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1 COTAS RACIAIS NO INTERIOR DO PROUNI: uma reflexão sociológica sobre seus significados Gabriel Gustavo Tosoni Milanez Mestrando em Sociologia, Universidade de São Paulo (USP), Bolsista do CNPq GT 9: Relações Raciais no Brasil Contemporâneo: Desigualdades, Políticas Públicas e Construções Identitárias RESUMO Embora as ações afirmativas no ensino superior brasileiro tenham emergido num contexto de fortes demandas raciais, os critérios de elegibilidade pautados em renda e classe ganharam cada vez mais centralidade no desenho dessas políticas públicas. Assim sendo, as cotas raciais são comumente discutidas no ensino superior público (embora muitas vezes tendo sua legitimidade questionada), mas sua existência é muito pouco lembrada no interior do ProUni e das instituições privadas. Nesse cenário, o presente trabalho se propõe a discutir especificamente o significado das cotas raciais oferecidas via ProUni a partir de duas leituras: i) breve revisão bibliográfica sobre a articulação entre desigualdades educacionais entre negros e brancos e ações afirmativas no Brasil; ii) discussão sobre as percepções de egressos beneficiados pelo ProUni da cidade de São Paulo sobre as cotas raciais no interior do programa. A partir do cruzamento de relatos de bolsistas brancos, bolsistas negros que não utilizaram as cotas raciais do ProUni e de bolsistas negros que as utilizaram, foi possível concluir que a condição de bolsista aliada à condição de cotista pode moldar experiências particulares de estigmatização no ensino superior. Palavras-chave: ProUni, cotas raciais, estudantes negros 1. Desigualdades educacionais entre negros e brancos no Brasil Apesar dos inegáveis êxitos brasileiros em seus indicadores econômicos e sociais nos últimos anos, consideráveis desigualdades educacionais ainda persistem no país. Na base da pirâmide da população, o acesso ao ensino fundamental está praticamente universalizado: 98,2% das crianças entre 6 e 14 anos estão na escola. Entretanto, os números referentes aos brasileiros acima de 15 anos de idade sinalizam uma realidade distinta: estão estudando 83,7% dos jovens na faixa de 15 a 17 anos, 30,3% dos jovens na faixa de 18 a 24 anos e 5,1% dos adultos com 25 anos ou mais1 – lembrando sempre que esses indivíduos podem não estar necessariamente cursando o nível educacional ideal para sua idade2. Diversos autores demonstram como o ensino médio é especialmente problemático em termos de evasão escolar – sobretudo para os mais pobres e negros (Neri, 2009; Lima, 2012). Sem concluir este nível de ensino, não é possível se tornar elegível ao ensino superior – momento em que, segundo as estatísticas, o incremento de renda e as chances de mobilidade social se fazem perceber de maneira mais acentuada no Brasil (Neri, 2009; Barros et al, 2010). 1 Dados do Censo Demográfico 2010 disponíveis no site do IBGE: www.ibge.gov.br . 2 Utilizando dados da PNAD 2008, Lima (2012) aponta que em relação ao nível educacional ideal para sua idade, apenas 50,4% dos jovens entre 15 e 17 anos está no ensino médio (enquanto 31% ainda está retido no ensino fundamental) e apenas 13,7% dos jovens entre 18 e 24 anos estão na graduação (sendo que 11% ainda está no ensino médio e 69,5% já não estuda mais). 2 Embora afetem tanto pobres quanto negros, é essencial demarcar que as desigualdades educacionais estruturam-se de maneiras distintas a partir dos critérios de raça e de classe. Tal interpretação ganhou força especialmente nos anos 1970, quando autores como Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle e Silva opuseram-se a teses anteriores, a exemplo da de Pierson3 - a qual defendia que o Brasil seria uma sociedade multicultural de classes, onde, portanto, não existiria raça tampouco preconceito racial (Guimarães, 2003) – para propor a tese que raça não seria sinônimo de classe, mas sim “um dos critérios mais relevantes na regulação dos mecanismos de recrutamento para ocupar posições na estrutura de classes.” (Hasenbalg, 2005, p.200). Desse modo, entendiam que as desigualdades raciais tinham origens estruturais (sendo um traço persistente da sociedade capitalista) e refutavam as premissas liberais segundo as quais unicamente o mérito individual seria determinante nas chances de vida dos indivíduos no mercado competitivo, posto que características adscritivas como raça teriam sim impacto nas oportunidades educacionais, ocupacionais, de renda e mobilidade dos brasileiros. O fato de raça ser um critério que contribui para a estruturação da sociedade de classes explicaria por que negros têm acesso a níveis de escolaridade inferiores e mesmo os que conseguem avançar a estágios mais elevados tendem a ter menor retorno em sua conversão em postos de trabalho e renda. Nas últimas décadas, outros estudos também abordaram essa problemática ao evidenciarem o número reduzido de negros em espaços universitários de prestígio. Teixeira (2003) investigou as relações raciais numa universidade federal no Rio de Janeiro na década de 1990 e uma de suas principais conclusões foi que no ambiente universitário, assim como na sociedade brasileira, os negros tendem a ocupar as posições em cursos menos concorridos e de menor prestígio (como enfermagem, matemática, arquivologia, ciências sociais, pedagogia e serviço social) e ter presença muito reduzida em cursos de prestígio (como medicina, odontologia, engenharia, informática, ciências econômicas e psicologia). Guimarães (2008b) estudou o caso da Universidade de São Paulo (uma das mais prestigiosas do país) no início dos anos 2000 e demonstrou como a proporção de negros no seu corpo discente era bastante inferior à sua distribuição na população do estado de São Paulo: enquanto na USP havia 8,3% de negros (sendo 7% pardos e 1,3% pretos), em São Paulo correspondiam a 25,3% da população (sendo 20,9% de pardos e 4,4% de pretos). 3 Donald Pierson já havia sido contestada por autores como Florestan Fernandes e Roger Bastide nos anos 1950. No entanto, aqui trabalharemos com foco específico nas críticas e teorias de Hasenbalg (2005) e Hasenbalg & Silva (1990). 3 Olhando para essa questão no sistema educacional brasileiro atual, Lima e Prates (2015) compararam o Censo Demográfico de 2010 aos de 1980, 1991 e 2000, concluindo que embora os efeitos das políticas sociais dos últimos anos já se façam perceber na diminuição das desigualdades raciais, elas ainda são consideráveis. Nesse sentido, apontam que embora o acesso ao ensino fundamental esteja praticamente universalizado independentemente de classe e raça, na faixa etária dos 15 a 17 anos, estão no ensino médio 68,1% dos brancos, 49,3% dos pretos e 53,7% dos pardos. No que se refere aos jovens de 18 a 24 que cursam o ensino superior, dentre os 20% mais pobres, a taxa de escolarização dos brancos é de 25,5%, dos pretos de 8,1% e dos pardos de 8,4%; dentre o grupo dos 20% de maior renda, 86,6% dos brancos vão para o ensino superior, 73,5% dos pretos e 76,5% dos pardos. Como conseqüência do processo de acumulação progressiva de desigualdade ao longo da trajetória dos indivíduos negros, os bancos do ensino superior ainda são ocupados por 75,3% de brancos e apenas 24,7% de negros. E mais: nos cursos de maior prestígio, o número de negros é ainda menor – por exemplo: nos dados agregados sobre os estudantes de medicina, direito e engenharia, 82,1% são brancos e apenas 17,9% são negros; enquanto no grupo de estudantes de história, educação eletras (de menor concorrência e prestígio), 64,3% são brancos e 35,7% são negros, A partir desse cenário inicial, é possível enxergar com maior nitidez como a problemática de desigualdade de acesso entre brancos e negros ao ensino superior tem relevância na literatura sociológica brasileira, assim como compreender algumas premissas que vieram a justificar a incorporação das ações afirmativas na pauta pública brasileira. 2. Interface entre raça e classe nas ações afirmativas brasileiras Dado o contexto acima retratado, no início dos anos 2000, o Estado Brasileiro recebia pressões cada vez mais fortes para promover a ampliação do acesso ao ensino superior. Por um lado, o movimento negro ganhava crescente força como um ator político e reivindicava ações afirmativas no ensino superior (Lima, 2010), sobretudo após a “Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância” (ocorrida em Durban, na África do Sul, em 2001), onde o Brasil se comprometeu, juntamente com outros países, a implementar ações afirmativas educacionais com vistas ao combate às desigualdades raciais (Guimarães, 2008a). Por outro lado, o Estado ainda recebia crescentes pressões populares por mais vagas no ensino superior (dado o número crescente de egressos do ensino médio), era alvo de intenso lobby da iniciativa privada de ensino (que havia criado um número excessivo de vagas na década de 1990 e precisava de ajuda do governo para preenchê-las), além de receber exigências do mercado internacional para manter gastos públicos baixos como forma de garantir 4 superavit primário e confiança nas bolsas internacionais (razão pela qual aumentar gastos públicos com educação poderia se tornar um problema macroeconômico). As ações afirmativas foram, então, algumas das principais respostas dadas pelo Estado brasileiro na tentativa de acomodar todas essas demandas. Todavia, dado os interesses divergentes que se articulavam naquele momento, isso não ocorreu sem uma série de tensões. No ensino superior público, mesmo sem uma política centralizada pelo Estado no início dos anos 2000, algumas instituições passaram a adotar reserva de vagas ou bônus no processo seletivo àqueles que se autodeclarassem pretos, pardos e indígenas - podendo este critério ser conjugado a renda e proveniência de escola pública no ensino médio. No que concerne as instituições privadas de ensino superior, o ProUni foi o principal expoente de ações afirmativas e, dadas as razões acima expostas, existe relativo consenso na literatura acadêmica brasileira em caracterizá-lo, em termos institucionais, como “uma engenharia administrativa que equilibra impacto popular, atendimento às demandas do setor privado e regulagem das contas do Estado” (Catani et al, 2006, p.127). Após 10 anos de implementação, em 2014, o programa havia oferecido 1.497.225 vagas, sendo: 1.049.645 (70%) integrais e 447.580 (30%) parciais4. É interessante observar que enquanto as ações afirmativas no ensino superior público ganharam destaque sobretudo pelo critério racial de seleção5, na iniciativa privada, os critérios de renda e classe sempre estiveram em primeiro plano. A partir da Lei n. 11.096 (sancionada em 13 de janeiro de 2005), ficou estabelecido que para concorrer a uma vaga no ensino superior via ProUni, os candidatos deveriam: 1) ter cursado o ensino médio na rede pública de ensino ou em escola privada na condição de bolsista integral; 2) ter renda familiar per capita de até um salário mínimo e meio para bolsas totais ou renda familiar per capita de até três salários mínimos para bolsas parciais; 3) podem se candidatar às vagas portadores de deficiência ou professores da rede pública de ensino – sendo que estes últimos estão dispensados de comprovação de renda e podem optar por cursos de licenciatura, normal superior e pedagogia. A partir de 2007, passaram a existir bolsas reservadas a estudantes que se encaixam nos critérios de seleção do programa e se declaram pretos, pardos ou índios6. Desse modo, merece destaque a constatação que embora as ações afirmativas tenham se fundamentado no Brasil a partir de fortes demandas para redução das 4 Informações retiradas do site do Ministério da Educação: http://siteprouni.mec.gov.br/ 5 Nunca é demais lembrar que na ausência de unificação de uma política nacional para tais instituições, muitas delas optaram por cotas raciais condicionadas a critérios socioeconômicos. 6 Todos os candidatos que se enquadram nos critérios de elegibilidade do programa acima expostos e obtiverem no mínimo 450 pontos na prova do Enem podem pleitear uma vaga via ProUni. O candidato pode escolher até 5 opções de cursos em diferentes instituições e, caso aprovado, pode ter que participar de uma segunda etapa de seleção específica promovida pela instituição de ensino. Caso não obtenha a vaga desejada, ainda é possível entrar para a lista de espera de vagas remanescentes. 5 desigualdades raciais no ensino superior, tais critérios foram progressivamente perdendo força nas ações afirmativas e abrindo espaço para o protagonismo dos critérios de renda e classe. Silva (2006) fornece uma chave interessante para interpretar esse processo. Ao comparar o caso brasileiro ao sul-africano, a autora concluiu que enquanto na África do Sul as ações afirmativas no ensino superior se fundamentaram em justificativas de reparação e capital humano, no caso brasileiro as justificativas de inclusão social e diversidade foram mais proeminentes. Em termos práticos, o que isso significa? Enquanto uma justificativa de reparação passa pela ideia que é necessário restituir um grupo historicamente alijado de bens educacionais, a ideia de inclusão social ganha outro sentido porque o argumento de combate à exclusão social não é sinônimo de combate a desigualdades raciais ou racismo. A partir dessa perspectiva, portanto, ganha força a ideia que brancos pobres são tão excluídos quanto negros pobres (embora, como vimos nos dados brasileiros, os negros pobres tenham menos acesso a bens educacionais que brancos pobres) e isso coloca em xeque a categoria racial como critério principal de elegibilidade. Desse modo, as ações afirmativas passaram a ganhar progressivamente um contorno mais amplo no Brasil, com maior centralidade de critérios de renda / classe social. Na visão da autora: “De acordo com o quadro de inclusão social, a exclusão de negros normalmente aparece como um problema socioeconômico, e se apoia na vinculação de raça e classe. Negros devem ser beneficiados pela sua exclusão aos recursos socioeconômicos: renda, educação e empregos. Contudo, em um país com tanta desigualdade como o Brasil, não são apenas os negros os excluídos, portanto há a necessidade de incluir outros segmentos da população. Com isso, a especificidade da questão racial perdeu-se no debate e a maioria das pessoas começou a argumentar que seria melhor considerar apenas os indicadores sociais, pois os dois tipos de cotas tinham a mesma meta: diminuir a desigualdade social. Portanto, o foco deveria ser socioeconômico.“ (Silva, 2006, p. 145) Tal tendência, conforme aponta Guimarães (2008b), também parece ter reflexo aos olhos da opinião pública. Interpretando achados de pesquisas de opinião pública conduzidas pelo Instituto Datafolha em 1995 e 2006, o autor evidencia que a proporção de brasileiros que aprovava cotas na educação subiu de 50% para 65% no período. Entretanto, em 2006, ainda se mostrava forte a defesa da meritocracia no ensino superior, assim como da preponderância dos critérios de classe aos raciais para ações afirmativas – conclusões essas que podem ser comprovadas pela concordânciade 78% dos entrevistados com a frase “as vagas nas universidades devem ser ocupadas pelos melhores alunos, independente de cor, raça ou condição social” e pela concordância de 87% dos respondentes à frase “deveriam ser criadas cotas nas universidades para pessoas pobres e de baixa renda, independente da raça”. Após a instauração de tais tensões entre raça/cor e renda/classe como critério de elegibilidade para as ações afirmativas, a questão racial foi muito pouco abordada no interior 6 do debate sobre o ProUni. Evidência disso é que num levantamento bibliográfico de teses e dissertações produzidas nos últimos anos em todo o Brasil, localizei 84 trabalhos que elegeram o ProUni como objeto de estudo e, dentre eles, apenas 2 discutiram especificamente as cotas raciais no interior do programa: Leite (2009), do campo da psicologia, propôs-se a estudar o processo de formação de identidade de estudantes cotistas negros do ProUni de São Paulo e concluiu que o programa traz uma inclusão social e racial ilusória, dado que eles são incluídos numa posição subalterna no ensino superior; Souza Lima (2007), do campo da teologia, buscou compreender a percepção sobre o ser negro a partir da visão de cotistas negros do ProUni no Rio Grande do Sul, concluindo que mesmo se reconhecendo como pertencente a uma categoria única de cor/raça (negra), diferentes sujeitos percebem sua identidade étnico-racial de formas diversas. Assim, buscando contribuir com essa lacuna nos estudos sobre o ProUni é que apresento a análise empírica a seguir. 3. Pesquisa empírica: experiências e percepções de bolsistas do ProUni sobre questões raciais e cotas A análise aqui realizada integra-se à minha pesquisa de mestrado em curso7 e foi conduzida a partir de 13 entrevistas qualitativas8 analisadas a partir das narrativas de vida de egressos do ProUni. Inicialmente apresentarei alguns casos representativos dos relatos de bolsistas brancos, bolsistas negros que não utilizaram as cotas raciais do ProUni e de bolsistas negros que as utilizaram para, em seguida, trazer a interpretação de alguns achados principais desses relatos. 3.1. Bolsistas brancos Os quatro entrevistados brancos apresentaram opiniões bastante similares em relação às cotas: embora afirmem compreender a justificativa de reserva de vagas a negros como resposta a históricas discriminações das quais o grupo já foi vítima, emitem opiniões predominantemente contrárias a sua utilização. Mostram-se favoráveis aos recortes de renda e de proveniência de escola pública, acreditando que esse seria o mais justo independentemente de cor. Nesse sentido, os discursos de Rodrigo e Flávia mostraram-se bastante emblemáticos. Rodrigo tem 28 anos, estudou análise de sistemas numa instituição de baixo prestígio no período noturno, foi bolsistas parcial e graduou-se em 2011. Filhos de pais migrantes que tiveram ocupações profissionais precárias a vida toda, começou a trabalhar desde o ensino 7 Intitulada “Trajetórias pós-ProUni: um estudo sobre egressos do Programa Universidade para Todos da cidade de São Paulo”, a pesquisa tem um escopo original mais amplo, entretanto, aqui trabalharei unicamente com o recorte das experiências e percepções dos bolsistas sobre questões raciais e cotas no interior do ProUni. 8 Os nomes dos entrevistados foram alterados e o nome de suas instituições omitidos para proteger sua confidencialidade. 7 médio e, não fosse o ProUni, afirmou que teria que esperar mais tempo para juntar dinheiro e poder ingressar no ensino superior. Assim como ele próprio passou por diversas dificuldades financeiras, acredita que o recorte para o programa deva se ater a tais critérios – uma vez que, em sua visão, a despeito da existência de preconceito, todos teriam as “mesmas capacidades”. Além disso, entende que a utilização de cotas poderia fortalecer ainda mais o preconceito e a discriminação contra aqueles que delas se beneficiam. “A cota da cor é, aí já é uma questão histórica do Brasil, que os negros sempre foram desfavorecidos.” “[O racismo] eu acho que é uma coisa bem velada. Ele se manifesta de formas não muito visíveis, mas ele se manifesta de alguma forma. Porque se existe cotas de não sei o quê, se tem delegacias especializadas em crimes raciais e não sei o quê, então, é porque existe isso.” “[Sobre as cotas raciais] Isso aí é meio controverso, né? (...) Deveria estar lá aberta: se você atende aos critérios, independente de ser branco, preto, amarelo, sei lá o quê, você vai ser beneficiado com aquilo.” “Todo mundo tem as mesmas capacidades, independente de sexo, cor.” “Eu acho que essa parte de deixar ali bem demarcado ‘isso aqui é para fulano e para beltrano’, aí sim você vai estar criando um núcleo e aquelas pessoas ali vão ser vistas como ‘aquelas estão ali só porque elas são negras’ (...) aí isso também vai criar alguma forma de preconceito, discriminação.” Flávia tem 25 anos, vem de uma família com mais capital financeiro e cultural que Rodrigo (dado que seus pais chegaram a ter formação profissional técnica), estudou numa escola pública reconhecida no ensino médio e graduou-se em medicina numa instituição prestigiosa em 2013. Relatou ter sofrido discriminação pela sua condição de bolsista e de renda durante sua vivência universitária – assim como outros colegas na mesma situação. Em sua visão, tais estigmas eram tão fortes que motivaram alguns beneficiados pelo ProUni a tentarem esconder a condição de bolsista durante toda sua vivência universitária – sobretudo no caso daqueles que ainda se beneficiaram pelas cotas raciais. Assim como Rodrigo, discorda do critério racial alegando que a “meritocracia” deva ser o fator preponderante para a seleção dos bolsistas que não podem pagar pela sua formação no ensino superior. “Historicamente, a população negra é a que mais tem dificuldade financeira e foi totalmente marginalizada ao longo de todas essas décadas. Só que não são as cotas que vão igualar isso. É melhorando o acesso dessa população a educação, mas não necessariamente instituindo cotas. (...) A meritocracia hoje não está sendo valorizada.” “Eu acho que tinha que ser baseado no não-acesso a educação adequada, a educação de qualidade, a ter estudado em colégio público. Mas só pela cor, eu acho que não, eu realmente sou contra. Eu sou mais a favor da condição financeira, individual mesmo, de cada pessoa, do que essa pessoa passou, do que pela cor em si.” “Aí eu senti, todos sentiram que tinha um preconceito. Questionavam os valores desse rapaz [cotista]: ‘como que ele é da comissão de formatura se ele é do ProUni? Ele nem tem dinheiro para pagar a formatura’. E falavam isso na nossa cara. Até que ele saiu da comissão.” “Eu nunca tive problema com isso [assumir que era bolsista]. Inclusive esses 6 [bolsistas] (...) não queriam, a princípio, falar que eram ProUni, muito menos cota. (...) Eu acho que por 8 vergonha, (...) para se enturmar melhor com as outras pessoas. (...) Assim, se deixasse, eu acho que formava e tinha gente que não sabia que era do ProUni ainda, sabe?” 3.2. Bolsistas negros não cotistas Até o presente momento, entrevistei sete beneficiados pelo ProUni que se declararam pretos, negros ou pardos e que não recorreram às cotas raciais. A compreensão que elas existem para combater desigualdades históricas também se mostrou presente na narrativa de todos eles. Embora a maioria tenha se posicionado a favor das cotas, dois deles se mostraram contrários. Os argumentos utilizados por Daniel ilustram bem essa posição. Daniel tem 25 anos, declarou-se pardo, estudou desenho industrial numa instituição de baixo prestígio, foi bolsista integral apartir do segundo ano e graduou-se em 2012. No ensino médio realizou um curso técnico de produção visual e começou a trabalhar numa gráfica, onde permaneceu até o ensino superior. O fato de ter cursado um ano da universidade como pagante sinaliza que ele teria condições de concluir seus estudos mesmo na ausência do ProUni – constatação reforçada pela afirmação que escolheu a instituição baseado na mensalidade que sua família poderia pagar. Disse ter conhecimento das cotas, mas não ter recorrido a elas por dois motivos: em primeiro lugar porque entende que não seria elegível – uma vez que se autodeclara pardo, e não negro; em segundo lugar porque, realizando um cálculo racional sobre as chances de ingresso, mesmo que se considerasse elegível, o número inferior de bolsas via cotas lhe faria pensar que seria ainda mais difícil obter uma vaga desse modo. Assim como os bolsistas brancos, afirmou que os critérios de renda seriam mais adequados e que todos teriam as mesmas condições independentemente de sua cor. Um aspecto que merece destaque em sua narrativa é o fato de se posicionar a favor de cotas para deficientes – uma vez que uma de suas irmãs mais novas é portadora de deficiência e sua família já se beneficiou de incentivos governamentais para compra de carro e apartamento dada essa condição. “Eu fico muito dividido quanto a isso porque o pessoal gosta de falar muito da cota de negros para faculdade, que tem que ter porque eles são menos favorecidos por ‘n’ fatores históricos e sociais. E outras pessoas acham que é um tipo de discriminação e desfavorece quem, digamos, que é também de baixa renda, que também passou pelas mesmas dificuldades. Eu acho que seria mais igualitário se não tivesse porque, bom, eu estudei com... tive vários amigos que eram de baixa renda que eram negros e a gente teve as mesmas oportunidades. Alguns tomaram um caminho errado da vida, outros seguiram em frente, estudaram também. Eu acho que acaba sendo uma outra maneira de separar as pessoas, então eu não vejo muito sentido para isso.” “Eu acabei percebendo numa das vezes que eu fiz a inscrição que (...) as faculdades disponibilizavam um número x de vagas para cotas: (...) digamos que para quem tivesse 100% de bolsa eram 4 vagas, para quem tivesse 50% eram 6 e para cota - negro ou índio - eram 2. Então se eu dissesse, digamos, que eu era índio achando que eu ia me favorecer com alguma coisa, ia ser pior porque alguém que tivesse uma nota maior na prova do que eu entraria na minha frente, então eu não concorreria a 4 ou a 6 vagas, eu concorreria a 2, então era pior. 9 Até porque eu não me encaixava exatamente dentro de uma cota: não era negro, não sou índio, então eu acabei não optando por cota nenhuma.” Dentre os entrevistados negros favoráveis às cotas, é possível observar que não apenas identificam a justificativa de desigualdades historicamente construídas em relação ao grupo para fundamentá-la, como vão além em seus discursos: entendem que exatamente por isso é que os negros partem de posições menos privilegiadas que brancos na disputa por vagas no ensino superior (a despeito da possível similaridade de renda) e assim legitimam a existência das cotas. Entretanto, a particularidade de seus relatos consiste no fato de não se enxergarem na posição de demandantes, sempre apontado que existe alguém mais necessitado (ou mais negro) que precise desse recurso. Nesse sentido, o discurso de Antônio foi emblemático, uma vez que foi um dos entrevistados que defendeu de maneira mais fervorosa a existência das cotas raciais, mas, ao mesmo tempo, um dos que mais enfatizou não precisar delas. Antônio tem 44 anos e graduou-se em 2012 em administração numa instituição prestigiosa como bolsista integral. Migrou para São Paulo aos 15 anos, iniciou sua vida profissional como operário, ocupou diferentes postos profissionais ao longo da vida (tendo oscilado entre momentos difíceis de posições precárias e momentos com empregos mais rentáveis), já havia iniciado o ensino superior uma vez mas parou por não conseguir pagar, está no terceiro casamento, tem dois filhos de relacionamentos passados e ao longo de sua trajetória engajou-se em movimento estudantil, movimento negro e já foi candidato a vereador de São Paulo por um partido de esquerda. Embora relate que sua família se considere branca, afirma que após suas primeiras experiências de discriminação racial no ambiente profissional passou a compreender a necessidade de assumir sua cor, aproximou-se do movimento negro e foi um importante defensor da questão ao longo de sua vivência universitária, num ambiente que ele caracterizou como branco e ocupado por filhos de classe média e alta. Sensível ao tema racial, elaborou críticas tanto aos negros pagantes que tentavam se integrar aos brancos quanto aos bolsistas que tinham problemas em assumir sua cor. Ao longo de todo o seu relato, fez sucessivas menções a um amigo negro que utilizou cotas raciais e que, em sua visão, sofreu mais preconceito – motivo pelo qual afirmou sempre interceder em seu favor. Relatou que ocupou a presidência do centro acadêmico, foi orador de turma, tornou-se uma referência em sua classe e recorrentemente tinha que defender que era negro porque as pessoas tendiam a taxá-lo de branco dada sua posição de destaque. “Eu adoro as cotas, eu acho que são essenciais, eu sou um dos defensores das cotas. Mas, como eu te falei, eu tenho essa coisa do princípio de justiça. Eu me sentiria muito mal se eu usasse a cota racial sabendo que tem pessoas que talvez precisassem e fosse muito mais importante para elas por ter tido, talvez, um ensino que não fosse tão… não tivesse a qualidade que eu tive. Não por capacidade, mas não ter a qualidade de ensino médio, 10 fundamental, que pudesse permitir que ele entrasse na cota. (..) Eu sinto que foi uma escolha muito bem feita que eu fiz, né? Não ter optado por cota.” “Então, assim, tinha um pouquinho disso assim no início (...) como eu falo? Da coisa mais burguesa, de querer que o outro não esteja ali porque ele não está no mesmo nível social, econômico, né? Mas, no geral, tinha enfrentamentos, discussões (...) essas cutucadas nas brincadeiras. Eu acho que o [nome do amigo que utilizou cota racial], que é negro, ele sentiu mais ainda porque era negro. Porque ele optou pela cota talvez ele tenha sentido um pouco mais do que eu.” “[Sobre os bolsistas contrários às cotas] É a mesma demagogia constante nas discussões de internet, é o que se fala, é a repetição do mesmo: que todo mundo é igual, que racismo é o que se faz quando se pega a cota. Eles falam que nós queríamos criar uma luta de classe e eu falei: ‘não, meu amigo, você não sabe o que é luta de classe, a luta de classe já existe’ (...) Mesmo ele usando o ProUni, ele se acha do outro lado da luta de classe, ele acha que tem que bater no que está menos privilegiado. Esse é o grande problema, o nosso problema de classe média hoje. (...) Quando começa a se reverter, que sai um pouquinho da classe, lá da classe baixa, já começa a achar que quem ficou lá é que é preguiçoso.” “[Sobre colegas negros pagantes] Ele se vestia (...) de terninho e gravata e sempre junto com um monte de menina e branquinho, você nunca via ele com pretinho perto. Tinha um menino, que eu achava que ele era meio retardado, mas a molecada da Atlética meio que jogava com ele assim, tipo: ‘eu não sou racista porque aqui, esse pretinho aqui é o meu amigo’. É sempre assim, era o boneco deles, assim, eu sentia isso.” “Eu tenho um problema sério: eu sofro mais do que se eu tivesse a cor mais escura. Uma cor mais preta, né? Porque eu me declaro negro desde sempre. Mesmo a minha família, nem a minha família gosta muito disso. (...) Eu passei os 4 anos da graduação brigando com os meus colegas, não para eu dizer que eu não sou negro, mas para dizer que eu era negro.” 3.3. Bolsistas negros cotistas Ao longo da pesquisa,entrevistei dois beneficiários do ProUni que utilizaram as cotas raciais. Ambos emitiram argumentos próximos aos dos demais bolsistas negros para defender a justificativa e a legitimidade das cotas, mas ambos também afirmaram ter se arrependido de ter recorrido a elas. A seguir vejamos como Renato e Breno se posicionaram a esse respeito. Renato tem 23 anos, estudou design numa instituição de prestígio e foi bolsista parcial. Mesmo sendo filho de pais com baixa escolaridade e ocupações profissionais precárias, não obteve a bolsa total, mas sua mãe lhe ajudou no início da graduação a pagar os 50% da mensalidade com seu salário de servente e faxineira. Mais tarde, assim que conseguiu obter seu primeiro estágio, passou a arcar com esses custos. Por declarar-se pardo entende que foi legítima sua demanda pela cota de afrodescendente, mas afirmou que não deveria tê-la utilizado porque haveria alguém que precisaria mais – a exemplo de uma colega a quem se referiu como negra de verdade. Aliás, ao longo da sua narrativa, em vários momentos refere- se a negros na terceira pessoa, relatando como sofrem experiências de preconceito e discriminação, chegando em alguns momentos a refletir sobre como ele próprio já foi preconceituoso com pessoas mais negras e mais pobres que ele. Antevendo a possibilidade de ser discriminado por ser bolsista e cotista, relatou ter prestado ao mesmo tempo o vestibular 11 da instituição para provar que tinha mérito de entrar lá também pelas vias tradicionais. Também lembrou ter sido vítima de discriminação em sua vivência universitária, acreditando ter sido mais por sua condição de renda e de bolsista do que por sua cor. “[Sobre as cotas raciais] Eu acho que faz total sentido. (....) Hoje eu estava lendo uma tabela (...) sobre o número de pessoas brancas que entram na faculdade, o número de pessoas negras que entram na faculdade e o número de assassinatos no Brasil por etnia. Você vê que a gente tem o Brasil separado, sabe? (...) O Brasil sempre foi separado em dois (...) sempre existiu a casa grande e a senzala. As pessoas que fingiam não enxergar. Continuam fingindo.” “[Sobre sua decisão de usar a cota racial] Eu só lembro que estava lá que afrodescendentes também tinham cota. Na época, na minha cabeça era o quê? Porque o meu avô era negro. Então eu achava que isso era o suficiente. Hoje eu vejo que não. Eu acho que foi um erro, sim. Eu não devia ter prestado com cotas (...) porque hoje eu vejo que eu peguei a vaga de uma pessoa que passou por mais desafios do que eu. Na minha sala só tinha uma menina negra de verdade, tinha pessoas pardas também, mas só tinha uma negra. E, hoje, eu vejo que eles sofrem bem mais preconceito do que eu vivia na época.” “Eu tinha feito o vestibular, né? Já para jogar na cara se alguém viesse falar alguma coisa para mim (...) Eu tinha uma amiga, que ela é japonesa (...) ela era bolsista também 50%. E ela falava, tipo: ‘meu, o pessoal trata muito estranho o pessoal que é bolsista, não sei o quê, não sei o quê’. Aí eu comecei a olhar e realmente era. Aí eu comecei a ver como as pessoas me tratavam e realmente é. Nada muito sério, ‘ó, saia daqui’, mas é um desdém, né?” Breno tem 24 anos e graduou-se em administração numa instituição de alto prestígio em 2012. Filhos de pais com ensino médio completo, afirmou que sempre foi incentivado a estudar e cursou três formações técnicas antes de entrar no ensino superior - sendo uma delas numa escola técnica federal bastante concorrida. Declarou-se negro e, para decidir concorrer via cota, realizou uma série de cálculos para decidir como teria mais chances. Embora considere sua opção legítima, assim como Renato, declarou ter se arrependido dessa opção. “[Sobre as cotas raciais] Apareceu bastante agora na época das eleições o pessoal falando, não, isso é coisa pra manter vagabundo, não tem nenhuma diferença, o sol nasce pra todo mundo e eu entendo que a história não é bem assim.” “[Sobre as cotas raciais] Eu acho um instrumento assim, uma política pública válida, facilita acesso, porque mesmo com cota, cara, na faculdade que eu estudei, provavelmente nas outras também, você não vê pessoas assim, não que se autodeclare, mas que você olha e fale: esse cara é negro. Isso meio que torna mais acessível e lembra as pessoas que elas têm o direito a isso.” “Eu li aquele edital bastante [risos], eu li e reli várias vezes. (...) Eu sabia como era o cálculo, desempate, quantos por cento aquilo me ajudaria tal e eu acho merecido eu usar e entendi que poderia usar, vi que me ajudaria e fiz. Hoje eu penso que mesmo sem aquilo eu poderia ter passado. (...) Foi justo ter usado, mas sei lá (...) poderia não ter usado aquilo e ter dado oportunidade pra outra pessoa passar pelas cotas (...) porque acho que a nota que eu tirei era muito boa.” 3.4. Considerações sobre as cotas raciais Em primeiro lugar, é essencial ressaltar que embora faça um exercício de buscar extrair o sentido geral subjacente às narrativas de cada entrevistado, tais relatos não se estruturaram sem tensões, ambiguidades e pontos controversos. De todo modo, é possível 12 enxergar algumas tendências mais amplas nas percepções sobre as cotas raciais dentro dos três grupos acima abordados. No discurso dos bolsistas brancos destaca-se a opinião que as desigualdades educacionais possam ser explicadas e combatidas unicamente a partir de critérios de renda e origem social - reproduzindo assim o histórico discurso do debate racial brasileiro que tendia a tomar a problemática de raça/cor como equivalente a classe. Desse modo, embora possam verbalizar que os negros foram historicamente excluídos do acesso a educação no país, expressam a crença que todas as pessoas de renda similar teriam capacidades e oportunidades equivalentes, não considerando a possibilidade que as experiências de discriminação racial possam ter fechado campos de oportunidades a negros ao longo de sua trajetória educacional. Não por acaso mostram alta concordância com a lógica de igualdade de oportunidades individuais, mas não com a de igualdade de resultados para grupos como princípio estruturante do ProUni9. Assumindo a necessidade de ênfase nos indivíduos (e não em grupos), também reproduzem alguns argumentos já evocados anteriormente no campo intelectual e na opinião pública brasileira como reações às cotas raciais nas instituições públicas: sua pretensa oposição a critérios meritocráticos10 e o receio que poderiam reforçar ainda mais o preconceito e a discriminação raciais11. Como resultado, relegam os demandantes de cotas raciais a uma posição menos legítima no interior do grupo de beneficiários do ProUni – a exemplo da narrativa de Flávia, a qual evidenciou que o estigma de bolsista foi difícil para todos e ainda mais para os cotistas, que não teriam passado pelas mesmas provações meritocráticas que os outros prounistas. A maior parte dos beneficiados negros, por sua vez, tende a expressar maior compreensão sobre as particularidades das desigualdades educacionais moldadas a partir dos 9 Aqui me refiro às expressões utilizadas por Lipset (1996) para definir dois modelos de ações afirmativas utilizados dos Estados Unidos. Nas décadas de 1950 e 1960, as primeiras formulações das ações afirmativas norte-americanas pautavam-se na ideia de igualdade de oportunidades para indivíduos ao buscarem promover educação igualitária a todos, independentemente de cor, acreditando que assim cada indivíduo estaria instrumentalizado para conquistar por si só suas oportunidades. Embora os investimentos em educação pública tenham sido altíssimos nesse período, os resultados obtidos não foram exatamenteos esperados, pois a nova legislação mostrou-se insuficiente para reparar as consequências sociais do preconceito e da discriminação já institucionalizadas no país. Assim, num segundo momento, passaram a seguir uma outra lógica, com ênfase em igualdade de resultados para grupos historicamente destituídos de bens educacionais – sendo as cotas e preferências especiais as suas formas mais características. Como ponto central de sua análise, Lipset demonstra que estas não foram bem aceitas no país por ferirem alguns valores estruturantes da cultura norte-americana - como individualismo e meritocracia – que estavam inicialmente contemplados no primeiro modelo. 10 Na literatura internacional, diferentes autores apontam que o discurso de manutenção de uma estrutura elitista de ensino superior (defendido a partir de princípios liberais e da ideia de meritocracia) choca-se cada vez mais com as crescentes demandas por inclusão social via ensino superior, resultando numa tensão similar em vários países do mundo (Gupta, 2006; Furlong e Cartmel, 2009). 11 Guimarães (2008a) explicita os argumentos utilizados tanto no campo intelectual quanto na opinião pública brasileira que afirmavam que as cotas raciais poderiam reforçar ainda mais o racismo no país. 13 critérios de raça e emitir a opinião que apenas recortes de renda e classe não seriam suficientes para igualar as oportunidades de todos – embora, em suas categorias nativas, os conceitos de classe e raça possam ser aproximados, a exemplos do discurso de Antônio. De todo modo, tendem a desconstruir os discursos pautados pela ideia de meritocracia e mostram-se favoráveis à noção de igualdade de resultados para grupos nas ações afirmativas. É importante lembrar também que houve estudantes que se declararam negros ou pardos e que emitiram opiniões mais próximas à posição do grupo de beneficiários brancos, enxergando-se algumas vezes como menos negros que outros beneficiados pelo ProUni. Se, por um lado, no plano teórico, o conceito das cotas raciais no interior do ProUni é defendido pela maior parte dos bolsistas negros, por outro lado, foi visível o mal estar de todos eles em se colocar na posição de demandante. Dentre os que não recorreram a elas, foram recorrentes as alusões a outras pessoas que precisariam mais do que eles – razão pela qual afirmam ter decidido não demandá-las. Vale observar que quando empregam os termos preto, negro ou pardo a partir de suas categorias nativas12, os entrevistados acabam eles próprios oscilando por definições diferentes e posicionando-se, via de regra, como mais negros que os pagantes e beneficiados brancos, mas menos negros que os colegas que recorreram às cotas ou que, em sua visão, realmente necessitariam delas – identificando-se ora mais com um grupo, ora mais com o outro. Especificamente no caso dos dois beneficiados negros e cotistas entrevistados, ambos justificaram muito bem o fundamento legal de sua opção, mas declararam ter se arrependido dela: na visão de Breno porque foi precavido demais em seu cálculo racional e pode ter tirado a vaga de alguém que precisasse mais que ele; na visão de Renato porque se deu conta, após entrar na faculdade, que havia pessoas mais negras que necessitariam mais. É interessante observar também a opção de Renato por concorrer ao vestibular ao mesmo tempo que pleiteava uma vaga via cota racial no ProUni por antever, mesmo antes de entrar no ensino superior, que poderia ser deslegitimado pelos futuros colegas. Evidencia-se, desse modo, que assim como na visão dos beneficiados brancos, os negros também reforçam a simbologia que a posição dos cotistas seria inferior no interior do grupo de bolsistas: enquanto os que não recorreram a ela buscam demarcar claramente que não necessitaram lançar mão dessa estratégia menos legítima, aqueles que as utilizaram 12 Quando se referem a negros e pardos, a maior parte dos entrevistados entende que se tratam de categorias distintas. Desse modo, é essencial levar em consideração que suas categorias nativas não correspondem às categorias analíticas comumente adotadas pela literatura sociológica, de acordo com as quais a categoria negros é formada a partir da junção de pretos e pardos. 14 buscam recorrentemente formas de contornar o estigma de cotista alegando que teriam condições de entrar no ensino superior mesmo na ausência delas. Para a interpretação desses achados, acredito que a teoria de Blumer (1958) mostra-se bastante pertinente. O autor enuncia a tese que “o preconceito de raça existe basicamente como sentido de posição de grupo e não como um conjunto de sentimentos que membros de um grupo racial têm em relação a membros de outro grupo racial”13 (Ibid, p. 3). Entende, portanto, que não são os sentimentos individuais que justificam o preconceito racial, mas sim o medo ou a suspeita que o grupo racial subordinado ameace a posição do grupo dominante – no caso das cotas raciais, o medo dos brancos em relação à tomada de bens educacionais e oportunidades pelos negros. Assim, tal construção de posição de grupo não seria um mero reflexo das relações objetivas entre eles, mas representaria o que deveria ser – demarcando um lugar de pertencimento historicamente construído para cada grupo racial. Em vista disso, cada indivíduo do grupo dominante enxerga-se pela ótica dos membros desse grupo e, mesmo com baixo status dentro dele, compartilha do seu sentimento de superioridade e trata os indivíduos do grupo subordinado da mesma forma que um membro de alto status do seu grupo deveria fazer. Assim, as imagens e sentimentos coletivos sobre o grupo dominado são forjados de maneira abstrata, não necessariamente correspondendo às experiências concretas dos indivíduos. Nos termos de Blumer (1958), acredito ser possível interpretar que no interior do conjunto de beneficiados pelo ProUni exista a formação de um grupo de estudantes brancos (dominante) e de outro grupo de estudantes negros (dominado). De um lado, os bolsistas brancos tendem a compartilhar da visão da maior parte da opinião pública brasileira (Guimarães, 2008b) e dos pagantes brancos sobre as cotas ao deslegitimarem o critério racial de seleção e, pela sua perspectiva individual, reforçarem esse discurso a partir do sentimento de injustiça dado que os negros teriam ainda mais benefícios que eles via cotas – a despeito de terem as mesmas condições financeiras e, teoricamente, oportunidades semelhantes. Assim, as cotas expressariam uma ameaça aos seus privilégios de brancos bolsistas no contexto dessa relação. No outro extremo se encontram os bolsistas negros, identificados pelo estigma das cotas raciais e que ameaçariam a tomada de mais vagas – as quais, deveriam estar abertas a todos. Entre esses dois grupos encontram-se os negros que optaram por não utilizar as cotas, os quais oscilam entre posições distintas: por um lado compartilham sua identificação com a 13 Do original em inglês: “My thesis is that race prejudice exists basically in a sense of group position rather than in a set of feelings which members of one racial group have toward the members of another racial group.” (Blumer, 1958, p. 3) 15 cor dos cotistas e mostram solidariedade a eles ao legitimarem a existência das cotas, mas, por outro lado, ao posicionarem-se nessa escala, tendem a se enxergar mais próximos do grupo de bolsistas brancos por buscarem demarcar que não estão entre os mais desfavorecidos eque existe alguém em situação mais difícil que eles. Desse modo se constroi uma imagem abstrata dos cotistas negros, que ameaçariam os privilégios dos brancos e carregariam um estigma do qual os negros não-cotistas tendem a querer se afastar por também trazerem consigo a representação de hierarquia entre esses grupos no interior do conjunto de beneficiários do ProUni. 4. Considerações finais A partir da análise do material empírico aqui apresentado, é possível concluir que embora não exista uma rejeição formal em relação às cotas raciais e o estigma da cor pareça não afetar explicitamente a relação entre os bolsistas negros, usá-las pode colocar seu beneficiário num lugar de status inferior. Assim, dentro do grupo de bolsistas, o critério racial (representado pelas cotas) opera como elemento de percepção de hierarquização entre seus membros de modo que os beneficiários do ProUni passam a se enxergar a partir da seguinte configuração: 1) bolsistas brancos: a favor da igualdade de resultados segundo critérios socioeconômicos mas contra as cotas raciais - enxergando-se numa posição de grupo mais próxima a dos pagantes brancos; 2) bolsistas negros que não optaram pelas cotas: a favor das igualdade de resultados pelas cotas raciais, mas enxergando-se numa posição de grupo mais próxima a dos bolsistas brancos em relação à necessidade de utilização das cotas; 3) bolsistas negros cotistas: carregam o estima de terem entrado de forma menos legítima no ProUni via cotas e ocupam a posição mais baixa dessa hierarquia simbólica. Ao longo de todo o texto também busquei evidenciar como tais tomadas de posição são baseadas em argumentos historicamente construídos no debate sobre desigualdades educacionais e raciais no Brasil, mostrando-se atualizadas e muito presentes nas falas dos entrevistados. Ademais, assim como raça opera como critério que direciona indivíduos a posições distintas na sociedade de classes brasileira (Hasenbalg, 2005), busquei evidenciar como ela também pode operar como elemento que destina bolsistas do ProUni a espaços distintos de status e legitimidade no interior das hierarquias de prestígio das instituições do ensino superior brasileiro. 16 5. Referências bibliográficas BARROS, R.; CARVALHO, M.; FRANCO, S.; MENDONCA, R. (2010). Determinantes da queda na desigualdade de renda no Brasil. Texto para discussão, 1460. Rio de Janeiro: IPEA. BLUMER, Herbert (1958). Race Prejudice as a Sense of Group Position. Pacific Sociological Review, vol. 1, n. 1, pp. 3-8, Spring 1958. CATANI, A. 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