturais. O objetivo é comum e interessante aos indivíduos de todos os países, todas as faixas etárias, todas as religiões e ambos os gêneros e depende apenas da vontade individual do consumidor, segundo o autor. Esta homogeneidade ideológica pode se traduzir nas decisões de consumo no âmbito particular, sentindo-se confortáveis para consumir bens e serviços éticos que reflitam quem são ou quem gostariam de ser, deixando de comprar produtos como forma de protesto contra exploração da força de trabalho ou comprando itens como café negociado de maneira justa. O movimento de resistência ao consumo pode ser originado diante de diferentes visões. Cherrier (2009) identificou um comportamento de consumo marcado pelo autossacrifício e comprometimento com um estilo de consumo politicamente correto voltado para a justiça, a igualdade e a participação, personificado pela identidade do herói, em contraste a outro comportamentode consumo que busca combater o consumismo e o culto à 22 individualidade, por meio de um consumo criativo, questionando o senso de identidade gerado pelo consumo de bens materiais. A pesquisa de Iyer e Muncy (2009) trouxe quatro perfis, cuja distinção se baseia nas motivações e nas formas de atuação: os Global Impact Consumers são aqueles que desejam reduzir seu nível de consumo para beneficiar a sociedade e o planeta; os Simplifiers objetivam se mover de uma sociedade de grande consumo para uma sociedade menos orientada para o consumo, com um estilo de vida mais simples; os Market activists são aqueles que classificam marcas ou produtos como causadores de problemas sociais e tentam utilizar o poder do consumidor para causar um impacto na sociedade; e os Anti-loyal consumers se comportam de forma oposta aos consumidores leais, deixando de comprar marcas ou produtos devido a experiências negativas ou à percepção de que a empresa é inferior ou tem um produto inferior. Cherrier (2007) adiciona outro perfil de consumidor ético baseado na escolha intencional de trabalhar menos, querer menos, gastar menos e ser mais feliz, compondo o movimento ‘The Voluntary Simplicity’. O estudo deste movimento reflete uma mudança no estilo de vida dos consumidores em direção a uma vida mais harmoniosa e com propósito. O conceito da simplicidade voluntária pretende romper a cultura de consumo compulsivo (‘quanto mais, melhor’), reafirmando valores como humanidade, localidade, comunidade e respeito pela vida e pela natureza. A escolha por aderir à este movimento pode ter origem voluntária, a partir da ética e motivação internas; ou pode ser imposta por fatores externos sociais, ambientais e econômicos. O movimento é caracterizado como social a partir da pluralidade de ideias, e reflete valores e identidades coletivas. Além disso, nele o consumo não é demonizado, mas prega-se que deva ser direcionado. Em suma, o consumidor ético compartilha emoções, paixões e estilo de vida e é apresentado como um ser em constante transição. O estudo da identidade ética, portanto, também deve levar este processo de construção em consideração (CHERRIER, 2007). Este é um desafio para este consumidor neoliberal, uma vez que possui independência e liberdade para promover aspectos éticos da sua identidade através de escolhas personalizadas no mercado, o que representa uma busca de significados para a vida. Significados estes que serão continuamente renegociados internamente, de acordo com Cherrier (2007). As características de integração e conhecimento do mercado e racionalidade na decisão por adquirir, consumir e 23 descartar produtos éticos que projete a identidade desejada compõem a definição de consumidor neoliberal, por Cherrier (p. 322, 2007). Por outro lado, no momento de compra, outros fatores são relevantes e podem ser decisivos para o consumo, como tempo e dinheiro. McDonald et al (2009) e Newholm e Shaw (2007) trazem à luz estes dilemas entre a racionalidade financeira e a influência do contexto cultural, como parte das incongruências do comportamento de compra individuais. 2.2 SUSTENTABILIDADE E O VEGETARIANISMO O dicionário Michaelis (2012) define alimento como “toda substância que, introduzida no organismo, serve para nutrição dos tecidos e para produção de calor”. O ato de comer, todavia, é muitas vezes relacionado a outros sentidos que não o de combustível do corpo. Casotti (2004) reflete sobre as sensações de compensação do estresse e da ansiedade da vida moderna, preenchimento do vazio ou desejo emocional e do prazer e angústia causados pela alimentação e os seus excessos. De acordo com a autora, o ato de comer também é um evento social e influenciado pelo contexto cultural: os americanos são obcecados por saúde; os franceses, por variedade; e os brasileiros, influenciados pela construção da história. Ackerman (1992, apud Casotti, 2004, p. 547) oferece o conceito de que o alimento é uma grande fonte de prazer, que traz satisfação tanto física quanto emocional. A alimentação pode marcar uma situação, ao mesmo tempo em que transmite um significado, além de poder ser vista como uma espécie de código (Barthes, 1961 apud Casotti, 2004, p. 546). De acordo com Kleine & Hubbert (1993), padrões de consumo alimentares estão associados a significados simbólicos que refletem padrões sociais. Os autores enumeram as possíveis motivações para um indivíduo tornar-se vegetariano: (1) Preocupação com os direitos dos animais; (2) Razões espirituais; (3) Razões de saúde; (4) Ativismo político; (5) Ambientalismo; e (6) Não gostar de carne. Tais alternativas serão explicadas em mais detalhes nas subseções seguintes. Janda e Trocchia (2001), em sua pesquisa, observaram as mesmas causas, excluídas as razões religiosas e ligadas à prática militante. Os autores desenharam um modelo com os principais motivos que levaram os respondentes a dar inicio à 24 dieta restritiva e seus desdobramentos, que os autores chamaram de O Modelo de Marketing do Vegetarianismo (vide Figura 2). Figura 2 - Modelo das motivações, tensões, mecanismos para administração da situação e implicações de consumo do vegetariano Fonte: Janda & Trocchia, 2001, p. 1209. O modelo, resultado do processo de interpretação hermenêutica das entrevistas em profundidade, sugere que os vegetarianos adotam a dieta a partir de motivos como manutenção da saúde, preocupação com os direitos dos animais, pelo paladar da carne e por influência de grupos de referência. Uma vez iniciada a prática, uma variedade de tensões cognitivas é desenvolvida, tais como pragmatismo versus integridade, o bem estar animal em contraposição ao bem estar próprio, a liberdade individual contrapondo ao sentimento de pertencimento ao grupo, e a abstinência versus o prazer que alguns alimentos proporcionam. Estas tensões são reduzidas ou exacerbadas por condições intervenientes, tais como a influência da família ou a disponibilidade dos alimentos (JANDA; TROCCHIA, 2001). Motivações Preocupações éticas Saúde Sensorial Influência do grupo de referência Tensões Pragmatismo x integridade Bem estar animal x próprio bem estar Liberdade individual x pertencimento social Abstinência x prazer Mecanismos de enfrentamento Foco no problema Foco na emoção Concessões Condições intervenientes Disponibilidade de alternativas alimentares Influência da família Presença de crianças Preocupações com a saúde Preferências e gosto individual Condições em casa Implicações Estratégicas (Quadro 3) 25 Os participantes do experimento relataram a concepção de estratégias para melhor lidar com a tensão criada, baseadas na erradicação da fonte do problema (foco no problema); no gerenciamento do distress emocional associado à situação (foco na emoção); e a estratégia baseada em concessões, que se dá por meio da redução da fonte da tensão e depois pela racionalização da escolha do comportamento, conforme exposto no Quadro 3 (JANDA; TROCCHIA, 2001). 26 Fo co n o p ro b le m a Fo co n a e m o çã o B a se a d o n a c o n ce ss ã o R e ti ra r a s p e st e s se m m a tá -l a s Se n ti r p o u ca o u n e n h u m a p re o cu p a çã o p a ra c o m a s p e st e s E vi ta r ca rn e , m a s co m e r p e ix e U sa r te m a s co m o " N ã o t e st a d o e m a n im a is " e "S e m c ru e ld a d e " n a p ro m o çã o d o p ro d u to O fe re ce r a lim e n to s o rg â n ic o s A cr e d it a r e m lo ja s o u m a rc a s co n fi á ve is A p lic a r a r e g ra d o s 8 0 /2 0 C ri a r e ti q u e ta s a p ro p ri a d a s A cr e d it a r e m r e vi st a s o u jo rn a is e sp e cí fi co s C o zin h a r ca rn e p a ra o s e n te s q u e ri d o s C o b ra r p re ço d if e re n ci a d o Le va r a p ró p ri a r e fe iç ã o e m e ve n to s so ci a is T e n ta r n ã o le va r a s b ri n ca d e ir a s a ce rc a d a d ie ta p a ra o la d o p e ss o a l Á s ve ze s co m e r ca rn e e m e ve n to s so ci a is P ro m o ve r o s b e n e fí ci o s d a c o m id a v e g e ta ri a n a Se le ci o n a r re st a u ra n te s co m b a se n a s o p çõ e s ve g e ta ri a n a s T e n ta r n ã o c h a m a r a te n çã o p o r se r ve g e ta ri a n o A u m e n ta r a d is p o n ib ili d a d e d a s o p çõ e s ve g e ta ri a n a s sa b o ro sa s O fe re ce r u m w e b si te e g ru p o s d e d is cu ss ã o n a in te rn e t O rg a n iz a r e ve n to s q u e r e ú n a m o s ve g e ta ri a n o s Fr e q u e n ta r a u la s d e c o zi n h a ve g e ta ri a n a C o m e r ca rn e b ra n ca , q u e ijo e /o u o vo O fe re ce r u m a m e lh o r va ri e d a d e d e o p çõ e s ve g e ta ri a n a s U sa r te m p e ro s M o st ra r o s b e n e fí ci o s n a s a u d e d a s o p çõ e s ve g e ta ri a n a s C o m p ra r u m li vr o d e r e ce it a s ve g e ta ri a n a s O fe re ce r a u la s d e c u lin á ri a v e g e ta ri a n a M u d a r- se p a ra u m a c id a d e m a io r O fe re ce r liv ro s d e r e ce it a s ve g e ta ri a n a s M e ca n is m o s T e n sõ e s Im p lic a çõ e s e st ra té g ic a s B e m e st a r a n im a l vs . B e m e st a r p ró p ri o P ra g m a ti sm o v s. In te g ri d a d e P re st a r p o u ca a te n çã o a in g re d ie n te s d e o ri g e m a n im a l q u e p o ss a m p a ss a r d e sp e rc e b id o s M a n te r a c o n vi cç ã o d e q u e a s co m id a s ve g e ta ri a n a s a p re se n ta m u m s a b o r m e lh o r d o q u e a s co m id a s d e o ri g e m a n im a l Li b e rd a d e in d iv id u a l vs . P e rt e n ci m e n to so ci a l A b st in ê n ci a v s. P ra ze r Quadro 3 - Estratégias organizacionais diante dos mecanismos para administração das situações de tensão do vegetariano 27 Fonte: Extraído de Janda & Trocchia, 2001, p. 1209. 2.2.1 Preocupação com os direitos dos animais Dois grandes subtemas emergem deste item: preocupação com a qualidade de vida dos animais e o sentimento de culpa associado à morte dos animais (JANDA; TROCCHIA, 2001). O primeiro subtema citado remete à preocupação com o bem estar do animal (BEA) em seus criadouros, enquanto o segundo aparece relacionado à motivação de não gostar de carne, como influência psicológica. De acordo com a Associação Brasileira da Indústria Produtora e Exportadora de Carne Suína (ABIPECS, 2012), o sistema intensivo de produção de animais teve início após a Segunda Guerra Mundial, quando ocorreu uma grande escassez de alimentos na Europa e o modelo de produção industrial em larga escala atingiu todos os setores da economia, inclusive o pecuário. Em 1964, a jornalista inglesa Ruth Harrison lançou um livro chamado Animal Machines, inaugurando o debate sobre a ética da produção animal na agricultura. O livro denunciava os maus tratos e a crueldade cometidos contra os animais confinados na Grã-Bretanha. Esta publicação gerou grande impacto na sociedade britânica, o que culminou na criação pelo Parlamento inglês de um comitê, composto por pesquisadores da área, batizado de Brambell, que tinha por objetivo investigar as acusações expostas no livro (ABIPECS, 2012). Com o propósito de avaliar as diversas variáveis que impactam a vida dos animais, o comitê Brambell propôs o conceito das Cinco Liberdades mínimas que todo animal deveria ter: liberdade nutricional, referindo-se às necessidades fisiológicas de fome e sede; ligada ao conforto ambiental; relativo à expressão do comportamento natural do animal; que os animais fossem mantidos livres de dor, injúrias ou doenças; e liberdade psicológica, concernentes aos sentimentos de medo e distresse. Posteriormente, o Farm Animal Welfare Council – FAWC (Conselho de Bem-Estar na Produção Animal) do Reino Unido adaptou a lista para a realidade dos animais de produção e sintetizou as Cinco Liberdades em quatro princípios: boa alimentação, boas instalações, boa saúde e comportamento apropriado (ABIPECS, 2012). 28 O comitê definiu bem estar pela primeira vez como “um termo amplo que inclui tanto o estado físico quanto o mental do animal. Por isso, qualquer tentativa para avaliar o bem-estar animal deve levar em conta a evidência científica existente relativa aos sentimentos dos animais. Esta evidência deverá descrever e compreender a estrutura, função e formas comportamentais que expressam o que o animal sente.” Pela primeira vez na história, os sentimentos dos animais foram considerados (ABIPECS, 2012). É a definição de Broom (1986), contudo, que mais se destaca junto à comunidade científica: “bem estar de um indivíduo é seu estado em relação às suas tentativas de se adaptar ao seu ambiente”. Segundo esta definição, o bem-estar depende das ações da empresa criadora na tentativa de fazer com que o animal consiga adaptar-se ao ambiente e do grau de sucesso desta empreitada. O bem estar pode, assim, variar entre “muito ruim” e “muito bom” e pode ser avaliado cientificamente a partir do estado biológico do animal e de suas preferências (BROOM, 1986). Logo, taxas de produtividade, de sucesso reprodutivo e de mortalidade, comportamentos anômalos, severidade de danos físicos, aumento da atividade adrenal, imunidade baixa ou incidência de doenças, são fatores que podem ser medidos para avaliar o grau de bem estar dos animais (BROOM, 1991). O autor destaca que a ausência de sofrimento não significa presença de bem estar. Segundo Da Costa et al (2002), as empresas do setor buscam a máxima eficiência e produtividade através de investimentos nas áreas de nutrição, melhoramento genético e reprodução dos animais de corte, enquanto cuidados com os aspectos fisiológicos e comportamentais dos animais são desconsiderados. Práticas como amputação de rabos, bicos e dentes, o confinamento intensivo e outros maus tratos são rotinas que aceleram a produtividade, porém infligem aos animais dor e estresse intensos (COX, 2007). O Apêndice B enumera algumas das principais práticas de maus tratos impostas aos animais de produção na pecuária industrial. Apesar deste quadro, pesquisas como a de McEachern e Schroder (2004) indicam que os consumidores não estão propensos a relacionar o consumo de produtos derivados da indústria animal - de couros, calçados, ração e têxtil -, a problemas ambientais ou éticos. Ao contrário, as pessoas sentem-se desconfortáveis com a conexão entre os assuntos “crueldade com animais” e “consumo de carne”, tendendo a evitar este confronto de ideias. 29 Em contrapartida, outras pesquisas demonstram mudanças no comportamento de alguns grupos sociais, no que se refere ao consumo de produtos de origem animal. No Brasil, destaca-se o estudo de Souza (2011), que vislumbra o comportamento do consumidor de carne. A pesquisa demonstra, por meio de análise qualitativa e quantitativa, a falta de informação sobre o tema por parte dos consumidores. Ao tomarem conhecimento dos padrões de manejo dos animais de produção por meio de um vídeo, os entrevistados apresentaram sentimentos de revolta e culpa inexistentes nas respostas antecedentes ao vídeo, evidenciando a ignorânciaquanto ao assunto. Outro achado da pesquisa remete à sensibilidade na disposição a pagar pelo produto com práticas certificadas do trato animal que, por ventura, exijam incremento no preço. A pesquisadora verificou um aumento considerável tanto de pessoas dispostas a pagar mais caro por tais produtos, quanto no percentual do acréscimo no valor, após a exibição do vídeo. Sob a ótica empresarial, observa-se a discussão pertinente ao processo decisório quanto à viabilidade econômica da manutenção de práticas que excluem maus tratos aos animais em seus procedimentos (PERIN, 2012). Perin (2012) analisou 28 empresas pertencentes à indústria de proteína animal instaladas no Brasil, classificadas entre os grupos: Fast-Food, Bens de Consumo, Supermercados e Produção Agropecuária. A autora promoveu uma classificação das empresas por meio de uma qualificação por pontos, de acordo com as declarações das organizações sobre a preocupação com a prática do bem estar animal. O resultado mostrou que metade das empresas não trata do tema de bem estar animal e apenas seis delas apresentaram notas acima de três, ou seja, demonstravam interesse e preocupação com a questão. O desconhecimento do consumidor como uma das principais razões pelas quais tais práticas não são plenamente difundidas no setor é corroborado, uma vez que os elos mais fracos da cadeia produtiva são as categorias de Supermercados e Fast-Food. Estes subgrupos são os que travam contato diretamente com o público final e apresentaram as mais baixas notas médias. 2.2.2 Razões espirituais A prática do vegetarianismo está entrelaçada profundamente com tradições religiosas transcendentais (TWIGG, 1979). Quando os seguidores de Maomé o pediram para definir a fé, Ele respondeu: “Para oferecer alimento e dar a saudação 30 de paz”. O Corão menciona os atos de comer e beber com excepcional frequência, sustentando que são uns dos principais sinais da existência divina (FEELEY- HARNIK, 1995). “A fome biológica distingue-se dos apetites, expressões dos variáveis desejos humanos e cuja satisfação não obedece apenas ao curto trajeto que vai do prato à boca, mas se materializa em hábitos, costumes, rituais, etiquetas. [...] O que se come é tão importante quanto quando se come, onde se come e com quem se come.” (CARNEIRO, 2003, p. 1-2) No tocante às religiões, a alimentação tem papel fundamental no cotidiano de seus adeptos: permissões, proibições e jejuns são regulações religiosas simbólicas constantemente exercidas. As regras alimentares são disciplinares, representando técnicas de autocontrole perante as tentações. Tais regras disciplinares podem ser anti-hedonistas, evitando o prazer proporcionado pela alimentação, ou podem ser pragmáticas, evitando alimentos considerados passionais (CARNEIRO, 2003). Influenciadas pela história e evolução, as religiões desenvolveram padrões alimentares próprios, conforme descrição: No Jainismo, cuja origem data do século IV a.C., é propagada a ideia de não causar danos a outros seres vivos baseado em um sentimento de compaixão. Chamada de ahimsa, a argumentação fundamenta-se na crença da existência de uma cadeia de encarnações, sendo o ápice na forma de ser humano, quando é alcançado o nirvana ou a iluminação. Sob esta ideologia, ao alimentar-se de carne, o indivíduo corre o risco de ingerir familiares e atrair karma negativo, retardando o atingimento da iluminação. Adicionalmente, a religião condena a prática de sacrifício animal, intimamente ligada ao consumo de carne e prega o contato com o deus interior por meio da conquista dos instintos animais, que levam a atos de violência e autoindulgência, incluindo o consumo de carne (KRECH III; MCNEILL; MERCHANT, 2004). No Budismo, o princípio básico é não maltratar os animais. Seria um pecado até beber a água que contivesse larvas, pois é uma forma de vida. Aos monges é ensinado que todos devem amar e respeitar qualquer espécie de animal. Esse sentimento é chamado de ‘Metta’ e, por isso, os budistas são vegetarianos. Os preceitos da crença indicam que Buda condenava o sacrifício de animais. A história contada pelos monges sugere que a proibição do consumo de carne determinou os hábitos dos japoneses durante dez séculos. Somente no século XVI, com a chegada 31 dos missionários portugueses e de outros europeus ao Japão, é que foi reintroduzido paulatinamente o hábito de comer carne (SOCIEDADE BUDISTA DO BRASIL, 2012). No Hinduísmo, são venerados como animais sagrados a serpente e a vaca. A imagem do bovino, como divindade principal, está presente em todos os templos e na maioria dos lares, representando a fecundidade da terra e a da Humanidade. Os praticantes não podem comer carne de vaca e nem contrariar os hábitos deste animal venerado. Além disso, o sacrifício das vacas nas cerimônias religiosas foi proibido, ajudando a estender a repulsa da população para o consumo de todos os tipos de carne semelhantes à bovina (CLOVEGARDEN, 2012). No Torá, o livro Levítico prescreve com detalhes o tipo de carne que pode ser consumida e o que não pode, classificando os animais em duas categorias: os puros e os impuros. A principal característica do animal puro é ter órgãos de locomoção própria, o casco fendido e ser ruminante. Segundo o capitulo 11 do livro, o suíno é proscrito, pois ‘apesar de ter o casco fendido, partido em duas unhas, não rumina’. Acredita-se, porém, que o verdadeiro motivo desta proibição era o de proteger o povo judeu da contaminação com a triquinose, provocada pela Trichinella spiralis, conhecida popularmente como 'solitária'. Os peixes para serem considerados puros, deviam ter barbatanas e escamas. A carne bovina pode ser consumida e para isso deve ser proveniente de um animal que tenha sido abatido pelo ritual ‘Kosher’, que envolve a eliminação total do sangue (BONFIM, 2004). O ritual de abate é iniciado com a degola por uma espécie de açougueiro denominado ‘schochet’, que recebe treinamento por um longo período. A proposta do ritual é o corte da artéria carótida e veias jugulares rapidamente. O instrumento cortante utilizado para essa operação é chamado de ‘chalaf’, o qual é afiado de forma eficiente e examinado após cada utilização. Cada seção do ritual é precedida por uma prece especial denominada ‘beracha’. Somente os quartos dianteiros, as costelas e a carne de cabeça dos animais podem ser consumidos. Os produtos kosher apresentam um selo que indica a garantia de um rigoroso processo de fiscalização, que investiga mais profundamente a origem e o estado dos animais. Estes métodos têm sido criticados, todavia, tanto pela crueldade como também pela falta de cuidados quanto aos aspectos higiênico-sanitários (BONFIM, 2004). No islamismo, o ritual de abate de bovinos é similar ao ritual judaico, sendo denominado ‘Dhabiha’. Durante o ritual a pessoa autorizada pelo imã – o líder da 32 comunidade islâmica - deve fazer uma oração consagrando o animal como propriedade de Alá. Cada animal deve ser abatido por vez, não sendo permitido ser observado por outros animais. Diferentemente dos judeus, todas as partes do animal podem ser consumidas sem nenhuma restrição (SIREGAR, 1981). A Igreja Adventista do Sétimo Dia defende uma dieta ovo-lacto-vegetariana, incluindo quantidades moderadas de produtos de baixo teor de gordura, evitando o consumo de carne, peixe, aves, café, chá, álcool e tabaco (embora estes não sejam estritamente proibidos). Tais crenças se baseiam nas palavras da Bíblia, de acordo com a Seventh-Day Adventist Dietetic Association (SDADA, 2012). Webster (1994) ironiza que o porco, no auge da sua inteligência, persuadiu quatro das maiores religiões do mundo a não comê-lo por diferentes razões, diante da vaca, sagrada na Índia e do cavalo, sagrado na Inglaterra. 2.2.3 Razões de saúde Há, atualmente, uma maior quantidade de informaçõesdisponíveis relacionando o regime alimentar à saúde. Uma vez que esta relação já foi fortemente estabelecida pela mídia de massa, as atenções se voltam para recomendações sobre quais alterações nos padrões de consumo de alimentos devem ser feitas, a fim de promover uma vida saudável (HASLAM ET al, 2000). De acordo com pesquisa realizada pelos autores com 421 indivíduos, as duas razões mais comuns para alguma mudança no regime alimentar foram: perder peso e uma maior consciência sobre alimentação saudável. Ruby (2011) afirma que vegetarianos que optam pela dieta restrita por motivos de saúde o fazem por preocuparem-se com potenciais doenças e concentram-se principalmente nos vários benefícios e barreiras à mudança da dieta. O autor assevera ainda que eles tendem a eliminar a carne gradualmente e apresentam menor probabilidade de transição para o veganismo, em contraste aos indivíduos cuja motivação tem origem nos princípios éticos da preocupação com o bem estar animal. Este grupo tende a alterar a sua base alimentar abruptamente, diante da carga emocional envolvida. Outra característica divergente entre estes dois grupos está no foco: enquanto o primeiro concentra-se nas preocupações principalmente internas, compreendendo questões concernentes à sua saúde pessoal, o grupo cuja origem reflete 33 considerações morais exibe um foco especialmente externo, envolvendo as preocupações sobre animais não-humanos (RUBY, 2011). Lindeman e Stark (1999) compilam pesquisas sobre a relação entre a escolha da alimentação, a personalidade e o bem estar, referentes ao controle do peso. Os autores revelam que há forte relação entre estes fatores e a má imagem do próprio corpo, baixa autoestima e depressão. O estudo mostrou a existência de seis grupos distintos no que se refere à escolha da alimentação: gourmets, indiferentes, mantenedoras da saúde, portadoras de ideologias, as que fazem dietas pela saúde e as que fazem dietas pelo corpo. Cada um dos grupos foi avaliado sob a perspectiva das motivações para a escolha: saúde, controle de peso, prazer e razões ideológicas. Enquanto os subgrupos “gourmets” e “portadores de ideologia” escolhiam seus produtos alimentares visando o prazer que a alimentação lhes proporciona e seus princípios ideológicos, respectivamente, o subgrupo de pessoas que fazia dieta com vistas à saúde se diferenciava dos demais pela preocupação com a aparência e apreço ao prazer da alimentação ao mesmo tempo. O subconjunto de pessoas que mantinham uma dieta para manter a forma física não via deleite nesta atividade. Este grupo caracterizava-se por mulheres insatisfeitas com a sua aparência e peso, cuja pressão exercida pela cultura da magreza era forte, levando-as a apresentar sintomas de distúrbios alimentares, baixa autoestima e maior incidência de depressão (LINDEMAN; STARK, 1999). Dentre todos os grupos, a motivação de escolha do padrão alimentar entre as mulheres mais encontrada foi a de decisão por uma vida saudável, sozinha ou acompanhada do prazer proporcionado com a degustação dos alimentos (LINDEMAN; STARK, 1999). A pesquisa de Moon, Balasubramanian e Rimal (2011) confirma que o uso de alegações de saúde e outras reivindicações relacionadas aos produtos alimentares têm aumentado ao longo do tempo. Neste sentido, os esforços de marketing da indústria alimentícia tornam-se um tema central para o setor, com o propósito de se relacionar com as pessoas que valorizam fortemente a preocupação com a saúde, a ponto de mudar a sua alimentação com base neste pressuposto. Os autores mostram evidências de que a oferta proativa de dados que estes consumidores estejam interessados em absorver poderá induzir as pessoas a confiar nas informações apresentadas. Em alguns casos, as reivindicações podem até gerar um 34 efeito de prestígio (avaliar melhor o produto por atributos não mencionados) ou um efeito de varinha mágica (atribuir benefícios inadequados ao produto). 2.2.4 Ativismo Político Newholm e Shaw (2007) trazem um debate sobre o boicote. O ato é definido como uma ação do consumidor arquetípica semiorganizada. Os autores consideram que o consumo ético como projeto político é frequentemente rejeitado por ser considerado um conjunto de ações muito individualizadas e não atingirem a consciência coletiva. Apesar do comportamento ser apontado como um veículo para a autorrealização moral, a coletividade é valorizada pelo consumidor ético pelo poder que é capaz de oferecer, tanto para o caso de consumo como para o de anticonsumo. A pesquisa realizada por Kleine e Hubbert (1993), no entanto, trouxe à tona um participante cuja mudança na alimentação deu-se a partir de engajamento político. A preocupação e ativa participação em um projeto sobre a pesca ilegal de atum estimulou a busca por informações sobre ambientalismo e direitos dos animais e consequente extinção das carnes na alimentação. Pode-se considerar, contudo, que a prática militante foi o fator detonador para que outros pontos motivadores influenciassem a condução da transformação do hábito alimentar. 2.2.5 Ambientalismo De acordo com o Worldwatch Institute, que acompanha questões ambientais ao redor do globo, a questão do consumo individual de carne tornou-se central no debate acerca de sustentabilidade. “À medida que a ciência ambiental avançou, ficou evidente que o apetite humano por carne animal é uma força impulsionadora por trás de praticamente todas as grandes categorias de danos ambientais que atualmente ameaçam o futuro da humanidade: desflorestamento, erosão, escassez de água potável, poluição do ar e da água, mudanças climáticas, perda da biodiversidade, injustiça social, desestabilização de comunidades e propagação de doenças” (SINGER; MASON, 2007, p. 261). De acordo com pesquisa do IBOPE (2007), a população brasileira está desenvolvendo uma consciência ambiental. A pesquisa revelou que 85% dos 35 cidadãos entrevistados estão dispostos a pagar um preço diferenciado por produtos que não agridam o meio ambiente. Adicionalmente, mais da metade dos consumidores afirmou comprar apenas produtos de fabricantes que não agridam o meio ambiente, ainda que sejam caros. Deste modo, conforme Roberts (1995) afirma, os indivíduos alteram não somente suas rotinas, incorporando atividades em prol do ambiente, como a separação do lixo e a não utilização de sacos plásticos, como modificam seu comportamento de consumo. Ottman (1994) confirma que esta sensibilidade crescente da sociedade perante as causas ambientais levou à geração de uma demanda por ‘produtos verdes’ ou com apelo ecológico e o consequente atendimento a esta fatia de consumidores por parte da oferta. A tendência é abraçada amplamente em todas as áreas das organizações. Com isso, destaca-se a definição de Marketing Verde por Peattie (2001): O termo ‘Marketing Verde’ tem sido usado para descrever o conjunto de atividades de marketing voltadas para minimizar impactos ambientais e sociais causados por produtos e sistemas de produção existentes, e que promovem produtos e serviços menos danosos (PEATTIE, 2001, p. 129). Peattie (2001) destaca as principais consequências advindas desta orientação verde: (1) O tratamento globalizado de questões como o aquecimento global gerando uma discussão mais generalizada e sem barreiras geográficas sobre a sustentabilidade, evocando o trabalho em conjunto; (2) Novos segmentos de mercado foram criados a partir de produtos e serviços especializados ou com apelo socialmente responsável; (3) Oportunidade de desenvolvimento de novos produtos ligados a temática ambiental e/ou social; (4) Novos desafios para o mercado publicitário, tendo em vista os novos valores adicionados à imagem das empresas; (5) O foco dado à cadeia produtiva, vista como ponto de vantagem competitiva e diferenciação perante os concorrentes;36 (6) As embalagens dos produtos ganharam uma importância crescente tanto como potencial item de minimização de custos, com a redução dos materiais utilizados, como publicidade da imagem da companhia; (7) Novas parcerias com agências ambientais ou outras instituições que pudessem agregar valor à imagem das organizações também observaram seu prestígio acrescido; (8) Percepção de valor, por parte das corporações, de que vale a pena não apenas participar da tendência, mas ser pioneira e ir além do cumprimento às regulações; (9) Avidez por captar e exibir novas informações. Há uma forte demanda pela transparência com relação aos dados pertinentes aos produtos, bem como matérias-primas, a cadeia produtiva, a conduta dos fornecedores, o descarte etc. Do outro lado, o consumidor verde é conhecido pela sua lógica menos individualista e mais coletivista, considerando a minimização do seu impacto no meio ambiente em seu processo de tomada de decisão no momento da compra, segundo Ottman (1994). 2.2.6 Não gostar de carne O desgosto ou nojo é definido como um desejo de se afastar de um objeto que é 'estragado’, ‘tem um gosto ruim’ e ‘que deixa um gosto ruim na boca’. Além disso, as sensações de desconforto oral e náuseas são discutidas como componentes críticos no sentimento de repulsa. De todos os alimentos consumidos, os de origem animal parecem ocupar um lugar especial na dieta humana. Carne inspira ambivalência devido às associações com animais vivos, sangue, agressão, violência e os efeitos deletérios na saúde humana (KUBBEROD ET al, 2006). Kubberod et al (2006) apresentam três pontos fundamentais por detrás do sentimento de desgosto: o primeiro refere-se à natureza do alimento, o indivíduo se questiona de onde vem o alimento e o que vem em seguida (processamento); o segundo relaciona preocupações com o aspecto sensorial, qualificando propriedades relacionadas à aparência, textura, cheiro ou gosto; e o terceiro motivo 37 faz referência à antecipação das consequências negativas após a ingestão do alimento. A partir de então, os autores propuseram e confirmaram seis construtos sobre a rejeição à carne vermelha, incluindo pessoas que não se intitulam vegetarianas. A primeira hipótese relaciona-se com as preocupações morais associadas ao consumo ético em defesa do bem estar animal, que apresenta grande potencial de suscitar fortes sentimentos como o nojo. Na segunda hipótese, os autores observaram a perspectiva sensorial-afetiva, especialmente demarcada pelo aspecto de textura firme e difícil de mastigar da carne não processada. Quanto maior a lembrança do animal vivo, maior a probabilidade de incidência do nojo. O sangue e a aparência de carne crua, portanto, repercutirão de forma negativa na opinião do consumidor (TWIGG, 1979; FESSLER ET al, 2003). A quarta questão reflete a precipitação das consequências negativas após o consumo da carne, como as sensações de plenitude, de lentidão e sonolência. Características relacionadas ao indivíduo como a autoestima, também podem promover reações emocionais diretamente. Consequentemente, observa-se a correlação e sequenciamento dos fatores: importância de sentir-se magra, expressão da insatisfação com o próprio corpo, intensificação da dieta com a supressão da carne e desgosto para com o alimento. A sexta e última hipótese depõe que a carne vermelha é apontada como mais associada a atributos que podem levar à rejeição do que as carnes brancas, através da mídia. Sendo assim, são as primeiras a serem excluídas da dieta de carnes. Dentre as classes de rejeição à carne que Fessler et al (2003) identificaram, estão as pessoas que evitam a carne pelo sabor, excluindo apenas os itens de que não gostam. Os outros dois grupos que compõem a tripartite detectada pelos autores são os indivíduos motivados pelas questões ética e ambiental, que comem o mínimo de carne ou nenhuma e o grupo motivado pela saúde, que come pouca carne vermelha, mas substanciais quantidades de carne branca. 2.3 IDENTIDADE E COMUNIDADE Hall (2005) afirma que a identidade de uma pessoa é formada através de sua participação em relações sociais mais extensas, adicionado o seu próprio papel na constituição dos processos. Pode-se considerar, então, a ocorrência de uma 38 interiorização do mundo externo ao indivíduo e uma exteriorização do seu interior, por meio da sua ação no mundo social. Na concepção de Castells (1997) e Hall (2005), a identidade é formada e transformada continuamente, num estado permanente de “em processo de construção”, constituída ao longo do tempo. De acordo com Goffman (1959), a negociação em que os indivíduos envolvem a si próprios durante o processo de constituição da identidade visa projetar uma impressão desejada. A identidade de uma pessoa é expressa na forma de consumo (SCHAU; MUNIZ, 2002). A partir daí, McCracken (2003) afirma que as sociedades capitalistas centradas no consumo levam os indivíduos a adquirir itens não pela funcionalidade, mas pelo seu valor simbólico. Sendo assim, o padrão de consumo define uma pessoa perante a sociedade e a busca do seu lugar em grupos. Mittal (2006) defende a existência de uma tensão entre como o indivíduo define sua identidade e como os outros a veem. Após diferenciar os termos entre como a pessoa se vê (eu) e como a pessoa acredita que os outros a veem (mim), o autor propõe três modos de minimizar este conflito: mudar o grupo de referência, buscando outras pessoas que corroborem sua versão; educar os outros, mostrando- lhes a sua identidade; ou mudar o consumo. Solomon (2008) relaciona o autoconceito às crenças de um indivíduo sobre seus próprios atributos e o modo como ele os avalia. A partir daí, as marcas, produtos e atividades escolhidas e exercidas pelos consumidores têm significado e ajudam a comunicar e tangibilizar a sua identidade (SCHAU; GILLY, 2003). Solomon (2008) apresenta ainda duas teorias que ajudam a explicar este comportamento: (1) Modelo de congruência da autoimagem, no qual as pessoas buscam produtos cujos atributos combinem com algum aspecto do seu eu; (2) Teoria da autocomplementaçao simbólica, que engloba indivíduos que tendem a completar sua identidade adquirindo e expondo símbolos associados a ela, devido a uma autodefinição incompleta. A construção do conceito do indivíduo envolve seis componentes: (1) seus corpos; (2) seus valores e caráter; (3) sua competência e seu sucesso na vida; (4) seus papéis sociais; (5) seus traços de personalidade subjetiva; e (6) suas posses. O arranjo de prioridades dos atributos varia de pessoa para pessoa, assim como a proporção de cada um dos elementos (MITTAL, 2006). 39 Ao exercer diversos papeis sociais, um indivíduo utiliza diversos acessórios e frequenta distintos ambientes, que se tornam extensões do “eu” do consumidor (SOLOMON, 2008). Segundo Mittal (2006), Seis são os mecanismos pelos quais passam as pessoas na transformação da posse na extensão de suas identidades,: (1) pela escolha dos produtos ou atividades baseada em seu “eu”, ou seja, deve refletir identificação e autonomia; (2) pelo recurso (dinheiro, tempo, energia) investido na compra do produto; (3) pelo recurso (dinheiro, tempo, esforço) investido no uso do produto; (4) pelo vínculo criado após a compra e reforçado pelo uso do produto; (5) através de uma coleção, mediante o tempo e esforço investidos na aquisição da mesma (BELK, 1988); e (6) através de memórias – produtos que foram recebidos como presente de alguém ou que estejam associados a uma ocasião especial. Contudo, nem todos os produtos podem ser qualificados como posse e nem todas as posses constituem parte da identidade de um indivíduo. Este tipo de bem consumível pode apenas servir de instrumento para a promoção de algum componente do autoconceito. Um aficionado pelo elemento corpo pode ser escravizado
Compartilhar