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Federalismo brasileiro: origem, evolução e desafios Francisco Luiz C. Lopreato Julho 2020 388 ISSN 0103-9466 Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 388, jul. 2020. Federalismo brasileiro: origem, evolução e desafios 1 Francisco Luiz C. Lopreato 2 Resumo O texto discute a origem e a evolução do federalismo brasileiro. Destaca os momentos em que mudanças nos elementos constitutivos do arranjo federalista definem outra configuração e dão lugar à nova etapa. A proposta é delinear as fases longas, divididas em três etapas (1891 a 1964; 1964 a 1988 e 1988 a hoje), e não as alterações pontuais ou de dimensão restrita que, embora relevantes em conjunturas particulares, não configuram um novo pacto federativo. O último tópico aponta entraves e desafios no combate a velhos problemas da federação brasileira. Palavras-chave: Federalismo; Finanças públicas. Abstract Brazilian federalism: origin, evolution, challenges The text discusses the origin and evolution of Brazilian federalism. It highlights the moments when changes in the constitutive elements of the federalist arrangement define another configuration and give rise to a new stage. The proposal is to outline the long phases, divided into three stages (1891 to 1964; 1964 to 1988 and 1988 to today), and not the occasional or restricted changes that, although relevant in particular circumstances, do not constitute a new federative pact. The last topic points out obstacles and challenges in combating old problems of the Brazilian federation. Keywords: Federalism; Public finance. JEL H77 1. Introdução O texto discute a origem e evolução do federalismo brasileiro tomando como fio condutor da análise as relações de poder entre as esferas de governo, considerando a desigualdade regional e a diferença de renda tributária per capita como pontos fundamentais ao se pensar a federação. As características comuns das relações do centro com os governos subnacionais, no tempo, merecem destaque. União ocupa posição nuclear no pacto de poder e os governos subnacionais atuam na composição do arranjo político e na sustentação da integridade do espaço territorial. A força do governo central no processo de constituição do Estado brasileiro o colocou como a instância responsável por regular e traçar as linhas gerais de atuação em diferentes áreas. Este princípio consolidou-se nas etapas seguintes, com a esfera federal exercendo papel proeminente, mas não absoluto, na definição dos caminhos a serem seguidos, mesmo quando alterações do ciclo político reforçam o poder dos governos subnacionais. No federalismo brasileiro, a desigualdade regional e as diferenças de receita tributária disponível per capita constituem elementos perenes, definidos por uma dinâmica econômica que engendrou o poder de cada região e deu lugar a um arranjo político peculiar. As regiões concentradoras da riqueza contaram com o beneplácito do sistema tributário e a constituição de um sistema de partilha, apesar de amenizar o problema, não o resolveu. A questão continuou em aberto, a espera de ser enfrentada. (1) Texto em homenagem aos queridos professores e amigos Wilson Cano e Carlos Lessa, com saudades. (2) Professor livre docente do Instituto de Economia da Unicamp. E-mail: lopreato@unicamp.br. Agradeço os comentários de Sérgio Prado, Flávio Santos e Alexandre Motta. mailto:lopreato@unicamp.br Francisco Luiz C. Lopreato Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 388, jul. 2020. 2 A análise percorre os tópicos que, em linhas gerais, dão o contorno do que se pode denominar de pacto federativo: (i) a questão da desigualdade regional, a distribuição dos recursos tributários e o sistema de partilha; ii) a evolução do poder de regulação federal; (iii) as relações do centro com os entes subnacionais quanto à realização de gastos e autonomia de decisões e, finalmente, (iv) a dinâmica da articulação entre estados e municípios, buscando entender como esses elementos comportam-se e delineiam os cortes temporais. O texto demarca as etapas de evolução do federalismo brasileiro, a partir da análise dos impactos de mudanças econômicas e políticas na ordem vigente. A ideia é distinguir as alterações transformadoras da estrutura federativa de outras que, embora relevantes na explicação de momentos específicos, não configuram rupturas com o movimento anterior e o início de uma nova fase. Os cortes temporais caracterizam os momentos de alterações dos elementos constitutivos do arranjo federalista, reveladores de uma configuração diferente da federação. Não é trivial destacar os sinais de ruptura, responsáveis pelo surgimento de outra etapa, com configuração distinta da ordem anterior. Esta mudança caracteriza-se quando há alterações de fundo em todos ou em parte dos elementos constitutivos do pacto federalista apontados acima. A desigualdade regional, apesar de mitigada ao longo do tempo, pouco ajuda na diferenciação de etapas, já que não ocorreu um ataque frontal ao problema e a questão permanece como característica perene da nação. Assim, procura-se desvelar as mudanças do arranjo federativo perscrutando as alterações dos outros elementos. Ou seja, voltou-se a atenção às modificações da repartição da receita tributária, do poder de regulação federal, da configuração das relações do centro com os entes subnacionais e da dinâmica de articulação entre os estados e os municípios. Estes elementos assumem, com frequência, configurações distintas, ao sabor de conjunturas políticas e econômicas, reflexo do fato de o arranjo federativo ser uma estrutura viva. Porém, essas alterações, por terem caráter pontual ou dimensão restrita, nem sempre caracterizam um novo pacto federativo. Elas se revelam muito mais como adaptações à singularidade de determinadas ocasiões do que propriamente rupturas, uma vez que os traços de continuidade são marcantes. Isto é, o momento traz propriedades novas, relevantes em conjunturas específicas, mas, simultaneamente, os elementos constitutivos do arranjo federativo pouco se alteram, reproduzindo a situação anterior. Os momentos de ruptura, por sua vez, são de outra natureza, com esses elementos configurando-se de modo distinto, dando lugar a outro arranjo federativo. A proposta é delinear essas etapas longas, de mudanças das características do arranjo federativo. A análise das fases curtas, subdivisões de um período largo, chama a atenção para o fato de que esses momentos, mesmo apresentando traços distintos, preservam delineamentos semelhantes de elementos constitutivos do pacto federativo, caracterizando os fatores permanentes na evolução do federalismo brasileiro. O texto divide a evolução do federalismo brasileiro em três grandes etapas: (i) de 1891 a 1964; (ii) de 1964 a 1988 e (iii) de 1988 a hoje. Em cada uma delas, certamente, é possível distinguir subperíodos resultantes de mudanças de ordem política ou econômica, afetando aspectos distintos responsáveis por explicar a particularidade do momento, sem negar o arranjo anterior. A preocupação não é detalhar as particularidades de cada etapa e sim delinear os momentos de ruptura, em que a constituição de arranjos distintos ensejam o limiar de uma nova fase. A etapa mais difícil de caracterizar talvez seja a primeira (1891 a 1964), devido às evidentes diferenças entre os três ciclos que a compõe: 1891 a 1930; 1930 a 1946 e 1946 a 1964. A dificuldade Federalismo brasileiro: origem, evolução e desafios Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 388, jul. 2020. 3 está em aceitar que o governo Getúlio Vargas, apesar da centralização política e do maior controle sobre os entes subnacionais, não indica, de fato, um momento de ruptura. A crescente presença da esfera federal, embora inquestionável, não alterou elementos constitutivos do pactofederativo. De tal modo que a característica mais marcante do período parece ser a continuidade e não a ruptura. Não houve a centralização da receita tributária e o governo central, apesar do maior poder de regulação, teve de se articular com os entes subnacionais e respeitar as articulações internas de cada unidade e os arranjos regionais. Não ocorreram fraturas nas bases do sistema: as relações do centro com estados e municípios, apesar do controle federal, não deixaram de reproduzir condições presentes no período anterior. O mesmo se pode afirmar das articulações de estados e municípios, do trato da questão regional, da repartição dos recursos tributários e do poder de gastos das unidades estaduais. A realidade pós era Vargas parece reforçar essa tese. A volta do regime democrático trouxe alterações marginais. A mudança do momento político veio acompanhada do compartilhamento de algumas receitas, sem caracterizar propriamente um sistema de partilha. No mais, as semelhanças são marcantes. Não se negou parte relevante do poder de regulação federal, o formato das relações da União com os governos subnacionais e o trato entre estados e municípios mantiveram as características anteriores, adaptadas à nova conjuntura, em que a ausência dos interventores ampliou a liberdade de atuação dos líderes regionais e locais. A segunda fase inicia-se com o movimento militar e se arrasta até a Constituição de 1988 (CF88). As reformas do regime militar rompem com a dinâmica anterior em diferentes aspectos: ao impor perdas de capacidade tributária e de autonomia dos governos subnacionais em gerenciar os seus gastos, ao introduzir um sistema de partilha e políticas de cunho regional, ao criar um sistema de repasse de recursos fiscais e financeiros e novas regras de relações intergovernamentais, além de elevar o poder federal de direcionar os gastos públicos com o objetivo de acelerar o crescimento. A crise econômica do início dos anos 80 alterou pouco as características do federalismo então vigente. As diferenças podem ser atribuídas mais à perda de funcionalidade do esquema montado no regime militar e ao renascer da força dos governadores com o fim da ditadura do que propriamente a alterações capazes de definir o limiar de outra etapa. A delimitação da terceira fase (1988 a hoje) é complexa. A CF88 cumpriu papel relevante ao transferir recursos tributários aos governos subnacionais e elevar os gastos sociais. Porém, o alcance de suas proposições não parece caracterizar, por si só, uma ruptura. A configuração final dessa etapa do arranjo federalista só se completou com as reformas do governo Fernando Henrique Cardoso (FHC). A delimitação em 1988 deve-se ao fato de a CF88 inaugurar um período de transição, que não se confunde com a fase anterior sem delinear plenamente o momento seguinte. O governo FHC, responsável por alterações da estrutura federativa em diferentes planos, definiu o novo momento. As privatizações deram outra dinâmica às relações da esfera federal com os governos subnacionais e dos estados com os municípios; a renegociação das dívidas e a definição de regras fiscais mudaram o jogo de poder entre as esferas de governo e contribuíram para o ocaso paulatino da força dos estados; a luta por elevar a participação na receita tributária afetou o sistema de partilha, o descaso com a questão regional deu lugar à guerra fiscal; o poder federal de definir as normas de gastos sociais alterou o atendimento dessas áreas e o modelo de relacionamento dos entes federativos. Francisco Luiz C. Lopreato Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 388, jul. 2020. 4 As ações do governo FHC ampliaram a centralização e demarcaram o caminhar da federação, com os seus percalços e conflitos, sem que, desde então, o debate sobre rumos alternativos avance, apesar de se reconhecer a necessidade de revisão do pacto federativo. 2. A República e o federalismo com a força do poder estadual (1891 a 1964) A fase inicial do federalismo brasileiro abrange os anos de 1891 a 1964. O olhar desse longo tempo como uma única etapa busca destacar o caráter perene da força estadual e das relações regionalistas no arranjo federativo como característica nuclear do período. O movimento não é linear, alteram-se momentos distintos, em que a presença federal avança, mas sem eliminar esse traço constitutivo do federalismo. A origem do projeto federalista é recorrentemente atribuída à primeira constituição republicana, desenhada com o intuito de atender às demandas das burguesias regionais, sobretudo dos interesses paulistas, preocupados em garantir as condições de gerenciar a acumulação do complexo cafeeiro em momento de franca expansão. O seu ocaso, precoce, teria lugar na era Vargas (1930 a 1945), com a centralização do poder na esfera federal, a frear os arroubos iniciais da República e a restaurar a força da União em ditar os destinos da nação. O fim dos anos Vargas deslocaria novamente o pêndulo no sentido de retomar o caminho da descentralização e redimensionar o federalismo, com os estados recuperando forças e autonomia de ditarem os próprios percursos até o advento do regime militar, quando voltaria a prevalecer o movimento de centralização. A ênfase na alternância do pêndulo acaba por obscurecer a relevância da presença estadual no delinear do pacto federativo. Os governos estaduais, mesmo nos momentos de avanço do poder central, como na era Vargas, mantiveram a capacidade de ditar o caráter regional da dinâmica do arranjo federativo, baseada no potencial tributário e de gasto público e no controle do modelo de articulação com os governos locais. O federalismo brasileiro instituído em 1891 tem suas raízes históricas na concepção do pacto imperial.3 O poder central, preocupado em garantir a unidade do território nacional, aceitou a solução de compromisso, acordada no Ato Adicional de 1834, preservando o poder de regulação em troca da liberdade das elites provinciais em gerenciar os seus espaços e sustentar o pacto de dominação local; condição mantida na revisão conservadora de 1840 que, embora tenha desencadeado disputas políticas em torno de pontos específicos, não chegou a atacar as questões relacionadas ao cerne do pacto federativo.4 (3) As considerações sobre o pacto imperial estão ancoradas no trabalho de Dolhnikoff (2004). (4) De acordo com Dolhnikoff (2004, p. 147): “Mesmo depois da Interpretação do Ato Institucional, continuava prevalecendo o cerne do arranjo institucional implementado na década de 1830. ... as Assembleias brasileiras tinham competência para decidir unilateralmente sobre matéria tributária e outras de igual importância. ... dispunham de meios para fiscalizar e opor-se aos presidentes e ao governo central e estavam organizadas de modo a possibilitar o exercício de autonomia nas decisões de matéria de sua competência. As Assembleias brasileiras não dependiam da convocação do Executivo para se reunir e não podiam ser dissolvidas, características que não perderam com a revisão conservadora.” Ou ainda (p.153): “Realizada a Interpretação do Ato Institucional, as Assembleias Provinciais continuavam desfrutando da mesma autonomia tributária, com o direito de criar impostos e decidir sobre o destino das rendas arrecadadas. Mantinham ainda a prerrogativa de criar uma força policial própria e seguiam responsáveis pelo controle da Câmara Municipal; além de se manterem encarregados das obras públicas, da instrução e das divisões civil, judiciária e eclesiástica da respectiva província.” Federalismo brasileiro: origem, evolução e desafios Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 388, jul. 2020. 5 O resultado soldou os interesses em defesa do Estado e, mesmo sem se caracterizar propriamente como federalismo, construiu as bases onde repousam elementos da ordem de 1891 e as tradiçõesdo federalismo brasileiro. O pacto imperial definiu a divisão de competências entre as esferas de poder e garantiu ao governo central o direito de responder por questões nacionais em diferentes áreas, aceitas em toda a nação. Por sua vez, os governos provinciais teriam a responsabilidade de conduzir a política local e, simultaneamente, as respectivas elites ocupariam espaços na Câmara, com a defesa de seus interesses por meio de negociações com os pares e o poder central. O arranjo garantia autonomia financeira e liberdade de decisão ao governo provincial em matérias de interesse relacionadas à defesa da economia e da ordem política local. A distribuição tributária estabelecia-se entre o centro, com maior poder fiscal, e as províncias, restando pouco aos municípios. Os governos provinciais tinham liberdade de elaborar o orçamento, arrecadar os seus tributos, decidir sobre a distribuição dos investimentos em obras públicas, emprego, educação e a constituição de força policial, fatores cruciais na definição do papel das elites locais no jogo político e no embate nas Assembleias com os presidentes de províncias, nomeados pelo governo central.5 O presidente servia como agente articulador dos interesses do centro e da província, com a tarefa de garantir a vitória dos candidatos da corte. Porém, o poder de intervir na configuração das forças internas e de cercear as ações dos deputados provinciais era restrito. A eles não cabia propor leis e o eventual veto às medidas aprovadas na Assembleia podia ser revogado por decisão de 2/3 dos próprios legisladores. Ou seja, os presidentes não tinham a prerrogativa de impor a sua vontade e eram obrigados a negociar as suas proposições com a elite local.6 O sistema, por seu caráter descentralizado e de respeito às condições locais, acabou por referendar as diferenças regionais. A inexistência de uma política regional capitaneada pelo centro acatou a assimetria de renda e atrelou à capacidade econômica de cada província diferentes graus de autonomia no controle dos gastos. O arranjo, embora favorável às unidades ricas, também contemplou (5) Cf. Dolhnikoff (2004, p. 153): “Realizada a Interpretação do Ato Institucional, as Assembleias Provinciais continuavam desfrutando da mesma autonomia tributária, com o direito de criar impostos e decidir sobre o destino das rendas arrecadadas. Mantinham ainda a prerrogativa de criar uma força policial própria e seguiam responsáveis pelo controle da Câmara Municipal; além de se manterem encarregados das obras públicas, da instrução e das divisões civil, judiciária e eclesiástica da respectiva província.” Torres (2017, p. 142) parece concordar com essa interpretação: “Ora, as províncias do Império brasileiro, posto que em situação ambivalente – órgãos do Estado e coletividades autônomas, como diz o visconde de Ouro Preto, possuíam todos elementos distintivos do Estado-membro da federação. Senão vejamos: A competência das assembleias provinciais não era de caráter puramente administrativo e, sim, efetivamente político e governamental. Os presidentes de província, como órgão dependente do governo imperial e através dos serviços da secretaria de governo aplicados na execução de medidas da competência nacional, exerciam funções de agentes da administração descentralizada; os mesmos presidentes, quando aplicavam leis provinciais, participavam de um poder autônomo, o das assembleias. b) Gozavam de um Poder Legislativo específico, possuíam rendas próprias, serviços administrativos exclusivos. E, se uma lei geral é que fundamentou esta autonomia, esta lei geral foi aprovada pelo povo das províncias num verdadeiro referendum. c) As províncias possuíam polícia militar própria. Se considerarmos, ademais, que o Ato Adicional não atribui poderes às províncias, mas às suas assembleias, e se as leis negavam direito aos presidentes de apresentar projetos, devemos considerar que, afinal de contas, as províncias eram autônomas, muito embora esta autonomia fosse sujeita a uma inspeção por parte do governo central, o que existe em toda a parte.” (6) Cf. Dolhnikoff (2004, p. 107): “os presidentes podiam, em alguns casos específicos, suspender a apreciação da lei e enviá-la para ser examinada pela Câmara, quando elas atentavam contra os interesses de outras províncias ou contra disposições firmadas em tratados assinados com outras nações.” Francisco Luiz C. Lopreato Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 388, jul. 2020. 6 os interesses das elites de unidades periféricas, já que garantiu a elas meios de acesso ao orçamento do centro e condições de manter o pacto de dominação local. As relações entre o centro e as províncias, marcadas por descentralização e liberdade de ações, contrastava com a centralização do poder provincial no trato com os municípios.7 Em matérias políticas, as Assembleias dominavam o processo e deviam aprovar as posturas, os orçamentos e a contratação de funcionários municipais antes de entrarem em vigência. Na área fiscal, os municípios, com baixo montante de receita própria, dependiam do orçamento provincial e estavam forçados a barganhar as demandas locais com as elites provinciais (Dolhnikoff, 2004, cap.2). O modelo estabelecia a subordinação e a dependência da autoridade local em relação ao poder provincial, reforçando o papel desta esfera de governo na estrutura federativa.8 O arranjo imperial ofereceu o alicerce sobre o qual se ancorou o pacto da Constituição de 1891.9 O fortalecimento das oligarquias regionais e a crise do final do império deram força às reivindicações federalistas, amadurecidas durante o Império. 10 As pressões regionais buscaram ganhos tributários como meio de enfrentamento dos problemas existentes. No plano político, o conjunto das forças era favorável à autonomia dos estados; a divergência concentrava-se nas discussões sobre o alcance do poder federal e a estrutura da ordem federativa (ver Roure, 1920). Os representantes de unidades de alto poder econômico, sobretudo paulistas e mineiros, sem ferir a autonomia estadual, frearam a descentralização radical e respaldaram as demandas do governo (7) A Lei de 12 de maio de 1840, de interpretação do Ato Adicional de 1834, ao estabelecer que: “Art. 2º A faculdade de crear, e supprimir Empregos Municipaes, e Provinciaes, concedida ás Assembléas de Provincia pelo § 7º do art. 10 do Acto Addicional, sómente diz respeito ao numero dos mesmos Empregos, sem alteração da sua natureza, e atribuições, quando forem estabelecidos por Leis Geraes relativas a objectos sobre os quaes não podem legislar as referidas Assembléas.”, limitou o poder provincial de lidar com a questão do emprego nos governos locais, mas pouco mexeu na relação de subordinação entre essas esferas de governo. (8) De acordo com Tavares Bastos (1870, p. 151): “E, em verdade, depois do golpe de estado de 1840, não puderam mais as assembléas legislar, por medida de caracter geral, sobre a economia e a policia municipal. Só o pódem agora fazer diante de cada hypothese, a proposito de cada postura, de cada obra, de cada orçamento municipal. Tal é o fim da exigencia de prévia proposta das camaras (art. .1° da lei de 1840). Muito menos podem alterar a symetria dos serviços locaes, crear novos empregos ou supprimir os antigos, dar e tirar-lhes attribuições (artigo 2°). Desde então, pois, a autoridade das assembléas sobre as camaras somente se faz sentir pelo lado máu, pela excessiva dependencia e concentração dos negocios nas capitaes das provincias. Privadas as assembléas de poderem regular os interesses municipaes por modidas de caracter geral, por leis organicas adaptadas ás circunstancias de cada região, ficou sua missão reduzida a uma impertinente tutela, requintada pelas perniciosas práticas introduzidas desde1840 na administração publica.” (9) Como colocou Roure (1920, p. 72): “O regime federativo foi adotado entre nós, na Constituinte Republica, simplesmente porque a ideia da Federação vinha do Império já amadurecida, tendo sido objeto de estudo na Constituinte de 1823, na assembleia que votou o Ato Adicional e nos debates do parlamento ordinário. Todos eram federalistas na Constituinte de 1890-91.” (10) Como colocou W. P. Costa (1998, p. 143): “A força da pregação federalista advinha particularmente das fissuras que se abriam a partir do momento em que o Estado Imperial iniciou o processo de emancipação da escravidão, datando com isso, o destino da instituição que lhe servira contraditoriamente de fundamento. O fulcro da questão radicava, entretanto, na crescente diversificação da base econômica a partir da década de 1870, com o florescimento da cafeicultura do Oeste paulista e a heterogeneidade que se aprofundava, a partir daí, entre o Centro-Sul e o Nordeste. O timing da emancipação, a forma e o preparo da transição para o trabalho livre, encontravam demandas regionais diferenciadas e divergentes: a imigração em São Paulo, os engenhos centrais no Nordeste, as ferrovias em toda parte. A partir do momento em que se rompia o consenso básico que sustentara o Império, o Estado como biombo externo para a manutenção da escravidão e garantidor interno de tráfico interprovincial, não era mais possível pensar políticas capazes de satisfazer interesses que se tornavam cada vez mais diferenciados. O federalismo, pois, ganhava espaço ao propor que essas questões (a questão servil e a questão de substituição do trabalho escravo) fossem definidas pelas unidades federadas de acordo com seus interesses.” http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM16.htm#art10%C2%A77 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM16.htm#art10%C2%A77 Federalismo brasileiro: origem, evolução e desafios Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 388, jul. 2020. 7 central evitando a perda da capacidade de atuação do poder federal, ao mesmo tempo em que contemplaram os interesses estaduais. O embate concentrou-se na disputa sobre a descentralização e o poder de regulação federal, em busca da garantia do poder estadual de gerir os interesses próprios. A instauração da figura do governador eleito eliminou um dos elos de transmissão das relações do centro com as unidades subnacionais e reforçou o poder das oligarquias locais. Elas passaram a ter no governador o representante direto da elite local, com maior liberdade de ação. O movimento, no entanto, não trouxe necessariamente alterações bruscas no papel ocupado pelo centro, uma vez que o poder do Império não era absoluto. Os espaços de atuação dos presidentes de província, como se viu, eram limitados e agiam articulados com a oligarquia local na defesa de seus interesses. Além disso, a esfera federal, em uma nação marcada pela assimetria do poder econômico, sustentou a tarefa de nuclear a negociação dos entes subnacionais em busca de apoio financeiro. O canal por onde transitavam os entendimentos mudou e o poder local ganhou força, graças aos governadores e às medidas constitucionais atribuindo aos estados a liberdade de serem regidos por sua própria constituição e leis, desde que respeitados os princípios constitucionais da União (Art. 63). Além de prover, por conta própria, as necessidades de governo e da administração (Art. 5º) e de resguardar para si os direitos não expressamente negados pela constituição (Art.65 § 2º), ao mesmo tempo em que os casos possíveis de intervenção federal (Art. 6º) e as matérias de sua competência exclusiva (Art. 7º) eram limitados. O poder estadual certamente cresceu com a República. Todavia, o novo formato, embora tenha interferido no peso relativo das esferas de governo, mostrou ser mais uma adaptação do que propriamente o abandono dos elementos constitutivos do modelo de articulação anterior. As mudanças podem ser mais bem representadas como alterações no balanceamento de forças entre União e estados, como forma de se ajustar à nova realidade política, do que a negação dos arranjos presentes sobre a questão regional, a distribuição da receita tributária, as relações da esfera federal com os estados e a articulação destes com os municípios, como se discute a seguir.11 O novo formato constitucional não inviabilizou a atuação e o poder de regulação do centro, mesmo no auge da descentralização do primeiro período republicano. A União, em conexão com os grandes estados, teve força de agir e de cobrar apoio político em troca de favores e de segurança. O processo ganhou vigor com a aprovação da Emenda Constitucional (EC) de 3/09/1926 revertendo parte da descentralização anterior12 e fortalecendo o poder central, que, com o passar do tempo, mudou parte da feição do federalismo criado em 1891, sem alterar outras questões do modus operandi existente (Torres, 2017). A distribuição dos recursos tributários em 1891 não sofreu alterações substantivas em relação ao Império. O discurso a favor da ampliação do poder financeiro estadual permeou os debates e não avançou graças à parcela dos constituintes preocupados em não inviabilizar a atuação federal. A decisão de manter a repartição da receita fiscal próxima a anterior preservou o poder da União de cumprir os preceitos básicos à sustentação dos interesses do conjunto da nação e evitou que a descentralização excessiva colocasse em risco a unidade territorial. (11) Dolhnikoff (2004, p. 299) chega a indagar se as novidades republicanas não foram muito mais um rearranjo do que uma fundação do federalismo brasileiro. (12) A medida afetou, sobretudo, os pontos referentes à intervenção nos estados (Art. 6º), à competência privativa do Congresso Nacional (Art. 34º) e às atribuições da justiça federal (Art. 59º). Francisco Luiz C. Lopreato Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 388, jul. 2020. 8 O comércio exterior continuou a ser a base do sistema tributário. A atribuição do imposto de exportação aos estados favoreceu as poucas unidades com vendas importantes ao exterior, enquanto que as outras ficaram presas à tributação do mercado interno e aos favores da União.13 O arranjo pouco se diferenciou da situação passada e preservou a posição de força do governo central de barganhar em posição favorável com as unidades de menor poder econômico e garantir os apoios políticos fundamentais à manutenção do pacto de poder. A decisão de deixar cada estado preso à própria capacidade financeira referendou o potencial desigual de acumulação interna e reforçou os quadros de disparidade regional e de desigualdade pessoal de renda entre cidadãos de diferentes regiões do País. As unidades com inserção internacional, sobretudo São Paulo e Minas Gerais, comandaram o processo de acumulação local, com autonomia, e, simultaneamente, influenciaram a esfera política central. Os estados de menor poder econômico, com autonomia restrita, buscaram a articulação com a esfera federal em troca de apoio político e usaram a liberdade de ação de modo a preservarem o pacto de poder local. A descentralização manteve, em linhas gerais, o modelo de relações entre o governo central e os estados. A autonomia estadual em conduzir os próprios interesses, aliada à ausência de políticas públicas federais de âmbito nacional, deu lugar a formas de negociação bilateral e ad hoc, pautadas por interesses específicos de cada unidade. A prevalência de um sistema de negociação envolvendo entes isolados, sem planos intermediários de negociação, restringiu os espaços de discussão de interesses comuns, propensos a gerar normas voltadas a enfrentar a desigualdade regional. O que restou foi o caminho de arranjos políticos fragmentados, de troca de favores por inserções pontuais no orçamento federal, marcado por relações bilaterais,União Estados, análogas às existentes no Império. A descentralização em favor dos estados trouxe nas entranhas o formato dominante das relações com os municípios. O movimento seguiu curso semelhante ao do pacto imperial (Nunes Leal, 2006). Os municípios, mesmo ocupando espaço destacado no arranjo político, permaneceram tutelados pelo poder estadual, graças ao direito de legislar sobre o montante disponível de recursos tributários e o alcance das administrações locais. Os dirigentes municipais atuavam com liberdade consentida no arranjo do poder local, uma vez que estavam sujeitos a darem o apoio exigido ao comando estadual, pois, em caso contrário, o suporte às ações locais arrefecia e o domínio do grupo político no município comprometia-se. A Constituição de 1891 chegou a debater propostas de autonomia municipal (Roure, 1927), mas prevaleceu a adoção de princípios gerais, ao atribuir aos estados o direito de se organizarem de forma a assegurarem “a autonomia dos municípios em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse” (Art. 68). A proposição genérica, ao não fixar os impostos de competência exclusiva municipal e deixar imprecisa a alçada do poder municipal, colocou a cargo da constituição de cada estado a tarefa (13) Cf. Lopreato (2002, p. 17) A precária base tributária obrigava-os a usar um sem-número de novos impostos e taxas, respondendo por parcela ínfima no total da receita, a recorrer a sistemáticos empréstimos externos e ainda a elevar a carga do imposto de exportação, acarretando sensíveis perdas de competitividade a seus produtos (Bouças, 1934). Esse procedimento mereceu, desde cedo, atenção por parte do governo. Em 1904, o Decreto-Lei n. 1.185 proibiu a cobrança dos impostos interestaduais, mas a base tributária estreita e a autonomia com que os Estados decidiam sobre as questões fiscais levaram o decreto a tornar-se letra morta. As receitas dos impostos interestaduais constituíam norma e representavam parcela importante da receita tributária de que os governos estaduais se valiam para atender aos gastos Federalismo brasileiro: origem, evolução e desafios Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 388, jul. 2020. 9 de definir a organização e o alcance da autonomia local. Ou seja, manteve-se a tradição anterior e se preservou o domínio das elites estaduais sobre os interesses dos entes locais.14 O momento político consagrou um modelo federativo em que a força da esfera federal mostrou-se em condições de responder demandas gerais, de modo a resguardar a unidade territorial e as políticas nacionais. Por outro lado, os estados ganharam força, sustentaram a articulação prioritária com a esfera federal e eram responsáveis por definir, com autonomia, as políticas próprias e o modelo das relações com os entes locais. O alcance dessa autonomia expressava-se na forma de inserção da unidade no arranjo federativo, presa, fundamentalmente, ao diferencial do poder econômico. O modelo federativo constituiu-se em um formato hierárquico, com a União no topo, com a tarefa de soldar interesses, preservar o conjunto e desencadear as políticas nacionais e os estados, diferenciados e voltados à defesa de interesses próprios, atuavam como intermediários, preocupados em influenciar o arranjo no plano federal e comandar a articulação com os municípios. 2.1. O federalismo alterado do regime Vargas O ponto de partida é compreender o federalismo no regime Vargas. Deve-se falar em nova etapa ou prevaleceram os elementos basilares do período anterior? A dificuldade está em saber se o ambiente político e o enfraquecimento das oligarquias subnacionais alteraram o arranjo federativo ou se, mais propriamente, ocorreu a adaptação dos elementos constitutivos do sistema ao crescimento do poder de regulação federal, de modo a preservar as suas características básicas e a continuar as disputas orientadas com o foco regional, a repartição da receita tributária e o modelo de relações do centro com os entes subnacionais e dos estados com os municípios. A dificuldade está em discernir o movimento dominante entre os dois processos antagônicos. De um lado, cresceu o poder de regulação do governo central e houve um rearranjo das forças políticas, com reflexos nas relações intergovernamentais. Por outro lado, são palpáveis os sinais do caráter limitado da modernização e de continuidade desses aspectos determinantes do pacto federativo. A simbiose desses processos mexeu na situação vigente sem caracterizar, necessariamente, outra etapa do federalismo. A tarefa de reconhecer o elemento dominante é complexa, pois o período trouxe mudanças marcantes da história política e econômica do País. A tese proposta é a de que as alterações, embora significativas, não romperam com a configuração de elementos centrais do arranjo federativo e as alterações da era Vargas alcançaram profundidade menor do que sinalizava a aparência do momento. O foco regional e características centrais do federalismo brasileiro foram preservadas (Souza, 1976). A expansão do poder do governo central, apesar das restrições à liberdade de ação dos entes subnacionais, conservou os mecanismos federativos da República Velha, que davam ao centro condições de usar a composição com os interesses regionais como meio de sobrevivência política. Os interventores, no novo arranjo político, caso não se integrassem com os interesses locais, tinham vida curta. Como colocou Souza (2006, p. 13-14), “A implantação de um Estado centralizado nesse período significou, de fato, uma redefinição dos canais de acesso e influência dos interesses do estado com o poder central. .... na prática, o rigor da vasta centralização administrativa foi de algum (14) Cf. Nunes Leal (2012, p. 49): “As Constituições estaduais não tardaram a ser reformadas; reduzindo-se o princípio da autonomia das comunas ao mínimo compatível com as exigências da Constituição federal, que eram por demais imprecisas, deixando os Estados praticamente livres, no regular o assunto.” Francisco Luiz C. Lopreato Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 388, jul. 2020. 10 modo moderado pelas acomodações políticas regionais e estaduais características do prévio federalismo brasileiro.” A mudança principal da era Vargas no arranjo federativo concentrou-se em reforçar o poder de regulação federal. O movimento, que já havia se colocado na emenda constitucional de 1926, ganhou fôlego nos anos seguintes. A Revolução de 1930 e a crise da economia cafeeira deram condições ao centro, aproveitando o momento de dificuldade das forças estaduais, de usar o cacife político para ampliar a capacidade de atuação federal em dar respostas às demandas da própria crise e alavancar um programa de desenvolvimento econômico e social. Como parte desse processo, o governo modernizou o aparelho estatal e criou instituições voltadas a garantir a estrutura material do poder central, capaz de atender às políticas nacionais de avanço social e de defesa do projeto de industrialização (Draibe, 1985). Os estados, com as finanças abaladas e sem condições de administrar a crise, cederam à esfera federal o poder de controlar os órgãos responsáveis pelos complexos exportadores e de ampliar os institutos e agências estatais direcionadas à defesa de produtos e interesses específicos (Nunes, 1997; Fonseca, 2012). O poder central ampliou o comando na definição da política econômica e estruturou, entre outros, os órgãos regulatórios das áreas de câmbio, comércio exterior, monetária, creditícia, seguros, além de criar empresas estatais para reforçar atuação do Estado no desenvolvimento da indústria e na superação do atraso econômico. O avanço da intervenção na área econômica ocorreu em simultâneo com a centralização administrativa e a criação deautarquias e comissões executivas, no intuito de ampliar a coleta de informações, instrumentalizar e racionalizar as ações do setor público. A criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP) e dos homônimos estaduais (daspinhos) buscou organizar a burocracia e fomentar os critérios de competência da administração pública (Fonseca, 2012). O protagonismo estatal teve reflexos nas relações intergovernamentais. Os interventores e os DASPs estaduais, articulados com a esfera federal, com tutela direta de Vargas, restringiram a autonomia estadual e ampliaram o controle central das diretrizes gerais do País. Contudo, o processo não negou a relevância das oligarquias estaduais. Os interventores, por si só, não deram fim ao arranjo das políticas regionais. As nomeações, em geral, eram de políticos dos próprios estados que, mesmo sem pertencerem à cúpula do poder, tinham ligações com esses interesses. A novidade estava na constituição de um sistema, articulado e presente em todas as unidades, cujo objetivo principal não era o de intervir nos “pilares econômicos do poder político nos estados” (Souza 1976, p. 88). A prioridade era construir novas formas de convivência e não desconsiderar a política local; ao contrário, agiam como intermediários das relações entre os níveis de governo e na costura dos interesses nacionais e regionais (Rodrigues, 1995). O fato de os interventores ocuparem espaços definidos pelo centro e não dependerem diretamente das articulações locais dava a eles certa autonomia, mas, nem por isso, tomavam decisões livremente. O risco de generalização de conflitos forçou os agentes a negociarem e a interagirem com os interesses das forças regionais. Ou seja, os interventores, apesar de nomeados pelo centro e de restringirem a força das oligarquias estaduais, não as anulavam e acabaram incorporados ao jogo político local e reproduzindo traços característicos do pacto federativo. O processo atingiu o auge em 1939, quando o DL n. 1202 atribuiu à União o direito de a União supervisionar a execução orçamentária e os atos administrativos dos entes subnacionais. A Federalismo brasileiro: origem, evolução e desafios Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 388, jul. 2020. 11 medida expôs o caráter centralizador e autoritário de toda a construção do aparato institucional.15 Todavia, um olhar atento indica que não se deixou de levar em conta o poder político local. A possibilidade de apelar ao Presidente da República, como meio de solucionar eventuais conflitos, revelou os limites das ações da burocracia federal e a resistência das burguesias regionais. O modelo de Vargas não pressupôs a desconsideração das alianças regionais como elemento central do arranjo federativo, mas, ao alçar o chefe do executivo a árbitro de conflitos, deu a ele protagonismo político como peça central do processo de negociação e de articulação de interesses, elementos necessários ao esforço de minimizar os conflitos na condução do regime. A engrenagem preservou as estruturas políticas das burguesias regionais e a força do poder estadual, que, mesma definida em novos termos e sujeita à forte presença da União, continuou a ocupar papel ativo no arranjo federativo, com capacidade tributária e espaço considerável no comando de gastos e na definição de seus interesses. O arranjo assegurou a centralização e a autonomia necessárias às propostas de modernização defendida no poder central e não ameaçou os interesses econômicos nem entrou em conflito aberto com as burguesias regionais (Souza, 2006). O arranjo federativo continuou marcado pela composição do pacto de poder dividido entre os estados fortes e fracos. Os estados de menor poder econômico, dependentes financeiramente e presos às formas de inserção no orçamento federal, ocuparam posição de menor relevância estratégica no jogo de poder e estavam sujeitos ao maior controle hierárquico. Nos estados mais fortes, donos de força econômica e militar, a subordinação aos desígnios federais era mais bem delimitada e o desrespeito a seus interesses tendia a potencializar os conflitos, situação que não favorecia ao pacto de dominação definido no centro. A distribuição da receita tributária oferece campo privilegiado de análise da correlação de forças e do arranjo federativo. O avanço da regulação no governo Vargas não provocou o movimento de centralização de recursos. O governo provisório, nos momentos iniciais, tratou de constituir a Comissão de Estudos Financeiros e Econômicos dos Estados e Municípios, com a tarefa de estudar a situação das finanças públicas e propor a reformulação do sistema tributário. O desarranjo fiscal e a precariedade da estrutura de arrecadação atrelada ao fluxo de comércio exterior exigiam a reformulação do quadro existente e a revisão das práticas orçamentárias, com controle das finanças federais e a regularização dos entes subnacionais. O governo limitou o poder das unidades criarem despesas acima da receita orçada e definiu o destino de 10% da arrecadação à educação primária e não mais do que 10% em segurança pública, bem como proibiu a cobrança de impostos ou taxas contrárias à circulação de riquezas no mercado nacional e a contratação de empréstimos externos sem prévia autorização federal. Além disso, (15) De acordo com o Art. 17 do referido decreto, compete ao Departamento Administrativo: a) aprovar os projetos dos decretos-leis que devam ser baixados pelo Interventor, ou Governador, ou pelo Prefeito; b) aprovar os projetos de orçamento do Estado e dos Municípios, encaminhados pelo Interventor, ou Governador, e pelos Prefeitos, propondo as alterações que nos mesmos devam ser feitas; c) fiscalizar a execução orçamentária no Estado e nos Municípios, representando ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores, ou ao Interventor, ou Governador, conforme o caso, sobre as irregularidades observadas; d) receber e informar os recursos dos atos do Interventor, ou Governador, na forma dos arts. 19 a 22; e) proceder ao estudo dos serviços, departamentos, repartições e estabelecimentos do Estado e dos Municípios, com o fim de propor, do ponto de vista da economia e eficiência, as modificações que devam ser feitas nos mesmos, sua extinção, distribuição e agrupamento, dotações orçamentárias, condições e processos de trabalhos; f) dar parecer nos recursos dos atos dos Prefeitos, quando o requisitar o Interventor, ou Governador; Parágrafo Único: Das decisões do Departamento o Interventor, ou Governador poderá recorrer para o Presidente da República. Francisco Luiz C. Lopreato Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 388, jul. 2020. 12 instituiu como motivo de intervenção nos estados a suspensão do pagamento do serviço da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos. (Schwartzman, 1982). A regulação das finanças públicas, mesmo com restrições ao manejo do sistema tributário, preocupou-se mais em racionalizar a prática tributária do que propriamente reduzir o poder fiscal dos entes subnacionais. Os sistemas tributários nas constituições de 1934 e de 1937 não alteraram significativamente a distribuição de 1891, mesmo tendo explicitado os impostos de competência municipal (ver Quadro 1). A estrutura do modelo adotado tratou de se adequar às condições do pós- crise mundial. A mudança do eixo dinâmico da economia ampliou a tributação da atividade interna no lugar das operações de comércio exterior, graças ao aumento dos impostos de renda e de consumo da esfera federal e a criação do IVC – imposto estadual sobre vendas e consignações (Oliveira, 2010). Quadro 1 Distribuição das competências tributárias Fonte: Constituições Federais de 1891, 1934, 1937 e 1946. A nova estrutura tributária continuou a privilegiar as burguesias regionais e a garantir a capacidade financeira dos donos do poder. A atribuiçãoaos estados do IVC, de grande potencial, no lugar do imposto de exportação, esvaziado com a crise mundial, manteve o perfil da distribuição regional da receita tributária e mostrou que a questão do desequilíbrio regional não se colocou como prioridade da estratégia varguista. A ausência de política específica de repartição das receitas, por meio de um sistema de partilha, referendou o quadro anterior de disparidade entre as unidades federadas. Os estados de renda elevada, ao se beneficiarem do uso do princípio de origem na definição do lugar da cobrança do IVC,16 concentraram parcela expressiva da receita tributária, enquanto as (16) O embate a respeito da cobrança do IVC exigiu a intervenção federal com seguidas normas, a começar com a Lei n. 187 de 1936, sobretudo art. 37, alterada posteriormente pelos DL n. 840 de 29-12-37; DL n. 348 de 1938; DL n. 915, de 1-12-1938 e Lei n. 1061 de 20-1-1939, preservando o princípio de origem quando se tratar de venda efetuada diretamente pelo próprio fabricante ou produtor. Constituição de 1891 Constituição de 1934 Constituição de 1937 Constituição de 1946 importação importação importação Importação entrada, sa ída e estada de navios (1) consumo, menos combustiveis consumo de qualquer mercadoria consumo taxas de selo renda, exceto renda cedular de imóveis renda e proventos de qualquer natureza impostos únicos (IUCL, IUEE e IUM) taxas de correios e telégrafos federa is transferência de fundo ao exterior transferência de fundo ao exterior renda e proventos de qualquer natureza outros tributos (2) atos emanados do gov. e de sua ecn. atos emanados do gov. e de sua ecn. transferência de fundo ao exterior nos Terri tórios nos Terri tórios selo sobre atos do governo e de sua ecn. taxas de correios e serviços federa is taxas de correios e serviços federa is extraordinários entrada, sa ída e estada de navios (1) entrada, sa ída e estada de navios (1) outros impostos a serem criados (1) é l ivre o comércio de cabotagem às mercadorias nacionais e às estrangeiras que já pagaram o imposto de importação taxas e contribuições de melhoria (2) desde que não contrariem a discriminação de rendas previs tas na Consti tuição. imóveis rura is e urbanos propriedade terri toria l , exceto a urbana; propriedade terri toria l , exceto a urbana propriedade terri toria l , exceto a urbana transmissão de propriedades transmissão de propriedade causa mortis transmissão de propriedade causa mortis transmissão de propriedade causa mortis exportação transmissão de propriedade imobi l iaria inter vivos transmissão de propriedade imobi l iaria inter vivos transmissão de propriedade imob.inter vivos industrias e profissões consumo de combustiveis de motor de explosãoincluído no imposto de consumo federa l incluído no imposto de consumo federa l taxa sobre correios e telégrafos vendas e cons ignações vendas e cons ignações vendas e cons ignações selo sobre atos emanados de seu governo e sua ecn.exportação, a l íquota máxima de 10% exportação, a l íquota máxima de 10% exportação, a l íquota máxima de 5% outros impostos , vetada a bi tributação (1) industrias e profissões , cabendo 50% aos municípiosindustrias e profissões , cabendo 50% aos municípiosselo sobre atos de seu governo e sua ecn. selo sobre atos emanados de seu governo e sua ecn.selo sobre atos emanados de seu governo e sua ecn.outros impostos , vetada a bi tributação (1) outros impostos , vetada a bi tributação (1) outros impostos , vetada a bi tributação (1) taxas e contribuições de melhoria taxas taxas (1) prevalece o imposto cobrado pela União quando a competência for concorrente A atribuição de competência fica a cargo l icenças l icenças l icença da Consti tuição estadual predia l e terri toria l urbano predia l e terri toria l urbano predia l e terri toria l urbano diversões públ icas diversões públ icas diversões públ icas cedular sobre renda de imóveis rura is transferido para a União e incorporado ao IR selo sobre atos de sua eco.ou competência taxas taxas indústria e profissões taxas e constribuições de melhoria Fonte: Constituições Federais de 1891, 1934, 1937 e 1946 Distribuição das competências tributárias União Estados Municípios Federalismo brasileiro: origem, evolução e desafios Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 388, jul. 2020. 13 outras unidades, com baixa capacidade tributária, continuaram dependentes de transferências ad hoc e de gastos do governo central. Além disso, a era Vargas, apesar de intervir em diferentes áreas, não provocou a centralização tributária. Os estados, mesmo com perdas de graus de liberdade, mantiveram a receita, com o controle sobre o principal imposto (IVC) e o direito de criar outros, com a repartição de 30% à União e de 20% aos municípios, vedada a bitributação, prevalecendo o tributo federal em caso de competência concorrente. A mudança restringiu-se à transferência do imposto de consumo sobre combustíveis de motor a explosão ao governo federal, que, em 1940, passou a ser denominado de Imposto Único sobre Combustíveis e Lubrificantes (IUCL) com a unificação das tarifas. Ou seja, a centralização de poder não teve como contrapartida a expansão da capacidade de arrecadação e de gasto da União. A evolução da receita tributária, desde 1907, como aponta o Gráfico 1, apresentou estabilidade, com oscilações pontuais, mas com tendência de ganho de participação dos governos subnacionais, acentuada no pós guerra. A queda do peso da arrecadação estadual nos anos iniciais do movimento de 1930, ocorrida devido à crise econômica e ao menor valor das exportações, foi logo superada e os estados voltaram a ganhar participação no período do Estado Novo. Gráfico 1 Distribuição da receita tributária Fonte: IBGE. Estatísticas Históricas do Brasil, 2. ed., 1990. Obs.: Valores em mil réis de 1907 a 1941 e milhares de cruzeiro de 1942 a 1945. As informações sugerem que os governos estaduais mantiveram a autonomia na arrecadação tributária e o projeto varguista não se fez à custa deles perderem capacidade financeira. A União, na tentativa de direcionar os gastos públicos e contemplar a estratégia federal, valeu-se da intervenção, por meio do daspinhos, na proposta orçamentária das esferas subnacionais, instrumento sujeito às intempéries da negociação política e à aceitação dos interesses regionais. A manutenção da mesma estrutura de repartição da receita tributária é importante indicativo da força dos pactos regionais, a sinalizar, como colocou Diniz (1999), os traços de continuidade, típicos de processos de transição em que se defrontam forças contraditórias e movimentos com direções não necessariamente convergentes. O embate com o pacto oligárquico e o uso do Estado como indutor do crescimento industrial ocorreu por meio de alterações de natureza político Fonte: IBGE - Estatísticas Históricas do Brasil, 2ª ed. ,1990 Obs: Valores em mil réis de 1907 a 1941 e milhares de cruzeiro de 1942 a 1945 DISTRIBUIÇÃO DA RECEITA TRIBUTÁRIA 0,00 10,00 20,00 30,00 40,00 50,00 60,00 70,00 19 07 19 10 19 13 19 16 19 19 19 22 19 25 19 28 19 31 19 34 19 37 19 40 19 43 19 46 19 49 19 52 19 55 19 58 19 61 19 64 UNIÃO ESTADOS MUNICÍPIOS Francisco Luiz C. Lopreato Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 388, jul. 2020. 14 institucional, com o propósito de dar espaço na coalizão de poder aos atores ligados à nova ordem, sem desalojar as antigas elites, ainda presentes e atuantes. A União, sem a centralização dos recursos tributários e financeiros nem o domínio de empresas públicas capazes de construir a articulação com os estados, não dispôs de meios de direcionar os gastos públicos. O poder federal circunscreveu-se ao controle político dos órgãos diretivosestaduais, que, embora longe de ser desprezível, tinha limites em razão da obrigatoriedade de negociar com os interesses locais o destino dos recursos e de respeitar os seus espaços econômicos, a fim de evitar atritos e o risco de não concretização de acordos necessários à sustentação do poder político. Os estados, nesta forma particular de articulação, preservaram, como colocou Camargo (1999), o papel de atores políticos relevantes e palco da disputa entre interesses tradicionais e setores emergentes. Os conflitos expressavam-se por meio dos novos canais de interlocução com a esfera federal e cabia à União mediar as divergências e conciliar o antigo e o novo. O jogo político ganhou contornos específicos, de acordo com o peso econômico e a tradição de cada estado. Os mais ricos tinham maior autonomia no controle e direcionamento dos gastos, pois, embora presos à interlocução com os agentes federais, as negociações se faziam no interior do estado, com recursos majoritariamente próprios e de livre destinação. As unidades de menor poder econômico, por sua vez, dispunham de menor autonomia financeira graças à baixa receita tributária e à dependência de inserções no orçamento federal, o que as colocava como reféns e submissas à vontade do centro, em razão da necessidade de trocar favores políticos por acesso a recursos. As relações entre estados e municípios, embora marcadas por movimentos típicos de centralização política e administrativa também sofreram poucas alterações na comparação com o período anterior. A experiência com os departamentos de municipalidades, criados em 1934, como órgãos estaduais responsáveis por oferecerem assistência técnica e coordenarem as atividades de elaboração e execução orçamentária, prática ampliada durante o Estado Novo com os DASP, manteve sem alterações substantivas o antigo esquema de tutela e de submissão aos estados. As mudanças institucionais, particularmente a discriminação das competências tributárias e a adoção do princípio da eletividade 17 da Constituição de 1934, logo revogado em 1937, não alteraram, como colocou Nunes Leal (2012), o caráter da relação de subordinação municipal aos interesses estaduais. Os seus dirigentes, mesmo com liberdade no trato local, dependiam das indicações de aliados aos numerosos cargos em órgãos estaduais e federais e do acesso a verbas estaduais para realizarem os gastos, manterem o controle político local e se perpetuarem no poder. Estes mecanismos deixavam os gestores presos à obrigatoriedade de sustentarem as alianças e de se sujeitarem à proteção do governador, a fim de assegurarem espaços extralegais de autonomia no trato das questões municipais e de receberem apoio à continuidade no poder. Uma vez que a perda de acesso a esses instrumentos dava chance a outros grupos de ascenderem e tomarem o controle do poder local. O risco de alijamento garantia a subordinação dos dirigentes ao arranjo político estadual e soldava o compromisso de apoio mútuo. (17) Os municípios da capital e de estâncias hidro minerais, no entanto, poderiam ser nomeados pelo governo do Estado (Art 13 § 1). Federalismo brasileiro: origem, evolução e desafios Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 388, jul. 2020. 15 2.2. O avanço do poder estadual: 1946 a 1964 A queda de Vargas alterou a composição política e institucional vigentes e deu lugar à volta da democracia, com a retomada do Congresso Nacional e das eleições dos governadores. O novo quadro político e econômico provocou mais um processo de adaptação do que a efetiva transformação da ordem federalista. O olhar sobre o avanço da regulação federal, a relevância do papel dos governos estaduais e o modelo de relações baseadas na composição dos interesses regionais, a repartição tributária e a dinâmica de articulação entre estados e municípios, elementos constitutivos da ordem federativa, revela semelhanças interessantes com os dois ciclos tratados anteriormente. O paralelo entre os três momentos, resguardadas as peculiaridades próprias de cada um deles, sugere que esses movimentos possam ser classificados como integrantes da mesma etapa longa (1891/1964), por apresentarem características comuns marcantes, em especial o peso representativo dos estados, no arranjo federativo. A valorização do legislativo e o revigoramento de diferentes atores, ao lado do avanço de forças regionais e da presença de grupos de interesses específicos, abriram amplo campo de reivindicação de favores e verbas públicas em troca de votos e de apoio às políticas federais, alterando a configuração dos canais de negociação. As ações deixaram de ser centralizadas na figura do mandatário máximo e se diluíram nos escaninhos do poder, dimensionados de acordo com a força política e a capacidade de influência de cada ator, revigorando o espaço dos governadores. A carta de 1946 não buscou reconfigurar as relações federativas nem alterar elementos constitutivos da federação. O sistema tributário, como aponta o quadro 1, não sofreu mudanças substantivas. A distribuição de tributos permaneceu praticamente a mesma e os estados preservaram a autonomia de manejar os instrumentos de política tributária e fiscal e o direito de criar impostos, desde que não concorrentes com a esfera federal e sujeitos a distribuição de 20% do total arrecadado à União e 40% aos municípios; enquanto que os ganhos dos municípios não expandiram a arrecadação a ponto de alterar a situação em que viviam. A participação estadual na receita tributária cresceu a partir de 1947 e ocupou espaços da União, graças à expansão econômica, ao potencial de arrecadação e à liberdade de manipular as alíquotas do IVC. Os municípios, por sua vez, sustentaram posições próximas à do período anterior até o final da década de 50, quando, beneficiados por nova legislação, ampliaram a arrecadação (ver Gráfico 1). A volta do regime democrático recolocou os governadores como representantes dos interesses locais e alterou os canais de negociação, mais deixou intacto o modelo federal de manter a interlocução e negociar acordos e verbas em troca de apoios. A eliminação do aparato arbitrário do Estado Novo, com a retirada dos interventores e a perda de influência do sistema DASP, comprometeu o poder federal de influenciar o direcionamento de parcela dos gastos dos governos subnacionais. Como o governo não dispunha de meios de interferir nas decisões das esferas subnacionais, por não contar com a concentração da receita tributária, o controle de fontes de recursos financeiros, a presença de empresas ou regras de controle das finanças públicas, exceto à regulação de empréstimos externos, restou a Vargas o caminho da interferência direta na tentativa de influenciar a aplicação dos gastos. O fim do expediente autoritário trouxe de volta o arranjo tradicional, em que os estados, de acordo com o seu poder econômico, dominavam os recursos próprios e tinham autonomia de decisão sobre os gastos. Francisco Luiz C. Lopreato Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 388, jul. 2020. 16 Por outro lado, o aparato da era Vargas de controle do poder regulatório e do comando dos instrumentos da política econômica não sofreu alterações, dando sequência à marcha, presente pelo menos desde 1926, de dar ao Estado condições de ditar o processo de industrialização e de centralizar as decisões sobre as diretrizes do País (Draibe, 1985). Assim, a União, mesmo perdendo a força abusiva do Estado Novo, sustentou o comando das estratégias de crescimento e da gestão de diferentes áreas, sem ferir a autonomia e a capacidade de os estados manipularem livremente os recursos fiscais, orientarem os gastos de acordo com os interesses próprios, incorrerem em déficits públicos e garantirem as formas de reprodução do arranjo de poder local e de inserção no pacto federativo.O movimento, como era de praxe, não se colocou de forma simétrica. O aumento da arrecadação estadual distribuiu-se de forma desigual entre as regiões do país. A concentração da atividade econômica e a cobrança do IVC na origem, base da arrecadação estadual, favoreceram o aumento da arrecadação na Região Sudeste, em detrimentos das demais regiões (ver gráfico 2), consolidando a assimetria econômica e o sentimento de iniquidade da autonomia estadual entre os membros da federação (Kugelmas, 1986). Gráfico 2 Arrecadação do Imposto sobre Circulação Mercadorias e Serviços por Grandes Regiões Fonte: IBGE. Estatísticas do Século XX. A estratégia de industrialização, ao não se ater ao problema, reforçou esse traço constitutivo do federalismo brasileiro, responsável por delimitar os espaços de atuação das diferentes unidades. Os estados fortes, impelidos pela autonomia financeira e liberdade política, ocuparam lugar de destaque no centro das decisões sobre a dinâmica do processo de desenvolvimento, associados à União. O uso de recursos próprios e, com frequência, de déficits fiscais, além da presença crescente de bancos estaduais, deu a eles condições de acompanharem a estratégia traçada no plano federal, de ampliarem gastos e de apoiarem a iniciativa privada, bem como realizarem os investimentos requeridos pelo crescimento industrial, sobretudo, na fase do Plano de Metas. Por sua vez, os estados de menor poder econômico tiveram de buscar formas específicas de articulação com a esfera federal, a fim de assegurarem os seus interesses e a reprodução do pacto de poder local. Assim, as formas de cooptação, por meio de diferentes expedientes (doações, incentivos e subsídios, concessões, regulamentação de privilégios, e outros), tornaram-se prática generalizada e ganharam destaque como instrumentos de composição política (Camargo, 1992). 1947 1948 1949 1950 1951 1952 1953 1954 1955 1956 1957 1958 1959 1960 1961 1962 Fonte: IBGE - Estatísticas do século XX Arrecadação do Imposto sobre Circulação Mercadorias e Serviços por Grandes Regiões 0,00 10,00 20,00 30,00 40,00 50,00 60,00 70,00 80,00 19 42 19 43 19 44 19 45 19 46 19 47 19 48 19 49 19 50 19 51 19 52 19 53 19 54 19 55 19 56 19 57 19 58 19 59 19 60 19 61 19 62 19 63 19 64 Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste Federalismo brasileiro: origem, evolução e desafios Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 388, jul. 2020. 17 Este arranjo preservou o poder de barganha federal nas diferentes arenas decisórias, já que se tornou o caminho pelo qual a União ordenava o convívio de unidades desiguais, com interesses distintos, de modo a sustentar o balanço político entre a região industrializada e as demandas de unidades periféricas e de setores rurais. A barganha política colocou a esfera federal como arena central na negociação com as elites regionais e lhe deu condições de atender as demandas regionais ou setoriais e, simultaneamente, afiançar o projeto de desenvolvimento assentado na indústria. Como colocou Campelo de Souza (1976), assim como o Estado Novo não destruiu a estrutura federativa, a Constituição de 1946 (CF46) não esvaziou a força do governo central e garantiu a ampliação de suas atribuições.18 O sistema de partilha criado na CF46 não tratou de enfrentar a assimetria regional. O mecanismo, diante da nova configuração política, buscou construir meios de costurar o arranjo entre forças desiguais e, embora precário, assegurou recursos a áreas específicas e aos entes subnacionais. As normas institucionais obrigaram o governo federal a direcionar um volume mínimo de gastos a diferentes áreas. Os setores de energia, transporte e combustíveis foram contemplados com a parcela de 60% da arrecadação dos impostos únicos destinados aos estados, DF e municípios (art.15). Além disso, 3%, pelo menos, da receita tributária teriam de ser gastos, em caráter permanente, na execução do Plano de Defesa dos efeitos da seca no NE e com as obras e serviços de assistência econômica e social (art.198). Outros 3% foram destinados, por período mínimo de 20 anos, à execução do plano de valorização econômica da Amazônia (art. 199) e 1% no plano de aproveitamento das possibilidades do Rio São Francisco e seus afluentes (art.29 das disposições transitórias). Finalmente, 10% do produto do imposto de renda seriam distribuídos, em parte iguais, aos municípios, excluídos os das capitais, com a obrigação de, pelo menos a metade, ser aplicado em benefício de ordem rural (art. 15). A formação de verdadeiro orçamento regional no interior do orçamento federal serviu de instrumento de composição política e conciliou o atendimento de interesses dos estados do norte e Nordeste e de áreas específicas, a fim de amealhar apoios no Congresso, reproduzindo, em novos termos, as práticas anteriores. Além disso, o papel dos municípios no arranjo federativo, apesar deles obterem alguns ganhos no retorno à democracia, não se alterou substancialmente. A CF46 garantiu autonomia na eleição de prefeitos e vereadores, liberdade de decretar, arrecadar e aplicar o valor dos tributos de sua competência, bem como de organizar os serviços locais. O acréscimo de receitas, como colocado acima, com a participação nos impostos únicos e no imposto de renda deu alento ao governo local, apesar do relativo controle sobre o direcionamento dos recursos. Todavia, as mudanças, segundo Nunes Leal (2006), não tiveram a força necessária de alterar o quadro até então vigente. A autonomia política pouco transformou a realidade, já que a restrição legal de outros tempos ”nunca chegou a ser sentida como problema crucial, porque sempre foi compensada com uma extensa autonomia extralegal, concedida pelo governo do Estado ao partido local de sua preferência” (p.126). No plano financeiro, o ganho revelou-se insuficiente e não se refletiu em aumento de participação na distribuição da receita tributária. (18) Como parte desse processo, a Constituição de 1946, art. 58, cumpriu papel relevante ao definir um modelo de representação política no Congresso, com um mínimo de 7 representantes por unidade da federação e um máximo distante da proporcionalidade populacional, capaz de preservar o peso político de segmentos de menor poder econômico (Campelo de Souza, 2006). Francisco Luiz C. Lopreato Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 388, jul. 2020. 18 A postura subalterna e a supremacia do poder estadual nos entendimentos com as forças locais em muito se assemelharam ao dos ciclos anteriores. A falta de recursos transformou em realidade processos variados de tutela, com os governos locais dependentes do apoio estadual para levar adiante os seus projetos. Assim, o ganho formal de autonomia política não alterou o modelo de inserção municipal e o desenho federativo. Os municípios, frágeis financeiramente, continuaram com as ações atreladas aos movimentos dos dirigentes estaduais, responsáveis, hierarquicamente, por delinearem as alianças políticas e a condução dos gastos e investimentos. Figura 1 Quadro federativo A nova configuração política deu força a estados e municípios e preservou outros elementos determinantes do arranjo federativo (Figura 1). A União, mesmo com a perda do arbítrio e menor participação na receita tributária não perdeu o comando da política econômica e da estratégia de desenvolvimento, além de manter a capacidade de costurar o pacto federativo. O uso de favores orçamentários e de formas de relações intergovernamentais, em um país marcado por unidades de força assimétrica, manteve-se intacto. Mudou o canal de articulação. Os governadores preencheram o espaço antes ocupado pelos interventores na intermediação com a elite estadual em torno das decisõesde gastos, sem alterar, no entanto, o caráter regional das negociações e a autonomia desigual dos governadores. Os estados, fortalecidos, cresceram em termos políticos e financeiros, sustentaram papel estratégico no arranjo federativo. O movimento pendular da arrecadação tributária os favoreceu sem mexer no modelo de relações intergovernamentais e nos mecanismos delineadores da federação. A relação com a esfera federal seguiu os traços tradicionais e com os municípios, mesmo perdendo o direito legal de intervenção na escolha dos dirigentes locais, conservou padrão semelhante, com os estados preservando a tarefa de intermediários nessa articulação por comandarem o poder econômico, elemento chave na definição do arranjo político local. A dependência de acesso a verbas e financiamentos, além de espaços em cargos de nomeação política, continuou a ditar as vinculações dos governadores e dos grupos locais, centrais na composição do arranjo político e no domínio do poder local. 3. O regime militar e o novo arranjo federativo (1964-1988) O golpe militar de 1964 sinalizou um momento de ruptura e de inauguração de nova etapa do federalismo brasileiro. O corte analítico decorre, em parte, da alteração do regime político e do fato de o governo central, com base nas eleições indiretas, tomar para si o direito de nomear os governadores e os prefeitos das capitais. Porém, estas condições, por si só, não são suficientes. O fator central está na força de o regime militar alterar elementos basilares da ordem anterior e redefinir o pacto federativo, com a redistribuição dos recursos tributários e o domínio de fontes financeiras; a alteração das relações do governo federal com os governos subnacionais, com a institucionalização de um sistema de partilha e o maior controle federal sobre a parcela dos gastos públicos por meio das União Estados Municípos Federalismo brasileiro: origem, evolução e desafios Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 388, jul. 2020. 19 transferências vinculadas e os empréstimos condicionados; a reconfiguração das relações entre as estatais federais e as suas congêneres estaduais e a imposição de regras de conduta aos governos subnacionais. O movimento nuclear desse processo foi a concentração de recursos fiscais e financeiros na esfera federal. No plano fiscal, a reforma do sistema tributário elevou a carga tributária e aumentou o peso da União, que saltou de 40,6% em 1966 para 51,6% em 1974, enquanto a dos Estados caiu de 46,3% para 35,2%. A concentração tributária no centro alterou traço marcante do federalismo fiscal brasileiro. Os estados que, desde o início da República, mantiveram (ou expandiram) a participação no valor da receita tributária, perderam pontos na distribuição dos recursos disponíveis e ampliaram a dependência em relação à esfera federal, apesar de a reforma seguir a tradição histórica e atribuir a eles o tributo de maior potencial de arrecadação, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICM), beneficiando as unidades de maior potencial econômico. Por outro lado, várias medidas favoreceram o controle da União sobre os recursos financeiros. A reestruturação da dívida pública com as Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional (ORTN), o uso das cadernetas de poupança com correção monetária, a criação das poupanças compulsórias (FGTS, PIS-PASEP) e a busca de financiamento no mercado externo (Resolução 63/1967) deram à esfera federal o manuseio de parcela expressiva da poupança financeira. A centralização financeira ganhou contornos finais quando a Lei Complementar n. 12, de novembro de 1971, delegou ao Banco Central o comando sobre a dívida pública e a liberdade de elevar a colocação de títulos e de arcar com os encargos decorrentes, ampliando a possibilidade de financiamento público. O modelo de atuação federal transformou-se com o domínio dos recursos fiscais e financeiros. A União, embora tenha sempre ocupado posição de destaque no controle da política econômica e da estratégia de desenvolvimento, em nenhum outro momento teve à disposição massa de recursos, mecanismos de financiamento e domínio de parcela das despesas correntes e de capital tão relevantes. No plano fiscal, o montante de arrecadação permitiu a criação de ampla gama de fundos, programas, subsídios e incentivos fiscais em favor de áreas estratégicas da política de desenvolvimento, bem como a expansão dos investimentos da administração direta. No plano financeiro, o direito de alocar as verbas disponíveis levou ao uso dos bancos e agências financeiras públicas como veículos de direcionamento de crédito a áreas de interesse e, como se verá adiante, fortaleceu a autoridade sobre os gastos das esferas subnacionais.19 Além disso, a criação de novas entidades e a política de valorização dos preços públicos alçaram as empresas estatais, reestruturadas financeiramente, à condição privilegiada de poderoso instrumento da política de desenvolvimento e responsáveis por parcela importante dos investimentos públicos. A centralização de recursos fiscais e financeiros, somada ao controle da intermediação financeira e ao papel das empresas estatais, redefiniu o espaço do governo central na federação brasileira: acumulou parcela expressiva dos gastos e criou meios de intervir na alocação das despesas das outras esferas de governo. A União pode, assim, elevar e direcionar os investimentos a áreas consideradas estratégicas, bem como atuar na costura do pacto federativo a partir da negociação de verbas a favor dos interesses regionais. (19) Ver Lopreato (2013, cap. 2) para a discussão ampliada desses pontos. Francisco Luiz C. Lopreato Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 388, jul. 2020. 20 A barganha por verbas não constituiu novidade. A diferença agora estava no montante de recursos à disposição do centro e nos caminhos por onde se realizavam. A negociação, até então centrada na peça orçamentária, incorporou outros instrumentos e valores inusitados. O domínio sobre as regras de acesso ao dinheiro, associado à dependência de estados e municípios da liberação de verbas, reforçou o papel do centro como lugar privilegiado do pacto de poder, em condições de alterar o modelo de relacionamento intergovernamental e de fazer valer a sua vontade em decisões das esferas subnacionais, além de, no plano da política, usar a cassação de políticos como meio de renovar a configuração dos arranjos locais. O figurino oficial questionou a autonomia dos entes subnacionais no trato dos gastos públicos. O sucesso do projeto de industrialização, na visão dominante, dependia da racionalidade dos gastos federais e da imposição de dinâmica semelhante aos entes subnacionais. O centro buscou então definir normas estritas de obediência à aplicação do conjunto de verbas negociadas e de repasses federais, de modo a eliminar o livre uso dos recursos, delinear o ritmo e o volume dos gastos dos entes subnacionais e garantir os investimentos em setores estratégicos ao crescimento (Resende, 1982). Os caminhos de intervenção multiplicaram-se. O sistema de partilha, alterado em relação ao esquema débil até então existente, criou critérios de distribuição de verbas do Fundo de Participação dos Estados (FPE) e do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) direcionados a atuar como instrumento de redistribuição institucional de renda. O FPM buscou favorecer os municípios de pequeno porte, vistos como os mais pobres, com um volume mínimo de renda. O FPE tratou de compensar parte do potencial de arrecadação do ICM nos estados de maior nível de renda e de responder à questão regional transferindo parcela preponderante da verba às unidades de baixa renda, com a determinação inicial de aplicar, pelo menos, 50% em despesas de capital. Enquanto as outras formas de transferências constitucionais,
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