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A IDÉIA DE JUSTIÇA EM MARX Ana Selva Castelo Branco Albinati Professora-doutora do departamento de Filosofia da Pucminas A reconfiguração operada por Marx entre as instâncias da vida social se dá pelo reconhecimento da primazia ontológica da esfera da produção material da vida que implica determinadas relações entre os indivíduos que se tornam predominantes em dado grau de expansão desta existência social. Estas relações necessárias do ponto de vista da reprodução das condições sociais vigentes estão na base das formações ideais que lhe dão expressão, visibilidade e inteligibilidade. O conjunto das formações ideais, incluindo as normativas, constitui a ideologia no seu sentido mais amplo, onto-prático, como esclarece Lukács, ou seja, formulações orientadoras da práxis humana em seus diversos âmbitos. São formas de conscientização de relações sociais determinadas e agem no sentido de dar-lhes inteligibilidade e expressar uma normatividade que corresponda às necessidades sociais. O exame das relações sociais modernas, a decifração da forma mercantil que rege estas relações e de suas implicações na formação da individualidade moderna, aspectos que compõem a obra de maturidade de Marx, dota de maior conteúdo as formulações mais genéricas a respeito desta relação de condicionamento que estão presentes em seus textos a partir de sua ruptura com o arcabouço teórico idealista. Vamos nos deter um pouco mais nas considerações que Marx tece a propósito da justiça. Em A Ideologia alemã, ao refutar as idéias dos "socialistas verdadeiros alemães", Marx apresenta um novo princípio de justiça, que será retomado e desenvolvido por ele posteriormente na Crítica ao Programa de Gotha. Agnes Heller, em Além da justiça, enumera, tendo como base o trabalho de Perelman, as seguintes idéias de justiça: 1. A cada um a mesma coisa 2. A cada um de acordo com seus méritos 3. A cada um de acordo com seu trabalho 4. A cada um de acordo com suas necessidades 5. A cada um de acordo com sua posição 6. A cada um de acordo com seu direito legal .1 1 HELLER, Agnes. Além da justiça, p.45 Neste texto, assim como em A condição política pós-moderna, a proposição marxiana não comparece como sendo uma idéia de justiça. Em suas palavras: Pode surgir a questão de não termos incluído o princípio “a cada um segundo suas necessidades” entre as idéias de justiça. Nós a excluímos bastante deliberadamente porque, ao contrário da crença disseminada, esse princípio não é uma idéia de justiça. Ao contrário, esse princípio nos manda ir além da justiça.2 O seu raciocínio se desenvolve no sentido de discernir entre a justiça como meio e os fins aos quais ela visa, fins esses que se colocam como critérios para as proposições diferenciadas de justiça. Nesse sentido, ao dizer que a idéia de justiça de Marx está além da justiça significa, em sua análise, que tal idéia se fundamenta sobre uma concepção utópica de sociedade, a qual, a rigor, não necessitaria mais da justiça. Se voltarmos a Hume, encontraremos uma consideração esclarecedora sobre essa questão. Este inicia sua reflexão sobre a justiça, dizendo que “seria um empreendimento supérfluo provar que a justiça é útil à sociedade e, consequentemente que parte de seu mérito, pelo menos, deve originar-se dessa consideração.” 3 Explicitando a matriz utilitarista de seu pensamento, Hume entende que a justiça é uma virtude artificial cujo valor reside na sua utilidade, no equacionamento dos conflitos e insuficiências sociais. A origem da justiça se encontra na precariedade social. O autor aponta isso em relação à insuficiência de bens, em vista do que a justiça distributiva se faz necessária. Em caso contrário, quando há abundância, a justiça, “sendo completamente inútil, não passaria de um vão cerimonial e não poderia jamais obter um lugar no catálogo das virtudes.”4 Imediatamente ao tratar da necessidade ou não da justiça, Hume associa a seu raciocínio a questão da propriedade: Qual seria o propósito de efetuar uma repartição de bens quando cada um já tem malis do que o suficiente? Para que fazer surgir a propriedade quando é impossível causar prejuízo a quem quer que seja? Por que dizer que este objeto é meu quando, caso alguem dele se 2 HELLER, A./FÉHER, F. A condição política pós-moderna, p. 176. 3 HUME, David. Uma investigação sobre os princípios da moral, p.35. 4 HUME, David. Uma investigação sobre os princípios da moral, p.36. apodere, basta-me esticar a mão para apropriar-me de outro de valor igual?5 Mas o autor identifica outra situação na qual a justiça não seria necessária: Suponha-se além disso que, embora as carências da raça humana continuem as mesmas do presente, o espírito se tenha engrandecido tanto e esteja tão repleto de sentimentos amigáveis e generosos que todo ser humano nutre o maior carinho pelos demais e não sente uma preocupação maior pelos assuntos de seu próprio interesse do que pelo de seus companheiros. Parece evidente que, em vista de tamanha benevolência, o uso da justiça ficaria suspenso neste caso, e jamais se cogitaria, aqui, as divisões e barreiras da propriedade e obrigação.6 Uma aproximação dessa situação ele a identifica nas relações afetivas da família. A contraprova da necessidade da justiça em situação de conflito administrável ele a dá através da situação oposta, quando, em virtude de uma carência muito violenta, ficaria suspensa a virtude da justiça. Com o que conclui Hume: Contrarie-se, em qualquer aspecto relevante a condição dos homens – produza-se extrema abundância ou extrema penúria, implante-se no coração humano perfeita moderação e humanidade ou perfeita rapacidade e malícia: ao tornar a justiça totalmente inútil, destrói-se com isso totalmente sua essência e suspende-se sua obrigatoriedade sobre os seres humanos. 7 Trabalhando nos limites de uma moldura empirista utilitarista, Hume argúi com muita acuidade o sentido da justiça. Evidentemente, o seu raciocínio se encaminha no sentido de extrair a necessidade da propriedade em função do que seria a condição humana, e daí a necessidade da justiça. O que queremos destacar nessas passagens é a associação frequente entre um estado de benevolência humana com um “além da justiça”. Essa temática já fora exemplarmente desenvolvida por Aristóteles através da fina distinção entre equidade e justiça. A equidade é uma espécie do justo que se refere ao particular, evitando assim que a formulação universal de um princípio de justiça se perca ao se exercitar nos casos particulares. Afirma Aristóteles: 5 HUME, David. Uma investigação sobre os princípios da moral, p.36. 6 HUME, David. Uma investigação sobre os princípios da moral, p.37. 7 HUME, David. Uma investigação sobre os princípios da moral, p.42. “O equitativo é justo, superior a uma espécie de justiça – não à justiça absoluta, mas ao erro proveniente do caráter absoluto da disposição legal. E essa é a natureza do equitativo:uma correção da lei quando ela é deficiente em razão de sua universalidade.” 8 Poder-se-ia dizer que a equidade é um para-além da justiça, na medida em que diz respeito exatamente ao ultrapassamento do meramente justo. Esse caráter se explicita na seguinte passagem: Evidencia-se também pelo que dissemos quem seja o homem equitativo: o homem que escolhe e pratica tais atos, que não se aferra aos seus direitos em mau sentido, mas tende a tomar menos do que seu quinhão embora tenha a lei por si, é equitativo; e essa disposição de caráter é a equidade, que é uma espécie de justiça e não uma diferente disposição de caráter.9 Nessa formulação ambivalente, tem-se uma dialética entre a universalidade da justiça e a particularidade da equidade. Se a justiça é definida pelo estagirita como uma questãohumana, a equidade ressalta essa humanidade, transitando da expressão formal ao conteúdo vivido. Não por acaso, Aristóteles trata, associado a essa temática, da amizade, da philia, enquanto elemento que favorece a equidade. Essa digressão nos pareceu necessária porque nos aproxima da questão que colocamos a propósito da idéia de justiça em Marx. Em que medida essa idéia traz em si a noção de philia, que, ao extremo, substitui a justiça? Em que medida ele se aproxima de Hume e da idéia de que uma sociedade da abundância dispensaria a justiça? A depender da resposta que dermos a estas questões, Marx pode ser tido como um pensador utópico e concordaríamos então com as interpretações segundo as quais nosso autor transfere para o mundo terreno a redenção humana, tratando-se de uma forma escatológica de filosofia. Essas interpretações abundam entre seus comentadores, e mesmo entre aqueles de extração originariamente marxista. Por exemplo, Agnes Heller acredita que em Marx, “a autonomia absoluta e a extravagância da virada antropológica em direção à ‘perfeição’ foram concebidas, e a idéia religiosa do “Reino de Deus” foi secularizada.”10 8 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, p.96. 9 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, p.97. 10 HELLER, Agnes. Além da justiça, p. 150. Sendo assim, “a ideía ética de justiça (a cada um de acordo com seu mérito), que busca sua legitimação da reivindicação de certeza para felicidade, está completamente ausente de Marx”11, tendo sido suplantada por uma moralidade baseada na philia. Dessa forma, como conclusão, afirma a autora: “A sociedade dos ‘produtores associados’ é uma sociedade além da justiça.”12 Vejamos como Marx retoma essa idéia de justiça na Crítica do Programa de Gotha. Reafirmando a natureza ontológica de seu procedimento, Marx pergunta: Que é a “repartição eqüitativa”? Não afirmam os burgueses que a atual repartição é “eqüitativa”? E não é esta, com efeito, a única repartição “equitativa” cabível, sobre a base da forma autal de produção? Acaso as relações econômicas são reguladas pelos conceitos jurídicos? Pelo contrário, não são as relações jurídicas que surgem das relações econômicas? 13 O esclarecimento dessa questão o autor a faz a respeito do valor da força de trabalho. O equitativo (nesse contexto, distinto do aristotélico) se compreende como relativo a uma dada forma de existência social, pautada sobre relações específicas. Trata- se da possibilidade historicamente configurada de se medir o valor da força de trabalho aos moldes de uma mercadoria qualquer. Na sequência, ao tratar da transição ao modo de produção socialista, Marx trata da questão que mais propriamente lhe interessa, que é a subsistência desse princípio de justiça nessa etapa, ainda que se tenha agora a recomposição integral do valor dessa força de trabalho, ou seja, que todo o tempo de trabalho passe a ser pago. Tem-se que a justiça distributiva nessa fase do socialismo não modifica o critério anteriormente estabelecido, apenas o efetua realmente, distinguindo-se assim da ambiguidade presente na sociabilidade capitalista, na qual a equivalência na compra da força de trabalho se traduz na não-equivalência na sua utilização como valor de uso, gerador de mais-valor. A métrica continua sendo o tempo de trabalho, como Marx indica no prosseguimento: “Apesar destes progressos, este direito igual continua trazendo implícita uma limitação burguesa. O direito dos produtores é proporcional ao trabalho que prestou; a igualdade aqui consiste na utilização do trabalho como unidade de medida comum.”14 11 HELLER, Agnes. Além da justiça, p. 152. 12 HELLER, Agnes. Além da justiça, p. 152. 13 MARX, Karl. Critica ao Programa de Gotha, p. 214. 14 MARX, Karl. Critica ao Programa de Gotha, p. 216. Continua a valer o princípio abstrato “a cada um conforme o seu mérito”, cuja gênese se compreende a partir do estabelecimento histórico, generalizado, do tempo de trabalho como unidade de medida do que cabe a cada um, e que coroa o individualismo da sociedade mercantil. Isso significa considerar as diferenças nas capacidades individuais, sejam elas naturais ou sociais, como desigualdades que justificam um usufruto maior ou menor da riqueza social. O registro é ainda o do indivíduo em sua separação, o indivíduo-átomo do qual o autor nos fala em tantas passagens, e não ainda o indivíduo social. Ademais, o autor ressalta a estreiteza de um único critério de avaliação, o que equivale a medir as individualidades sob um único parâmetro. Aqui seria interessante comparar a posição de Marx com a Nietzsche a propósito da justiça. Em Humano, demasiado humano, encontramos: A justiça (equidade) tem origem entre homens de aproximadamente o mesmo poder, como Tucídides (no terrível diálogo entre os enviados atenienses e mélios) corretamente percebeu: quando não existe preponderância claramente reconhecível, e um combate resultaria em prejuízo inconsequente para os dois lados, surge a idéia de se entender e de negociar as pretensões de cada lado: a troca é o caráter inicial da justiça. Cada um satisfaz o outro, ao receber aquilo que estima mais que o outro. Um dá ao outro o que ele quer, para tê-lo como seu a partir de então, e por sua vez recebe o desejado. A justiça é, portanto, retribuição e intercâmbio sob o pressuposto de um poderio mais ou menos igual. 15 A idéia exposta por Nietzsche é a idéia moderna de justiça. Essa justiça, como reconhece o autor, se baseia numa situação social de igualdade, na qual não teria vez, por exemplo, uma noção hierárquica de justiça que retivesse privilégios estamentais. Também acertadamente, o autor vincula a idéia da troca à idéia de justiça. Evidentemente a conclusão que Nietzsche tira de suas considerações é de todo diversa da de Marx. A sua genealogia intenta não só a denúncia do esquecimento da origem das ações justas, que assim, parecem se originar de uma razão pura, sem qualquer traço de contaminação com o mundo real (“Quão pouco moral pareceria o mundo sem o esquecimento! Um poeta poderia dizer que Deus instalou o esquecimento como guardião na soleira do templo da dignidade humana.”16), mas, mais do que isso, o encaminhamento 15 NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano, p. 65. 16 NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano, p. 66. que Nietzsche dará é o do escárnio dessa noção de justiça em prol de uma reformulação aristocrática da mesma. Em um outro registro, Marx se esforçará para recuperar a gênese dos conceitos que parecem emergir de uma pura razão, reconduzindo-os ao seu solo social. No caso da idéia moderna de justiça, esse solo é a generalização da troca como forma predominante da relação entre os indivíduos na sociedade mercantil. Embora a troca, o intercâmbio entre os homens, seja uma necessidade desde sempre posta, a sua universalização como padrão de uma existência social só ocorre na sociabilidade moderna. Assim, "o que Adam Smith, à maneira tão própria do século XVIII, situa no período pré-histórico e faz preceder à história, é sobretudo o produto desta."17 A troca no mundo moderno é, em sua peculiaridade, definidora de uma forma de sociabilidade diversa das anteriores, pois substitui as antigas relações comunais, os antigos laços naturais que uniam indivíduo e comunidade, laços de sangue, parentesco e status estamentário, assim como aqueles que ligavam os indivíduos e suas condições materiais de produção. Segundo Alves, "o que caracteriza a nova forma de sociabilidade é o fato de esta ser tomada e reproduzida como nexo exterior aos indivíduos, como instrumento de realização de uma outra finalidade que aquela dada pela manutenção da coesão societária."18 A exterioridade dos indivíduos frente à formasocietária se traduz na forma do egoísmo, na consideração atomística dos indivíduos que reproduz a sua situação existencial diante da perda dos liames e limites naturais anteriores. A perda das referências comunais e dos privilégios "naturais" comunitários é substituída pela relação única de equivalência que se estabelece entre os indivíduos cambistas, na qual o poder de cada um se mede a partir desta mesma relação. Assim, equivalência e indiferença são os nexos fundamentais da sociabilidade moderna. Do mesmo modo que a forma econômica, o intercâmbio, põe em todos os sentidos a igualdade dos sujeitos, o conteúdo ou substância – tanto individual como coletivo - põe a liberdade. Não só se trata, pois, de que a liberdade e a igualdade são respeitadas no intercâmbio baseado 17 MARX, Karl. Grundrisse, v.1, p. 60. 18 ALVES, Antônio José Lopes. A individualidade moderna nos Grundrisse, p. 269. em valores de troca , mas que o intercâmbio de valores de troca é a base produtiva, real, de toda igualdade e liberdade. Estas, como idéias puras, são meras expressões idealizadas daquelas ao desenvolver-se em relações jurídicas, políticas e sociais, estas são somente aquela base elevada à outra potência.19 Se as idéias jurídicas expressam as relações reais da vida concreta dos indivíduos, o princípio moderno da justiça, “a cada um conforme o seu mérito”, retira o seu conteúdo das relações de troca nas quais a igualdade e a liberdade se estabelecem (evidentemente em toda sua contraditoriedade, como demonstrará Marx) e assim, legitimam tal princípio, em detrimento de qualquer outro de caráter hierárquico. Mas como ir além do critério do mérito? Ir além desse critério é se situar além da justiça? Recairia o autor em uma perspectiva moral? Em uma utopia social? Novamente, nos valeremos aqui da reflexão de Aristóteles acerca da justiça e suas relações com a equidade e a philia. Bittar observa a este respeito que, a partir do texto aristotélico, temos que: Não obstante sua presença imprescindível (da justiça) para o próprio equacionamento do meio que consente a realização da natureza política humana, o exercício da philia dispensaria a necessidade de critéiros corretivos, uma vez que a interação humana seria de todo revestida de pacificidade, distanciada de todo interesse imediato, responsável pela desigualdade ds relações intersubjetivas. Pode-se afirmar que Aristóteles enriqueceu a temática, fornecendo subsídios epistemológicos para a racionalização de toda abordagem da justiça, assim como estabeleceu parâmetros para a redefinição de novas fronteiras acerca do equilíbrio social.20 A nosso ver, é disso que se trata na abordagem de Marx sobre a justiça: da possibilidade de novas formas de equilíbrio social. A precedência das condições objetivas para tanto é reiterada por Marx como possibilidade (e evidentemente não como condição suficiente) para que se efetue uma mudança de horizonte que torne possível a emergência de uma nova idéia de justiça, completamente desvinculada de uma medida única, impensável numa sociabilidade dos equivalentes, como é a sociabilidade burguesa: Na fase superior da sociedade comunista, quando houver desaparecido a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, a oposição entre o trabalho intelectual e o trabalho manual; quando o trabalho não for somente um meio de vida, mas a primeira 19 MARX, Karl. Grundrisse, v.1, p. 136 20 BITTAR, Eduardo C.B. A justiça em Aristóteles, p. 140. necessidade vital; quando, com o desenvolvimento dos indivíduos em todos os seus aspectos, crescerem também as forças produtivas e jorrarem em caudais os mananciais da riqueza coletiva, só então será possível ultrapassar totalmente o estreito horizonte do direito burguês e a sociedade poderá inscrever em suas bandeiras: “De cada qual segundo sua capacidade, a cada qual segundo suas necessidades.21 A idéia de justiça em Marx não significa um ideal de justiça a ser alcançado em virtude de uma dada natureza humana ou de uma filosofia da história de caráter escatológico. Diferentemente, parece-nos tratar de uma possibilidade que se vincula à expansão da capacidade produtiva social, uma vez regulada em outras bases societárias. A ideía de justiça em Marx rompe com a métrica do equivalente, porque acompanha a superação histórico-social dessa medida. Essa possibilidade é antevista pelo autor a partir da compreensão de que as contradições do modo de produção capitalista, basicamente o suporte do valor sobre o tempo de trabalho e a constante redução desse tempo necessário em virtude do desenvolvimento das forças produtivas, acabaria por “lançar aos ares” as premissas objetivas sobre as quais se edificaram as noções jurídicas modernas. Por outro lado, a formulação de Marx expressa uma universalidade que, evidentemente, não contempla as situações específicas nas quais os atos de justiça se objetivarão. Em outras palavras, em sua universalidade, a formulação marxiana se sustenta como expressão genérica de uma nova possibilidade social. A sua aplicação dependerá das especificidades de cada caso particular. O que são as capacidades de cada um, como medi-las? O que são as necessidades de cada um? Se compreendermos a proposição de Marx como uma ontologia do ser social, na qual os indivíduos só podem ser compreendidos em suas relações concretas, como seres que respondem às situações que se colocam concretamente em sua vida prática, como nos aponta Lukács, é bastante coerente que Marx tenha se detido nesse nível de universalidade, uma vez que cabe a cada geração responder às questões de seu tempo. Não se trata de uma especulação sobre as medidas que surgirão na definição da justiça, trata-se tão somente do rompimento com uma dada medida, rompimento possível a partir da obsolescência social dessa medida, o tempo de trabalho, sobre o qual se edifica o critério do mérito na justiça distributiva. 21 MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha, p. 216-17. Os novos parâmetros, as novas medidas se colocarão a partir das novas condições sociais, que criam novas individualidades com novas necessidades e novas capacidades. Possivelmente, uma nova sociabilidade na qual, para nos aproximarmos da linguagem aristotélica, o exercício da equidade possa ser favorecido. BIBLIOGRAFIA ALVES, Antônio José Lopes. A individualidade moderna nos Grundrisse. Revista Ensaios AdHominem, São Paulo, v.1, tomo IV, p. 256-307, 2001. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1987. BITTAR, Eduardo C.B. A justiça em Aristóteles. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999. HELLER, Agnes. Além da justiça. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. HELLER, Agnes/ FÉHER, Ferenc. A condição política pós-moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. HUME, David. Uma investigação sobre os princípios da moral. Campinas: editora Unicamp, 1995. LUKÁCS, Georg. Per l’ ontologia dell’ essere sociale. 3v. Roma: Riuniti, 1976. MARX, Karl. Crítica do Programa de Gotha. In Marx/Engels. Obras escolhidas, v.2. Rio de Janeiro: editorial Vitória, 1961. MARX, Karl. Grundrisse. In ROCES, Wenceslao (org.) Obras Fundamentales de Marx y Engels. 2v. México: Fondo de Cultura Econômica, 1985. NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
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