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manifest-hab-cognitiva-Ingrid-Rita-EPENN2003

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A MANIFESTAÇÃO DE HABILIDADES METACOGNITIVAS EM SUJEITOS COM 
DEFICIÊNCIA MENTAL1 
 
Rita Vieira de Figueiredo 
 Ingrid Lira Rocha 
 
 
 
Resumo 
Esse trabalho analisa o processo de aprendizagem de pessoas com deficiência mental, 
dando ênfase às habilidades metacognitivas que elas mobilizam durante a aquisição da 
linguagem escrita. Paour (1991) esclarece que, durante seu desenvolvimento cognitivo, essas 
pessoas apresentam dificuldade em utilizar, de forma eficaz, os conhecimentos adquiridos e de 
interagir espontaneamente com a situação de aprendizagem. Tais dificuldades seriam 
resultados de uma fragilidade metacognitiva, e poderiam ser diminuídas com a mediação. Esse 
estudo conta com dez sujeitos com deficiência mental, de idade entre doze e vinte anos. Trata-
se de uma pesquisa longitudinal desenvolvida através de sessões de intervenção e avaliação, 
que tem como referencial o sócio-construtivismo. Os resultados da pesquisa não permitem 
fazer afirmações que indiquem a fragilidade metacognitiva como uma característica 
irreversível do funcionamento das pessoas com deficiência mental. Observa-se que o uso de 
habilidades metacognitivas evoluiu de acordo com os avanços na aquisição da linguagem 
escrita e as manifestações dessas habilidades parecem estar relacionadas à evolução em 
leitura, ao interesse e à motivação pela atividade proposta. 
 
Palavras chaves: Deficiência mental, Metacognição, Linguagem escrita 
 
 
 
 
1 FIGUEIREDO, R. V.; ROCHA, Ingrid Lira . A manifestação de habilidades metacognitivas em sujeitos com deficiência mental. In: XVI 
Encontro de Pesquisa do Norte e Nordeste, 2003, Aracajú. Educação, Pesquisa e Diversidade Regional, 2003. 
 
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1. Introdução e discussão teórica 
O presente trabalho tem como objetivo analisar o processo de aprendizagem de 
pessoas com deficiência mental, dando ênfase às habilidades metacognitivas que elas 
mobilizam durante seu processo de aquisição da linguagem escrita. 
Para uma análise das manifestações dessas habilidades, o estudo se apoiará na análise 
dos dados de uma pesquisai longitudinal que adota o referencial sócio-histórico-construtivista, 
no qual a aquisição da linguagem escrita é compreendida como uma evolução conceitual da 
criança dentro de seus processos cognitivos. baseadas nesse referencial são feitas sessões de 
intervenção e avaliação com atividades que trabalham leitura e escrita, através de jogos e 
diversos portadores de texto. 
A pesquisa conta com dados de dez sujeitos com deficiência mental, de idade variando entre 
doze e vinte anos. Três dos quais residem em instituições para menores abandonados, os 
outros sete vivem com suas famílias. Desses sujeitos, sete são advindos de meio sócio 
econômico desfavorecido. No que se refere à escolaridade, quatro freqüentam escola especial, 
quatro classe especial em escolas regulares e dois salas de aula regular. 
Os estudos do processo de aprendizagem das pessoas com deficiência mental se 
inscrevem em três teorias principais: a teoria estrutural/diferencial, a teoria do 
desenvolvimento de Zigler e a teoria de Piaget aplicada à deficiência mental. 
A teoria estrutural defende que há uma diferença qualitativa entre o desenvolvimento 
cognitivo das crianças com e o das sem deficiência mental. Os estudos realizados sob este 
enfoque comparam os sujeitos com base na idade cronológica. Segundo essa teoria existem 
características específicas que diferenciam as duas populações. Tais características seriam: 
dificuldade de transferir informações da memória a curto prazo para a memória a longo prazo, 
utilizando uma estratégia de repetição adequada (Ellis, 1969, 1970); dificuldades de 
decodificação, planificação e armazenamento de informação – devido ao déficit na memória 
estrutural (Deacon et Wooldridg, 1985; Smart, O’Grad et das, 1982); dificuldade de organizar 
estímulos e informações (Spitz, 1966). 
Já a teoria do desenvolvimento de Zigler aponta que a diferença entre o 
desenvolvimento cognitivo dessas duas populações é quantitativa e não qualitativa. Esta teoria 
defende que existe uma similaridade nas estruturas cognitivas (organização do pensamento e 
processo de aprendizagem). Para o pesquisador o desenvolvimento das crianças com 
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deficiência mental ocorre de forma mais lenta, porém similar ao das crianças sem essa 
deficiência. Desta forma, ambas passariam pelas mesmas etapas em seus processos de 
desenvolvimento. 
Esses dois enfoques geraram muita discussão no meio acadêmico, polemizando se as 
diferenças entre sujeitos com e sem deficiência mental são de caráter qualitativo (com 
estruturas diferentes) ou quantitativo (apresentando seqüências e estruturas similares). De 
acordo com Paour (1991), o desacordo entre a teoria estrutural e a teoria do desenvolvimento 
ocorre, porque cada uma delas observa a deficiência mental por um ângulo diferente. 
No enfoque piagetiano, a deficiência mental poderia ser caracterizada pelos 
fenômenos da lentidão, da fixação e da incompletude das estruturas cognitivas. Inhelder 
(1963) afirma que as crianças com deficiência mental seguem as mesmas etapas de 
desenvolvimento que as crianças “normais”, diferenciando-se das últimas por seu ritmo de 
aquisição ser mais lento e seu desenvolvimento ser marcado por uma falsa equilibração, 
impossibilitando a essas crianças o ingresso nas operações formais. 
A falsa equilibração, segundo a autora, é resultado da dificuldade encontrada pelas 
crianças para abandonarem os raciocínios característicos dos estágios superados, ou seja, 
mesmo atingindo um estágio superior no seu desenvolvimento, as pessoas com deficiência 
mental conservariam ainda características dos anteriores. Assim, muitas vezes apresentam, ao 
mesmo tempo, tipos de raciocínios encontrados em dois estágios diferentes. A essa 
superposição de raciocínios, Inhelder dá o nome de “viscosidade genética”. Essa viscosidade 
pode ser considerada responsável por uma diminuição gradual do ritmo do desenvolvimento, 
que resulta em um estágio estacionário. Ou seja, ao contrário do desenvolvimento “normal,” as 
crianças com deficiência mental vão tendo o seu ritmo de desenvolvimento diminuído, 
podendo estacionar em um determinado estágio sem conseguir passar para o seguinte. 
Outro fenômeno descrito por Inhelder (1963) na deficiência mental é a oscilação. 
Para a autora, a oscilação é caracterizada por progressos seguidos de retrocessos, que se 
apresentam de tal maneira que o sujeito parece nunca ter alcançado o nível superior no qual 
estava antes de regredir. 
Os resultados da pesquisa que deu origem ao presente trabalho também revelam 
aspectos interessantes quanto ao fenômeno da oscilação. Nesse estudo, entende-se por 
oscilação a alternância de respostas características de diferentes estágios, com uma maior 
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incidência de níveis intermediários de construções cognitivas apresentadas por um mesmo 
sujeito, bem como retardo ou fixações deste mesmo processo sem chegar a um equilíbrio 
definitivo. Esses comportamentos de oscilação parecem indicar uma superposição de estádios 
ou a permanência em um estádio intermediário de evolução. Observou-se a presença de dois 
padrões de oscilação, um caracterizado pela alternância de respostas de diferentes níveis, sem 
contudo, permanecerem estabilizadas num estágio precedente, padrão também identificado em 
sujeitos ditos normais. O outro, também com alternância de respostas, mas com limitada 
mobilidade entre os estágios, permanecendo com maior estabilidade de respostas 
características de estágios precedentes. Este aspecto pode ser ilustrado pelas produções 
escritas de um sujeito (Eduardo), as quais indicam que ele passa de um nível menos evoluído 
para o seguinte, mas não consegue estabilizar respostas nesse nível, retornando para um nível 
anterior e até mesmo para um nível precedente àquele. Neste caso,parece que a criança 
desenvolve os esquemas que lhe permitem evoluir nas suas conceitualizações, sem contudo, 
ser capaz de conservar esses esquemas. Isto sugere a dinâmica de um desenvolvimento 
circular, conforme aquele descrito por Dolle (1994: 37): 
O sujeito pode hesitar sobre o caminho a tomar e aí ficar parado (...) Poder-se-ia, então, 
supor que a patologia corresponderia a um bloqueio nesse ponto, o que contribuiria para 
manter o sujeito na indecisão sobre o caminho a tomar e interromper seu dinamismo 
transformador do mundo e transformador de si mesmo. Caso o bloqueio fizesse o sujeito 
voltar atrás, ou seja, andar em círculo, este não poderia mais sair daí. 
Os sujeitos oscilantes da atual pesquisa eram justamente aqueles que se encontravam 
em nível intermediárioii da aquisição da linguagem escrita. Para alguns sujeitos, essa oscilação 
assumia um caráter temporário, enquanto que para outros parecia haver um retrocesso com 
características de fixações permanentes em etapas anteriores, retardando o seu processo de 
evolução na leitura. Tais oscilações sugerem, respectivamente, uma instabilidade na 
construção de estruturas cognitivas, conforme foram descritas por Inhelder (1963) ou uma 
rigidez nas estruturas constituídas. 
Ambos os casos parecem estar relacionados à fragilidade na construção de habilidades 
metacognitivas que possibilitariam a consciência, o monitoramento e o controle dos conceitos 
em processo de aquisição (Paour, 1981, 1988, 1991). 
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Rejeitando a hipótese de déficits específicos, irreversíveis e sintomáticos no 
desenvolvimento das pessoas com deficiência mental, Paour (1991) esclarece que ocorre uma 
gestão deficitária dos processos de controle do funcionamento cognitivo, gerando dificuldade 
em utilizar, de forma eficaz, os conhecimentos adquiridos e de interagir espontaneamente com 
a situação de aprendizagem. Essa gestão deficitária seria resultado de uma fragilidade 
metacognitiva. Entretanto, com a mediação essas dificuldades poderiam ser diminuídas. 
Segundo Flavell (apud Noel, 1991), a metacognição se relaciona ao conhecimento 
que se tem dos seus próprios processos cognitivos, de seus produtos e de tudo que se refere a 
eles. A metacognição se relacionaria, entre outras coisas: à avaliação ativa, à regulação e à 
organização desses processos, em função dos objetos de conhecimento. Noel (1991) aponta 
como principais eventos da metacognição a possibilidade do julgamento sobre a qualidade das 
atividades mentais ou do seu produto e, eventualmente, uma decisão de modificar a atividade 
cognitiva, seu produto ou mesmo a situação que a suscita. Esses eventos podem ser 
evidenciados através da consciência que os sujeitos têm sobre suas atividades cognitivas, do 
julgamento que elabora sobre essas atividades e da tomada de decisão, com base no 
julgamento, para modificar ou não as estratégias utilizadas. 
Nas atividades da presente pesquisa pôde-se observar que, durante seus processos de 
aquisição da leitura e da escrita, os sujeitos com deficiência mental manifestaram algumas 
habilidades metacognitivas, ou que estavam a ela relacionadas, tais como: a exploração do 
material e da situação da atividade, a mobilização de conhecimentos prévios na resolução das 
situações propostas, o planejamento, o controle de suas ações, a avaliação do seu desempenho 
na atividade proposta, culminando em uma decisão metacognitiva. 
A exploração do material e da situação da atividade trata-se de um processo baseado 
nos conhecimentos anteriores, sendo um processo de reconhecimento. Esse processo é a base 
para a resolução de problemas e depende da maleabilidade dos processos cognitivos, pois é 
necessário um vai-e-vem constante entre previsões e constatações, necessitando de 
permanentes atualizações. Em seu desenrolar poderá surgir o uso do julgamento e da decisão 
metacognitiva. A mobilização de conhecimentos prévios depende da interpretação inicial dos 
dados e pode ocorrer de três formas diferentes: a primeira se dá com a utilização de respostas 
anteriores, como uma simples repetição; na segunda ocorreria a adaptação de uma resposta 
anterior, em função da situação apresentada, contribuindo para aumentar o leque de respostas 
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do sujeito dentro de uma classe de problemas, sem, no entanto, prepará-lo para novas 
situações; a terceira forma de ocorrência seria a criação de respostas novas, através da 
coordenação de outras anteriores, ocorrendo tomada de consciência e mudanças de pontos de 
vista (Paour, 1991). O planejamento, o controle e a avaliação são características próprias do 
julgamento elaborado sobre as atividades cognitivas ou sobre o produto dessas atividades. 
 
2. As manifestações de habilidades metacognitivas 
Para analisar e discutir as habilidades metacognitivas e outras habilidades a elas 
relacionadas, que foram manifestadas por alguns sujeitos dessa pesquisa, serão apresentados 
eventos ilustrativos do uso dessas atividades cognitivas e metacognitivas. Em cada evento será 
enfocada uma habilidade específica. Entretanto, é importante considerar que esse tratamento 
atende a uma razão didática e não decorre da forma de manifestação dessas habilidades que, 
na maioria das vezes, emergem concomitantemente, uma apoiando e permitindo o surgimento 
da outra. 
 
2.1 Exploração do material e da situação de aprendizagem 
Durante as atividades de pesquisa, percebe-se que tal habilidade está relacionada com o 
interesse despertado no sujeito pela atividade e com sua familiarização com ela, podendo ser 
estimulada pela ação de um outro, como pode-se perceber no trecho abaixo: 
 
Pesquisadora: Ricardo, forma teu nome aí, do teu jeito (apresentando um conjunto de letras 
móveis). 
Ricardo: (fica mexendo nas letras) 
Pesquisadora: O que é que vem primeiro? 
Ricardo: Esse (pega o R), e esse (O). 
Ricardo: (Vai colocando letra por letra, uma ao lado da outra, até formar: ROIDRCA) 
Pesquisadora: E aqui eu tenho Ricardo? 
Ricardo: esse, esse, esse... (afirma apontando para cada letra). 
Inicialmente, Ricardo demonstra desinteresse e parece não se orientar quanto ao 
objetivo da atividade. Com a intervenção da pesquisadora, o sujeito decide quais letras usar na 
construção de seu nome, podendo assim resolver o problema em questão. Este evento ilustra a 
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dificuldade de uma exploração espontânea por parte do sujeito. Esta dificuldade é apontada 
por Paour (1988, 1991) como um dos aspectos de fragilidade no desenvolvimento das pessoas 
com deficiência mental. Segundo o pesquisador, essa fragilidade está associada à 
impulsividade, ao estreitamento do campo perceptivo, à má gestão da passagem do todo para 
os detalhes, à falta de curiosidade e à passividade, que normalmente são identificados no 
comportamento dessas pessoas. 
Conforme evidencia o evento acima apresentado, através da intervenção o sujeito muda 
de atitude, demonstrando maior eficiência na realização da atividade, selecionando para a 
montagem do seu nome as letras que o compunham, mesmo que não tenha conseguido 
organizá-las de forma alfabética. 
A análise de diferentes eventos, no decorrer da pesquisa, permite sugerir que a 
exploração do material e da situação de aprendizagem parece não está diretamente relacionada 
à evolução dos sujeitos em leitura e escrita, mas à compreensão da função social da língua 
escrita e à apropriação de um conjunto de atitudes implicadas na aquisição desta linguagem. 
Estas aquisições interferem no interesse do sujeito pelos diferentes portadores de textos e pelas 
atividades de produção escrita, como veremos a seguir. 
Os comportamentos de alguns sujeitos dessa pesquisa permitem respaldar a análise 
anteriormente apresentada. Nas primeiras sessões de intervenção freqüentadas por esses 
sujeitos, observavam-se, especialmente nos comportamentos de Ricardo e Tomás, a ausência 
da exploração do material e das situações de atividades propostas nessas sessões. Ambosnão 
demonstravam interesse pelas atividades e não se concentravam. Um desses sujeitos (Ricardo) 
tinha dificuldade em permanecer sentado, não folheava os livros de literatura infantil, 
abandonava rapidamente qualquer material que lhe era apresentado, dentre outros 
comportamentos dessa natureza. O outro sujeito (Tomás) demonstrava uma certa apatia, com o 
olhar vago, não manipulava os materiais disponíveis e nem se implicava nas atividades. 
Percebeu-se que, à medida que esses sujeitos foram participando de variados eventos de 
letramento e apropriando-se da função social da língua escrita, eles mudaram a forma de 
interagir com o material e com as solicitações das atividades propostas. Essa evolução se faz 
presente no comportamento de Tomás que, apesar de estar em um estágio inicial (pré-silábico) 
de aquisição da linguagem escrita, ao deparar-se com livros de histórias, mostra-se bastante 
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interessado e pede para “ler”, utilizando-se, para tal atividade de exploração dos desenhos 
presentes no livro. 
Ricardo, que por sua vez já apresenta respostas do nível silábico, também evoluiu 
significativamente em relação a seus comportamentos iniciais. A evolução desse sujeito 
apresenta a peculiaridade de estar diretamente associada à tomada de consciência da 
capacidade de escrever seu nome próprio. A partir do momento em que Ricardo escreveu 
ortograficamente o seu nome e se percebeu capaz dessa produção escrita, passou a concentrar-
se nas atividades propostas e a demonstrar um grande interesse por jogos que envolvem a 
linguagem escrita, como o jogo de memória de nomes. O reconhecimento da capacidade de 
escrever próprio nome causou em Ricardo um grande entusiasmo pela escrita, ele demonstrava 
prazer em mostrar para os seus pares e para as pesquisadoras que ele já era capaz daquele 
registro. Este foi um momento importante em sua relação com a escrita, marcado pelo desejo 
de escrever “muitos nomes”, inclusive o de alguns de seus colegas. 
 
2.2 Associação e mobilização de conhecimentos anteriores 
A associação e mobilização de conhecimentos durante atividades de interpretação da 
escrita foram habilidades utilizadas por alguns dos sujeitos dessa pesquisa e essas habilidades 
são a marca principal de uma das estratégias utilizadas por esses sujeitos: a estratégia de 
associação de letras. Tal estratégia se caracteriza, essencialmente, pela comparação de letras 
ou palavras do texto àquelas do seu vocabulário visual. Na tentativa de construir o sentido da 
palavra, a criança faz uma leitura global, orientando-se pelo reconhecimento de letras isoladas, 
sem atribuir importância ao conjunto e às particularidades dos caracteres que a compõem. 
Nessa situação, observa-se que o sujeito ainda não opera com as regras de funcionamento da 
escrita alfabética. O emprego dessa estratégia é um indicador da capacidade de fazer 
associações e pode ser compreendido também como um indício de competência na 
mobilização de conhecimentos anteriores, na tentativa de atribuir significado á escrita. Porém, 
nem sempre tal estratégia resulta em um avanço conceitual. 
No exemplo seguinte observa-se que, sozinho, o sujeito não foi capaz de mobilizar 
seus conhecimentos para construir novos, ocorrendo apenas uma adaptação de uma resposta 
anterior em função da situação apresentada. Entretanto, após a intervenção da pesquisadora, 
percebe-se um avanço em seu procedimento de leitura. O diálogo seguinte ocorreu durante um 
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jogo com o alfabeto móvel. Neste jogo, Ricardo e uma de suas colegas (Lya) tentavam compor 
e ler algumas palavras. Vejamos a intervenção referente à composição e à leitura da palavra 
BONECA: 
 
Lya: (compõem a palavra BONECA) 
Ricardo: Casa 
Lya: Não 
Ricardo: (nomeou todas as letras da palavra), “B”, “O”, “N”, “E”, “C”, “A”. 
Pesquisadora: É. São essas as letras que estão aí, mas juntas formam que palavra? 
Ricardo: (começou a falar as sílabas) B com O – bo, N com E – ne, C com A – ca (não 
conseguiu fazer a síntese da palavra, estava inquieto... Olhava bastante para a palavra, 
brincava com as letras móveis, precisava ser constantemente chamado atenção. A 
pesquisadora pediu, então, que ele copiasse a palavra no papel). 
Ricardo: (olhou atentamente para a palavra no papel) Bola. 
Pesquisadora: Não, começa do mesmo jeito, mas não é bola. 
Ricardo: Bota! 
Pesquisadora: Não é bota, Ricardo, começa do mesmo jeito, não é? Mas presta atenção 
quantos pedacinhos tem a palavra... 
Ricardo: Põe-se a contar as letras... 
Pesquisadora: Não, Ricardo, as letras não... Os pedacinhos, as sílabas... 
Ricardo: B, O – bo, N, E – ne C, A – ca... (Enquanto Ricardo foi dizendo as sílabas a 
pesquisadora foi separando-as, no alfabeto móvel). 
Pesquisadora: Então, Ricardo, está vendo que tem três pedacinhos? 
Ricardo: (Ficou olhando atentamente para a palavra) Tem. 
Pesquisadora: E as palavras bo-la, bo-ta (falou enfatizado as sílabas e dando uma pancada 
na mesa, para cada uma) só tem 2 não é? 
Ricardo: (olhou só por um momento para a pesquisadora em seguida voltou-se para a 
palavra, olhava atentamente e percebia-se o movimento da sua boca fazendo o som das 
sílabas). 
Pesquisadora: Então Ricardo... Qual é essa palavra? 
Ricardo: Bo, ne, ca... É boneca! (havia um enorme sorriso de vitória no seu rosto). 
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Percebe-se que a estratégia inicial do sujeito é utilizar-se da associação de letras da 
palavra apresentada com a de palavras de seu repertório (BONECA - CASA) mobilizando seus 
conhecimentos anteriores, porém sem adequar às exigências da atividade. Mesmo não dando 
certo, essa estratégia continua sendo utilizada só que desta vez usando como pista a sílaba 
inicial e não mais a final (BONECA – BOLA – BOTA). Com a intervenção da pesquisadora, o 
sujeito toma consciência de que sua estratégia inicial não poderia mais ser utilizada, muda de 
estratégia, e concentra-se na palavra que está escrita para a partir dela mobilizar 
conhecimentos que possam construir a resposta para essa situação. 
Observa-se, nesse momento, a importância da mediação como mobilizadora de 
habilidades mais eficazes para a gestão de conhecimentos e do funcionamento cognitivo. 
Conforme já ressaltamos, Paour (1991) considera que a mediação desempenha um papel 
fundamental no desenvolvimento de habilidades cognitivas e metacognitivas de sujeitos com 
deficiência mental e que a maior dificuldade das pessoas com deficiência não se constitui em 
construir suas habilidades cognitivas, mas reside em construí-las espontaneamente. O evento 
acima evidencia que com a intervenção a pesquisadora facilitou o trabalho do sujeito, 
possibilitando, além da mobilização dos conhecimentos anteriores, a generalização e 
adaptação dos mesmos. 
 
2.3 Julgamento e decisão metacognitiva 
O julgamento metacognitivo envolve tanto o planejamento, quanto o controle e a 
avaliação dos processos mobilizados pelo indivíduo na resolução da atividade e pode ter como 
resultado uma decisão metacognitiva. Esses processos estão intimamente relacionados aos 
avanços conceituais do sujeito na sua aquisição da linguagem escrita. Com isso, observa-se 
que os sujeitos que se encontram nos níveis iniciais da escrita não demonstram o uso dessas 
habilidades, quando modificam suas respostas o fazem apenas em função do outro que está 
intervindo. Tal modificação não se caracteriza como decisão metacognitiva, pois não há uma 
conscientização de que algo precisa ser modificado. Pode-se observar isto no caso ilustrado 
abaixo, retirado de uma atividade que explorava o realismo nominal com um sujeito (Sâmio) 
em nível pré-silábico, que se utilizava do desenho para ler. 
 
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Pesquisadora: Eu quero que você me diga qual palavra tu achas que é maior, se é a palavra 
boi ou a palavra muriçoca. 
Sâmio: Muriçoca 
Pesquisadora: Por que a palavra muriçoca é maior? 
Sâmio: Boi 
Pesquisadora: Mas a palavra maior é boi ou a palavra muriçoca? 
Sâmio: MuriçocaPesquisador: Por que? 
Sâmio: Não responde. 
 
Observa-se nesse trecho que o sujeito não consegue formar um conceito sobre qual 
palavra seria maior, decidindo por uma nova resposta sempre que a pesquisadora insistia na 
pergunta, não por julgar que a nova resposta era mais adequada para a situação e sim para que 
a pesquisadora não mais lhe pedisse explicações. 
Procedimentos contrários são observados em sujeitos de níveis de evolução em leitura 
mais elevados, como Miguel, por exemplo, que já se beneficia da decodificação na leitura. As 
etapas do julgamento podem ser observadas claramente durante uma atividade na qual o 
sujeito deveria escrever a palavra CEBOLINHA e registrou CEBOLIANÃ. Após verificar sua 
produção, Miguel faz o seguinte comentário: Se colocar o O aqui (apontando para o final da 
palavra), vai ficar CEBOLINHO, não é? 
Observa-se, nesse momento, um planejamento e um controle sobre qual representação 
é a mais adequada, avaliando que vogal seria mais adequada para a escrita da palavra. 
Outro exemplo de julgamento e decisão metacognitiva ocorreu durante uma atividade 
do tipo close, realizada por Lya. Ela mostra-se ser capaz de ler, embora com pouca 
compreensão, textos curtos e sua produção escrita encontra-se no período de transição entre 
uma escrita de textos telegráfica (onde só as palavras mais importantes de uma frase são 
expressas) para uma escrita mais complexa. 
Durante suas produções Lya sempre demonstra um julgamento severo sobre seus 
escritos e muito medo de errar; como pode ser observado no momento de completar o final do 
texto, conforme será apresentado a seguir: 
TODOS FORAM À ___________ ____________ TOMAR ____________. 
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Tentando completar os dois primeiros espaços, Lya sugere as palavras PISCINA, 
PRAIA. Com a mediação dirigida pelo pesquisador, ela completa os espaços com o texto 
PRAIA PORTO DAS DUNAS. Para o terceiro espaço, verbaliza a palavra SUCO e escreve 
CUCO. Analisando a própria produção depois de algum tempo, Lya avaliou sua escrita como 
“errada”, e decidiu escrever outra, desta vez escreve a palavra COCA COLA. Finalmente 
olhando para o resultado, mostra-se satisfeita por ter “acertado” na escrita da palavra. 
Na análise das habilidades metacognitivas, durante as diferentes situações acima 
apresentadas, observa-se que sua manifestação e seu uso estão relacionados ao interesse do 
sujeito pela atividade, à mediação do outro e ao nível de evolução que esses sujeitos se 
encontram na linguagem escrita. 
 
3. Considerações Finais 
Através do presente estudo, observa-se que o uso de habilidades metacognitivas 
evoluiu de acordo com os avanços dos sujeitos na aquisição da linguagem escrita. Porém, em 
muitas situações, ainda é necessária a intervenção do outro para o emprego adequado dessas 
habilidades. Paour (1991) esclarece que a mediação pode diminuir a dificuldade que esses 
sujeitos encontram na utilização eficaz de seus conhecimentos e na interação com a situação 
de aprendizagem. Estaria a mediação atuando sobre a zona de desenvolvimento proximal 
(Vygotsky, 1984), podendo fazer emergir habilidades possíveis de serem internalizadas e 
utilizadas pelo sujeito com deficiência mental de forma independente? 
 Marchesi e Martín (1995) apresentam argumentos contrários à idéia de superação do 
déficit nessas habilidades, apontando-o como o diferencial entre os sujeitos com deficiência 
mental e os que não tem tal deficiência. Porém, Vygotsky (1995) ressalta que as dificuldades 
apresentadas pelos sujeitos com deficiência mental em seu processo de crescimento cognitivo 
devem-se, em grande parte, à intervenção errônea que é realizada com eles. Muitas vezes, 
partindo do pressuposto de que esses sujeitos não conseguem aprender, os educadores não 
disponibilizam ferramentas adequadas para seu aprendizado. Dessa forma, os sujeitos com 
deficiência mental realmente não aprendem e os pedagogos comprovam sua hipótese. 
Os resultados da pesquisa que deram origem à elaboração do presente trabalho ainda 
não permitem fazer afirmações que indiquem a fragilidade metacognitiva como uma 
característica irreversível do funcionamento das pessoas com deficiência mental. O estudo 
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permitiu evidenciar a manifestação de habilidades metacognitivas por alguns dos sujeitos, 
indicando que essas manifestações parecem estar relacionadas à evolução em leitura, ao 
interesse e à motivação pela atividade proposta. 
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i A pesquisa que serviu de base para o presente estudo é intitulada “A Emergência de Estratégias de Leitura em 
Crianças com Deficiência Mental durante a Aquisição da Linguagem Escrita”. Universidade Federal do Ceará, 
2001 a 2003. 
ii Na pesquisa, o nível intermediário se caracteriza pela presença de respostas típicas do nível silábico da 
psicogênese da língua escrita.

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