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A Ciência Contemporânea e a Noção de modelo Dr. Ricardo Pereira Tassinari – Departamento de Filosofia - UNESP Última Atualização: 28/02/12 Para iniciar, considereremos a questão: Como é a Realidade? Notemos que a pergunta posta não é: o quê é a Realidade? Pois, não se trata aqui de explicitar uma característica última ou absoluta da Realidade, mas, sim, de explicitar o como é a Realidade. Observemos, então, que o termo “Realidade” serve aqui apenas para designar aquilo que é vivido por nós e não significa, necessariamente, uma instância ultima ou absoluta. Tornando, então, mais precisa a questão inicial, podemos perguntar: Como explicitar, ainda que parcialmente, o como é a Realidade? Como explicitar, ainda que parcialmente: (1) os seres que a constituem e (2) os comportamentos desses seres? Respondendo à parte (1) desta questão, temos que uma das formas de se explicitar, ainda que parcialmente, os seres que constituem a Realidade é se utilizar de signos para designar seus seres. Sem aprofundar na discussão sobre o que é um signo, assumiremos que dentre os signos estão as palavras, as letras ou, de forma mais geral, marcas sobre o papel (ou sobre a tela de um computador), ou os sons da voz, ou seja, o que podemos usar para designar algo. Assim, por exemplo, a palavra “Sol” (escrita ou falada) designa o nosso Sol, a estrela mais próxima da Terra e em torno da qual a Terra orbita. Ou ainda, a letra “H” designa um átomo de hidrogênio e a letra “O” um átomo de oxigênio, bem como um traço “-” pode designar o compartilhamento de pares de elétrons entre átomos, de forma que o signo “H-O-H” indica uma molécula de água, composta por dois átomos de hidrogênio e um átomo de oxigênio com o compartilhamento de dois pares de eletrons entre os átomos de hidrogênio e o o átomo de oxigênio. Respondendo, então, à parte (2) da pegunta acima, podemos, a partir dessa utilização de signos, usar as ações e operações sobre esses signos para representar as ações possíveis dos seres que os signos designam, seus comportamentos possíveis. Por exemplo, a própria junção dos elementos hidrogênio e oxigênio, na formação da água, pode ser representada pela operação de se juntar os signos que representam átomos desses elementos, respectivamente “H” e “O”, e o signo que representam o compartilhamento de eletrons “-”, escrevendo então “H-O-H”, como fizemos acima. Chamando de significados aquilo que é designado por um signo, temos, então, o seguinte diagrama, que chamaremos de Diagrama R para signos. Significados ↔ Signos ↕ ↕ Ações e Operações sobre significados ↔ Operações sobre signos Diagrama 1: o Diagrama R para signos. No exemplo da formação da mólécula de água fica, a diagrama acima se torna: Átomo de hidrogênio Átomo de oxigênio Compartilhamento de elétrons ↔ H O - ↕ ↕ Formação da molécula de água ↔ H-O-H Diagrama 2: o Diagrama R para signos no caso da formação de molécula de água. Notemos, então, que esta forma de representação (por sistema de operações sobre signos) é exatamente aquela presente nos modelos científicos. Segundo Gilles-Gaston Granger, são esses modelos que caracterizam a Ciência. O conhecimento científico do que depende da experiência consiste sempre em construir esquemas ou modelos abstratos dessa experiência, em explorar por meio da lógica e das matemáticas, as relações entre os elementos abstratos desses modelos, para finalmente deduzir daí propriedades que correspondam, com uma precisão suficiente, a propriedades empíricas diretamente observáveis (Granger, 1994, pp. 70-71). Assim, nesse sentido, a Ciência é uma das formas de se explicitar, ainda que parcialmente, uma resposta à questão posta no início deste texto: Como é a Realidade? Nesse caso, notemos que, quanto mais as operações sobre signos, presentes nos modelos científicos, descrevem os comportamentos dos seres, mais precisa se torna a representação de como é a Realidade. Notemos ainda que, na medida em que conhecemos bem um domínio de objetos e as ações possíveis de se realizar sobre eles, como na Ciência, é natural então representar o conhecimento desse domínio em sistemas de operações sobre signos. Notemos, também, que as operações possíveis de serem realizadas sobre signos são todas as formas de combinações, composições e decomposições, possíveis desses signos, mas que no caso dos modelos, apenas algumas são admitidas (aquelas que representam as ações e operações possíveis sobre os significados). Temos então que a verificação de um modelo se dá então segundo a comparação entre o jogo das operações sobre signos admitidas como possíveis e o jogo das ações e operações possíveis sobre os significados, estabelecido pela experiência (isto é, segundo os resultados dos experimentos científicos). Por fim, notemos que qualquer discurso sobre o como é a Realidade pode ser interpretado como um jogo de operações sobre signos na medida em que o próprio discurso se explicita por signos (palavras) e operações sobre esses (do próprio discurso); no caso do conhecimento científico, a explicitação dos elementos (através dos signos) e de suas correlações (através das operações sobre signos) permite um maior controle sobre a explicitação do comportamento da Realidade, como no caso de verificação, descrito acima. Vejamos alguns exemplos de modelos, nas diversas áreas da Ciência. Em Física. A queda de corpos soltos de uma altura H0. Consideremos então os seguintes signos e suas designações. “H0” → a medida da altura inicial em que é solto o corpo “H” → a medida da altura que se encontra o corpo no instante T “T” → o próprio instante em que pode ser medida a altura H “K” → uma constante determinável experimentalmente Temos então que a altura H de corpos em queda, soltos de uma altura Ho, segue a lei: H = H0 – K.T². As operações sobre signos (e consequentemente sobre as medidas que eles representam) são regradas pelas operações aritméticas usuais. Podemos observar, desse exemplo, que um modelo é abstrato (desconsidera-se, no caso, por exemplo, o atrito do corpo com o ar). Em Química. A constituição da água por combustão de gás hidrogênido. Como vimos, o signo “H-O-H” é usada para representar a molécula de água. Os signos, nela usados, designam, respectivamente: “H” → um átomo de hidrogênio, “O” → um átomo de oxigênio, e “-” → um par de elétrons compartilhados. Em temos das operações sobre signos, podemos considerar, por exemplo, a equação H-H + O=O + H-H → H-O-H + H-O-H que representa a combustão do hidrogênio; nela o signo “+” designa a coexistência das moléculas em uma certa região do espaço e o signo “→” designa a transformação que implica na recombinação dos átomos presentes. Em Biologia. A hereditariedade mendeliana. As Leis de Mendel permitem relacionar característica dos indivíduos biológicos (chamada, por definição, de fenótipos) com certos elementos endógenos que possibilitam essas característica (chamados, por definição, de genótipo, constituído de genes) para, a partir daí, estudar a hereditariedade dos seres vivos e suas variações. Assim, por exemplo, usamos dois signos “V” e “v” para designar dois genes em ervilhas que podem vir a pertencer a um indivíduo, cujas combinações apresentam os seguintes fenótipos: vv → ervilhas verdes Vv → ervilhas amarelas VV → ervilhas amarelas Notemos que devido a presença de V determinar sempre a cor amarela, ele é chamado, por definição, de gene dominante. Assim, por exemplo (veja tabela abaixo), podemos, realizar a operação de compor pares de signos para determinar que o cruzamento de dois indivíduos amarelos de genes Vv (dispostos na primeira linha e na primeira coluna) pode resultar indivíduos verdes (vv) e amarelos (Vv e VV), respectivamente, com a proporção (ou probabilidades): 25% e 75%. V v V VV (25% amarelo) Vv (25% amarelo) v Vv (25% amarelo) vv (25% verde)Tabela 1: resultado do cruzamento de dois indivíduos amarelos de genes Vv. Em Economia. Leis da Oferta e da Demanda. Se os signos “P” e “Q” designam, respectivamente, o preço e a quantidade demandada de um produto, podemos então representar certa ação geral do mercado pelas leis: Lei da Demanda – o aumento do preço P causa a redução da quantidade demandada Q; e Lei da Oferta – a diminuição do preço P causa a o aumento da quantidade demandada Q. Em Psicologia. A Psicologia Topológica. [Uma introdução à Psicologia Topológica e Vetorial de Kurt Lewin pode ser encontrada em TASSINARI, 2009A e 2009B.] Na Psicologia Topológica usamos a noção de “espaço vital” que é, por definição, A totalidade de fatos que determinam o comportamento (C) de um indivíduo num certo momento. O espaço vital (E) representa a totalidade de possíveis eventos. O espaço vital inclui a pessoa (P) e o ambiente (A). [Assim, o comportamento C é função de E, ou ainda, de P e A] C = f (E) = f (P, A).”(cf. LEWIN 1973, p.242). A partir daí, podemos utilizar representações gráficas do espaço vital para estudar o comportamento. Assim, por exemplo, o Figura 1 abaixo representa uma situação de um rapaz que quer ser médico (cf. LEWIN 1973, p.67) Figura 1: Situação de um rapaz que quer ser médico.P, pessoa; O, objetivo, ac, exame de admissão; c, colégio; m, escola médica; i, internato, cl, prática clínica. É interessante notar que para aplicação dos conceitos da Psicologia Topológica usamos um http://www.marilia.unesp.br/Home/Instituicao/Docentes/RicardoTassinari/PVT1.pdf http://www.marilia.unesp.br/Home/Instituicao/Docentes/RicardoTassinari/PVT2.pdf método sempre aberto, o Método da Aproximação, tal que “Este método determina, primeiro, a estrutura do espaço vital como um todo e avança gradualmente, determinando cada vez mais propriedades específicas até ser atingido o máximo de exatidão.”(cf. LEWIN 1973, p. 236). Voltando... Voltando ao contexto geral dos modelos, temos que os modelos podem ser expressos em sistemas formais (cf., no texto didático A Lógica e o Sistema de Operações sobre Signos, a noção de sistema formal). Assim, a constituição do conhecimento científico contemporâneo implica a possibilidade da constituição de modelos e sistemas formais. Tratando de um modo mais preciso a relação entre o modelo e a experiência, podemos dizer que, na medida em que um modelo ou um sistema formal se constitui de signos e de relações e operações entre eles, o modelo estabelece, no domínio desses signos, uma estrutura matemática abstrata que pode ser posta em correspondência (total ou parcial) com a estrutura existente no domínio dos significados que esses signos designam. Nesse sentido, o estudo dos diversos domínios da Lógica ou da Matemática é útil na elaboração dos sistemas formais e modelos. Mais ainda, a estrutura matemática relativa ao sistema de signos do modelo ou sistema formal tem a possibilidade de ser usada em mais de um domínio possível, logo, os estudos em Lógica ou Matemática têm a possibilidade de ser aplicados a diversos domínios de significados; há, assim, uma economia de método formal: um mesmo método formal para diversos domínios. Por exemplo, acima, no caso do modelo em Psicologia apresentado (A Psicologia Topológica), usamos os signos “P”, “O”, “ac”, “c”, “m”, “i”, “cl”, e relações entre eles (por exemplo, a região designada por “P” está contida na região designada por “O”, a região designada por “O” faz fronteira com a região designada por “ac”, etc.) para representar a situação de um rapaz que quer ser médico. Essa mesma estrutura do sistema de signos desse modelo pode ser usada em outro contexto, por exemplo, em Física, para descrever e explicar a trajetória de uma nave, designada por “P”, a um objetivo designada por “O” (por exemplo, a Lua), sendo que, para tanto, ela tem que passar por certas regiões, por exemplo, as diversas camadas da atmosfera: Troposfera (região antes de ac), Estratosfera (região ac), Mesosfera (região c), Termosfera (região m), Exosfera (região i), Espaço Sideral até a Lua (região cl) e Lua (região depois de cl). Por definição, quando a correspondência entre a estrutura de signos, do modelo ou do sistema formal, e o domínio de significados é total, dizemos que o modelo ou sistema formal é completo; se a correspondência é parcial, dizemos que o modelo ou sistema formal é incompleto. Por exemplo, no caso do modelo da trajetória de uma nave a Lua, descrito logo acima, temos que o modelo é completo, se levarmos em consideração apenas as regiões que devem ser percorridas para se atingir o objetivo, mas é incompleto quanto a questões, por exemplo, de existir forças resistivas, o gasto de energia, etc. Nesse contexto, em que a modelagem e a elaboração de teorias (que tem a possibilidade de vir a se constituir em sistemas formais ou teorias formais) constituem métodos de elaboração do conhecimento científico, a Teoria dos Sistemas, ou Sistêmica, como é atualmente designada, visa, na modelagem ou elaboração de teorias, à aplicação de diversos métodos lógicos ou matemáticos às diversas áreas do Saber (como vimos, o estudo das diversas estruturas matemáticas relativa ao sistema de signos do modelo ou sistema formal tem a possibilidade de ser usada em mais de um domínio possível (cf. VON BERTALANFFY, 1977 - Clique aqui para ver parte do Prefácio e do Capítulo 10). Nesse contexto, ainda, as teorias da autoorganização constitui a parte da Metodologia da Ciência e da Sistêmica que elabora conceitos e métodos para o estudo de fenômenos classificados como autoorganizados (cf. DEBRUN, 1996). Em especial, segundo uma concepção radical de http://www.marilia.unesp.br/Home/Instituicao/Docentes/RicardoTassinari/TGS.pdf autoorganização, na construção de modelos ou teorias para a explicação de fenômenos de um sistema autoorganizado, temos uma sequência de modelos que explicam cada vez melhor esse sistema, mas sem que exista algum deles que o explique de forma completa, pois, caso existisse, a organização do sistema não seria auto, ela não dependeria apenas de si própria, mas seria devido a apenas uma forma geral de organização aplicável à diversos sistemas. Por exemplo, um dos domínios em que ocorre este tipo de autoorganização é aquele da construção do conhecimento em geral e, em particular, dos conhecimentos lógicos e matemáticos (cf. TASSINARI, 2003), que, por sua vez, são usados também em diversas fundamentações, no Sistema das Ciências. Por fim, podemos admitir a noção de Sistema da Ciência, composto pelas diversas ciências já constituídas e articulações entre elas. Um importante resultado da Filosofia da Ciência Contemporânea é o da impossibilidade de um único modelo completo para o Sistema das Ciências, seja, por exemplo, que, devido a que a abstração de certas propriedades na construção dos modelos deixa de lado aspectos relevantes do comportamento da Realidade (cf. as Conclusões de GRANGER, 1994, e de TASSINARI, 2003), seja porque existe uma limitação da aplicação dos métodos lógico-matemáticos da modelagem quando aplicados ao processo de cognição em geral (cf. TASSINARI, 2009??). Para uma análise das características do conhecimento científico contemporâneo, do papel (e limites) dos modelos e da diferença entre conhecimento científico e conhecimento filosófico, confira a obra de Gilles-Gaston Granger (cf., em especial, GRANGER, 1994, para uma introdução, e TASSINARI, 2007, para uma discussão inicial da diferença entre conhecimento científico e conhecimento filosófico). Referências DEBRUN, M. Por Que, Quando e Como é Possível Falar em Auto-Organização e A Ideia de Auto-Organização. In: DEBRUN, M. GONZALES, M.E.Q. e PESSOA Jr, O. Auto- Organização: Estudos Interdisciplinares. Campinas: UNICAMP, CLE, 1996. GRANGER, G-G. A Ciência e as Ciências, SãoPaulo: Ed.Unesp, 1994. LEWIN, K. Princípios de Psicologia Topológica. São Paulo: Cultrix, 1973. Veja aqui um vocabulário de Psicologia Topológica e Vetorial. TASSINARI, R.P. Incompletude e Auto-Organização: Sobre a Determinação de Verdades Lógicas e Matemáticas, Campinas: UNICAMP, IFCH, 2003. —. Ciência Cognitiva: Ciência ou Filosofia? In: COELHO, J.G.; GONZALEZ, M. E. Q.; BROENS, M. C. (Orgs.), 2007. —. Introdução à Psicologia Topológica e Vetorial I (e-mail), 2009A —. Introdução à Psicologia Topológica e Vetorial I (e-mail), 2009B VON BERTALANFFY, L. Teoria Geral dos Sistemas, Petrópolis: Editora Vozes Ltda.,1977. http://www.marilia.unesp.br/Home/Instituicao/Docentes/RicardoTassinari/PVT2.pdf http://www.marilia.unesp.br/Home/Instituicao/Docentes/RicardoTassinari/PVT1.pdf http://www.marilia.unesp.br/Home/Instituicao/Docentes/RicardoTassinari/CC.pdf http://www.marilia.unesp.br/Home/Instituicao/Docentes/RicardoTassinari/BibliotecaOnline/Tese%20Tassinari.pdf http://www.marilia.unesp.br/Home/Instituicao/Docentes/RicardoTassinari/BibliotecaOnline/Tese%20Tassinari.pdf http://www.marilia.unesp.br/Home/Instituicao/Docentes/RicardoTassinari/LewinV.htm#espacovital
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