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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA "JÚLIO DE MESQUITA FILHO" FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO LINHA DE PESQUISA: PRODUÇÃO DE SENTIDO NA COMUNICAÇÃO MIDIÁTICA CARLOS ALBERTO GARCIA BIERNATH MARCAS DA IDENTIDADE DISCURSIVA NO JORNALISMO POPULARESCO: ANÁLISE DO ETHOS NOS TELEVISIVOS DOCUMENTO ESPECIAL, AQUI AGORA E BALANÇO GERAL BAURU 2016 CARLOS ALBERTO GARCIA BIERNATH MARCAS DA IDENTIDADE DISCURSIVA NO JORNALISMO POPULARESCO: ANÁLISE DO ETHOS NOS TELEVISIVOS DOCUMENTO ESPECIAL, AQUI AGORA E BALANÇO GERAL Dissertação apresentada ao programa de Pós- Graduação em Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", campus Bauru/SP, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Comunicação, sob orientação da Prof.ª. Dra. Eliza Bachega Casadei. BAURU 2016 Biernath, Carlos Alberto Garcia. Marcas da identidade discursiva no jornalismo popularesco: análise do ethos nos televisivos Documento Especial, Aqui Agora e Balanço Geral / Carlos Alberto Garcia Biernath, 2016 141 f. Orientador: Eliza Bachega Casadei Dissertação (Mestrado)– Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Bauru, 2016 1. Documento Especial. 2. Aqui Agora. 3. Balanço Geral. I. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação. II. Título. AGRADECIMENTOS Inicialmente, meu mais profundo agradecimento à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado e São Paulo, por acreditar e financiar meu projeto de pesquisa, sob o nº 2014/10866-8. O investimento me permitiu dedicação exclusiva ao projeto, o que amplificou ainda mais em mim a motivação em transmitir à sociedade todos os conhecimentos e ensinamentos adquiridos, sobretudo através do estímulo em seguir nesse ciclo de aprendizado. Tornar-se mestre não significa dominar os segmentos da comunicação que estudei. Muito pelo contrário. Em meu entendimento, a titulação favorece a uma vontade ainda maior de seguir trilhando o caminho, sempre com vistas ao outro, à alteridade. Por isso mesmo, abro meus agradecimentos citando grandes mestres com as quais tive o mais absoluto prazer de conviver, e que nessa coexistência, mesmo que em um singelo cumprimento, já emanavam aprendizado. Identificá-los não é tarefa fácil, uma vez que o discurso de todos os professores que tive se entrecortam ao meu. Começo por mencionar o meu mestre, amigo e oxalá companheiro de profissão Prof. Dr. Marcelo da Silva. Seus ensinamentos extrapolaram o âmbito acadêmico e inferiram diretamente em meus caminhos. Minha motivação para o olhar ao próximo e seguir em frente vem muito de você. Todos os dias comemoro a amizade contigo. Agradeço muito aos professores que transmitiram valiosas discussões e aprendizados ao longo destes 2 anos e meio de mestrado. Também aos professores que me deram aula ontem e hoje se tornaram amigos. Tive a satisfação única de conviver com professores que tiveram toda a atenção em analisar meu trabalho e me trazer apontamentos valiosíssimos, com a sensibilidade de quem se preocupa em ajudar seu aluno a desenvolver seu potencial: Prof.ª. Ma. Daniela Bochembuzo, uma líder, exemplo de jornalista correta e competente, além de grande incentivadora; Profª. Dra. Lígia Carvalho, uma guerreira; Prof.ª. Dra. Roseane Andrelo, tão cortês e gentil; Prof. Dr. Maximiliano Martin Vicente, que com suas visões e experiências ensina que comunicar é enxergar ao próximo; Prof.ª. Dra. Érika de Moraes, sempre muito atenciosa, que dedicou seu tempo a conduzir um curso de extensão que tão importante foi para a minha pesquisa; Prof. Dr. Antônio Francisco Magnoni, com quem não cheguei a ter aulas, infelizmente, mas que com sua garra em lutar ensina mesmo em conversas informais; Prof. Dr. Arlindo Rebechi Junior, que, com seus sábios olhares, me permitiu enxergar aspectos importantes para o desenvolvimento da minha pesquisa; Prof.ª. Dra. Rosana de Lima Soares, de excelente trajetória acadêmica, que cordialmente aceitou nosso convite e nos honrará com a participação na banca de defesa da pesquisa. Não poderia deixar de mencionar também minha orientadora, a querida e competentíssima Prof.ª. Dra. Eliza Bachega Casadei. Meus agradecimentos mais sinceros pela confiança em mim e em um projeto que só ganhou corpo e se tornou pesquisa por sua participação através de ensinamentos e estímulos. Agradeço também por sempre ser tão atenciosa e prestativa nos momentos em que mais precisei, pelas conversas tão produtivas, pela valiosa amizade e por todo o aprendizado. Aprendizado este que, aliás, se desenvolveu por meio da simplicidade e de uma didática tão apurada na sensibilidade ao tratar com o próximo. Direciono meus agradecimentos também aos colegas de mestrado, que boas discussões geraram em aulas, me permitindo assimilar olhares que não faziam parte de mim, mas que me ajudaram e ajudarão nos estudos sobre comunicação. Agradeço aos amigos que tanta diferença fazem em minha vida. Victor, Bruno e Felipe, que fazem parte do meu discurso e sempre estão comigo – apesar da distância –, e me trazem a certeza de um convívio baseado em respeito, lealdade e admiração mútua. Também menciono meu amigo e companheiro de jornada Fernando Strongren, que mantém sua trajetória influenciando seus colegas a seguir firme na jornada, tal como me influenciou durante a graduação. Aos sempre atenciosos e prestativos funcionários do setor de pós-graduação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp, Hélder e Sílvio. Muito obrigado pelas conversas prazerosas, ao mesmo tempo descontraídas, de ajuda e ensinamentos. À minha família, epicentro do meu desenvolvimento como ser humano. Obrigado pela confiança em meu trabalho, por acreditarem e apoiarem um propósito de vida que se desenvolve a partir do bem que vocês fazem a mim e que tanto quero repassar à sociedade. Honradez, honestidade e garra, para mim, são significados a partir da existência de vocês. Por fim, e não menos importante, quero agradecer ao destino por uma herança muito especial desse período de mestrado: meu amor, minha companheira, namorada, amiga e confidente, Kelly De Conti Rodrigues. Tão logo o caminho demandou uma entrega ao crescimento proporcionado pelo aprendizado, tão logo nos identificamos e nos apaixonamos. A trajetória se tornou muito mais doce e sensível ao seu lado. Uma pessoa que exala compaixão a cada palavra, cada gesto, cada discurso. Conviver com você é como enxergar a alma das pessoas que nos rodeiam. Abraçá-la é sentir o lampejo da ternura; sentir suas mãos junto às minhas é sentir uma injeção de alteridade que toma conta de mim. Sem você, o caminho não seria de tanta esperança como é. “A televisão serve para entreter, serve para informar. Mas ela é, sobretudo, um meio de expressão incrivelmente nobre” (Nelson Hoineff). RESUMO Em virtude das buscas por novas e ávidas informações, além da desenfreada luta pela audiência, novos modelos de ‘fazer jornalismo’ aparecem nos veículos televisivos e alternam o discurso identitário jornalístico. De tal modo, algumas produções, que conquistaram bons índices de audiência, têm feito uso de algumas estratégias a fim de atingir seus objetivos, que vão desde a utilização de diferentes discursos baseados em “verdadesmidiáticas” até os chamados “efeitos de verdade”, que demarcam seu ethos discursivo. Em vista de tais apontamentos, esta pesquisa pretende revisitar alguns modelos de jornalísticos popularescos significativos – em termos de inovação no fazer noticioso e na representação discursiva – das décadas de 80, 90 e 2000/10 do século XX: Documento Especial – Televisão Verdade (década de 80); Aqui Agora (década de 90); e Balanço Geral (surgido na primeira década dos anos 2000 e ainda no ar), à luz da análise de discurso de tradição francesa, da análise retórica e da análise de elementos que compõe a narrativa sonoro-imagética. Esse entrecruzamento metodológico nos possibilitou trabalhar com o ethos projetado na enunciação de cada uma das atrações supracitadas, no qual procuramos depreender como a identidade jornalística era construída em seu conteúdo discursivo através de projeções ethópicas. PALAVRAS-CHAVE: Análise do Discurso; Ethos; Documento Especial; Aqui Agora; Balanço Geral. ABSTRACT Because of the search for new and eager information, and the unbridled struggle for the hearing, new models of 'journalism' appear on television vehicles and alternate journalistic identity discourse. In this way, some productions that have won good audience ratings, have made use of some strategies in order to achieve their goals, ranging from the use of different discourses based on "media truth" to the so-called "real effects" that demarcate its discursive ethos. In view of such notes, this research aims to revisit some models of significant popularescos journalism - in terms of innovation in news making and discursive representation - of the 80, 90 and 2000/10 of the twentieth century: Documento Especial – Televisão Verdade (decade 80); Aqui Agora (90s); and Balanço Geral (emerged in the first decade of the 2000s and still in the air) in the light of discourse analysis of French tradition, rhetorical analysis and analysis of elements that compose the sound-imagistic narrative. This methodological lathing enabled us to work with the ethos designed in the enunciation of each of the above attractions, in which we try to infer how the journalistic identity was built in its discursive content through ethopics projections. KEYWORDS: Discourse Analysis; Ethos; Documento Especial; Aqui Agora; Balanço Geral. SUMÁRIO RESUMO ................................................................................................................................. 07 ABSTRACT ............................................................................................................................ 08 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11 CAPÍTULO 1 – OS ESTUDOS DA COMUNICAÇÃO EM DIFERENTES MOMENTOS E A NOTÍCIA COMO ACONTECIMENTO DISCURSIVO ........................................... 15 1.1 OS PRIMEIROS MOMENTOS DOS ESTUDOS DA COMUNICAÇÃO ....................... 15 1.2. OS TRÊS PONTOS DA CONFIGURAÇÃO DISCURSIVA .......................................... 17 1.3 A MECÂNICA DAS CONSTRUÇÕES DE SENTIDO DA NOTÍCIA ........................... 17 1.4 O ACONTECIMENTO E A NOTÍCIA ............................................................................. 19 1.5 O ‘REAL’ E AS CONSTRUÇÕES DE VERDADE NA PRODUÇÃO NOTICIOSA ..... 21 1.6 EFEITO DE VERDADE E VALORES DE VERDADE ................................................... 22 1.7 CONSIDERAÇÕES SOBRE CULTURA POPULARESCA NA TELEVISÃO .............. 25 1.8 O LEITOR EMPÍRICO E O LEITOR-MODELO ............................................................. 26 CAPÍTULO 2 – ETHOS E DISCURSO JORNALÍSTICO ................................................ 31 2.1 A RETÓRICA ARISTOTÉLICA ....................................................................................... 32 2.2 A TRÍADE DISCURSIVA QUE MOBILIZA A PERSUASÃO: ETHOS, PATHOS E LOGOS ..................................................................................................................................... 33 2.3 O ETHOS NA RETÓRICA ARISTOTÉLICA .................................................................. 35 2.3.1 Ethos retórico e ethos a partir da análise do discurso .............................................. 37 2.4 POR UM ETHOS CRÍVEL ................................................................................................ 38 2.5 A CONFORMAÇÃO IDENTITÁRIA DO SUJEITO-JORNALISTA ............................. 41 2.6 O ETHOS POPULARESCO .............................................................................................. 43 2.7 PROBLEMAS INERENTES AO ETHOS ......................................................................... 44 CAPÍTULO 3 – A TELEVISÃO BRASILEIRA E SUAS IMBRICAÇÕES AOS PROGRAMAS POPULARES ............................................................................................... 46 3.1 O SURGIMENTO DA TELEVISÃO ................................................................................ 46 3.1.1 Transmissões televisivas .............................................................................................. 46 3.1.2 O fazer-televisão .......................................................................................................... 47 3.2 OS PRIMÓRDIOS DA TELEVISÃO BRASILEIRA ....................................................... 49 3.2.1 Fase do surgimento ...................................................................................................... 51 3.2.2 Quando o popularesco assume formato nos programas televisivos ........................ 52 3.2.2.1 Os fait divers ......................................................................................................... 54 3.2.2.2 O primeiro programa “mundo cão” e o aumento da audiência televisiva .......... 58 3.2.3 Fase do autocentramento ............................................................................................ 59 3.2.4 O Povo na TV ................................................................................................................ 60 3.3 A AMPLIAÇÃO DO “POPULARESCO” E O SURGIMENTO DE NOVAS ATRAÇÕES .................................................................................................................................................. 61 3.3.1 O Documento Especial – Televisão Verdade ............................................................... 61 3.3.2 O Aqui Agora ................................................................................................................ 64 3.3.3 O momento atual da televisão no Brasil e o início do Balanço Geral ...................... 67 CAPÍTULO 4 – A ANÁLISE DO DISCURSO DE TRADIÇÃO FRANCESA COMO CAMPO TÉORICO-METODOLÓGICO ........................................................................... 69 4.1 O DISCURSO .................................................................................................................... 69 4.2 A ANÁLISE DO DISCURSO COMO METODOLOGIA ................................................ 72 4.2.1 A AD enquanto instrumento para análise ethópica .................................................. 72 4.3 ELEMENTOS ATUANTES NA FORMAÇÃO DO SENTIDO DISCURSIVO .............. 73 4.3.1 Pressuposições e subjetividades: o dito e o não-dito ................................................. 74 4.3.2 Condições de produção do discurso ........................................................................... 75 4.3.3 Interdiscuro .................................................................................................................. 76 4.3.4 Polissemia e Paráfrase .................................................................................................78 4.4 ELEMENTOS TÉCNICOS DE COMPOSIÇÃO IMAGÉTICA ....................................... 80 4.4.1 Ponto de vista e ponto de escuta na narrativa audiovisual ...................................... 80 4.4.2 O enquadramento ........................................................................................................ 81 4.4.3 Planos de câmera ......................................................................................................... 81 4.4.4 A trilha sonora ............................................................................................................. 83 4.5 RECORRÊNCIAS DISCURSIVAS .................................................................................. 83 4.6 RETÓRICAS ...................................................................................................................... 84 4.6.1 Argumento de autoridade ........................................................................................... 84 4.6.2 Elementos pathéticos .................................................................................................... 85 4.7 CORPUS DE ANÁLISE .................................................................................................... 86 4.7.1 Documento Especial – 1ª edição: A pungente “Guerra Social” ............................... 86 4.7.2 Documento Especial – 2ª edição: A ‘invasão’ de espaço em “Os Pobres vão à Praia” .................................................................................................................................................. 88 4.7.3 Documento Especial – 3ª edição: As violentas “Noites Cariocas” ........................... 89 4.7.4 Aqui Agora – 1ª edição: A “gangue” que caçou o carro-forte em uma perseguição “infernal” ................................................................................................................................. 90 4.7.5 Aqui Agora – 2ª edição: A chacina e o policial “covardemente” assassinado......... 92 4.7.6 Aqui Agora – 3ª edição: A “implacável” perseguição aos “matadores da policial” .................................................................................................................................... 93 4.7.7 Balanço Geral – 1ª edição: A troca de tiros entre bandidos e polícia...................... 94 4.7.8 Balanço Geral – 2ª edição: O professor morto .......................................................... 95 4.7.9 Balanço Geral – 3ª edição: O “suspeito” que invadiu salão e matou a mulher ...... 96 CAPÍTULO 5 – ANÁLISES DOS OBJETOS EMPÍRICOS ............................................. 99 5.1 IMAGEM, SOM E RETÓRICA ........................................................................................ 99 5.1.1 Enquadramentos e tomadas de câmera ..................................................................... 99 5.1.1.1 Plano geral ......................................................................................................... 100 5.1.1.2 Plano médio ........................................................................................................ 101 5.1.1.3 Primeiro plano .................................................................................................... 102 5.1.1.4 Plano-sequência e câmera nervosa .................................................................... 104 5.1.2 Os efeitos sonoros ...................................................................................................... 110 5.1.3 Argumentos e provas retóricas na projeção de uma ‘verdade’ discursiva .......... 112 5.2 RECORRÊNCIAS DISCURSIVAS BASEADAS EM PARÁFRASES ......................... 123 5.2.1 A projeção ethópica a partir de termos compartilhados ........................................ 123 5.2.2 Paráfrases discursivas ............................................................................................... 126 5.3 A IDENTIDADE ETHÓPICA NO DISCURSO DAS ATRAÇÕES ............................... 130 5.3.1 Ethos crível e de violência ......................................................................................... 131 5.3.2 Ethos de indignação e impunidade ........................................................................... 132 5.3.3 Ethos de justiceiro e ethos policial ............................................................................ 133 À GUISA DE CONSIDERAÇÕES ..................................................................................... 134 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 138 11 INTRODUÇÃO Desde 1950, quando a primeira emissora surgiu no Brasil (FEDERICO, 1982), o veículo televisivo participou alternâncias significativas em seus produtos, logo após assumir produções semelhantes aos do rádio. De início, a televisão era mais restrita a um nicho elitista da população brasileira, por conta dos altos preços cobrados pelos aparelhos. Contudo, em 1964, com a queda destes preços, a televisão se tornou mais acessível, chegando a um momento em que atingia um público mais massivo. A partir de então, programas de auditório e mesmo aqueles tidos como sensacionalistas assumem um bom espaço nas produções televisivas (MATTOS, 2010). Com isso, produções de semelhante teor conquistaram espaço junto ao veículo televisivo pois, embora para alguns tais programas aparentem esse “baixo nível”, há produções e escolhas linguísticas e composicionais sofisticadas, que desenham um discurso muito bem trabalhado e disposto. Tais técnicas de produção podem ser reveladas através do ethos discursivo dos programas. Quando enuncia um discurso, o orador externa uma imagem de si próprio ao seu público. Essa imagem, quando bem trabalhada, remonta à persuasão, cumprindo o objetivo de bem suceder o discurso – no caso dos objetos desta pesquisa, os telespectadores. De tal modo, essas produções revelam também o que seria pertencente à cultura popularesca. O entendimento sobre popularesco, que parece não deter uma definição exata, perpassa o que alguns autores percebem ser uma tentativa de representar a cultura popular, mas produzida por pessoas que não fazem parte dessa cultura. Disso decorre o entendimento de que o popularesco se assenta como fragmentos de cultura popular, que na verdade representam a visão dos produtores sobre esta cultura. Dentre os programas que representam esse formato jornalístico peculiar, selecionamos aqueles que entendemos terem sido relevantes em termos de inovação no fazer-jornalismo e nas representações identitárias projetadas. Para isso, selecionamos o Documento Especial – Televisão Verdade, exibido na Rede Manchete entre o final da década de 1980 e final da década de 1990; o Aqui Agora, transmitido pelo SBT desde o início da década de 1990 até o final da mesma década; e o Balanço Geral, veiculado pela Rede Record e televisionado desde o início da década de 2000 até os dias atuais. Pensar nestes programas significar entender como tais projeções discursivas se deram no caráter jornalístico destas atrações. Se é a linguagem que demarca sentidos, “os processos discursivos constituem a fonte da produção dos efeitos de sentido no discurso e a língua é o lugar material em que se realizam os efeitos de sentido” (BRANDÃO, 2002, p. 35). Por isso, 12 enquanto discurso, a linguagem não deve ser considerada natural ou inocente. “Ela (a linguagem) é o ‘sistema-suporte das representações ideológicas (...) é o ‘medium’ social em que se articulam e defrontam agentes coletivos e se consubstanciam relações individuais” (BRAGA 1980 apud BRANDÃO 2002). Ainda sobre o suporte metodológico, a retórica assume uma função importante para quem proclama este discurso. Constituir os elementos apresentados na retórica aristotélica pode significar buscar a persuasão, pormeio de um envolvimento com a plateia através da emoção (pathos), da própria imagem de si (ethos), conforme apontamos anteriormente, e da argumentação lógica (logos). Essas representações de ethos influenciam no sucesso do discurso. Elas podem revelar as intenções do orador quando este participa sua enunciação. Por se tratar de produtos audiovisuais, uma vez que são veiculados na televisão, os programas popularescos mencionados também criam suas narrativas a partir de estratégias de composição imagética, mais precisamente em enquadramentos e em planos de tomada. Cada tipo de enquadramento indica uma forma diferente de contar uma história. Enquadramentos mais aproximados revelam um favorecimento aos detalhes, enquanto os mais distantes visam o contexto da cena. Os planos-sequência são empregados no sentido de aproximar o telespectador ao fato retratado. Os expedientes sonoros, por sua vez, também auxiliam na produção de efeitos de sentido do produto audiovisual. Uma trilha mais dramática, por exemplo, pode indicar um efeito mais chocante ao conteúdo mostrado. Em vista dos apontamentos citados acima, a presente pesquisa objetivará, fundamentalmente, identificar a identidade discursiva dos programas selecionados, com base nas diferenças e semelhanças ethópicas sobre como cada objeto empírico trabalhou a linguagem e a retórica imagética. O estudo será desenvolvido tomando por base as metodologias da análise do discurso de tradição francesa, da análise retórica e da análise de composição dos elementos imagéticos-sonoro. Assim, para as análises definimos o campo temático da violência social como critério de escolha, centrando nosso foco em reportagens que versem sobre crimes de variados tipos de violência, como assaltos, assassinatos e conflitos que envolvam, na cobertura popularesca (re)tratada por nossos objetos empíricos, a sociedade. Decidimos explorar tal temática por esta ser, em nosso entender, uma das que melhor representa a essência dos programas popularescos através de um discurso comumente compartilhado entre os programas – apesar de alternância no modo de fazer jornalismo –; de estereótipos engendrados entre o ‘bem’ X o ‘mal’; de 13 recorrentes premências duais de teor classista, alocadas em argumentos que se estruturam com base na ‘impunidade’; e na emergência de levar tais pautas ao telespectador. Nesse caminho, no primeiro capítulo discutiremos a questão discursiva como emergente nos estudos da comunicação mais atuais. Também nos debruçaremos sobre os conceitos que envolvem a criação e transformação do acontecimento em notícia. Discutiremos também algumas estratégias que visam conferir uma “verdade” discursiva nos produtos jornalísticos, reveladas através de opiniões e argumentos que envolvam o emocional da audiência. Na discussão sobre popularesco, abordaremos algumas definições de autores clássicos, no propósito de engendrarmos uma base teórica sobe o assunto. Por fim, comentaremos sobre algumas disposições colocadas através de um leitor modelo – suposto no discurso – que pode ser visado na constituição discursiva dos nossos objetos. A partir do segundo capítulo entraremos no conceito de ethos sob o viés discursivo e retórico. Por se tratar do conceito-chave de nossa pesquisa, exploraremos nossas observações sobre o ethos na retórica aristotélica, sobre como o conceito pode criar uma identidade ao sujeito-jornalista, como poderá ser trabalhado a fim de criar efeitos de credibilidade e as sutis diferenças entre o ethos trabalhado na retórica por Aristóteles e como o conceito é entendido nos quadros da análise de discurso de tradição francesa. Encerraremos a discussão relacionando os problemas que um ethos pré-discursivo pode ocasionar. Na sequência, no terceiro capítulo revisitaremos um breve histórico da televisão brasileira a partir dos eventos que marcaram sua existência e o fazer-televisão por parte dos produtores. Ainda no trajeto histórico, relembraremos alguns programas de cunho popularesco que foram relevantes nessa trajetória. Discutiremos também como esse popularesco pode ser colocado nos programas, ao analisarmos a cultura popular e seus vieses no veículo televisivo. Por fim, discutiremos nossos objetos em um percurso histórico e conceitual. No quarto capítulo, apresentaremos as metodologias que entrecruzarão este trabalho, ressaltando a análise de discurso de tradição francesa e a análise da composição sonora e imagética, ancoradas em preceitos linguísticos, argumento de autoridade, termos e estratégias que visam representar os efeitos de verdade almejados pelos programas na busca da identificação junto à audiência, e mesmo elementos que auxiliam no relato da narrativa audiovisual, como planos de tomada da imagem, enquadramentos de câmera e trilhas sonoras. Munidos do conteúdo teórico, no quinto capítulo analisaremos os objetos em função de nossas observações sobre cada edição escolhida como corpus. Pretendemos assim discernir 14 sobre a configuração ethópica e sobre os pressupostos discursivos inerente aos programas de cunho popularesco que delimitamos como nossos objetos empíricos. Observar a constituição ethópica dos programas popularescos pode nos levar a entender como estas produções conseguiram, de maneira tão bem sucedida, conquistar a audiência através de traços do que seria o cotidiano da cultura popular – o que, conforme alocamos acima, pertence ao popularesco. Nas conflituosas colocações em que os atores das reportagens são dispostos, o discurso dos programas guarda em seu bojo intencionalidades quando da divulgação de um fato. Quando estes conflitos se desdobram entre questões sociais e de segurança pública, cada ‘lado’ parece assentar um lugar específico nessas narrativas: compõe- se infindáveis cenários em que essas batalhas dicotômicas ganham a atenção das câmeras. Aos produtores dos programas jornalísticos, a televisão reserva recursos que permitem captar, por excelência, imagens e sons do que estaria em ruptura com a normalidade. Cabe a estes operadores da notícia decidir sobre o nível de detalhamento que darão ao retratado, bem como a oportunidade de estreitar laços com o telespectador na aproximação que uma sequência imagética, sem cortes, pode representar. Como se não bastasse, trilhas sonoras são mobilizadas em todo esse discurso, com fins de exaltar verdadeiros momentos de clímax nos programas. De perseguições policiais a um tour por um cenário de violência; de nomeações simbólicas aos atores das reportagens por parte dos produtores televisivos a comentários que reforçam essencializações – que podem ser opacas –, o telespectador se entretém enquanto visita lugares e situações que nunca poderia visitar se não estivesse assistindo televisão. 15 CAPÍTULO 1 – OS ESTUDOS DA COMUNICAÇÃO EM DIFERENTES MOMENTOS E A NOTÍCIA COMO ACONTECIMENTO DISCURSIVO A fim de cravarmos as bases de sustentação da presente pesquisa, inicialmente elucidaremos a forma como os estudos da comunicação entenderam a produção noticiosa ao longo do tempo. Em um primeiro momento, explicaremos a estruturação discursiva da notícia – em comparação às fases primárias que estudavam os efeitos da comunicação a curto, a médio e a longo prazo na audiência – e a questão de que toda reportagem se constitui sempre como um acontecimento discursivo, oriundo de um olhar do sujeito-jornalista, mas que também sofre transformações ao longo de todo o processo de produção. Por esse motivo, as construções de verdade do fazer-noticioso são também edificadas em torno de um saber narrar característico. Por fim, essas construções de verdade devem se apoiar em materializações específicas na própria construção da notícia, de forma que o ethos discursivo se torna um conceito útil para delimitarmos uma dessas materializações. Tais discussõesserão esmiuçados a seguir. 1.1 OS PRIMEIROS MOMENTOS DOS ESTUDOS DA COMUNICAÇÃO Na história das teorias da comunicação, muitos teóricos já tentaram estipular por que as notícias são como são (TRAQUINA, 2005). Nesses estudos, as diversas teorias apresentadas podem ser classificadas em dois períodos, de acordo com Wolf (2012): a fase inicial, que contemplava as primeiras teorias, e nela as pesquisas indicavam uma maior preocupação nos efeitos a curto-médio prazo1, e a segunda fase, composta por teorias que detinham uma preocupação com os efeitos da mídia a longo praz. Essa fase inicial abarcou estudos que tiveram início entre os anos 20 e 30 do século XX, com a teoria hipodérmica. Posteriormente, novos modelos de superação da teoria surgiam e mostravam uma preocupação que extrapolava o limite do efeito da mensagem na audiência. Outra importante teoria desse período foi a teoria crítica, originária da Escola de Frankfurt, que surge, de fato, no período pós-guerra, uma vez que o Instituto (então conhecido como Escola de Frankfurt) fora fechado com o advento do nazismo. Assim, a teoria se desenvolve partir de parâmetros marxistas e de uma crítica à racionalidade instrumental. Para isso, utilizava o conceito de indústria cultural para explicar, essencialmente, conforme assevera Wolf (2012, p 73), a “separação e (...) a oposição entre indivíduo e sociedade (como) o resultado histórico da divisão de classe”. Dela surgiu o conceito de indústria cultural. 1 Não pretendemos entrar em pormenores das teorias da comunicação uma vez que o objetivo deste trabalho reside na questão discursiva do jornalismo, que entendemos ser uma fase mais recente dos estudos da comunicação. 16 Já na segunda fase, as teorias mais recentes – estabelecida por Wolf (2012) como teorias do jornalismo – enfatizam uma preocupação a longo prazo no estudo dos efeitos de comunicação, conforme colocamos. A primeira destas linhas é representada pela hipótese2 da agenda-setting ou hipótese do agendamento. Nela, há a ideia de que a mídia é a instância responsável por impor os assuntos que irão ao conhecimento das pessoas, algumas vezes destacando um determinado fato, mas, em contrapartida, omitindo outros, ao sabor de seus interesses pré-estabelecidos. A teoria do newsmaking é a segunda teoria que faz parte dessa fase mais atual dos estudos da comunicação. Essencialmente, duas perguntas definem bem seu âmbito: “Qual imagem do mundo passam os noticiários radiotelevisivos? Como essa imagem se correlaciona com as exigências cotidianas da produção de notícias nas organizações radiotelevisivas?” (GOLDING-ELLIOTT, 1979, p.1 apud WOLF, 2012, p. 193). Assim, na “criação da notícia” (tradução do termo que dá nome a teoria), torna-se importante entender o contexto que envolve a produção da informação. Para esse quadro teórico, também é preciso considerar as condições e restrições ligadas à organização do trabalho, pois são elas “que determinam a definição de notícia, legitimam o processo de produção e contribuem para prevenir as críticas do público” (GARBARINO, 1982, p. 12 apud WOLF, 2012, p. 195). Essas condições é que determinaram a noticiabilidade de cada informação, julgando assim se estas são aptas ou não a serem publicadas. Estas mesmas condições são denominadas por alguns autores como ‘valores- notícia’. Portanto, são eles que valorarão um fato que poderá ser publicado ou não. Tais linhas explicam porque as notícias são como são a partir de óticas bastante específicas que, de uma maneira geral, podem ter sido revistas pelos estudos mais recentes – contudo, não nos debruçaremos sobre estes dois primeiros momentos dos estudos da comunicação uma vez que consideramos mais adequado à nossa pesquisa abordarmos o terceiro momento, de acordo com os objetos empíricos selecionados. Uma terceira linha, que emerge a partir da década de 1960, pode ser destacada nos estudos de comunicação por, diferentemente das anteriores, levar em consideração a estruturação discursiva da notícia e dos processos noticiosos. Tal abordagem direciona o estudo para o campo específico de como um evento se transforma em um acontecimento após uma série de mecanismos de semantização específicos da prática jornalística. Portanto, é nesse raciocínio que este trabalho pretende desenvolver seu percurso teórico-metodológico: a partir 2 Embora conste como teoria em alguns livros, trataremos essa ideia do agendamento como hipótese, uma vez que Hohlfeldt (1997) assim a coloca por não ser um paradigma fechado e envolto à concretudes metodológicas. 17 da estruturação do discurso jornalístico. Aqui, a notícia se assenta em determinadas bases que a conformarão. 1.2. OS TRÊS PONTOS DA CONFIGURAÇÃO DISCURSIVA Este procedimento discursivo – por nós percebido como fulcral para o entendimento da comunicação como um processo –, de acordo com Charaudeau (2012), pode ser percebido como uma sequência de bases cruciais: a mecânica de construção dos sentidos; a natureza do saber que é transmitido pelo acontecimento; e o efeito de verdade – assim interpretado pelo receptor. O presente trabalho se insere nessa linha de estudos da comunicação: mais especificamente, remeteremos ao uso dos estudos do discurso para aprofundarmo-nos no ethos discursivo, a fim de entendermos como se constrói a informação jornalística nos programas estudados, a partir da configuração de um discurso que constrói um enunciador jornalístico bastante específico e historicamente marcado. 1.3 A MECÂNICA DAS CONSTRUÇÕES DE SENTIDO DA NOTÍCIA Se é no discurso que buscaremos aprofundar nosso estudo, visando entender os meandros que caracterizam a informação jornalística, é preciso compreender como a notícia se constitui, desde sua observação por parte do sujeito-jornalista. De acordo com Rodrigues (1990, p. 2), a notícia em si é “uma espécie de acontecimento segundo, provocado pela própria existência do discurso jornalístico”. Com tal entendimento, é possível afirmar que o ‘acontecimento jornalístico’ será conformado por parte do sujeito-jornalista que o produziu e do veículo midiático que o divulgou. Aqui, cabe ressaltar, a notícia será um tipo de produto final composto pelo relato do observador de um acontecimento jornalístico somado aos critérios do veículo que ao produz, podendo ser moldado de acordo com circunstâncias que envolvam linha editorial do veículo, por exemplo. Portanto, após constituída, a notícia trará consigo um outro acontecimento em sua própria narrativa. É justamente nesse caminho que a mecânica de construção do sentido da notícia se compõe por um duplo processo, segundo Charaudeau (2012): transformação e transação. No processo de transformação, aponta Charaudeau (2012, p. 41), “há o movimento de “transformar o ‘mundo a significar’ em ‘mundo significado’, estruturando-o segundo um certo número de categorias que são, elas próprias, expressas por formas”. Nisso, tais categorias agirão na identificação dos seres do mundo “nomeando-os”, “qualificando-os” com determinada propriedades, “narrando” as ações destes seres, “argumentando” o motivo dessas ações e 18 “modalizando-os” conforme suas atitudes e ações (CHARAUDEAU, 2012). Pensando nos programas jornalísticos de cunho popularesco, vislumbramos a participação dos personagens retratados como algo fulcral na transformação da notícia: um crime – talvez a temática mais abordada em tais programas –, por exemplo, envolverá a vítima, o criminoso e, possivelmente, a polícia, daí prosseguindo com a narrativa do ocorrido a partir da identificação destes três personagens. Em síntese, o processo de transformação deve: “descrever (identificar-qualificar fatos), contar (reportar acontecimentos), explicar (fornecer as causas desses fatos e acontecimentos)”(CHARAUDEAU, 2012, p. 41). No processo de transação, o sujeito produtor do ato linguístico dará uma significação psicossocial a seu discurso, conferindo a este um determinado objetivo. Retomando o exemplo que trouxemos acima, de uma reportagem sobre um crime, é no processo de transação que os seres identificados – representados por nossos personagens – tomarão o significado psicossocial que o sujeito-jornalista lhes imporá. Disso decorre a base da reportagem: o ‘sofrimento’ da vítima, a ‘audácia’ do criminoso e a busca pela justiça por parte da instituição que deve manter a ordem. Aqui se coloca, portanto: as hipóteses sobre a identidade do outro, o destinatário-receptor, quanto a seu saber, sua posição social, seu estado psicológico, suas aptidões, seus interesses etc.; o efeito que pretende produzir nesse outro; o tipo de relação que pretende instaurar com esse outro e o tipo de regulação que prevê em função dos parâmetros precedentes (CHARAUDEAU, 2012, p. 41). Ainda neste processo de transação, podemos inferir que os sujeitos interagirão conforme suas contribuições enquanto participam do jogo comunicativo: haverá uma espécie de circulação de um objeto de saber que um pode possuir e o outro não, pois um deles será o responsável por transmitir, enquanto o outro ficará com a função de receber, compreender e interpretar, sofrendo assim uma alteração em seu estado inicial de conhecimento. De tal modo, é no ato de informar – processo em que a notícia se insere – que o processo de transação se insere. O processo de transação comandará o processo de informação, ainda conforme Charaudeau (2012). Esquematizando a constituição da notícia, teremos: 19 Figura 1 – O esquema constitutivo da notícia Fonte: Charaudeau (2012, p. 42) Assim, para entendermos as estruturações discursivas da notícia é preciso considerar, ainda, que há uma diferença fundamental entre o acontecimento e a notícia. Fatores como o olhar subjetivo do sujeito jornalista, as estratégias dos veículos para legitimar a notícia e até mesmo a linha editorial destes veículos influenciam o processo de transformação de acontecimentos à notícias, conforme apontamos acima. 1.4 O ACONTECIMENTO E A NOTÍCIA Partindo da premissa de que há jornalismo – ou deve(ria) haver – no momento em que ocorre a ruptura de um fato, ou seja, a ‘quebra’ da normalidade, entende-se que esse acontecimento interessa ao veículo de comunicação, pois ali está algo novo a ser publicado. Certeau (1994, p. 286) entende que “o grande silêncio das coisas muda-se no seu contrário através da mídia”. Contudo, há indagações acerca deste momento em que a notícia surge. Também é preciso considerar o posicionamento do jornalista enquanto profissional. No processo de produção da notícia, as etapas de seleção dos assuntos que tornar-se-ão pautas, a metodologia empregada na apuração destes, o sujeito-jornalista que se insere no código deontológico de sua profissão, sua escrita e até mesmo a aceitação do seu grupo de colegas profissionais, acaba por caracterizar uma identidade profissional e, também, de um sistema de referências que compõe a definição de um saber de grupo. Essas ‘regras do meio’ denunciadas na produção noticiosa não denotam somente aquilo que os jornalistas estereotipam de si mesmos, mas também implica em uma correlação direta com o “fazer notícia”, graças a modos de produção inerentes à empresas jornalísticas e seus interesses. Patrick Charaudeau (2012) assevera que algumas notícias podem extrapolar o ‘simples’ rompimento da normalidade, prolongando-se por mais tempo. É o caso de greves, conflitos, 20 casos de corrupção etc. Para ele, relacionar a origem da notícia à ruptura de algo, ou seja, a um acontecimento, seria como confundir o próprio acontecimento e o surgimento deste acontecimento. “Propomos chamar de ‘notícia’ a um conjunto de informações que se relaciona a um mesmo espaço temático, tendo um caráter de novidade, proveniente de uma determinada fonte e podendo ser diversamente tratado (CHARAUDEAU, 2012, p. 132). Neste caminho, Traquina (2005) aponta o que, em sua opinião, poderia ser a essência do sistema noticioso: Podemos imaginar um sistema noticioso que desdenhasse o raro em favor do típico, que ignorasse o proeminente, que dedicasse tanta atenção ao datado quanto ao atual, ao legal como ao ilegal, à paz como à guerra, ao bem-estar como à calamidade e à morte (STEPHENS, 1988, p. 43 apud TRAQUINA, 2005, p. 55). Já para o teórico Rodrigo Alsina (2009, p. 133), há uma diferença básica entre o acontecimento e a notícia: “Poderíamos diferenciar o acontecimento da notícia dizendo que o acontecimento é uma mensagem recebida enquanto que a notícia é uma mensagem emitida”. Neste primeiro momento, o autor, basicamente, define que a notícia reside em um fenômeno de geração do sistema, enquanto o acontecimento faz parte da percepção desse sistema. Em outras palavras, o acontecimento observado passa pela questão da subjetividade do sujeito – em se tratando do sujeito-jornalista –, e a notícia é o relato da observação deste acontecimento. De tal modo que, segundo Charaudeau (2012, p. 131), “para que o acontecimento exista é necessário nomeá-lo”. E aí se constitui a práxis jornalística, uma vez que: o acontecimento só significa enquanto acontecimento em um discurso. O acontecimento significado nasce num processo evemencial que (...) se constrói ao término de uma mimese tripla. É daí que nasce o que se convencionou a chamar de “a notícia” (CHARAUDEAU, 2012, p. 131-132). Ainda de acordo com Alsina (2009), o processo de produção da notícia é complexo desde o nascer do acontecimento e não será preciso entender esse próprio acontecimento como algo além da construção social da realidade do sujeito. Nesse ponto, Stuart Hall (1981, p. 364 apud ALSINA, 2009, p. 134), ressalta que “dar sentido é nós mesmos nos localizarmos dentro dos discursos”. Dessa maneira, o próprio sujeito observador – nesse caso representado pelo receptor da notícia gerada por um acontecimento – é que irá conferir sentido ao que vê, lê ou ouve, significando a partir de seu retrato de mundo. 21 O sentido desta notícia, portanto, residirá no processo de interpretação do receptor. Nele é que as notícias deterão efeitos e valores que a poderão ser entendida como ‘verdadeira’. Tuchman (1976, p. 94 apud TRAQUINA 2005, p. 17), aborda um meandro importante do discurso noticioso: “a notícia, através dos seus enquadramentos, oferece definições da realidade social; conta ‘estórias’”. É neste caminho que o discurso jornalístico entorna efeitos de real em sua essência. 1.5 O ‘REAL’ E AS CONSTRUÇÕES DE VERDADE NA PRODUÇÃO NOTICIOSA A partir dos motivos expostos anteriormente, entendemos que o próprio conceito de verdade no jornalismo não é, senão, uma construção discursiva, que tem como base um saber narrar específico, inscrito nas regras profissionais do meio. Este narrar que faz parte de um relato do acontecimento, não de uma narrativa criada a partir de um ponto de vista adotado pelo sujeito que presenciou o acontecimento, de acordo com Traquina (2005). Isto porque, assumindo essa proposição de que há uma narrativa criada, a legitimidade profissional dos jornalistas pode ser colocada em jogo, pois: “Estes (os jornalistas) resistem bastante à noção de que a notícia não é um relato mas uma construção” (HALL, 1984, p. 4 apud TRAQUINA, 2005, p. 17). O discurso jornalístico da televisão – veículo de comunicação dos objetos que estudamos neste trabalho – engendra universos de sentidos ainda mais complexos do que as notícias do impresso, graças à capacidade de unir os sentidos da audição, da fala e da imagem – do visual em si. Essa estruturação de sentidos da televisão é, para Charaudeau (2012), altamente solidária entre fala e imagem,ao ponto de ser difícil apontar qual das duas é mais importante. A capacidade única da televisão envolve uma sequência temporal breve, que sobrepuja a instância dos que a observa, norteando este olhar para os dramas de mundo apresentados3. Portanto, “pode-se dizer que a televisão cumpre um papel social e psíquico de reconhecimento de si através de um mundo que se fez visível” (CHARAUDEAU, p. 112). O contato da audiência com a construção midiática do real se dá a todo tempo. A instituição do real, por meio da informação, se dá “desde a manhã até a noite, sem pausa. (...) Articulam nossas existências ensinando-nos o que elas devem ser” (CERTEAU, 1994, p. 287). E isto é observado em reportagens televisivas, como nas exibidas pelo Documento Especial, Aqui Agora e Balanço Geral, por meio de uma expressão reflexiva. Através de um tipo de 3 Os programas estudados por este trabalho, de cunho popularesco, parecem trabalhar bem com este método de definir o olhar da audiência aos dramas do mundo. Cenas explícitas de violência, como a exibição de cadáveres, por exemplo, atestam isso. 22 realismo, o relato do sujeito-jornalista contará com alguns elementos que imbricarão esse efeito de realidade quando: Passa ainda por uma nova definição do estatuto da personagem (que sai do anonimato e se torna protagonista num perfil intermédio entre o herói da tragédia e o da farsa, por vezes oscilando entre um e outro) e por uma representação do espaço por formas fechadas, puras e abstractas, pela criação de um “lugar fechado” onde a história contada se possa analisar como uma série de reviravoltas e manobras (PONTE, 2005, p. 45). Desta forma o real passa a conferir uma certa legitimação junto ao telespectador. Porém, no discurso midiático também há estratégias que visam conferir ‘verdade’ ao seu conteúdo, de diferentes maneiras, conforme abordaremos a seguir. 1.6 EFEITO DE VERDADE E VALORES DE VERDADE Para entendermos a forma como as notícias são construídas discursivamente é importante esmiuçarmos a diferenciação entre valor de verdade e efeito de verdade. Para Charaudeau (2012), valor de verdade é o conceito que coloca a verdade como algo intrínseco à boa oratória e às técnicas de saber dizer e definir paradigmas do mundo, assim representando uma verdade. Desta forma, a verdade seria cunhada através de um conjunto de técnicas objetivas utilizadas para relatar algo que seja encarado como legítimo. Estratégias que visam valor de verdade a um discurso vão desde uma boa retórica até construções textuais rebuscadas, que soem como legítimas devido ao teor ‘erudito’. Por outro lado, e ainda na coxia de Charaudeau (2012), efeito de verdade está mais ligado à subjetividade e a convicção do sujeito acerca de determinado assunto ou fato. O efeito de verdade tem sua essência ligada à credibilidade de seu conteúdo, pois poderá ser considerado como algo legítimo por seu teor crível. Assim, os tipos de discurso existentes afeiçoam seus efeitos de verdade ao sabor de suas intencionalidades. O discurso de informação modula-os segundo as supostas razões pelas quais uma informação é transmitida (por que informar?), segundo os traços psicológicos e sociais daquele que dá a informação (quem informa?) e segundo os meios que o informador aciona para provar sua veracidade (quais são as provas?) (CHARAUDEAU, 2012, p. 50). Neste contexto, ainda para Charaudeau (2012), emergem verdades midiáticas que sobrepujam o sentido através de especificações próprias. A verdade dos fatos coloca em riste a 23 questão do problema da autenticidade desses fatos; a verdade de origem, que questiona as origens do mundo, do homem e dos sistemas de valores; e a verdade dos atos que, completando essa tríade proposta pelo autor, emerge no momento de sua própria realização. Todavia, há outros dois tipos de verdades inerentes ao espaço social, que podem envolver a audiência através de estratégias predispostas no discurso dos veículos de comunicação. São elas: 1. Verdade de opinião: Para Charaudeau (2012), esta verdade possui duas características básicas: ela encontra embasamento em um sistema de crenças e pode ser compartilhada pela maioria, o que confere um consenso quase que generalizado para seu valor. Nas entranhas desta verdade, há opiniões comuns: a mais compartilhada por trabalhar com enunciados simples de valor geral4, as opiniões relativas (discutíveis, mas geram convicção graças a termos modalizados)5 e a opinião coletiva (na qual há a denotação de um julgamento sobre os outros em uma categoria que os caracteriza)6. 2. Verdade de emoção: Esta verdade é aquela que encanta, provoca forte emoção, podendo levar ao pranto do espectador. Ela é baseada na reação emocional que poderá provocar no receptor pelo (re)trato dado a uma notícia – tal verdade está intrinsicamente ligada ao ethos e ao pathos, que serão mais amplamente estudados7. A própria construção das verdades possíveis na estruturação noticiosa, contudo, ainda segundo Charaudeau (2012), se materializa em conteúdos narrativos específicos. Portanto, é na notícia que as marcas discursivas são deixadas ao sabor da intenção dos jornalistas. Tal acepção parece contravir aos ensejos da classe profissional jornalística. Conforme já mencionamos, os jornalistas, enquanto insertos em sua classe profissional, parecem não tratar as notícias tanto como narrativas, mas sim como relatos de acontecimentos (TRAQUINA, 2005). 4 Por exemplo: na abertura de uma das edições do jornalístico Aqui Agora, em 1995, o apresentador Ivo Morganti diz, antes de anunciar os destaques daquela edição: “Daqui a pouquinho nós vamos começar o Aqui Agora, que traz reportagens que mostram a vida como ela é”. 5 Um exemplo disso pode ser observado na edição “Perdidas na Noite” do programa Documento Especial, exibida em 1989, o apresentador Roberto Maya refere-se aos travestis da seguinte maneira: “Fazendo da noite o seu passeio público, os travestis desfilam a sua ambiguidade” 6 Em outra atração estudada por este trabalho, o Balanço Geral, é comum encontrar afirmações que generalizam suspeitos como “vagabundos”, mesmo que não haja provas do crime (re)tratado. 7 Na edição de setembro de 1991 do programa Aqui Agora (uma das atrações estudadas por este trabalho), quando são exibidas imagens de um sequestro de um ônibus em Apucarana-PR, durante a cobertura feita pelo programa o repórter César Tralli narra o momento em que um dos sequestrados é assassinado dentro do ônibus, sob a imagem do tiro destruindo os vidros frontais do veículo e da vítima sendo atingida. Ainda nesta reportagem, são exibidos os corpos das vítimas fatais: o sequestrado, um dos sequestradores e um ex-policial rodoviário, que assistia ao desenrolar do sequestro e fora atingido mortalmente. 24 Em vista das ricas contribuições teóricas de Charaudeau (2012), propomos a ampliação de algumas categorias de efeito de verdade prementes aos nossos objetos empíricos. Objetivamos, assim, adequar o escopo teórico à metodologia que percorrerá nossa pesquisa. Nas verdades de opinião parecem tangenciar determinadas estratégias discursivas. Em programas popularescos, as opiniões são quase sempre emitidas pelo apresentador e/ou pelo comentarista. No momento em que expressa sua opinião, quase sempre a imagem se volta para uma cena que ilustra o fato comentado: no caso de reportagens sobre crimes, a edição do programa exibe o momento em que a violência fora cometida. Essa estratégia editorial, já adotada desde nosso objeto empírico mais antigo, o Documento Especial, reforça ainda mais a identificação da audiência com a verdade. Ainda na verdade de opinião, também nos guarda atenção ao estado do apresentador/comentarista: ao proclamar seu comentário, quasesempre observamos um aumento no tom de voz, clarificando um estado nervoso por parte do sujeito- jornalista, dando a entender sua indignação. Em reportagens do Aqui Agora, observamos isso no repórteres Wagner Montes e Gil Gomes; no programa mais recente, o Balanço Geral, é possível encontrar esse posicionamento mais rude nos apresentadores Geraldo Luís e Luiz Bacci, que elevam ou diminuem seu tom de voz conforme o assunto tratado no programa. Na verdade de emoção, observamos recorrências discursivas que preenchem a estrutura televisiva: a fim de se obter um efeito de verdade baseado na emoção, os produtores dos programas popularescos trabalham com imagem visual, áudio e fala8. Em reportagens que versem sobre violência, é comum observar o posicionamento do sujeito-jornalista a partir de uma fala que preconiza ‘cenas fortes’ e ‘revoltantes aliado a uma trilha dramática e a uma aproximação da câmera nas cenas comentadas. Soma-se a isso o transcorrer do programa, em que uma reação humana de desespero, como um choro, uma súplica ou um surto de raiva, também é explorado por tais programas. Estratégias estas que, provavelmente, surtirão efeitos de verdade na audiência. Isto posto, os conceitos de valor de verdade e efeito de verdade, mostram que há uma relação dialética entre esses dois ‘fenômenos’, e daí é que o ‘mundo’ nunca será transmitido como sua instância, pois ela passará por um trabalho de construção de sentido por um sujeito produtor, ao passo em que o sujeito observador é que conferirá os meandros dessa notícia. Os programas que analisamos, de cunho popularesco, oferecem efeitos e valores de verdade à audiência, que se identifica com estes programas talvez até por conta do sabor de 8 Adentraremos mais essas recorrências discursivas no capítulo 4 da presente pesquisa. 25 ‘realidade’ que estes apresentam em sua constituição. Para entendermos mais disso, consideraremos a cultura popular. 1.7 CONSIDERAÇÕES SOBRE CULTURA POPULARESCA NA TELEVISÃO Os programas analisados por este trabalho9 visavam transpassar à audiência representações do cotidiano social desta, talvez com o intuito de vislumbrar identificação. No final da década de 1980, o Documento Especial apresentava temáticas pouco exploradas pela televisão, como na edição em que exibia uma noite carioca violenta; o Aqui Agora exibia reportagens policiais, de conflitos e até mesmo de assuntos mais populares(cos), como briga de vizinhos; o Balanço Geral, por sua vez, também explora principalmente reportagens policiais, mas, de forma semelhante aos seus precursores, abre espaço para o inusitado. Essas temáticas parecem fazer parte de uma cultura popularesca (re)tratada por esses programas. Cabe ressaltar que parece haver uma confusão entre os termos ‘popular’ e ‘popularesco’, uma vez que ambos podem ser utilizados para indicar situações que talvez não lhes diz respeito. A fim de tentarmos trazer esse conflito às nossas discussões, buscaremos as definições de popularesco em termos semânticos, e também recorreremos ao que autores consagrados pensam sobre. O dicionário online Aulete10 define duplamente o termo popularesco, a saber: “1. Que é vulgar ou de baixa qualidade: programa de televisão popularesco; 2. Que imita o que é popular”. Em ambas definições, percebemos um certo sentido pejorativo ao termo, atrelando este à baixa qualidade e à uma imitação do popular. Nessa linha, França (2009) elucida diferentes significações ao termo, esclarecendo que daí provém relações com o povo, que se destina e ele e lhe é característico. Voltando o termo ao significado de cultura, “popular” representaria o que é produzido pelo povo, oriundo do próprio povo. Martín-Barbero (2001) analisa a cultura popular sob um viés histórico, investigando de seu surgimento à sua viabilidade enquanto cultura ‘própria’. Nesse caminho, o autor aborda a ideia de massa, destacando que esta não se trata de um processo isolável, mas uma forma recente de sociabilidade. Deste modo, propõe que: “pensar o popular a partir do massivo não significa (...) alienação e manipulação, e sim novas condições de existência e luta, um novo modo de funcionamento de hegemonia” (MARTÍN-BARBERO, 2001, p. 322). Todavia, França (2009, 9 Discorreremos mais sobre nossos objetos empíricos no terceiro capítulo do nosso trabalho. 10 Fonte: Aulete Digital. Disponível em: <http://www.aulete.com.br/popularesco>. Acesso em: 29 jul. 2016. 26 p. 40) aponta que a cultura popular pura, hoje, já está quase extinta, e que os representantes essências dessa cultura já não a produzem mais: “a ideia do popular enquanto produzido pelo povo se esvazia: nesta nova dinâmica cultural, a ele só cabe o papel de recepção”. Deste modo, o conteúdo midiático exibido não passa de algo investido de traços do popular: “Pode-se também chamar de popular aquilo que se dirige ao povo e que, buscando ativar o consumo pelos mecanismos de identificação, se parece com ele, assume algumas de suas características” (FRANÇA, 2009, p. 41). Buscando essa identificação do povo junto à TV, sobretudo aos tipos de programas que observamos, Vera França (2009) mergulha na questão ao resgatar conceitos de autores consagrados da comunicação. Citando Hall (2003a, 2003b), a autora relembra que, para os autores ligados aos cultural studies, essa ideia de “popular” não remete somente ao oposto da cultura elitista; na verdade, essa cultura popular seria uma segunda mão em comparação à cultura erudita. Ainda no escopo de Hall, a autora observa que este popular seria influência dos mídias na sociedade: “Não se trata de adotar o termo ‘cultura popular’ para designar o conjunto da produção cultural difundida pelos modernos meios de comunicação” (FRANÇA, 2009, p. 225). Não seria delirante interpretar, portanto, que tal como fragmentos de cultura popular se misturam ao conteúdo produzido pela televisão nos programas estudados, a que entendemos como popularescos, projeções fragmentárias de personagens também são criadas nessas atrações. Ao colocarem a violência como integrante da cultura de sua audiência, o próprio veículo televisivo atua como agregadora de esterotipizações dos retratados. Isso posto, utilizaremos o termo popularesco não a partir de seu sentido pejorativo, nem tampouco relacionado a uma cultura popular mítica, mas sim, a partir das representações que os produtores televisivos fazem daquela que seria a cultura do povo, inerente ao espaço popular. A partir deste momento, nessa relação intersubjetiva entre o popular enquanto audiência e enquanto produtor de conteúdo é preciso considerar a relação entre o sujeito-jornalista – produtor da notícia – e o leitor. Há várias formas de abordar metodologicamente essa relação. No presente trabalho, adotaremos uma abordagem que considera o leitor modelo como conceito chave de análise para, em seguida, considerarmos o ethos discursivo. 1.8 O LEITOR EMPÍRICO E O LEITOR-MODELO Entre os estudos da comunicação e os estudos da linguagem há determinados limiares no que tange à constituição da notícia. Um deles refere-se justamente à relação discursiva estabelecida entre autor e leitor. Os produtores de um discurso podem tentar, antecipadamente, 27 agir para capturar a audiência – isso em discursos dos mais variados tipos: do publicitário ao informal. Nessa busca pelo que pode conquistar o leitor, o produtor do discurso irá vislumbrar o que Eco (1968) chama de leitor-modelo. O já amplamente discutido esquema da comunicação, que envolvia, tão somente, um caminho linear entre emissor, mensagem e receptor, não é mais aceito nos estudos modernos da comunicação. Isto porque este esquema desconsidera outros efeitos, como o feedback e o ruído, por exemplo. Assim, podemos entender os componentes da comunicaçãonum esquema que envolva os elementos: A fonte (ou emissor) é a originadora da comunicação. A mensagem é o conteúdo da comunicação, a informação a ser trocada. O codificador traduz a mensagem para um formato que não pode ser diretamente interpretado pelos sentidos humanos. O canal é o meio ou sistema de transmissão utilizado para transferir a mensagem de um lugar a outro. O decodificador reverte o processo de codificação. O receptor é o destino final da comunicação. Um mecanismo de resposta (feedback) entre a fonte e o receptor pode ser utilizado para regular o fluxo da comunicação. Ruído é qualquer distorção indesejada ou erro que pode ser introduzido durante a troca de informação (SCHRAMM, 1982 apud STRAUBHAAR e LAROSE, 2004, p.5). Portanto, há questões a serem elucubradas no relacionamento emissor-receptor. Umberto Eco (1968) modaliza a constituição da notícia justamente na relação entre o que ele chama de “Emitente” ou “Autor” – o sujeito-jornalista que produz a notícia – e “leitor” ou “destinatário” – o público desta notícia. Para ele, o texto “prevê o leitor”, pois os códigos trocados por emitente e destinatário podem diferenciar-se. A fim de adentrarmos nas definições de leitor-modelo, inicialmente resgatamos o entendimento acerca de um texto – o qual julgamos ser semelhante ao discurso televisivo. Para Eco (1968, p. 36): “um texto representa uma cadeia de artifícios de expressão que devem ser atualizados pelo destinatário”. Aqui está posta a complexidade do texto: sua relação íntima com o não-dito11, uma vez que determinadas cadeias serão preenchidas pela audiência através do subentendido. Ou seja, no que não está colocado, mas traz em seu bojo significância por representar sentido, é que o texto vai contornando interpretações ao leitor. 11 Abordaremos mais sobre não-dito no capítulo 4 desta pesquisa, no qual discutiremos nossas metodologias norteadoras. 28 É nesse ponto de previsão que o emitente irá produzir seu discurso buscando atingir seu leitor, mas também considerando as aptidões deste, conforme assevera Maingueneau (2004, p. 47): Quando se trata de um texto impresso para um grande número de leitores, o destinatário, antes de ser um público empírico, ou seja, o conjunto de indivíduos que lerão efetivamente o texto, é apenas uma espécie de imagem à qual o sujeito que escreve deve atribuir algumas aptidões. Seguindo este raciocínio, Eco (1968) aborda diferentes tipos de competências entre emitente e leitor. Serão elas as responsáveis por essa identificação buscada pelo autor. Nesse sentido, o autor relata uma situação em que quando o emitente escreve um determinado texto utilizando um vocábulo incomum, há a premissa de que o destinatário possui uma determinada competência gramatical que o permita entender o contexto da mensagem. “Dizemos então que toda mensagem postula uma competência gramatical da parte do destinatário, mesmo que seja emitida numa língua conhecida somente pelo emitente” (ECO, 1968, p. 36). Maingueneau (2004, p. 41) elucida estas competências como integrantes das “’leis do discurso’ que regem a comunicação verbal”. A “competência genérica”, uma das competências apresentadas, faz menção ao domínio das leis do discurso e dos gêneros do discurso. Por sua vez, estas serão fundamentais para a “competência comunicativa” do indivíduo, pois será graças a ela que haverá discernimento necessário para produzir e interpretar enunciados. A “competência enciclopédica”, por si, será aquela responsável por trazer ao indivíduo um entendimento sobre o que está a sua volta. Por exemplo: em uma sala de cinema, o indivíduo sabe, graças à competência enciclopédica, que não deve fazer barulho para não atrapalhar os demais que assistem ao filme; sabe, também, que é proibido fumar, para não causar incêndio no cinema. Outro ponto trazido por Eco (1968) faz menção ao ‘preenchimento’ semântico que o leitor faz em determinados trechos de um texto, conforme apontamos no início do presente item. Isso pode ser ilustrado quando uma situação é colocada através de um diálogo sem pormenorizações. Portanto, o leitor age configurando os espaços deixados no texto ao sabor das informações que lhe foram passadas anteriormente no texto. Outras considerações sobre o trecho textual por parte do leitor imbricam a competência enciclopédia destes, que será acionada quando houver tais espaços em brancos. Essa elucubração se entrelaça bem ao discurso jornalístico, pensado previamente pelo sujeito-jornalista que o produz. A relação entre o autor do discurso e sua audiência será decisiva em duplo sentido, conforme o pensamento de Ponte 29 (2005, p. 27), pois haverá “promotores e atores interessados e intervenientes na informação, por um lado, e leitores comuns sem acesso nem controle sobre a ação reportada, por outro”. Investido nessa ideia, o eminente deve projetar, fazer um cálculo e uma aposta sobre quais são as competências partilhadas entre ele próprio e o seu leitor. Assim, estará prevendo o que Eco chama de “Leitor-Modelo”, que será capaz de movimentar-se no texto de acordo com o próprio autor. No entanto, o autor também pode(rá) instituir a competência do “Leitor-Modelo”. Em um texto literário que narre uma história antiga, por exemplo, o autor deve imaginar que seu Leitor-Modelo não conhece a fundo os meandros da época narrada. Nesse caso, o autor propõe uma inserção de competência no leitor, de modo que este compreenda a história conforme o ensejo do autor. Portanto, prever o próprio Leitor-Modelo não significa somente “esperar” que exista, mas significa também mover o texto de modo a construí-lo. O texto não apenas repousa numa competência, mas contribui para produzi-la (ECO, 1968, p. 40). Outro aspecto importante a ser observado nesse processo é o da diferenciação entre “Leitores-Modelo” que podem existir. Maingueneau (2004, p. 50) exemplifica essa distinção ao citar textos jornalísticos que trabalham o “Leitor-Modelo” a partir da “exclusão (público ‘temático)” e aquelas que “excluem um mínimo de categorias de leitores (públicos ‘generalistas’). O título das reportagens televisivas12 – no caso dos objetos deste trabalho – é um bom exemplo desta distinção. Neste jogo de visualização de um “Leitor-Modelo” pelo autor, há uma imbricação mútua entre a gênese do ‘empírico’ para o “Modelo”. Se o Autor e o Leitor-Modelo constituem duas estratégias textuais, então nos encontramos diante de uma dupla situação. De um lado, conforme dissemos até aqui, o autor empírico, enquanto sujeito da enunciação textual, formula uma hipótese de Leitor-Modelo e, ao traduzi-la em termos da própria estratégia, configura a si mesmo autor na qualidade de sujeito do enunciado, em termos igualmente “estratégicos”, como modo de operação textual (ECO, 1968, p. 47). 12 Uma das edições do Documento Especial trazia o título de Delírio na madrugada, por fazer referência à vida de uma travesti, que dava aulas pela manhã, caracterizado como professor, e vestia-se como mulher em seus shows noturnos. 30 Por consequência, para a construção do leitor-modelo será necessário a construção de um ethos por parte do Emitente, que passa a ser trabalhado como uma noção da imagem de si no próprio discurso. Isto é, ao tentar entender o “Leitor-Modelo”, o Emitente estará fazendo uma imagem dele, buscando seu ethos. Em suma, a partir do momento em que a comunicação passou a ser estudada sob a égide da configuração discursiva, a estruturação da notícia recebeu uma maior atenção dos teóricos da comunicação. Desde o acontecimento, que passa por uma série de olhares até virar notícia. Os processos de transformação e transação irão contemplar o que partiu da observação do sujeito-jornalistaaté que se torne notícia, efetivamente. Este ‘produto final’ será veiculado investido de valores que confiram a ele “verdade”, sob os olhos da audiência, a partir de um “efeito de real” discursivo. Neste procedimento, os veículos de comunicação fazem um certo exercício de projeção de sua audiência, através de um modelo de leitor. Com isso, busca-se projetar o ethos do leitor – telespectador, no caso de nossos objetos –, a partir de um ethos próprio das peças jornalísticas – Documento Especial, Aqui Agora e Balanço Geral – que observamos para esta pesquisa. Partindo dessas premissas, iremos discutir, no próximo capítulo, o modo como o ethos (principal conceito operatório desse trabalho) se constitui discursivamente. Abordaremos, a princípio, sua teorização geral a partir da retórica Aristotélica, ao lado do logos e do pathos. A seguir, trabalharemos com a noção de credibilidade do sujeito produtor do discurso, através de seu ethos, e com os problemas que um ethos prévio pode trazer à audiência. Também discutiremos a configuração do ethos jornalístico, a partir das características que envolvem o exercício da profissão. 31 CAPÍTULO 2 – ETHOS E DISCURSO JORNALÍSTICO Neste capítulo abordaremos, primordialmente, o conceito de ethos – mote do nosso estudo. Para tal, inicialmente elencaremos o estudo da tríade discursiva oferecida por Aristóteles, a fim de abordarmos a constituição da retórica clássica e, posteriormente, as atualizações do conceito trazidas por teóricos que observam a retórica a partir da vertente da análise do discurso. No longínquo período da antiguidade, alguns filósofos estudavam o ‘outro’ e suas relações com o mundo e com os demais seres. Na Grécia, determinados estudos eram direcionados a questões que envolvessem a eficácia de um discurso através do convencimento, por meio da retórica. Em suma, é através de uma boa retórica que o orador de um determinado discurso poderá persuadir sua audiência. Assim, com esse objetivo de buscar a persuasão, o orador poderá se utilizar de uma retórica adequada com o fim de projetar um ethos que conquiste a audiência. Todavia, ressalvamos que o ethos se constituirá de acordo com a enunciação empregada pelo orador, não somente no enunciado em si. Ou seja, a carga ethópica desejada será viabilizada a partir do movimento em que o proclamador do discurso mobiliza determinados aspectos em sua fala – como a retórica, por exemplo –, e consegue ‘prová-los’ ao longo do tempo. Recorrendo aos nossos objetos empíricos, citamos uma reportagem constante na edição do Aqui Agora de 13 de fevereiro de 1995. Nela, o programa relata as mortes de um policial e de um assaltante em confronto. Já na chamada, os apresentadores Ivo Morganti e Christina Rocha demarcam a posição entre “bandido” e “o policial morto” ao chamarem a notícia afirmando que bandidos matam covardemente um policial da ROTA. Na sequência, com a entrada da reportagem, a viúva do policial é exibida por alguns minutos, enquanto chora em decorrência de sua perda, ao passo em que não há qualquer menção ao nome do assaltante também morto. Desse modo, o programa parece ter convencido a audiência a partir do ato de enunciação; após enunciar o teor da reportagem na chamada, a edição se municiou de elementos que comprovassem o enunciado. Tal constatação encontra base em Ducrot (1984, p. 201 APUD MAINGUENEAU, 2001, p. 13), que coloca: “o ethos se mostra no ato de enunciação, ele não é dito no enunciado”. Portanto, na observação desse ethos, premências subjetivas não congregam valia, pois essa análise “trata-se de apreender um sujeito construído pelo discurso e não uma subjetividade que seria a fonte de onde emanaria o enunciado” (FIORIN, 2016, p. 70). Muito embora aponte que não é fácil conferir uma única definição à retórica, Júnior (2005) asserta que esta consiste em uma forma de comunicação com fins persuasivos, 32 fundamentalmente. Aristóteles (2005, p. 123) também a define de maneira semelhante, quando coloca que a retórica é “a capacidade de descobrir o que é adequado a cada caso com o fim de persuadir”. 2.1 A RETÓRICA ARISTOTÉLICA Anteriormente ensinada e exercida pelos sofistas13, a retórica ganhou novas designações após ser estudada e publicada por Aristóteles. Essencialmente, o filósofo baseou sua obra como um estudo sobre as técnicas de um discurso proclamado em público com fins persuasivos. Junior (2005) ainda aponta que Aristóteles centra suas críticas aos teorizadores da retórica – os sofistas – em alguns pontos, a saber: seus precedentes (os sofistas) voltaram suas atenções ao discurso judicial em detrimento aos demais gêneros; também deram mais ênfase à emoção – elementos pathéticos – do que à argumentação lógica – logos –; e a demasiada importância à estrutura formal do discurso. Deste modo, a retórica aristotélica pode ser considerada uma teoria da argumentação persuasiva, utilizável para a interpretação de qualquer forma de discurso. Como forma de argumentação, a retórica equivale à dialética, no sentido de que fora reconhecida como conhecimento prático por Aristóteles. Isso implica que, com ela, um debate pode ocorrer em ambos os lados: aquele que dominar melhor a arte, sairá ‘vencedor’. Ao apontar diferenças em relação à retórica sofista, Aristóteles (2005) argumenta que a arte retórica funda-se em provas, que podem ser inartísticas e artísticas. A primeira, que não será trabalhada pelo orador, reside na evidência de contratos escritos de testemunhos, confissões sob tortura etc; a segunda – esta sim técnica –, se baseia em argumentos de persuasão criados pelo autor do discurso. Outrossim, estas provas de persuasão fornecidas pelo discurso podem ser de três espécies, a saber: algumas residem no caráter moral do orador; outras, na disposição em que o ouvinte se coloca; e as seguintes naquilo que o discurso demonstra ou parece demonstrar. No primeiro caso, das provas de caráter, o discurso do orador será colocado de tal maneira que imprimirá credibilidade à audiência, por conta da ‘honestidade’ do autor do discurso – prova comum aos três objetos desta pesquisa, representados pelos apresentadores. As provas que se relacionam à disposição dos ouvintes são aquelas que conferem um teor crível ao orador graças às emoções que a audiência sente em seu discurso. Aristóteles (2005, p. 97) assevera que “os 13 Intelectuais, pensadores e cientistas residentes na Grécia antiga, nos séculos IV e V a.C., que ensinavam por meio de uma designação geral em áreas que não eram abordadas pelas escolas, como física, geometria, medicina e retórica. Detinham técnicas avançadas do discurso, a ponto de convencer rapidamente sua audiência. Fonte: InfoEscola. Disponível em: <http://www.infoescola.com/filosofia/sofistas/>. Acesso em: 01 dez. 2015. 33 juízos que emitimos variam conforme sentimos tristeza ou alegria, amor ou ódio”. Essa prova é bem corriqueira aos programas popularescos que analisamos aqui: em todos há o uso de drama nas reportagens, através de alguns que choram por seus familiares mortos, cidadãos revoltados com a violência etc. Por fim, a prova do discurso é aquela constituída através de um discurso que mostre – ou pareça mostrar – a verdade. Relacionamos tal prova aos valores e efeitos de verdade colocadas por Charaudeau (2012) no capítulo anterior – no qual descrevemos algumas estratégias usadas pela mídia para obter esta prova de verdade do discurso. Transcorrendo seu estudo sobre retórica, Aristóteles explica a persuasão através de uma tríade que buscava dividir os meios discursivos que entusiasmam o auditório: ethos, pathos e logos. 2.2 A TRÍADE DISCURSIVA QUE MOBILIZA A PERSUASÃO: ETHOS, PATHOS E LOGOS Como em um triângulo isósceles, podemos entender o ethos e o pathos de um lado,
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