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Infância e relações etnorraciais em pesquisa
por uma cosmovisão romântica, compreendia a criança a partir de si
mesma, considerando-a um cidadão em potencial, para quem a edu-
cação deveria respeitar seu desenvolvimento psicológico, sua natureza
sincera, espontânea e curiosa.
A concepção ceciliana de infância compreende, em linhas gerais,
um período dotado de particularidades que devem ser respeitadas pelo
adulto, como está posto nas várias crônicas dedicadas ao tema, quando
através de muitos exemplos e relatos de experiências, a cronista fala da
riqueza do universo infantil, no que tange à percepção, ao pensamen-
to e às atitudes da criança diante do mundo e da vida, convidando os
leitores a se tornarem novamente crianças. Eis alguns fragmentos ilus-
trativos retirados da crônica "O livro e a criança":
Uma menina perguntou-me, um dia, por que Deus não fazia árvores
azuis. Isso parece uma futilidade, mas envolve uma visão diferente
da paisagem. É uma outra paisagem, imaginada, que se faz sensível,
e vem pedir à menina as razões de sua impossibilidade (...). Li, certa
vez, num poema de um menino, esta coisa adorável: "dei um salto
melancólico"(MEIRELES, 2001, v. 5, p. 294).
A leitura dos trechos acima nos remete à constatação de que as
crianças, de um modo geral, são poetas em razão da experiência lin-
guística, lúdica e poética que vivenciam, antes mesmo de frequentarem
a escola, e esta, muitas vezes, não sabe aproveitar o potencial poético
da criança. Ao mesmo tempo, querer "árvores azuis" e "dar um salto
melancólico", a priori, não cabem na ordem lógica do mundo racio-
nal, mas, conforme Gaston Bachelard (1988, p.28), são perfeitamente
cabíveis nos devaneios da criança, nos quais a imagem prevalece acima
de tudo. No geral, a criança enxerga belo e seus devaneios restituem
a beleza das imagens primeiras. Por estas razões, uma das preocupa-
ções de Cecília Meireles é aproximar mais diretamente a Pedagogia
do lirismo da infância.
Ouvir as crianças, observá-Ias e permitir que falem são pressu-
postos indispensáveis ao projeto pedagógico ceciliano, associado à
necessidade de vê-Ias como seres pensantes, possuidores de forte ima-
ginação criadora, ludicidade e sensibilidade que as aproximam dos
poetas, como expressa Cecília na crônica intitulada "Como as crianças
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Infância e relações ernorraciais em pesquisa
pensam" (MElRELES, 2001, v.l). Esse pensamento encontra resso-
nância nos versos de Manoel de Barros:
o descomeço era o verbo. Só depois é que veio o
Delírio do verbo.
O delírio estava no começo, lá aonde a criança diz:
Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor,
mas para o som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.
E pois. Em poesia que é voz de poeta,
que é voz de fazer nascimentos
O verbo tem que pegar delírio.
(BA~OS,2007,p.15)
A relação existente entre o poeta e a criança parece paritária, pre-
valecendo o espírito de partilha e de comunhão, não podendo ser dife-
rente, uma vez que ambos vivem, geralmente, em um estado poético
e de contemplação diante do mundo e da vida, permeado, sobretudo,
pelo lúdico e pela fantasia. Logo, alimentar esse estado no homem
seria uma das contribuições que a educação escolar poderia oferecer
para o projeto de humanização de crianças, jovens e adultos, objeti-
vo que Cecília defendeu, seja através de sua atuação como professora,
seja mediante a sua participação no jornal como cronista da educação,
entre outras experiências.
Na mesma linha desse pensamento, o filósofo Gaston Bachelard,
ao tecer sua crítica à objetividade presente na educação contemporâ-
nea, chama a atenção para o papel da família e da escola na cisão entre
a subjetividade do mundo infantil e a objetividade do mundo adulto,
com o nítido afastamento do devaneio e da imaginação infantis.
Assim que a criança atinge a "idade da razão", assim que perde seu
direito absoluto de imaginar o mundo, a mãe assume o dever, como
fazem todos os educadores, de ensiná-Ia a ser objetiva - objeti-
va à simples maneira pela qual os adultos acreditam ser "objetivos"'.
Empanturramo-Ia de sociabilidade. Preparamo-Ia para sua vida de
homem no ideal dos homens estabilizados (BACHELARD, 1988,
p.101).
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As cronicas cecilianas sobre a infância nos fazem lembrar do
pensamento de Walter Benjamin (2002), porque trazem a visão da
criança como um ser de sensibilidade e imaginação criadora, inserida
na realidade histórico-social e capaz de recriá-Ia. Além disso, Cecília
e Benjamin discutem as premissas educacionais para a infância, dando
destaque à relação da criança com o outro.
E interessante observar a percepção arguta de Cecília Meireles
na análise das transformações de sua época sobre o universo infantil,
quando na crônica "A arte de brincar", lamenta que "os tempos andam
tão maus que as crianças já não sabem brincar". A autora, em tom
nostálgico, faz uma breve digressão sobre as mudanças no hábito de
brincar, o desaparecimento de certas brincadeiras coletivas e de alguns
brinquedos encantadores:
Em dias mais tranqüilos, elas gostavam de suas cantigas de roda,
tinham um largo repertório, e à tardinha e à noite brincavam pelos
quintais e pelas ruas, pelos jardins e pelas praças. Tinham também
jogos cantados e falados, resíduos ou esboços de teatro, e com eles se
entretinham alegremente. Os brinquedos simples, primitivos e eter-
nos, fáceis de obter e de conservar, não faltavam nem mesmo às mais
pobres; e quase se podia saber em que mês se estava pelo aparecimen-
to dos papagaios de papel ou das bolas de gude, do pião ou bilboquê.
(MEl RELES ,2001, v. 5, p. 369).
A crítica à sua época resvala para os dias de hoje, quando perce-
bemos, assim como a cronista em 1942, data da publicação da crônica
aludida, a incidência de crianças "irritadas e desnorteadas", envolvidas
por uma atmosfera de agitação "que as deixa sem a suficiente serenida-
de para apreciar a beleza simples das pequenas coisas" (MEl RELES,
2001, v. 5, p. 369), sobretudo, se considerarmos o predomínio da cul-
tura de massa e seus brinquedos eletrônicos no cotidiano de nossas
crianças, os quais pouco solicitam do consumidor o encontro com sua
subjetividade, o cultivo de sua afetividade e poder de reflexão, e muito
exigem posturas automáticas. Por outro lado, as experiências da cultu-
ra lúdica, que não se pautam pelo padrão dos brinquedos e brincadei-
ras da indústria eletrônica, parecem se prestar melhor ao desenvolvi-
mento psicoafetivo da criança.
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Infância e relações etnorraciais em pesquisa
Endossando essa ideia é que Cecília Meireles, na crônica ''As
crianças e os brinquedos", defende que "o brinquedo mais útil é aquele
que a criança cria, ela mesma, que procura realizar com o material de
que dispõe (MElRELES, 2001, vA, p.17). Em outro momento, nas
palavras finais da crônica ''A arte de brincar", Cecília, revelando uma
extraordinária atualidade e senso crítico, assim se pronuncia: "e é por
isso que eu digo que a arte de brincar se vai perdendo. A máquina está
gastando a infância". (MElRELES, 2001, v. 5, p. 371).
Essa afirmação nos transporta para o lugar ocupado pela cultura
lúdica em nossa sociedade, cujos desígnios capitalistas relegam o brin-
car à insignificância das coisas inúteis, numa perspectiva que se opõe,
especialmente, ao trabalho, atividade que sustenta a movimentação do
capital, seja através de mãos adultas ou infantis.
Em relação ao trabalho infantil, Cecília se coloca veementemente
contra, apresentando um retrato crítico da infância sacrificada:
Crianças que carregam ao colo os irmãozinhos, o dia inteiro, que
deles cuidam, enquanto a mãe anda noutros afazeres. Crianças que
vão à feira, que entregam roupa lavada, que carregam marmitas, que,
de mil e uma formas sacrificam o princípio da sua existência, sem
saber que a sacrificam, - embora nessa inconsciência fique um travo
de melancolia, qualquer coisa de saudade de uma vida que não tive-
ram, e que as acompanhará para sempre, como um veneno no sangue...
(MElRELES, 2001, v.l, p. 111).
o quadro do trabalho infantil descrito pela cronista já denota um
dos grandes problemas sociais que acompanha a história do Brasil há
muito tempo e que, com o passar dos anos, tem se ampliado, por conta
das poucas políticas públicas voltadas para a infância.
Na defesa que faz do brincar na vida infantil, Cecília Meireles
ressalta que: "uma criança que brinca é alguém que está mergulhado
no próprio infinito, nesse infinito de onde os adultos foram arranca-
dos, alguns à força, outros insensivelmente, e ao qual muitos ainda
podem regressar"(MElRELES , 2001, v.l, p. 210).
Ao brincar, o homem, independente de sua idade, (reslsignifica
seu mundo permeado pelo simbólico e experimenta a possibilidade
de reorganizar-se internamente de modo criativo, vibrante e prazero-
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Infância e relações ecnorraciais em pesquisa
so. Para a criança, a brincadeira colabora na interiorização do mundo
que a cerca, na troca com o outro, na sua constituição de sujeito, afinal
de contas, retomando as palavras de Schiller: "o homem joga somente
quando é homem no pleno sentido da palavra, e somente é homem
pleno quando joga" (SCHlLLER, 2002, p. 80).
A problemática inerente à poeticidade infantil tem aflorado algu-
mas indagações, sobretudo de poetas, como Carlos Drummond de
Andrade que, em consonância com o pensamento de Cecília Meireles,
questiona: "( ... ) não estará na escola, mais do que em qualquer outra
instituição social o elemento corrosivo do instinto poético da infância
que vai fenecendo à proporção que o estudo sistemático se desenvolve
(...)?"(ANDRADE, 1974, p.16).
É fato notório que as escolas, na sua maioria, privilegiam, ainda
hoje, os exercícios de metalinguagem e o uso da linguagem referencial,
deixando no esquecimento as vivências poéticas. A visão que Cecília
Meireles tem da criança pressupõe um modo diverso de ensinar, de
conduzir à descoberta, de revelar a beleza da vida.
Nesta perspectiva, Edgar Morin (2005, p. 48) dialoga com o pen-
samento ceciliano, quando também articula o aprendizado para a vida
à cultura das humanidades. Ele defende que "Literatura, poesia e cine-
ma devem ser considerados não apenas nem principalmente, objetos
de análises gramaticais, sintáticas ou semióticas, mas também escolas de
vida, em seus múltiplos sentidos [grifo do autor)". Em seguida, o pensador
francês delineia essas escolas como "Escolas [...] da qualidade poética
da vida e, correlativamente, da emoção estética e do deslumbramento."
A literatura surge como meio propiciador da vivência lírica na
educação, na medida em que permite ao leitor uma experiência sin-
gular diante da realidade, livre do rigor das práticas desempenha-
das socialmente. Nessa vivência estética, cria-se no leitor certo esta-
do lúdico que o aproxima da criança em seu brincar e em seu olhar
desautomatizado das coisas, produzindo sentidos que fogem à lógica
habitual. Neste aspecto, a poeta-educadora sugere: "É poesia que pre-
cisamos dar às crianças. Poesia natural, simples e profunda. Radicação
na vida. Visão da beleza do mundo. Amor à terra. O mais lhe virá por
acréscimo."( MEl RELES ,2001, v. 5, p. 353).
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Infância e relações ecnorraciais em pesquisa
Na discussão sobre literatura infantil, a poeta e educadora enfa-
tiza a relação profunda e necessária entre poesia e educação, afirman-
do que "é natural que haja entre educação e poesia uma assonância
completa, uma vez que ambas são a própria ansiedade de representar a
vida: uma imaginando-a, outra procurando cumpri-Ia, uma anuncian-
do-a, outra fixando-a em realidade". (MElRELES, 2001, v. 4, p. 75).
A respeito dessa relação, observamos que ainda há uma gran-
de distância entre poesia e educação, principalmente porque não se
reconhece, plenamente, a função social da poesia. Além disso, a forma
como a poesia chega à escola, marcada pelo utilitarismo, contribui
também para o distanciamento dessa relação.
2. A literatura de Cecília Meireles para a infância
Os estudos da história da literatura infantil no Brasil demons-
tram que a poesia para crianças, com raríssimas exceções, caracteriza-
va-se, até meados da década de 60, como um forte instrumento a ser-
viço de uma pedagogia conservadora, numa exaltação da pátria e dos
valores cívicos, morais e familiares.
O poeta, de modo geral, configurava a voz adulta que se colocava
num patamar superior ao da criança, ministrando-lhe valores éticos
e morais, relegando, a segundo plano, a vivência lúdica e o cotidiano
infantil. Com a publicação de Ou isto ou aquilo, obra modelar da lite-
ratura infantil brasileira, a poesia para crianças encontrou seu caminho
e seu público alvo, focando na criação poética o mundo da criança, seu
cotidiano e seus interesses, de modo criativo, alegre e lúdico, dando
ênfase às cantigas de roda, trava-línguas, parlendas e a outros brin-
quedos da infância.
Detentora de uma visão ampla da realidade, a poética cecilia-
na encontra-se estruturada a partir de jogos imagéticos, sonoros e de
ideias direcionados para uma educação estética do olhar, do ouvir,
do sentimento e do pensamento. No poema "Ou isto ou aquilo", por
exemplo, as dúvidas partem das questões do cotidiano para as questões
de natureza mais existencial ou filosófica e se apresentam aos leitores,
tanto os infantis quantos os adultos, organizadas através de uma estru-
tura binária que apresenta um paralelismo melódico, semelhante a um
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Infância e relações ecnorraciais em pesquisa
jogo deperguntas e de respostas estendido por todo o poema: "Ou se
tem chuva e não se tem so1/ ou se tem sol e não se tem chuva! Ou se
calça aluva e não se põe o anel,! ou se põe o anel e não se calça a luva!"
(MElRELES, 2001, v.2, 1483).
O compromisso da poeta e educadora com a permanência do
lúdico na infância aparece também em vários de seus poemas que se
voltam para a representação de brincadeiras e brinquedos de diversa
natureza. A este respeito, Hélder Pinheiro (2007), ao sugerir a utili-
zação dos jogos dramáticos como metodologia na leitura dos poemas
em salade aula, destaca:
a poetisa lança mão da brincadeira infantil como matéria de sua poe-
sia. Poemas como "Jogo de bola", ''A bailarina", "Colar de Carolina", ''A
chácara do Chico Bolacha", "O menino azul", "Leilão de jardim" e "Ou
isto ou aquilo" e tantos outros, embora nem sempre tragam diálogo
explícito, nos apresentam crianças em ação vendo, ouvindo, realizando
uma atividade lúdica (correndo, dançando, jogando, etc.). Esses poe-
mas devem ter nascido da observação do brincar das crianças, do modo
como elas se transformam em personagens, como atuam concreta ou
imaginariamente sobre a realidade. (PINHEIRO, 2007, p. 60).
Várias são as alusões ao lúdico do mundo infantil, presentes nos
poemas de Ou isto ou aquilo. Em "Roda na rua", temos a referência ao
espaço da rua para a movimentação das brincadeiras de criança: "Roda
na rua! a roda das danças /( ... ) Na roda da rua/ rodavam crianças".
(MElRELES, 2001, v. 2 p. 1508). O poema "Figurinhas", por sua vez,
em harmonia com o tom da crônica 'A arte de brincar', evidencia a
perda, nas comunidades urbanas, de espaços para brincar, destacando
também o desaparecimento de algumas brincadeiras infantis:
Onde está meu quintal amarelo e encarnado,
com meninos brincando de chicote-queimado,
com cigarras nos troncos e formigas no chão,
e muitas conchas brancas dentro da minha mão?
(...) Onde está meu anel e o banquinho quadrado
e o sabiá na mangueira e o gato no telhado?
(...) (MEIRELES, 2001, v. 2, p. 1494).
Em "Cantiga da babá", a poeta alude à figura de um menino que
brinca com a imaginação, fazendo de conta que é pescador, sapinho,
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Infância e relações ecnorraciais em pesquisa
índio e leão e, numa fala à parte, em tom de confidência e, possivel-
mente, dirigindo-se ao leitor, o eu lírico declara que, na verdade, o
garoto é "um anjo escondido".
Eu queria pentear o menino como os anjinhos de caracóis.
Mas ele quer cortar o cabelo, porque é pescador e precisa de anzóis.
Eu queria calçar o menino com umas botinhas de cetim.
Masele diz que agora é sapinho e mora nas águas do jardim.
Eu queria dar ao menino umas asinhas de arame e algodão.
Mas ele diz que não pode ser anjo, pois todos já sabem que ele é índio e
leão.
(Este menino está sempre brincando, dizendo-me coisas assim.
Mas eu bem sei que ele é um anjo escondido, um anjo que troça de mim).
(MEIRELES, 2001, v. 2, p. 1505).
Interessante destacar a comparação entre a criança e o anjo, cer-
tamente, em alusão ao espírito mágico infantil, ao mesmo tempo em
que a autora apresenta a imagem do anjo revestida de ludismo e faça-
nha, sugestivo de que a criança é um anjo que troça do adulto, pois
imagina que este acreditou no seu jogo de faz de conta.
A preocupação da escritora com a relação entre a criança e o
brincar também se manifesta nas crônicas de natureza lírica, entre as
quais destacamos "Brinquedos incendiados". A leitura dessa crônica,
quase sempre, conduz o leitor a considerá-Ia como um conto, dado
o seu caráter narrativo, presente já no início: "Uma noite houve um
incêndio num bazar" (MEl RELES, 2005, p. 121). Este fato, aparente-
mente comum, é o ponto de partida da autora para iniciar sua crônica
e, de certa forma, instaurar a adesão do leitor pelo viés narrativo, pois
abemos que desde os tempos mais remotos, a atividade de narrar tem
e associado à capacidade e necessidade humanas de trocar experiên-
cias, alimentando o homo ludens e imaginarius. A esse respeito, Walter
Benjamin destaca: "a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte
a que recorreram todos os narradores. E entre as narrativas escritas, as
melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas
pelos inúmeros narradores anônimos" (BENJAMIN, 1986, p.198).
Nessa crônica ceciliana frequentemente o tom lírico-emotivo per-
passa a sequência narrativo-descritiva, interessando mais à cronista a
imanência poética do acontecimento. Assim, o fato narrado ganha mais
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Infância e relações emorraciais em pesquisa
relevo por ser uma evocação memorialística da infância, apresentada
através do pronome nós, indicativo do aspecto confessional da presen-
ça da autora. Este fato contribui também para que o leitor se aproxime
mais da narrativa, pois a crônica, ao usar a primeira pessoa, seja singular
ou plural, desencadeia um tom de conversa entre autor e leitor.
De início, esta conversa parece manter-se no nível apenas da
memória do tempo de criança, em que se costuma desejar os brinque-
dos, sonhar com eles, mesmo na impossibilidade de tê-los. No entan-
to, Cecília Meireles não apenas relata o que aconteceu, mas reflete
sobre o fato de forma que a palavra "incêndio" tanto pode ser perce-
bida em seu sentido denotativo, servindo de mote para a descrição
da cena pelos olhares infantis, como no seu sentido simbólico, como
ocorre no final da crônica, associado não mais ao bazar, mas à vida
das crianças, trazendo à tona uma reflexão existencial, na medida em
que conduz o leitor a perceber-se na sua finitude, através da ideia de
morte metaforizada pelo incêndio dos brinquedos, que para as crian-
ças constituiu a dura aprendizagem da experiência da perda, inerente
à condição humana. No final da crônica, a escritora assim se expressa:
"E começávamos a pressentir que viriam outros incêndios. Em outras
idades. De outros brinquedos. Até que um dia também desaparecêsse-
mos sem socorro, nós, brinquedos que somos, talvez, de anjos distan-
tes!" (MElRELES, 2005, p. 122).
O texto "Brinquedos incendiados" evidencia a oposição de olha-
res para uma mesma cena, no caso, o incêndio na loja de brinquedos.
De um lado, o olhar comovido e pungente das crianças, que lamen-
tam a perda do sonho, metaforizado na imagem dos brinquedos, e, de
outro, o olhar dos adultos, lamentando a perda material.
O universo infantil aparece novamente ligado ao sonho: ''Amávamos
os brinquedos sem esperança nem inveja, sabendo que jamais chega-
riam às nossas mãos, possuindo-os apenas em sonho, como se para isso,
apenas, tivessem sido feitos" (MEl RELES, 2005, p.122). Neste aspec-
to, buscamos em Bachelard o suporte para situarmos a relação intensa
que se estabelece entre infância e imaginação criadora materializada no
devaneio, na extrema liberdade concedida a quem devaneia. Os deva-
neios, segundo Bachelard (1988), foram os primeiros responsáveis por
nossa liberdade na infância. Do mesmo modo, ainda hoje, é a partir
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Infância e relações ernorraciais em pesquisa
do devaneio, proporcionado pelo poético, que somos seres livres, pois a
maior liberdade concedida aos homens é a de sonhar.
Cecília Meireles, no livro Olhinhos de gato (2003), defende que a
imaginação criadora da criança pode se concretizar nas mais diversas
situações do dia a dia, levando-a a construir mundos imaginários e até
mesmo a interagir com as coisas e os seres inventados:
Há outros mundos, também, noutras coisas esquecidas; nas cores do
tapete que ora se escondem ora reaparecem, caminhando por direções
secretas. As pessoas de pé, olhando de longe e de cima, pensam que
tudo são flores, grinaldas de flores ... flores ... mas Olhinhos de Gato
bem sabe que ali há noites, dias, portas,jardins, colinas, plantas e gente
encantada, indo e vindo, e virando o rosto para lhe responder, quando
ela chama (MElRELES, 2003, p. 17).
O universo infantil, recorrente no ideário estético e pedagógico
de Cecília Meireles, aparece, nesta crônica, ligado ao sonho e à ima-
ginação das crianças leitoras que poderão não se contaminar pelos
valores mercadológicos dos brinquedos, para aderir ao valor simbólico,
numa identificação salutar com a voz do narrador.
Considerações finais
Cecília Meireles, em suas Crônicas de educação, defendeu a presen-
ça da poesia na vida e na educação da criança, especialmente porque
esta arte põe em evidência o lado palpável dos signos como brinquedo
sonoro e plástico, ao mesmo tempo em que privilegia as potencialida-
des criativas da linguagem feita jogo. Além disso, a educadora cronista
reconhece a importância da poesia simples do cotidiano infantil, pro-
veniente de seus devaneios ou criadas em sintonia com suas vivências.
Esta poesia-brinquedo pode ser o ponto de partida para o desenvol-
vimento da educação estética e da formação humana na escola, inte-
grando realidade e sonho, brincadeira e reflexão, enfim, arte e vida.
Referências
ANDRADE, Carlos Drummond de. A educação do ser poético. Arte e
Educação, ano 3, n. 15, out. 1974.
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