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1 A MANIFESTAÇÃO DE HABILIDADES METACOGNITIVAS EM SUJEITOS COM DEFICIÊNCIA MENTAL1 Rita Vieira de Figueiredo Ingrid Lira Rocha Resumo Esse trabalho analisa o processo de aprendizagem de pessoas com deficiência mental, dando ênfase às habilidades metacognitivas que elas mobilizam durante a aquisição da linguagem escrita. Paour (1991) esclarece que, durante seu desenvolvimento cognitivo, essas pessoas apresentam dificuldade em utilizar, de forma eficaz, os conhecimentos adquiridos e de interagir espontaneamente com a situação de aprendizagem. Tais dificuldades seriam resultados de uma fragilidade metacognitiva, e poderiam ser diminuídas com a mediação. Esse estudo conta com dez sujeitos com deficiência mental, de idade entre doze e vinte anos. Trata- se de uma pesquisa longitudinal desenvolvida através de sessões de intervenção e avaliação, que tem como referencial o sócio-construtivismo. Os resultados da pesquisa não permitem fazer afirmações que indiquem a fragilidade metacognitiva como uma característica irreversível do funcionamento das pessoas com deficiência mental. Observa-se que o uso de habilidades metacognitivas evoluiu de acordo com os avanços na aquisição da linguagem escrita e as manifestações dessas habilidades parecem estar relacionadas à evolução em leitura, ao interesse e à motivação pela atividade proposta. Palavras chaves: Deficiência mental, Metacognição, Linguagem escrita 1 FIGUEIREDO, R. V.; ROCHA, Ingrid Lira . A manifestação de habilidades metacognitivas em sujeitos com deficiência mental. In: XVI Encontro de Pesquisa do Norte e Nordeste, 2003, Aracajú. Educação, Pesquisa e Diversidade Regional, 2003. 2 1. Introdução e discussão teórica O presente trabalho tem como objetivo analisar o processo de aprendizagem de pessoas com deficiência mental, dando ênfase às habilidades metacognitivas que elas mobilizam durante seu processo de aquisição da linguagem escrita. Para uma análise das manifestações dessas habilidades, o estudo se apoiará na análise dos dados de uma pesquisai longitudinal que adota o referencial sócio-histórico-construtivista, no qual a aquisição da linguagem escrita é compreendida como uma evolução conceitual da criança dentro de seus processos cognitivos. baseadas nesse referencial são feitas sessões de intervenção e avaliação com atividades que trabalham leitura e escrita, através de jogos e diversos portadores de texto. A pesquisa conta com dados de dez sujeitos com deficiência mental, de idade variando entre doze e vinte anos. Três dos quais residem em instituições para menores abandonados, os outros sete vivem com suas famílias. Desses sujeitos, sete são advindos de meio sócio econômico desfavorecido. No que se refere à escolaridade, quatro freqüentam escola especial, quatro classe especial em escolas regulares e dois salas de aula regular. Os estudos do processo de aprendizagem das pessoas com deficiência mental se inscrevem em três teorias principais: a teoria estrutural/diferencial, a teoria do desenvolvimento de Zigler e a teoria de Piaget aplicada à deficiência mental. A teoria estrutural defende que há uma diferença qualitativa entre o desenvolvimento cognitivo das crianças com e o das sem deficiência mental. Os estudos realizados sob este enfoque comparam os sujeitos com base na idade cronológica. Segundo essa teoria existem características específicas que diferenciam as duas populações. Tais características seriam: dificuldade de transferir informações da memória a curto prazo para a memória a longo prazo, utilizando uma estratégia de repetição adequada (Ellis, 1969, 1970); dificuldades de decodificação, planificação e armazenamento de informação – devido ao déficit na memória estrutural (Deacon et Wooldridg, 1985; Smart, O’Grad et das, 1982); dificuldade de organizar estímulos e informações (Spitz, 1966). Já a teoria do desenvolvimento de Zigler aponta que a diferença entre o desenvolvimento cognitivo dessas duas populações é quantitativa e não qualitativa. Esta teoria defende que existe uma similaridade nas estruturas cognitivas (organização do pensamento e processo de aprendizagem). Para o pesquisador o desenvolvimento das crianças com 3 deficiência mental ocorre de forma mais lenta, porém similar ao das crianças sem essa deficiência. Desta forma, ambas passariam pelas mesmas etapas em seus processos de desenvolvimento. Esses dois enfoques geraram muita discussão no meio acadêmico, polemizando se as diferenças entre sujeitos com e sem deficiência mental são de caráter qualitativo (com estruturas diferentes) ou quantitativo (apresentando seqüências e estruturas similares). De acordo com Paour (1991), o desacordo entre a teoria estrutural e a teoria do desenvolvimento ocorre, porque cada uma delas observa a deficiência mental por um ângulo diferente. No enfoque piagetiano, a deficiência mental poderia ser caracterizada pelos fenômenos da lentidão, da fixação e da incompletude das estruturas cognitivas. Inhelder (1963) afirma que as crianças com deficiência mental seguem as mesmas etapas de desenvolvimento que as crianças “normais”, diferenciando-se das últimas por seu ritmo de aquisição ser mais lento e seu desenvolvimento ser marcado por uma falsa equilibração, impossibilitando a essas crianças o ingresso nas operações formais. A falsa equilibração, segundo a autora, é resultado da dificuldade encontrada pelas crianças para abandonarem os raciocínios característicos dos estágios superados, ou seja, mesmo atingindo um estágio superior no seu desenvolvimento, as pessoas com deficiência mental conservariam ainda características dos anteriores. Assim, muitas vezes apresentam, ao mesmo tempo, tipos de raciocínios encontrados em dois estágios diferentes. A essa superposição de raciocínios, Inhelder dá o nome de “viscosidade genética”. Essa viscosidade pode ser considerada responsável por uma diminuição gradual do ritmo do desenvolvimento, que resulta em um estágio estacionário. Ou seja, ao contrário do desenvolvimento “normal,” as crianças com deficiência mental vão tendo o seu ritmo de desenvolvimento diminuído, podendo estacionar em um determinado estágio sem conseguir passar para o seguinte. Outro fenômeno descrito por Inhelder (1963) na deficiência mental é a oscilação. Para a autora, a oscilação é caracterizada por progressos seguidos de retrocessos, que se apresentam de tal maneira que o sujeito parece nunca ter alcançado o nível superior no qual estava antes de regredir. Os resultados da pesquisa que deu origem ao presente trabalho também revelam aspectos interessantes quanto ao fenômeno da oscilação. Nesse estudo, entende-se por oscilação a alternância de respostas características de diferentes estágios, com uma maior 4 incidência de níveis intermediários de construções cognitivas apresentadas por um mesmo sujeito, bem como retardo ou fixações deste mesmo processo sem chegar a um equilíbrio definitivo. Esses comportamentos de oscilação parecem indicar uma superposição de estádios ou a permanência em um estádio intermediário de evolução. Observou-se a presença de dois padrões de oscilação, um caracterizado pela alternância de respostas de diferentes níveis, sem contudo, permanecerem estabilizadas num estágio precedente, padrão também identificado em sujeitos ditos normais. O outro, também com alternância de respostas, mas com limitada mobilidade entre os estágios, permanecendo com maior estabilidade de respostas características de estágios precedentes. Este aspecto pode ser ilustrado pelas produções escritas de um sujeito (Eduardo), as quais indicam que ele passa de um nível menos evoluído para o seguinte, mas não consegue estabilizar respostas nesse nível, retornando para um nível anterior e até mesmo para um nível precedente àquele. Neste caso,parece que a criança desenvolve os esquemas que lhe permitem evoluir nas suas conceitualizações, sem contudo, ser capaz de conservar esses esquemas. Isto sugere a dinâmica de um desenvolvimento circular, conforme aquele descrito por Dolle (1994: 37): O sujeito pode hesitar sobre o caminho a tomar e aí ficar parado (...) Poder-se-ia, então, supor que a patologia corresponderia a um bloqueio nesse ponto, o que contribuiria para manter o sujeito na indecisão sobre o caminho a tomar e interromper seu dinamismo transformador do mundo e transformador de si mesmo. Caso o bloqueio fizesse o sujeito voltar atrás, ou seja, andar em círculo, este não poderia mais sair daí. Os sujeitos oscilantes da atual pesquisa eram justamente aqueles que se encontravam em nível intermediárioii da aquisição da linguagem escrita. Para alguns sujeitos, essa oscilação assumia um caráter temporário, enquanto que para outros parecia haver um retrocesso com características de fixações permanentes em etapas anteriores, retardando o seu processo de evolução na leitura. Tais oscilações sugerem, respectivamente, uma instabilidade na construção de estruturas cognitivas, conforme foram descritas por Inhelder (1963) ou uma rigidez nas estruturas constituídas. Ambos os casos parecem estar relacionados à fragilidade na construção de habilidades metacognitivas que possibilitariam a consciência, o monitoramento e o controle dos conceitos em processo de aquisição (Paour, 1981, 1988, 1991). 5 Rejeitando a hipótese de déficits específicos, irreversíveis e sintomáticos no desenvolvimento das pessoas com deficiência mental, Paour (1991) esclarece que ocorre uma gestão deficitária dos processos de controle do funcionamento cognitivo, gerando dificuldade em utilizar, de forma eficaz, os conhecimentos adquiridos e de interagir espontaneamente com a situação de aprendizagem. Essa gestão deficitária seria resultado de uma fragilidade metacognitiva. Entretanto, com a mediação essas dificuldades poderiam ser diminuídas. Segundo Flavell (apud Noel, 1991), a metacognição se relaciona ao conhecimento que se tem dos seus próprios processos cognitivos, de seus produtos e de tudo que se refere a eles. A metacognição se relacionaria, entre outras coisas: à avaliação ativa, à regulação e à organização desses processos, em função dos objetos de conhecimento. Noel (1991) aponta como principais eventos da metacognição a possibilidade do julgamento sobre a qualidade das atividades mentais ou do seu produto e, eventualmente, uma decisão de modificar a atividade cognitiva, seu produto ou mesmo a situação que a suscita. Esses eventos podem ser evidenciados através da consciência que os sujeitos têm sobre suas atividades cognitivas, do julgamento que elabora sobre essas atividades e da tomada de decisão, com base no julgamento, para modificar ou não as estratégias utilizadas. Nas atividades da presente pesquisa pôde-se observar que, durante seus processos de aquisição da leitura e da escrita, os sujeitos com deficiência mental manifestaram algumas habilidades metacognitivas, ou que estavam a ela relacionadas, tais como: a exploração do material e da situação da atividade, a mobilização de conhecimentos prévios na resolução das situações propostas, o planejamento, o controle de suas ações, a avaliação do seu desempenho na atividade proposta, culminando em uma decisão metacognitiva. A exploração do material e da situação da atividade trata-se de um processo baseado nos conhecimentos anteriores, sendo um processo de reconhecimento. Esse processo é a base para a resolução de problemas e depende da maleabilidade dos processos cognitivos, pois é necessário um vai-e-vem constante entre previsões e constatações, necessitando de permanentes atualizações. Em seu desenrolar poderá surgir o uso do julgamento e da decisão metacognitiva. A mobilização de conhecimentos prévios depende da interpretação inicial dos dados e pode ocorrer de três formas diferentes: a primeira se dá com a utilização de respostas anteriores, como uma simples repetição; na segunda ocorreria a adaptação de uma resposta anterior, em função da situação apresentada, contribuindo para aumentar o leque de respostas 6 do sujeito dentro de uma classe de problemas, sem, no entanto, prepará-lo para novas situações; a terceira forma de ocorrência seria a criação de respostas novas, através da coordenação de outras anteriores, ocorrendo tomada de consciência e mudanças de pontos de vista (Paour, 1991). O planejamento, o controle e a avaliação são características próprias do julgamento elaborado sobre as atividades cognitivas ou sobre o produto dessas atividades. 2. As manifestações de habilidades metacognitivas Para analisar e discutir as habilidades metacognitivas e outras habilidades a elas relacionadas, que foram manifestadas por alguns sujeitos dessa pesquisa, serão apresentados eventos ilustrativos do uso dessas atividades cognitivas e metacognitivas. Em cada evento será enfocada uma habilidade específica. Entretanto, é importante considerar que esse tratamento atende a uma razão didática e não decorre da forma de manifestação dessas habilidades que, na maioria das vezes, emergem concomitantemente, uma apoiando e permitindo o surgimento da outra. 2.1 Exploração do material e da situação de aprendizagem Durante as atividades de pesquisa, percebe-se que tal habilidade está relacionada com o interesse despertado no sujeito pela atividade e com sua familiarização com ela, podendo ser estimulada pela ação de um outro, como pode-se perceber no trecho abaixo: Pesquisadora: Ricardo, forma teu nome aí, do teu jeito (apresentando um conjunto de letras móveis). Ricardo: (fica mexendo nas letras) Pesquisadora: O que é que vem primeiro? Ricardo: Esse (pega o R), e esse (O). Ricardo: (Vai colocando letra por letra, uma ao lado da outra, até formar: ROIDRCA) Pesquisadora: E aqui eu tenho Ricardo? Ricardo: esse, esse, esse... (afirma apontando para cada letra). Inicialmente, Ricardo demonstra desinteresse e parece não se orientar quanto ao objetivo da atividade. Com a intervenção da pesquisadora, o sujeito decide quais letras usar na construção de seu nome, podendo assim resolver o problema em questão. Este evento ilustra a 7 dificuldade de uma exploração espontânea por parte do sujeito. Esta dificuldade é apontada por Paour (1988, 1991) como um dos aspectos de fragilidade no desenvolvimento das pessoas com deficiência mental. Segundo o pesquisador, essa fragilidade está associada à impulsividade, ao estreitamento do campo perceptivo, à má gestão da passagem do todo para os detalhes, à falta de curiosidade e à passividade, que normalmente são identificados no comportamento dessas pessoas. Conforme evidencia o evento acima apresentado, através da intervenção o sujeito muda de atitude, demonstrando maior eficiência na realização da atividade, selecionando para a montagem do seu nome as letras que o compunham, mesmo que não tenha conseguido organizá-las de forma alfabética. A análise de diferentes eventos, no decorrer da pesquisa, permite sugerir que a exploração do material e da situação de aprendizagem parece não está diretamente relacionada à evolução dos sujeitos em leitura e escrita, mas à compreensão da função social da língua escrita e à apropriação de um conjunto de atitudes implicadas na aquisição desta linguagem. Estas aquisições interferem no interesse do sujeito pelos diferentes portadores de textos e pelas atividades de produção escrita, como veremos a seguir. Os comportamentos de alguns sujeitos dessa pesquisa permitem respaldar a análise anteriormente apresentada. Nas primeiras sessões de intervenção freqüentadas por esses sujeitos, observavam-se, especialmente nos comportamentos de Ricardo e Tomás, a ausência da exploração do material e das situações de atividades propostas nessas sessões. Ambosnão demonstravam interesse pelas atividades e não se concentravam. Um desses sujeitos (Ricardo) tinha dificuldade em permanecer sentado, não folheava os livros de literatura infantil, abandonava rapidamente qualquer material que lhe era apresentado, dentre outros comportamentos dessa natureza. O outro sujeito (Tomás) demonstrava uma certa apatia, com o olhar vago, não manipulava os materiais disponíveis e nem se implicava nas atividades. Percebeu-se que, à medida que esses sujeitos foram participando de variados eventos de letramento e apropriando-se da função social da língua escrita, eles mudaram a forma de interagir com o material e com as solicitações das atividades propostas. Essa evolução se faz presente no comportamento de Tomás que, apesar de estar em um estágio inicial (pré-silábico) de aquisição da linguagem escrita, ao deparar-se com livros de histórias, mostra-se bastante 8 interessado e pede para “ler”, utilizando-se, para tal atividade de exploração dos desenhos presentes no livro. Ricardo, que por sua vez já apresenta respostas do nível silábico, também evoluiu significativamente em relação a seus comportamentos iniciais. A evolução desse sujeito apresenta a peculiaridade de estar diretamente associada à tomada de consciência da capacidade de escrever seu nome próprio. A partir do momento em que Ricardo escreveu ortograficamente o seu nome e se percebeu capaz dessa produção escrita, passou a concentrar- se nas atividades propostas e a demonstrar um grande interesse por jogos que envolvem a linguagem escrita, como o jogo de memória de nomes. O reconhecimento da capacidade de escrever próprio nome causou em Ricardo um grande entusiasmo pela escrita, ele demonstrava prazer em mostrar para os seus pares e para as pesquisadoras que ele já era capaz daquele registro. Este foi um momento importante em sua relação com a escrita, marcado pelo desejo de escrever “muitos nomes”, inclusive o de alguns de seus colegas. 2.2 Associação e mobilização de conhecimentos anteriores A associação e mobilização de conhecimentos durante atividades de interpretação da escrita foram habilidades utilizadas por alguns dos sujeitos dessa pesquisa e essas habilidades são a marca principal de uma das estratégias utilizadas por esses sujeitos: a estratégia de associação de letras. Tal estratégia se caracteriza, essencialmente, pela comparação de letras ou palavras do texto àquelas do seu vocabulário visual. Na tentativa de construir o sentido da palavra, a criança faz uma leitura global, orientando-se pelo reconhecimento de letras isoladas, sem atribuir importância ao conjunto e às particularidades dos caracteres que a compõem. Nessa situação, observa-se que o sujeito ainda não opera com as regras de funcionamento da escrita alfabética. O emprego dessa estratégia é um indicador da capacidade de fazer associações e pode ser compreendido também como um indício de competência na mobilização de conhecimentos anteriores, na tentativa de atribuir significado á escrita. Porém, nem sempre tal estratégia resulta em um avanço conceitual. No exemplo seguinte observa-se que, sozinho, o sujeito não foi capaz de mobilizar seus conhecimentos para construir novos, ocorrendo apenas uma adaptação de uma resposta anterior em função da situação apresentada. Entretanto, após a intervenção da pesquisadora, percebe-se um avanço em seu procedimento de leitura. O diálogo seguinte ocorreu durante um 9 jogo com o alfabeto móvel. Neste jogo, Ricardo e uma de suas colegas (Lya) tentavam compor e ler algumas palavras. Vejamos a intervenção referente à composição e à leitura da palavra BONECA: Lya: (compõem a palavra BONECA) Ricardo: Casa Lya: Não Ricardo: (nomeou todas as letras da palavra), “B”, “O”, “N”, “E”, “C”, “A”. Pesquisadora: É. São essas as letras que estão aí, mas juntas formam que palavra? Ricardo: (começou a falar as sílabas) B com O – bo, N com E – ne, C com A – ca (não conseguiu fazer a síntese da palavra, estava inquieto... Olhava bastante para a palavra, brincava com as letras móveis, precisava ser constantemente chamado atenção. A pesquisadora pediu, então, que ele copiasse a palavra no papel). Ricardo: (olhou atentamente para a palavra no papel) Bola. Pesquisadora: Não, começa do mesmo jeito, mas não é bola. Ricardo: Bota! Pesquisadora: Não é bota, Ricardo, começa do mesmo jeito, não é? Mas presta atenção quantos pedacinhos tem a palavra... Ricardo: Põe-se a contar as letras... Pesquisadora: Não, Ricardo, as letras não... Os pedacinhos, as sílabas... Ricardo: B, O – bo, N, E – ne C, A – ca... (Enquanto Ricardo foi dizendo as sílabas a pesquisadora foi separando-as, no alfabeto móvel). Pesquisadora: Então, Ricardo, está vendo que tem três pedacinhos? Ricardo: (Ficou olhando atentamente para a palavra) Tem. Pesquisadora: E as palavras bo-la, bo-ta (falou enfatizado as sílabas e dando uma pancada na mesa, para cada uma) só tem 2 não é? Ricardo: (olhou só por um momento para a pesquisadora em seguida voltou-se para a palavra, olhava atentamente e percebia-se o movimento da sua boca fazendo o som das sílabas). Pesquisadora: Então Ricardo... Qual é essa palavra? Ricardo: Bo, ne, ca... É boneca! (havia um enorme sorriso de vitória no seu rosto). 10 Percebe-se que a estratégia inicial do sujeito é utilizar-se da associação de letras da palavra apresentada com a de palavras de seu repertório (BONECA - CASA) mobilizando seus conhecimentos anteriores, porém sem adequar às exigências da atividade. Mesmo não dando certo, essa estratégia continua sendo utilizada só que desta vez usando como pista a sílaba inicial e não mais a final (BONECA – BOLA – BOTA). Com a intervenção da pesquisadora, o sujeito toma consciência de que sua estratégia inicial não poderia mais ser utilizada, muda de estratégia, e concentra-se na palavra que está escrita para a partir dela mobilizar conhecimentos que possam construir a resposta para essa situação. Observa-se, nesse momento, a importância da mediação como mobilizadora de habilidades mais eficazes para a gestão de conhecimentos e do funcionamento cognitivo. Conforme já ressaltamos, Paour (1991) considera que a mediação desempenha um papel fundamental no desenvolvimento de habilidades cognitivas e metacognitivas de sujeitos com deficiência mental e que a maior dificuldade das pessoas com deficiência não se constitui em construir suas habilidades cognitivas, mas reside em construí-las espontaneamente. O evento acima evidencia que com a intervenção a pesquisadora facilitou o trabalho do sujeito, possibilitando, além da mobilização dos conhecimentos anteriores, a generalização e adaptação dos mesmos. 2.3 Julgamento e decisão metacognitiva O julgamento metacognitivo envolve tanto o planejamento, quanto o controle e a avaliação dos processos mobilizados pelo indivíduo na resolução da atividade e pode ter como resultado uma decisão metacognitiva. Esses processos estão intimamente relacionados aos avanços conceituais do sujeito na sua aquisição da linguagem escrita. Com isso, observa-se que os sujeitos que se encontram nos níveis iniciais da escrita não demonstram o uso dessas habilidades, quando modificam suas respostas o fazem apenas em função do outro que está intervindo. Tal modificação não se caracteriza como decisão metacognitiva, pois não há uma conscientização de que algo precisa ser modificado. Pode-se observar isto no caso ilustrado abaixo, retirado de uma atividade que explorava o realismo nominal com um sujeito (Sâmio) em nível pré-silábico, que se utilizava do desenho para ler. 11 Pesquisadora: Eu quero que você me diga qual palavra tu achas que é maior, se é a palavra boi ou a palavra muriçoca. Sâmio: Muriçoca Pesquisadora: Por que a palavra muriçoca é maior? Sâmio: Boi Pesquisadora: Mas a palavra maior é boi ou a palavra muriçoca? Sâmio: MuriçocaPesquisador: Por que? Sâmio: Não responde. Observa-se nesse trecho que o sujeito não consegue formar um conceito sobre qual palavra seria maior, decidindo por uma nova resposta sempre que a pesquisadora insistia na pergunta, não por julgar que a nova resposta era mais adequada para a situação e sim para que a pesquisadora não mais lhe pedisse explicações. Procedimentos contrários são observados em sujeitos de níveis de evolução em leitura mais elevados, como Miguel, por exemplo, que já se beneficia da decodificação na leitura. As etapas do julgamento podem ser observadas claramente durante uma atividade na qual o sujeito deveria escrever a palavra CEBOLINHA e registrou CEBOLIANÃ. Após verificar sua produção, Miguel faz o seguinte comentário: Se colocar o O aqui (apontando para o final da palavra), vai ficar CEBOLINHO, não é? Observa-se, nesse momento, um planejamento e um controle sobre qual representação é a mais adequada, avaliando que vogal seria mais adequada para a escrita da palavra. Outro exemplo de julgamento e decisão metacognitiva ocorreu durante uma atividade do tipo close, realizada por Lya. Ela mostra-se ser capaz de ler, embora com pouca compreensão, textos curtos e sua produção escrita encontra-se no período de transição entre uma escrita de textos telegráfica (onde só as palavras mais importantes de uma frase são expressas) para uma escrita mais complexa. Durante suas produções Lya sempre demonstra um julgamento severo sobre seus escritos e muito medo de errar; como pode ser observado no momento de completar o final do texto, conforme será apresentado a seguir: TODOS FORAM À ___________ ____________ TOMAR ____________. 12 Tentando completar os dois primeiros espaços, Lya sugere as palavras PISCINA, PRAIA. Com a mediação dirigida pelo pesquisador, ela completa os espaços com o texto PRAIA PORTO DAS DUNAS. Para o terceiro espaço, verbaliza a palavra SUCO e escreve CUCO. Analisando a própria produção depois de algum tempo, Lya avaliou sua escrita como “errada”, e decidiu escrever outra, desta vez escreve a palavra COCA COLA. Finalmente olhando para o resultado, mostra-se satisfeita por ter “acertado” na escrita da palavra. Na análise das habilidades metacognitivas, durante as diferentes situações acima apresentadas, observa-se que sua manifestação e seu uso estão relacionados ao interesse do sujeito pela atividade, à mediação do outro e ao nível de evolução que esses sujeitos se encontram na linguagem escrita. 3. Considerações Finais Através do presente estudo, observa-se que o uso de habilidades metacognitivas evoluiu de acordo com os avanços dos sujeitos na aquisição da linguagem escrita. Porém, em muitas situações, ainda é necessária a intervenção do outro para o emprego adequado dessas habilidades. Paour (1991) esclarece que a mediação pode diminuir a dificuldade que esses sujeitos encontram na utilização eficaz de seus conhecimentos e na interação com a situação de aprendizagem. Estaria a mediação atuando sobre a zona de desenvolvimento proximal (Vygotsky, 1984), podendo fazer emergir habilidades possíveis de serem internalizadas e utilizadas pelo sujeito com deficiência mental de forma independente? Marchesi e Martín (1995) apresentam argumentos contrários à idéia de superação do déficit nessas habilidades, apontando-o como o diferencial entre os sujeitos com deficiência mental e os que não tem tal deficiência. Porém, Vygotsky (1995) ressalta que as dificuldades apresentadas pelos sujeitos com deficiência mental em seu processo de crescimento cognitivo devem-se, em grande parte, à intervenção errônea que é realizada com eles. Muitas vezes, partindo do pressuposto de que esses sujeitos não conseguem aprender, os educadores não disponibilizam ferramentas adequadas para seu aprendizado. Dessa forma, os sujeitos com deficiência mental realmente não aprendem e os pedagogos comprovam sua hipótese. Os resultados da pesquisa que deram origem à elaboração do presente trabalho ainda não permitem fazer afirmações que indiquem a fragilidade metacognitiva como uma característica irreversível do funcionamento das pessoas com deficiência mental. O estudo 13 permitiu evidenciar a manifestação de habilidades metacognitivas por alguns dos sujeitos, indicando que essas manifestações parecem estar relacionadas à evolução em leitura, ao interesse e à motivação pela atividade proposta. 14 Referências Bibliográficas DEACON, J. R. e WOOLDRIDG, P. W. Structural memory deficits of mentally retarded persons. American Journal of Mental Deficiency, 89, 393-402. DOLLE, Jean-Marie. 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Madrid: Pueblo y Educacion, 1995. i A pesquisa que serviu de base para o presente estudo é intitulada “A Emergência de Estratégias de Leitura em Crianças com Deficiência Mental durante a Aquisição da Linguagem Escrita”. Universidade Federal do Ceará, 2001 a 2003. ii Na pesquisa, o nível intermediário se caracteriza pela presença de respostas típicas do nível silábico da psicogênese da língua escrita.
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