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SUBJETIVIDADE E CULTURA NA CLÍNICA ESQUIZOANALÍTICA 
 
 
Wiliam Siqueira Peres/Unesp-Assis* 
 
 
RESUMO - A prática da clínica esquizoanalítica tem se orientado na contemporaneidade a 
partir dos modos de produção da subjetividade, que evidenciam uma multiplicidade de 
componentes heterogêneos na construção das relações humanas. Marcada pela emergência 
de novas identidades sexuais e de gêneros, a organização social e política de grupos 
referenciados como minorias, tem evidenciado a necessidade de revisão de valores e 
significados utilizados pelas práticas psi, de modo a promover ações éticas e 
problematizadoras da existência. Nesta direção, os Estudos Culturais tem se mostrado 
importante para problematizar o contemporâneo. Apresentamos algumas reflexões que 
podem contribuir para o debate, de modo a promover a produção de uma prática clínica 
mais problematizadora do que curativa, transcendendo de uma clínica do acolhimento para 
uma clínica da perturbação. Dentre as problematizações contemporâneas, pontuamos 
questões relacionadas com as novas identidades sexuais e de gêneros (Gays, lésbicas, 
travestis e transexuais), assim como, as desigualdades sociais, econômicas, culturais, raciais 
e de gêneros, que geralmente estimulam a prática de opressões e de exclusão social que 
impossibilitam o exercício da cidadania, assim como, do direito fundamental à 
singularidade. 
 
 
Palavras chaves: Esquizoanálise, Subjetividade, Cultura. 
 
 
* Professor Assistente Doutor do Departamento de Psicologia Clínica, da Faculdade de Ciências e Letras de 
Assis, da Universidade Estadual Paulista (UNESP). 
Contato: wiliam_siqueira@uol.com.br 
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 DELEUZE & GUATTARI tem nos levado a pensar algumas questões, que 
embora presente no campo das relações humanas, logo, também nas práticas clínicas, 
solicitam problematizações sobre o contexto sócio-histórico e cultural em que os 
acontecimentos se efetuam e o campo das forças que são agenciadas através dos modos de 
subjetivação. 
 Considerando que tudo acontece nas relações das pessoas com o mundo, a 
produção da subjetividade se evidencia enquanto uma efetuação que se dá no campo social, 
no registro dos valores, sentidos e discursos construídos pelas relações de saber – poder. 
(FOUCAULT, 1985). 
 Desta forma a subjetividade pode ser entendida como o modo pelo qual o 
indivíduo é colocado à disposição do campo social, ou seja, sua produção diz respeito aos 
atravessamentos que são experimentados no corpo, que passa a ter uma condição vibrátil de 
reação à afetação. Os corpos se afetam nas relações que se engendram no campo social, que 
por sua vez são atravessados pela cultura. 
 A cultura é um dos componentes imprescindíveis para se problematizar a 
produção da subjetividade contemporânea, compondo paisagens culturais subjetivas, de 
modo que “não há subjetividade sem uma cartografia cultural que lhe sirva de guia; e, 
reciprocamente, não há cultura sem um certo modo de subjetivação que funcione segundo 
seu perfil”. (ROLNIK, 1995:308) 
 Na conexão cultura-subjetividade é possível cartografar as influências do 
capitalismo mundial integrado e da moral judaica cristã presentes no cenário 
contemporâneo restritos a padrões existenciais pré-estabelecidos que enfraquecem as 
expressões das diferenças, comprometendo aquilo que GUATTARI & ROLNIK (1986) 
apontam como direito fundamental à singularidade. 
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 Trata-se da produção de modos de subjetivação maquínica (normatizadores) 
que estabelece padrões e modelos de funcionamentos nas relações das pessoas, que se 
limitam a alguns poucos afetos disponíveis para serem acessados, e que constituiriam 
aquilo que GUATTARI & ROLNIK (1986) definiu como “carimbos existenciais”, 
compondo visibilidades que encarnam nos corpos os significados dos padrões morais e 
modelos de verdades, ora efetuando marcas inclusivas (os grupelhos), ora efetuando 
discriminação, estigmatização e exclusão de todos aqueles que ousam singularizar. 
 Nessa perspectiva vemos a produção de indivíduos em série, compondo modos 
de ser no mundo limitados a poucos modelos ofertados por modos de subjetivação 
capitalísticos regidos pela moral, naturalizando a existência como essência e produzindo 
consumos de identidades como drogadição. As pessoas se viciam em identidades. 
(ROLNIK, 1995). 
 A drogadição da identidade impossibilita às pessoas poderem ser autênticas, 
criativas e autônomas, paralisando-as e cristalizando-as em seus afetos. Qualquer 
manifestação de diferença ou de criação de novos modos de existencialização será visto 
com desconfiança pelos atores envolvidos, sendo desvalorizados, capturados e definidos 
como doença, crime ou pecado. 
 A relação com o desconhecido remete à entrada em uma zona de turbulência 
que embaralha os códigos de inteligibilidade, levando esses atores a reagirem de modo 
defensivo e moralizante. Como suas vidas se restringem a poucos afetos, não suportam o 
turbilhão do tempo que se expressa em sua pele e que anuncia a emergência do múltiplo, 
reificando preconceitos e exclusão. 
 Assim, vamos percebendo no cenário contemporâneo a emergência de práticas 
que se atualizam por rituais autoritários e discriminatórios, que instalam nesses atores 
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expressões que DELEUZE (1992) chamou de micro-fascismos. São expressões sutis que se 
mostram nas atitudes do dedo em riste, no tom de voz alterado, ou ainda em expressões do 
tipo “você sabe com quem está falando?”, “você sabe quem eu sou?”, remetendo sempre à 
sua identidade que é imposta como modelo a ser seguido na feitura das boas cópias. 
 Através dessa configuração podemos cartografar a realidade contemporânea, 
evidenciando algumas expressões existenciais que são massacradas pelos modos de 
normatização, entre elas, as questões de classe social, raça / etnia, relações de gêneros e de 
orientação sexual. 
 Nos últimos anos temos produzido movimentos em nossas práticas clínicas, que 
dizem respeito a problematização da recepção de pessoas que buscam a experiência 
terapêutica, e que tem nos levados a certos questionamentos a respeito de como a própria 
formação profissional tem se abstido em seus programas curriculares, que não contemplam 
as questões de classe social, raça / etnia, relações de gêneros e orientação sexual. 
 Parece que a formação profissional do Psicólogo tem preparado seus aprendizes 
para atender apenas as pessoas brancas, heterossexuais, burguesas e neuróticas. Qualquer 
expressão que se manifeste fora desse padrão, dispara mal estares e impotências em suas 
práticas. 
 Como supervisor de estágios percebemos o pânico e o despreparo no 
atendimento dessas questões, que colocam o aprendiz de Psicólogo em uma zona de 
turbulência em que se sente perdido e inseguro ao se deparar com cenas paralisantes e 
insuportáveis, dados que são inexistentes em seus universos de referências existenciais. 
 Essas sensações de vertigens permitem questionar as práticas psicológicas que 
se orientam pela idéia de uma clínica do acolhimento que impedem a circulação dos afetos, 
quando se deparam com cenas da perturbação, evidenciando que toda relação produz 
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perturbação. Essa perturbação se instala na relação quando os encontros dos corpos e dos 
afetos se processam através da formação de um bloco de devir, que ao se deparar com a 
multiplicidade, instaura uma turbulência, que por sua vez provoca a instabilidade. 
(DELEUZE & GUATTARI, 1997). 
 Neste processo, 
 “O devir só se atualiza e se expressa na relação, de forma a estabelecer um bloco, 
uma composição onde o eu vacila e se desmancha para compor em uma outra 
visibilidade,mudando assim o seu plano existencial, o que por sua vez modifica a 
própria multiplicidade que habita cada um”. (PERES, 1999:86). 
 
 Esta idéia de bloco de devir é tomada como uma ferramenta importante para 
que, nas relações vividas, ocorram as atualizações dos afetos e virtualidades, efetivando 
assim, o campo dos possíveis: o território existencial. 
 Como em todas as relações, também na relação terapêutica o estar juntos 
potencializa a multiplicidade em nós, sempre efêmera e intempestiva, evidenciando através 
das relações que em nós existem muitos outros, aguardando oportunidades de expressão, 
pois: 
 
“Fora e dentro participam, pois, da mesma substância, o dentro constituíndo-se como 
uma envergadura do fora; o fora como uma multiplicidade de perfis projetados de 
dentro. Ao fora aprendemos a chamar de mundo; ao dentro de subjetividade. Esta 
mútua constituição é o que atesta, de uma vez por todas, a minha existência como devir 
mundano, a existência do mundo como valor subjetivo : eu n´outro / outr´em-mim, 
sacos da mesma farinha, pães do mesmo trigo”. (NAFFAH NETO, 1998:71). 
 
 Essas questões nos permitem problematizar nossas próprias relações com as 
diferenças e o lugar que ocupamos enquanto terapeutas, no sentido de promovermos 
análises de implicação, no sentido proposto pela análise institucional francesa, 
contemplando temas que muitas vezes passam por despercebidos, e que sob nosso ponto de 
vista são relevantes para que possamos problematizar acontecimentos vividos, assim como, 
fomentar estratégias de empoderamento e ações criativas de novos modos de viver. 
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 Neste sentido, os exercícios das práticas clínicas nos levam a pensar a clínica 
como espaço de ação política, solicitando referências que contemplem promoção de 
cidadania e defesa dos direitos sexuais e humanos, sempre orientado pelas demarcações 
sócio históricas pelas quais são engendradas suas práticas. 
 Esse viés político das práticas clínicas auxilia na cartografia das escolhas 
teóricas e metodológicas pelas quais intimamente nos identificamos e a idéia de mundo que 
queremos construir, favorecendo o direito fundamental à singularidade e o respeito pelas 
escolhas que as pessoas fazem para construir seus projetos de felicidade. 
 Desta forma, as questões pontuadas anteriormente como classe social, 
raça/etnia, gêneros e orientação sexual, precisam urgentemente ser consideradas nas 
práticas clínicas, considerando os processos de estigmatização que são vividas por pessoas 
que não se enquadram nos padrões normativos, e que entram em sofrimento psíquico 
devido serem pobres/miseráveis, negros/orientais, mulheres oprimidas, gays, lésbicas, 
travestis e/ou transexuais. 
 A emergência de novas identidades sexuais e de gêneros expressas no 
contemporâneo (LOURO, 1999), solicitam agendas que contemplem estudos e pesquisas 
com maior interesse sobre as pessoas e suas expressões sexuais e de gêneros. Isto por sua 
vez, leva a considerações sobre a organização social e política das chamadas minorias, de 
modo a contemplar os movimentos sociais, as estratégias inclusivas e a promoção de 
culturas de resistências às opressões e violências sofridas. 
 Precisamos levar em consideração que o mundo se encontra em processos de 
mudanças e os paradigmas estão em chamas. Desta forma, os Estudos Culturais ajudam 
nessa problematização: 
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“O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade, unificada e estável, está se 
tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, 
algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. Correspondentemente, as identidades, 
que compunham as paisagens sociais “lá fora” e que asseguravam nossa 
conformidade subjetiva com as ‘necessidades’ objetivas da cultura, estão entrando em 
colapso, como resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo 
de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, 
tornou-se mais provisório, variável e problemático”. HALL, 2001:12). 
 
 Por sua crítica à lógica binária e aos universais percebemos alianças possíveis 
entre os Estudos Culturais e Esquizoanálise, considerando que: 
 
“A Esquizoanálise não se incide em elementos nem em conjuntos, nem em sujeitos, 
relacionamentos e estruturas. Ela só incide em lineamentos, que atravessam tanto os 
grupos como os indivíduos. Análise do desejo, a Esquizoanálise é imediatamente 
prática, imediatamente política, quer se trate de um indivíduo, de um grupo ou de uma 
sociedade.Pois antes do ser, há a política. (DELEUZE & GUATTARI, 1996: 77-78). 
 
 A Esquizoanálise pode ser entendida como uma prática intercessora, que se 
incide sobre a micropolítica do desejo. Em sua aplicação se preocupa com os modos pelos 
quais as forças são agenciadas (agenciamentos), de modo a se preocupar com os 
lineamentos, quer sejam formatado por linhas duras, flexíveis ou de fuga. 
 Em sua prática orienta-se pela produção da subjetividade, que seria a matéria 
prima de toda forma de se compor com a vida, demonstrando assim, a forma como o sujeito 
se constitui e problematiza os modos de existencialização. 
 Trata-se de uma orientação que se direciona para uma ordem das sensações, ao 
invés de tomá-la como sendo da representação, mostrando seus platôs de intensidades, com 
seus diferentes graus de densidade e fluidez. Na composição do território existencial, linhas 
duras, flexíveis e de fuga se entrelaçam o tempo todo, possibilitando a efetuação da 
cartografia. 
 Conforme nos aponta GUATTARI & ROLNIK (1986), a subjetividade é 
produzida por agenciamentos de enunciação. Os processos de subjetivação não são 
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centrados em agentes individuais e nem grupais, eles são duplamente descentrados, pois, 
implicam no funcionamento de máquinas de expressão de natureza extrapessoal (sistemas 
econômicos, sociais, tecnológicos, políticos, etc.) e intrapessoal (sistemas de percepção, de 
sensibilidades, dos afetos, dos desejos, das imagens, etc.). 
 A subjetividade está em circulação nos conjuntos sociais, políticos e culturais, 
ela é social, heterogênea e polifônica, traduzindo-se como equipamentos coletivos de 
enunciação implicados no espaço social, distanciada da idéia de interioridade, em percurso 
político contínuo de intercessão. 
 Seguindo essa lógica, notamos a importância da conjugação da Esquizoanálise 
e os Estudos Culturais, de modo a precipitar misturas de desejos e culturas nos processos de 
subjetivação, ampliando as referências teóricas e metodológicas do fazer psi, apontando 
para a necessidade urgente de que as práticas clínicas contemplem as questões de classe, 
raça / etnia, relações de gêneros e de orientação sexual em suas análises, de modo a 
expandir os universos de referências e ampliar os coeficientes de transversalidades dos 
atores envolvidos no processo clínico. 
 É através dos devires em ação que a Esquizoanálise surge como possibilidade 
de povoamento do deserto. 
 
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 
 
DELEUZE, G. & GUATTARI, F. (1997) – “Devir - Intenso, Devir – Animal, Devir – 
Imperceptível”. In : DELEUZE, G. & GUATTARI, F. (1997) – Mil Platôs : Capitalismo e 
Esquizofrenia - Vol. 04. São Paulo, Ed. 34. 
DELEUZE, G. & GUATTARI, F. (1996) – “ 1874 – Três Novelas ou ‘O que se passou?’. 
In : DELEUZE, G. & GUATTARI, F. (1996) – Mil Platôs : Capitalismo e Esquizofrenia – 
Vol. 03. Rio de Janeiro, Ed. 34. 
GUATTARI, F. & ROLNIK, S.(1986) – Micropolítica : cartografias do desejo. Petrópolis, 
Ed. Vozes. 
FOUCAULT, M. (1985) – História da Sexualidade : a vontade de saber – Vol. 01. Rio de 
Janeiro, Ed. Graal. 
HALL, S (2001) – A Identidade Cultural na Pós– Modernidade. Rio de Janeiro, DP&A. .- 
LOURO, G. L. (1999) – O Corpo Educado: Pedagogias da Sexualidade. Belo Horizonte, 
Ed. Autêntica. 
NAFFAH NETO, A (1988) – O Inconsciente : um estudo crítico. São Paulo, Ed. Àtica. 
NAFFAH NETO, A (1998) – Outr´em mim : ensaios, crônicas. Entrevistas. São Paulo, 
Plexus Editora. 
PERES, W. S. (1999) – “Oficinas Terapêuticas, Esquizoanálise e Subjetividade”. Assis, 
PERFIL – Revista de Psicologia do Departamento de Psicologia Clínica / UNESP, v. 
12:79-88. 
ROLNIK, S. (1995) – “Subjetividade, ética e cultura nas práticas clínicas”. São Paulo, 
Cadernos de Subjetividade – PUC-SP, v.3:305-313.

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