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EBOOK COMPLETO Literatura Comparada

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UNIDADE 1
Conhecendo o campo da teoria literária
Você já assistiu a alguma adaptação cinematográfica que tenha surgido de algum
livro literário? Já teve a experiência de ler o livro do filme a que assistiu, ele já se
deparou com pessoas que disseram “ah, mas eu li o livro e é diferente, tem mais
detalhes”? Há quem diga preferir ler o livro antes de assistir ao filme, inclusive, por
acreditar que a visão do cinema influenciará na imaginação leitora… todos esses
elementos, de modo geral, configuram nosso objeto de estudo, a literatura
comparada.
Já sabemos que a literatura, em linhas gerais, é uma forma de arte que utiliza a
palavra como seu elemento fundamental. O pesquisador Massaud Moisés, em seu
Dicionário de Termos Literários (Editora Cultrix, São Paulo, 2004, p. 264), define a
literatura como a arte da escrita, porém, ao longo das várias páginas seguintes,
problematiza esse conceito, uma vez que a palavra literatura é polissêmica, e seu
significado depende de seu contexto de uso.
Apesar da multiplicidade de significados - já que as palavras têm história – vamos
delimitar a literatura àquele trabalho técnico e artístico, que não possui compromisso
direto com a realidade, e que se constitui como obra a partir do campo da ficção,
sendo formada por arranjos estéticos que exploram diferentes dimensões das
palavras.
É essa forma de literatura que atravessa épocas, que se cria e se recria ao longo
dos séculos, e que, por meio de diferentes linguagens (dentre as quais está o
cinema), produz efeitos de sentido sobre nossos modos de ser e de viver,
possibilitando-nos ver a realidade sob diferentes ângulos. É como diz o poema de
Carlos Drummond de Andrade:
Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
[…]
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escrito.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume com seu poder de palavra e seu poder
de silêncio.
(ANDRADE, 1945, p. 6)
Em linhas gerais, entende-se que o poema nos aconselha a fecharmos os sentidos
para os significados tradicionais, dicionarizados das palavras que nos cercam, para
que possamos deixar fluir a arte da escrita literária, transformando e reinventando o
significado das palavras. Esse mundo à parte, o mundo que o poema afirma ser o
dos versos, não é um mundo em movimento, mas um lugar estático, que está lá
para ser descoberto, sem pressa.
Da mesma forma, a literatura não existe para cumprir uma função objetiva, mas
para explorar as palavras, criar novas e outras formas de linguagem e de
compreensão, e para possibilitar que cheguemos à compreensão de que enquanto
a humanidade existir, a arte será produzida, como forma de registrar nossa
passagem por esse mundo e como modo de registrar nossas angústias, anseios e
nossa qualidade humana.
Mas qual seria a natureza do texto literário? Sabemos que, em linhas gerais, todo
sistema que foi criado pelo homem serve para a comunicação humana, e pode ser
denominado como uma linguagem. A linguagem por sua vez, pode ser entendida
como um grande sistema de signos, dos quais uma de suas materialidades é a
língua. As regras que regem os sistemas de signos representam e constituem
visões de mundo e possibilidades semânticas, que podem ser possíveis em
determinadas culturas e em outras não.
Nesse sentido, a literatura pode ser considerada como um sistema linguístico
secundário dentro da cultura, pois ela é uma forma de expressão da linguagem,
criada com um fim específico. Uma das diferenças entre a literatura e as demais
linguagens, como será abordado mais adiante, está no significado das palavras, que
adquirem outro sentido, o conotativo.
Isso significa que a linguagem literária não possui a mesma forma que ela adquire
em contextos e situações reais de uso. Por isso, essa linguagem possibilita
múltiplas interpretações, tornando-se subjetiva.
A linguagem literária
Você conhece o mito da torre de Babel? Esse mito perpassa a consolidação da
Babilônia na Antiguidade, onde hoje se localiza o Iraque. Vamos à leitura?
Naquele tempo, toda a humanidade falava uma só língua. Deslocando-se e
espalhando-se em direção ao oriente, os homens descobriram uma planície na terra
de Sinar e depressa a povoaram. E começaram a falar em construir uma grande
cidade, para o que fizeram tijolos de terra bem cozida, para servir de pedra de
construção e usaram alcatrão em vez de argamassa. Depois eles disseram: “Vamos
construir uma cidade com uma torre altíssima, que chegue até aos céus; dessa
forma, o nosso nome será honrado por todos e jamais seremos dispersos pela face
da Terra!”
O Senhor desceu para ver a cidade e a torre que estavam a levantar.
“Vejamos se isto é o que eles são capazes de fazer; sendo um só povo, com uma só
língua, não haverá limites para tudo o que ousarem fazer. Vamos descer e fazer
com que a língua deles comece a diferenciar-se, de forma que uns não entendam
os outros.”
E foi dessa forma que o Senhor os espalhou sobre toda a face da Terra, tendo
cessado a construção daquela cidade. Por isso, ficou a chamar-se Babel, porque ali
foi que o Senhor confundiu a língua dos homens e a espalhou sobre a Terra.
(GÊNESIS, s/d, 11:1-8.)
Como o texto é mais antigo, uma figura dessa torre demonstra a interpretação
literária de um leitor do texto sobre a lenda da torre de Babel. Ilustramos dessa
forma para mostrar que o código escrito, mesmo sendo único, não garante que
todos tenham a mesma interpretação dos fatos.
Observe atentamente o texto. O que você vê? Há uma progressão narrativa, que
pode ser percebida pelo uso dos verbos no pretérito perfeito do modo indicativo, o
que significa que para o narrador, a história tem caráter verídico. Temos, como
referência a personagens “os homens”, o que nos traz a noção de grupo, de vários
seres humanos. Nesse sentido, “os homens” pode ser compreendido como a raça
humana, por se tratar de uma denominação ampla. Eles (os homens) estavam em
um determinado lugar, no tempo em que todos falavam uma só língua (situação
inicial). Descobriram, então, uma planície na terra de Sinar, onde começaram a
construir uma grande cidade, na qual tiveram a ideia de construir uma grande torre
para chegar até o céu, e para que não se espalhassem sobre a Terra (nó).
Foi a partir daí que, segundo o texto, Deus resolveu visitar a cidade para ver o que
ocorria e, então, vendo a construção da torre, decidiu confundir a língua dos
homens, para que esses se espalhassem sobre a Terra (clímax) e, com a separação
dos homens pelas diferentes línguas, a cidade parou de ser construída (desfecho).
Temos, no texto, uma sequência narrativa completa, rica em detalhes. Na pintura de
Bruegel, por sua vez, percebemos uma parte dessa história, mais focada na
construção da torre. Observa-se que as proporções do monumento em relação à
cidade são gigantescas. Nuvens, inclusive, estão mais baixas do que a torre. No
lado esquerdo da torre, que ocupa o centro e o primeiro plano da pintura, vemos a
fabricação de tijolos sendo interrompida pela visita de uma figura masculina que,
acompanhada de uma comitiva e tendo causado a parada da produção, revela ser
alguém muito importante, o que pode ser percebido tanto pelas roupas como pela
coroa que usa.
A arquitetura da torre, imponente, não remonta técnicas orientais de construção,
mas remete à cultura romana, símbolo de perseguição aos cristãos, num formato
que chega a assemelharse ao Coliseu romano, um dos grandes símbolos do
orgulho e da opulência de Roma. Com isso, chegamos à conclusão de que o artista,
ao retratar a obra, quis enfatizar a arrogânciade seus construtores, considerando
merecido o castigo divino que os acometeu.
Usaremos a torre de Babel como metáfora para explicarmos que a literatura
comparada pressupõe analisar a obra literária sob a perspectiva de diferentes
línguas, ou seja, analisar uma obra literária comparando-a com as formas como os
outros a apresentam por meio de outras linguagens.
Caso você tenha notado, o que já realizamos aqui foi um exercício de literatura
comparada: partimos do texto para uma de suas releituras, buscando, ao analisar
essa releitura, realizar conexões com o texto original. Observemos, a seguir, mais
um exemplo:
Ainda que eu falasse a língua dos homens
E falasse a língua dos anjos sem amor eu nada seria
É só o amor, é só o amor
Que conhece o que é verdade
O amor é bom, não quer o mal
Não sente inveja ou se envaidesse
O amor é o fogo que arde sem se ver
É ferida que dói e não se sente
É um contentamento descontente
É dor que desatina sem doer
Ainda que eu falasse a língua dos homens
E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria
É um não querer mais que bem querer
É solitário andar por entre a gente
É um não contentar-se de contente
É cuidar que se ganha em se perder
É um estar-se preso por vontade
É servir a quem vence, o vencedor
É ter com quem nos mata lealdade
Tão contrário a si é o mesmo amor
Estou acordado e todos dormem, todos dormem, todos dormem
Agora vejo em parte, mas não vejo face a face
É só o amor, é só o amor
Que conhece o que é verdade
Ainda que eu falasse a língua dos homens
E falasse a língua dos anjos, sem amor nada seria
(Legião Urbana, 1989)
Ninguém pode discordar do lirismo da canção de Renato Russo. O tema do texto é
a descrição do amor. Percebemos o tom descritivo do texto pela ampla utilização do
verbo de ligação “ser”, flexionado na forma “é”. Ao mesmo tempo, o amor, no texto,
não é vinculado à noção de amor sexual, mas de amor fraternal, como algo que
deve ser naturalizado e universal.
Outro detalhe importante que chama nossa atenção nesse texto é que ele dialoga
com outros dois textos mais antigos. Vejamos:
Texto 1:
Ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria
como o metal que soa ou como o sino que tine. […]
O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com
leviandade, não se ensoberbece.
Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não
suspeita mal;
Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade;
Tudo sobre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. […]
(I CORÍNTIOS, s/d, 13:1)
Texto 2:
Amor é um fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que se ganha em se perder;
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos, amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
(CAMÕES, p. 15)
Observa as semelhanças temáticas? Um texto do século XX dialogando com dois
textos, sendo que ambos, já possuem, no mínimo, cinco séculos! E o arranjo dos
dois, juntos, constitui uma obra prima da música brasileira.
O tema de ambos os textos é o amor. O texto de Luís Vaz de Camões busca
descrevê-lo por meio de uma série de figuras de linguagem, de elementos marcados
por contrastes, de uma atmosfera de tensão.
A canção escrita por Renato Russo, por sua vez, é marcada por um tom descritivo
acerca do amor, sendo que, em sua constituição, a mesma se utiliza de paráfrases e
de citações do poema “amor é fogo que arde sem se ver”, de Camões, e também de
elementos relacionados aos textos bíblicos, que abordam o mesmo tema.
É possível perceber, na canção de Renato Russo, deste modo, uma relação
intertextual com o poema de Camões e com o texto bíblico, uma vez que os textos
mais atuais - no caso, a letra da canção – retomam os anteriores, citando-os,
complementando-os, indo além daquilo que foi dito.
Desde modo, a intertextualidade se manifesta como uma possibilidade de
“conversar” com outros textos, de modo a atribuir-lhes determinados sentidos, ou
mesmo, de “criar” novas possibilidades interpretativas e semânticas.
No texto de Camões, por exemplo, o amor tratado é o amor romântico; já na canção
de Renato Russo, sua citação complementa o sentido da definição de um amor
mais fraternal. Com isso, modifica-se também o sentido do texto de origem,
reforçando ainda mais sua literariedade.
Perceba que a intertextualidade só se torna possível quando o diálogo estabelecido
entre os textos é um diálogo literário. Outros textos, do mundo real, com linguagem
objetiva, talvez não tenham a mesma possibilidade.
Nenhum texto surge do nada; antes, ele é o resultado das interações de mundo que
seu autor foi realizando ao longo da vida.
O filme “Somos tão jovens” (2013) retrata a biografia de Renato Russo, bem como
suas produções de maior sucesso. Vale a pena conferir.
Vimos até aqui que a literatura comparada trata das relações existentes entre uma
obra literária e outras obras artísticas, sejam elas literárias ou não, além de outros
campos do saber, aspectos culturais e históricos, dentre outros.
A literatura da qual falamos até aqui remete àquela produção artística que utiliza a
palavra como elemento principal, sendo caracterizada por um tipo de linguagem
específico, que caracteriza a obra literária como objeto artístico.
Neste capítulo, você aprendeu que o texto literário é, antes de tudo, uma produção
humana, que utiliza a linguagem de um modo diferente do cotidiano. A literatura
pode ser definida como a arte das palavras. As obras de arte (literatura, pintura,
escultura, música etc.) conversam entre si. Essa conversa marca tanto formas de
interpretação da obra anterior, quanto um elemento denominado “intertextualidade”.
Identificando as marcas da linguagem literária
Características da linguagem literária
Para avançarmos em nossos estudos, precisamos definir alguns elementos que
caracterizam a linguagem literária, possibilitando ao leitor diferenciar textos literários
de nãoliterários. Domício Proença Filho (2004) nos ajuda a compreender esses
elementos, vamos lá!
Ambiguidade
A ambiguidade, num texto literário, atinge uma dimensão de multiplicidade de
sentidos, possibilitando diferentes interpretações de um dado texto, a partir da
compreensão leitora e de mundo de quem lê. Um exemplo clássico dessa
ambiguidade é a eterna dúvida que o narrador de “Dom Casmurro”, de autoria de
Machado de Assis, deixa aos seus leitores: afinal de contas, Capitu traiu ou não
traiu Bentinho? Não há evidências concretas, a não ser a desconfiança do
personagem, por elementos que ele deduz de sua própria observação.
Multissignificação
A linguagem literária não tem obrigação de seguir à risca o pacto linguístico
estabelecido entre os falantes de uma língua, o que permite que as palavras
ganhem novos e outros sentidos, diferentes dos habituais. Na frase proferida por
Brás Cubas, narrador da obra “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de autoria de
Machado de Assis, o narrador personagem, ao falar sobre sua experiência com
Marcela, afirma que ela o amou “durante quinze meses e onze contos de réis”,
tornando a lógica do amor sensual em interesse financeiro.
Ficção
Segundo o Dicionário Mini Aurélio (2008, p. 404) ficção é “1. Ato ou efeito de fingir.
2. Coisa imaginária, fantasia, criação.” Aqui, temos uma lição importantíssima: toda
obra literária é uma obra de ficção, ou seja, a literatura, ainda que seja baseada em
fatos reais, não tem absolutamente nenhum compromisso com a realidade.
Certa vez, em 2011, no estado do Rio Grande do Sul, foi aberta, por tempo limitado,
a exposição “Titanic: A Exposição – Objetos Reais, Histórias Reais”. Nessa
exposição, uma das primeiras falas do guia era a de que os personagens Rose
DeWitt Bukater e Jack Dawson, dirigido por James Cameron e Jon Landau, em
1997, não haviam existido.Com isso, percebemos que o cinema adaptou uma
história real para transformá-la em arte, utilizando-se da liberdade artística e poética
para criar uma história ficcional. Com isso, também se pode definir a ficção como
uma imitação da realidade, nunca como a realidade.
Conotação
Essa é uma das características mais importantes do texto literário, pois remete à
noção de que um texto literário não deve ser interpretado ao pé da letra, como se
cada palavra ali existente tivesse o mesmo significado que está cristalizado em
nossa cultura. A linguagem conotativa pode ser compreendida como figurada e, por
conseguinte, como literária. Por isso, o código literário se constitui na dimensão da
subjetividade, possibilitando que cada leitor dialogue com o texto de acordo com
suas próprias habilidades leitoras. Isso não acontece, por exemplo, num manual de
instruções ou numa bula de remédio, que deve ser utilizada como forma de
orientação. Vejamos um exemplo:
Receita
Ingredientes:
2 conflitos de gerações
4 esperanças perdidas
3 litros de sangue fervido
5 sonhos eróticos
2 canções dos Beatles
Modo de preparar
dissolva os sonhos eróticos
nos dois litros de sangue fervido
e deixe gelar seu coração
leve a mistura ao fogo
adicionando dois conflitos de gerações
às esperanças perdidas
corte tudo em pedacinhos
e repita com as canções dos Beatles
o mesmo processo usado com os sonhos
eróticos mas desta vez deixe ferver um
pouco mais e mexa até dissolver
parte do sangue pode ser substituído
por suco de groselha
mas os resultados não serão os mesmos
sirva o poema simples ou com ilusões.
(Behr, 1958, s/p.)
O poema “Receita” pode ser interpretado ao pé da letra? Seus elementos (ou
ingredientes) são palpáveis e do nosso cotidiano físico? Possivelmente, a receita
não conseguiria ser “reproduzida”, uma vez que trata de aspectos denotativos e
ficcionais.
Criatividade
Para que a linguagem literária se firme como tal, é imperativo que ela se caracterize
pelo desvio da norma linguística tradicional. Poremos dizer que a linguagem literária
“milita” contra a automatização do uso linguístico, trazendo de volta expressões em
desuso, lançando mão de neologismos, criando metáforas, reorganizando o léxico e
os sintagmas. O livro “Grande Sertão: Veredas”, de Graciliano Ramos, é um
exemplo do uso criativo da linguagem literária, pois, o autor dá voz a um
narrador-homem-do-sertão, com suas nuances de linguagem sem a maquiagem
linguística dos grandes centros urbanos. Conforme D’Onofrio (2007, p. 19),
[...] o poeta produz uma linguagem que, mesmo usando palavras comuns, recria
essas palavras para tornar possíveis relações sempre novas com a realidade. Daí
os efeitos surpreendentes, fascinantes, fantásticos da linguagem e da cosmovisão
artísticas.
A essa criatividade, também chamamos de liberdade poética e entendemos que,
mesmo que uma obra literária se utilize da realidade para a criação, ela irá se
desviar do curso sem que se atribuam juízos de valor a isso.
Estruturação
Na literatura, ao contrário de outros gêneros textuais, a estrutura da linguagem pode
ser considerada intuitiva, personificada, individual e subjetiva. A utilização
metafórica da linguagem possibilita desvios, tanto no campo da interpretação como
da estruturação.
Literaridade
A literariedade pode ser entendida como um conjunto de características que, juntas,
conferem a um texto a à sua linguagem a qualidade poética. Em linhas gerais, a um
texto só será literário se apresentar marcas de literariedade.
Verossimilhança
Dizemos que a obra literária é verossímil porque se assemelha a elementos do
mundo exterior, porém não é verdadeira; apenas possui a equivalência da verdade.
Essa verossimilhança pode ocupar dois domínios dentro do texto, a do “poder ser” e
a do “poder acontecer”. São elas que estabelecem a coerência interna e externa do
texto. A verossimilhança interna refere-se à sua coerência estrutural, enquanto a
verossimilhança externa remete à proximidade, fora do texto, com o mundo real.
Deste modo, a obra literária pode não possuir verossimilhança externa, porém,
sempre deverá ter verossimilhança interna, para estabelecer a relação coesiva.
Vejamos:
[...] Quando a noite caiu – morna, estrelada, pingada de vaga-lumes e rascada de
grilos – o alto da colina estava completamente deserto de humanidade viva.
Numerosas turmas de formigas faziam serão. Lagartos corriam por entre macegas e
caraguatás. Aves noturnas, frechavam o ar em voos curtos, acomodavam-se nas
árvores ou nos túmulos, eventualmente bicavam insetos ou vermes.
Cerca de três da madrugada, um vulto humano saiu do seu esconderijo – um valo
encoberto pela copa de árvores – e caminhou meio agachado na direção do
cemitério. O seu nome? Nem ele mesmo se lembrava, direito, pois tinha usado
muitos em sua vida, uma para cada cidade onde operava. Estava sendo procurado
pela polícia de muitos municípios por delitos de furto e roubo. Soubera à tardinha
que o mais fino dos sete esquifes insepultos continha uma defunta ricaça, coberta
de joias valiosas. Fizera o seu plano e metera-se no valo, antes do sol sumir-se.
Agora, se conseguisse fazer o “serviço” rapidamente e fugir para o estrangeiro,
poderia ir vendendo as joias aos poucos, com a maior precaução. Um cúmplice o
esperava com um cavalo encilhado, numa das muitas encruzilhadas nas
vizinhanças de Antares. Ele tentaria cruzar o rio perto da divisa com o Estado de
Santa Catarina e tentar a sorte na Argentina ou mesmo no Paraguai.
Continuou a andar com toda a cautela, parando de quando em quando para olhar
em torno e ficar atento aos ruídos da noite. Levava no bolso do casaco uma lanterna
elétrica e no das calças um pé-de-cabra. Era a primeira vez que ia espoliar um
cadáver. O principal não era chamar a atenção dos operários que guardavam as
entradas das ruas, a uns duzentos metros do cemitério. Só acenderia a lanterna
quando o caixão estivesse já aberto e ele precisasse localizar as joias no corpo da
defunta.
Seu coração batia sereno. Tinha bons nervos. Se não tivesse, não poderia exercer
aquela profissão.
Chegou a uma das esquinas do cemitério e sondou com o olhar a entrada das ruas
fronteiras. A cidade estava às escuras. À fraca luz da lua não divisou nenhum vulto
humano. Felizmente a uns dez metros à frente do muro principal, do cemitério
estendia-se um longo renque de cinamomos copados, que produziam uma zona de
sombra onde ele poderia trabalhar sem ser percebido. Teria o cuidado de esconder
a luz da lanterna com o próprio corpo.
Sempre colado ao muro (boa ideia, ter vestido a roupa clara) o ladrão aproximou-se
dos sete esquifes. O primeiro deles, bem à frente do portão de entrada, era preto e
havia sido trazido às cinco horas da tarde. O seguinte – o claro e pequeno – era o
que procurava. Ajoelhou-se ao pé dele, desatarraxou-lhe a tampa e, contendo a
respiração, ergueu-a, fazendo-a depois escorregar de mansinho para um lado. Tirou
a lanterna do bolso e acendeu-a. focou primeiro as mãos da morta, pois ouvira falar
no famoso solitário de brilhante. Opa! Naqueles dedos cor de cera de abelha não viu
nenhum anel. Os pulsos estavam sem pulseiras. Iluminou o peito da defunta e não
viu nenhum broche. No pescoço, nenhum colar... numa relutância supersticiosa
focou o rosto do cadáver da dama e estremeceu. Os olhos dela estavam abertos,
seus lábios começaram a mover-se e deles saiu primeiro um ronco e depois estas
palavras, nítidas: “Senhor, em vossas mãos eu entrego a minha alma.” O ladrão
soltou um grito abafado, ergueu-se rápido, deixou cair a lanterna acesa e o
pé-de-cabra, e rompeu a correr na direção dos campos desertos...
(Érico Veríssimo. Incidente em Antares, cap. XVIII).
Observe que a estrutura do enredo narrativo nos leva a viajarmos até a cena do
ladrão, pronto para arrombar o esquife de dona Quitéria Campolargo. Até o
momento da abertura do caixão, não há nada que não esteja no campo do “pode
acontecer”, e não há dúvidas de que, ao longo do texto, a verossimilhança interna
funciona perfeitamente. O que nos chama atenção, entretanto,é a morta falar,
elemento que não condiz mais com a noção do “pode acontecer”. O texto extrapola
a verossimilhança externa, porém sua estrutura e coesão interna continuam
perfeitos. O “acordar” de dona Quitéria faz com que a estrutura da narrativa ficcional
se torne fantástica.
A narrativa fantástica é uma forma de literatura cuja estrutura narrativa apresenta
todos os elementos convencionais, porém, seu conteúdo é algo que não existe, ou
que não pode ser reconhecido em nossa realidade.
Neste capítulo, você aprendeu que a linguagem literária, mesmo que se utilize do
mesmo sistema linguístico da linguagem não-literária, é constituída por regras
próprias, as quais fogem da objetividade. O texto literário, embora seja semelhante
à realidade, não deve ser compreendido como tal, haja vista sua possibilidade de
ser interpretado a partir das visões de mundo do leitor. Para se reconhecer a
linguagem literária, há algumas características que, resumidas, podem ser: múltiplos
sentidos, ambiguidade semântica e liberdade de criação. Essas três características
abrem-se para todas as demais estudadas ao longo dessa seção.
Conceituando literatura comparada
É comum que as pessoas representem a noção de literatura a partir da leitura de
um determinado livro. Aceitemos ou não, os livros são a representação idealizada
da literatura e, em se tratando de uma análise literária, um grande volume de livros
sobre uma mesa pode ser uma das representações iniciais que se tem.
Em termos gerais, pode-se dizer que a Literatura Comparada é um campo de
estudos oriundo da Teoria Literária que compara diferentes textos, buscando
elementos transversais que se aproximam ou se afastam entre essas obras.
Um pouco de história
A literatura comparada, como campo do saber, tem sua origem histórica a partir do
século XVI, sendo uma ciência que se desenvolveu paralelamente ao
desenvolvimento dos estudos comparados realizados pelo campo das Ciências
Naturais.
Na virada dos séculos XVI e XVII, Francis Meres escreveu seu “Discurso
comparado de nossos poetas ingleses com os poetas gregos, latinos e italianos.”
Mais tarde, em 1602, William Fulbecke escreveu “Um discurso comparado das leis”
e, John Gregory publicou “Anatomia comparada dos animais selvagens”.
A expressão “literatura comparada” surgiu a partir da corrente cosmopolita de
pensamento do século XIX, quando o campo das Ciências Naturais utilizava o
método comparativo para extrair leis gerais. Nesse período, obras como “Lições de
anatomia comparada”, escrita por Cuvier (1800), “História comparada dos sistemas
de filosofia”, de autoria de Degérand (1804) e “Fisiologia Comparada”, de Blainville
(1833) estabeleceram alguns marcos para o desenvolvimento da literatura
comparada.
Nesse mesmo século, na França, o termo “literatura comparada” possui terreno
fértil, já que o conceito de literatura para designar um grupo de obras já estava
sendo cunhado, publicado – inclusive – no Dictionnaire philosophique de Voltaire.
É em 1816 que Noël e Laplace publicam várias antologias literárias, sob o título de
“Curso de literatura comparada”, ainda que não houvesse em seu conteúdo,
necessariamente, um confrontamento entre as obras.
A expressão ganhou popularidade na França a partir do curso “Panorama da
literatura francesa do século XVII”, ministrado por Abel-François Villemain na
Sorbonne, entre 1828 e 1829. Nessa época, os termos usados pelo autor eram,
além de “literatura comparada”, “panoramas comparados” e “história comparada”.
Mais tarde, em 1830, J.-J. Ampère, aborda o que chama de “história comparativa
das artes e da literatura”, nas obras “Discurso sobre a história da poesia (1830) e
“História da literatura francesa na Idade Média comparada às literaturas
estrangeiras” (1841). Foi por meio desse autor que a literatura comparada adentrou
o campo da crítica literária, por meio de um elogio feito por Sainte-Beuve, na Revue
des Deux Mondes, nomeando Ampère como uma espécie de fundador da história
literária comparada.
Além disso, no âmbito francês, em 1835 Philarète Chasles fórmula alguns dos
princípios básicos da história literária comparada, que abrange não só a história da
literatura isoladamente, mas também a filosofia e a política. Esses fundamentos
foram divulgados por Chasles em seus cursos ministrados no Collège de France,
uma das instituições de ensino mais tradicionais da França, pela qual já passaram
inúmeros pensadores franceses, em 1841.
Em 1887, surge em Lyon a primeira cátedra de literatura comparada, e, em 1910, na
Sorbonne, tendo à sua frente nomes como Joseph Texte, Fernand Baldensperger e
J.-M. Carré.
No contexto alemão, Moriz Carrière adota a expressão vergleichende
Literaturgeschichte (história comparativa da literartura), como forma de estudar a
evolução da poesia para integrar a literatura comparada à História Geral da
Civilização. Entre 1887 e 1810, Max Koch edita o primeiro períodico comparativista,
intitulado Zeitschrift der vergleichenden.
Em 1886, na Inglaterra, Hutcheson Macaulay Posnett publica o livro Comparative
Literature e, na Itália, De Sanctis lecionará, em 1836, a disciplina de literatura
comparada em Nápoles. Nos Estados Unidos, são criados Departamentos de
Literatura Comparada em Columbia (1899) e em Harvard (1904), sendo ambos
bastante influenciados pelos estudos de Irving Babbitt. Em Portugal, a literatura
comparada foi introduzida por Teófilo Braga, mas o estudo de Fidelino de
Figueiredo, intitulado “Literatura comparada”, como parte de seu livro “A crítica
literária como ciência” (1912), é considerado seu pioneiro metodológico.
Cabe lembrarmos que a Universidade de Harvard, na atualidade, é uma das
principais universidades do mundo, tendo alguns dos mais brilhantes e importantes
cientistas de nossa época.
Nas primeiras décadas do século XX, a literatura comparada, como disciplina, foi
ganhando forma, sendo introduzida nas universidades europeias e
norte-americanas.
Em 1921, o primeiro número da Revue de Littérature Comparée, de autoria de
Fernand Baldensperger e Paul Hazard, orientavam a validação das comparações
literárias pelo contato real e comprovado dos autores com as obras, ou dos autores
com países, o que abria espaço para que se estudasse fontes e influências, ao
passo que também começaram a surgir estudos que se ocupavam com o destino
das obras literárias fora de seu país de origem.
Também nessa época se considerava importante filiar os estudos literários
comparados a uma perspectiva histórica, tornando essa forma de literatura uma
ramificação da história literária.
Mas não se pode afirmar que essas formas de analisar a literatura comparada foram
unânimes. Elas faziam parte do que se pode chamar de “escola francesa” de
literatura comparada que, mais tarde, foi questionada por outros pesquisadores,
como no caso de René Wllek, cuja oposição ao historicismo francês levou à divisão
da literatura comparada, naquele momento, em escolas francesa e norte-americana.
Isso não significa, porém, que os norte-americanos não seguissem orientações
historicistas, porém, não com a mesma ênfase francesa.
Ao lado das escolas europeia e norte-americana, destacase também, como um dos
“clássicos” da literatura comparada a escola soviética. Essa escola, que teve como
principal representante Victor Zhirmunsky, procurou buscar compreender a literatura
como um produto social, procurando diferenciar analogias tipológicas e influências
culturais, que para eles seriam marcadores de evolução social. Destacamos como
especialistas nessas formas de análise o tcheco Dionýz Durisin.
Contribuições teóricas para a área – parte I
Manuais franceses
Da contribuição dos autores franceses para a literatura comparada, podemos
destacar o trabalho de Paul Van Tieghem (1931), que considerava a literatura
comparada uma preparação para a literatura geral. Além desses, destacam-se os
trabalhos de Marius-François Guyard (“A literatura comparada”, traduzida em 1956),
Claude Pichois e André-Michel Rousseau (La littérature comparée, 1968) e Etiemble
(Comparaison n’estpas raison, 1963; Essais de littérature (vraiment) générale,
1974).
Manual brasileiro
No Brasil, os primeiros estudos de literatura comparada, iniciados por Tasso da
Silveira, no livro “Literatura Comparada”, seguiram os traços de Van Tieghen, além
de autores como F. Baldensperger, Fr Loliée e A. Doupoy. Há uma grande
insistência na busca de fontes e de influências. Na prática, considera-se o trabalho
de Tasso da Silveira como uma repetição dos manuais franceses, porém, cabe
destacar que seu trabalho foi importante para a introdução da literatura comparada
no Brasil, na Faculdade de Filosofia do Instituto Lafayette. Outro brasileiro, João
Ribeiro, anteriormente, em 1905, havia escrito o livro “Páginas de Estética”, onde
traz ideias importantes para a literatura comparada, propondo que se explore os
aspectos históricos, críticos, linguísticos e literários nas análises. Diferentemente de
Silveira, João Ribeiro seguia uma linha mais germânica em seus estudos. Além
desses nomes, destacam-se os pesquisadores Otto Maria Carpeaux, Eugênio
Gomes e Augusto Meyer.
Função da literatura comparada
Em si, o termo “literatura comparada” não é, a grosso modo, de difícil interpretação,
por remeter a comparação entre obras literárias. Se literatura, como já vimos antes,
é a arte construída por palavras, comparação significa estabelecer elos e confrontos
entre objetos, literaturas, obras etc. Porém,
[…] quando começamos a tomar contato com trabalhos classificados como “estudos
literários comparados”, percebemos que essa denominação acaba por rotular
investigações bem variadas, que adotam diferentes metodologias e que, pela
diversificação dos objetos de análise, concedem à literatura comparada um vasto
campo de atuação. (CARVALHAL, 2009, p. 5).
A literatura comparada (ou literaturas comparadas) consiste numa análise literária
que estabelece um diálogo entre duas ou mais obras. Dada sua diversidade de
metodologias de análise, ela se constitui como um campo bastante eclético, tanto
em termos de metodologias como de materiais a serem comparados. Porém, não se
pode reduzi-la a um comparativismo livre. Segundo Carvalhal (2009, p. 7, grifos da
autora),
Pode-se dizer, então, que a literatura comparada compara não pelo procedimento
em si, mas porque, como recurso analítico e interpretativo, a comparação possibilita
a esse tipo de estudo literário uma exploração adequada de seus campos de
trabalho e o alcance dos objetivos a que se propõe.
Desse modo, pode-se entender que a literatura comparada não tem um fim em si
mesma, mas pode e deve ser usada como um recurso investigativo para se atingir
um determinado fim.
Isso não significa dizer que não existem divergências em relação à compreensão do
que é literatura comparada, principalmente porque esse é um estudo de natureza
ambígua. Também, como já abordamos na seção anterior, essa dificuldade se
caracteriza pela diferenciação das vertentes e dos manuais que a estudam, que
partem de concepções mais tradicionais ou mais generalizadas.
Divergências de entendimentos à parte, há uma questão na qual se tem
concordado: a literatura comparada abrange mais uma pluralidade de
procedimentos de análise literária do que propriamente um único método ou teoria;
estaria mais perto do que denomina Carvalhal (2006): seria um “procedimento
mental” e, como tal, generaliza ou diferencia.
O ato de comparação faz parte da natureza humana e consiste em colocar “lado a
lado” mais de um elemento, estabelecendo potencialidades e limites entre eles,
sendo estabelecidos, inclusive, padrões e juízos de valor. Deste modo, a
comparação existe para diferenciar ou para igualar elementos.
Quando a comparação ocupa lugar central num estudo literário, podemos dizer que
estamos falando de um estudo comparado, pois:
[…] a literatura comparada compara não pelo procedimento em si, mas porque,
como recurso analítico e interpretativo, a comparação possibilita a esse tipo de
estudo literário uma exploração adequada de seus campos de trabalho e o alcance
dos objetivos a que se propõe. Em síntese, a comparação, mesmos nos estudos
comparados, é um meio, não um fim. (CARVALHAL, 2006, p. 7, grifos da autora).
Podemos entender que a literatura comparada trabalha não apenas com temas
históricos e nacionais, mas com temas sociais, filosóficos, sociológicos e abrange
diferentes vertentes, sejam literárias ou não. Tudo a que o pesquisador se propuser
a estabelecer semelhanças e diferenças com uma obra literária, desde que a obra
literária seja o ponto de partida, pode ser compreendido como uma forma de
procedimento comparativo.
[…] os estudos literários comparados não estão a serviço das literaturas nacionais,
pois o comparativismo deve colaborar decisivamente para uma história das formas
literárias, para um traçado de sua evolução, situando crítica e historicamente os
fenômenos literários. (CARVALHAL, 2006, p. 85).
Pode-se perceber, deste modo, que literatura comparada designa não apenas a
comparação despretensiosa entre as obras, mas, mais do que isso, trata-se de um
procedimento plural e sério, que contribui significativamente para o campo de
estudos da crítica literária.
Para Guyard (1994), um dos pensadores clássicos do tema, a Literatura Comparada
é a história das relações literárias internacionais. Afirma o autor que:
O comparatista se encontra nas fronteiras, linguísticas ou nacionais, e acompanha
as mudanças de temas, de ideias, de livros ou de sentimentos entre duas ou mais
literaturas. Seu método de trabalho deve se adaptar à diversidade de suas
pesquisas. (GUYARD, 1994, p. 97).
Assim, verifica-se que a literatura comparada auxilia e é auxiliada pelo campo da
Teoria Literária, realizando o trabalho de, durante a análise de textos literários
oriundos de diferentes culturas e nacionalidades, estabelecer relações das mais
diversas entre eles. Na prática, embora bastante calcada na História da Literatura,
os livros didáticos de Língua Portuguesa, por exemplo, realizam exercícios de
comparação quando estabelecem, para um determinado período literário,
comparações entre obras francesas, portuguesas e brasileiras, por exemplo.
Crises teóricas
Ainda que os estudos comparados florescessem em outros lugares longe da
França, por décadas os manuais franceses obtiveram certa hegemonia na
orientação do campo teórico. Porém, esse terreno exclusivo sofreu seu primeiro
abalo no ano de 1958, durante o 2º Congresso da Associação Internacional de
Literatura Comparada, durante a conferência “A crise da literatura comparada”,
proferida por René Wellek. Nessa conferência, Wellek aborda as fragilidades da
disciplina, bem como sua dificuldade em estabelecer um objeto de estudo e uma
metodologia, opondo-se à literatura comparada e à literatura geral.
Segundo Wellek, a literatura comparada estaria reduzida à seleção de fragmentos
para análise, deixando de lado aspectos mais integrais das obras. Além disso, a
investigação dos aspectos internacionais das obras levaria o pesquisador a se
ocupar somente com aspectos externos às obras. Ainda, Wellek rejeita o princípio
causalista dos estudos clássicos, considerando-os ineficientes.
Wellek propôs um modelo de análise inspirado nos princípios do estruturalismo de
Praga, o que foi algo inovador na época, divididos em relações de solidariedade
tipológica e em contatos externos.
A partir daí, embora o modelo proposto por Wellek, apesar de inovador ainda
possuísse fragilidades, durante a continuidade do século XX, os estudos literários
ganharam maior caráter científico, impulsionando a teoria literária.
Neste capítulo, você aprendeu que a Literatura Comparada é um campo de
conhecimentos que busca analisar e estabelecer proximidades e distanciamentos
entre diferentes textos literários. O estudo comparado da literatura começa a ser
desenvolvido a partir do século XIX. Desde seu surgimento, a literatura comparada
é palco de diferentes ênfases teóricas que, mesmo discordantes, são importantes
para sua constituição e consolidação como campo científico.
Relacionando literaturacomparada e tradução literária
Nem sempre, ao comprarmos um livro literário, podemos ater acesso ao original,
especialmente no que se refere às barreiras linguísticas. Diante disso, ou o leitor
compra uma obra em língua estrangeira e se torna uma espécie de autodidata, ou
opta por uma tradução.
Neste segundo caso, há que se considerar uma série de elementos, já que, nem
sempre, as traduções, ou mesmo as adaptações literárias, são fiéis ao original.
Isso pode acontecer por diversos fatores, entre eles, a fluência do tradutor – um
tradutor que conhece a cultura da língua que está traduzindo pode possuir uma
visão diferente de um tradutor técnico -, a existência de expressões “intraduzíveis”
em nossa língua, dentre outros fatores.
Algo que chama atenção, também, no que se refere à tradução, é o contexto, já que
a obra literária, como uma imitação da realidade, pode remeter a situações típicas
de uma região e de uma cultura, o que nem sempre pode ser “legível” em outro
espaço.
Daí, nesse caso, entra o trabalho da Literatura Comparada: oferecer uma forma de
tradução que seja capaz de traduzir não apenas a língua, mas suas nuances e
desdobramentos culturais, que nem sempre se aprende nos manuais de estudo.
Para esclarecer o que queremos refletir nesse espaço, trazemos uma reflexão a
partir do texto “Entenda o perigo de uma tradução literária ao pé da letra!”,
disponibilizado pelo site 2tr e que, embora fale apenas sobre a tradução, também
pode ser pensado no contexto da tradução literária:
Traduzir um texto de forma automática tem facilitado o dia a dia de muita gente que
necessita entender ou se fazer entender em outro idioma de forma rápida e prática.
No entanto, quem já se utilizou de um software de tradução pelo menos uma vez
sabe que sua tendência é traduzir as palavras e expressões ao pé da letra, tornando
os textos - por vezes – sem sentido e engraçados.
Mesmo que seja relativamente inofensivo nas comunicações informais do dia a dia,
a tradução de uma palavra de forma literal pode ser perigosa, especialmente para
quem precisa empregá-las em contextos mais complexos.
Historicamente, a chamada “tradução ao pé da letra” ser perigosa não é nenhuma
novidade para quem conhece ou necessita conhecer uma segunda língua,
especialmente para quem trabalha com tradução. Os perigos da tradução literal –
diga-se de passagem – são conhecidos desde os primórdios da história da
tradução.
Durante a Antiguidade, Cícero – que foi um dos primeiros tradutores da história -,
defendia que era necessário buscar repassar de uma língua para outra o peso das
palavras no lugar, apenas, de seu número, ou seja, seu sentido geral no lugar da
análise dos termos de forma separada. Alguns séculos depois, São Jerônimo, que
foi o primeiro tradutor da Bíblia, considerado atualmente o patrono dos tradutores,
procurou trabalhar numa tradução por ideias ao invés de por palavras, com o
objetivo de preservar ao máximo o sentido original. E no período do Iluminismo, o
filósofo alemão Voltaire tencionou o mito de Babel, pela sugestão que nele ficava
implícita, de que todas as línguas teriam a mesma origem, o que corresponderia
também que todas tinham correspondência perfeita entre elas e, por isso, poderiam
ser traduzidas literalmente, sem nenhum cuidado.
Seu pensamento levou os estudiosos a perceberem a impossibilidade de uma
tradução sempre literal, especialmente, por poder apresentar alguns perigos, tais
como:
● Compreensão com estranhamento: É óbvio que existe a possibilidade –
mesmo que remota – de uma frase ou expressão de um determinado idioma
ter o mesmo sentido em outro, porém, isso é bem raro de acontecer, e o
melhor que pode ocorrer, numa tradução literal, quando não há
correspondência linguística, é que o falante da língua-alvo (isto é, do idioma
para o qual se está traduzindo) tenha um entendimento parcial ou total do
texto, ainda que haja alguma confusão. Isso ocorre, por exemplo, quando se
traduz a expressão inglesa “seat belt” ao pé da letra, que significa “cinto de
assento”, ao invés de “cinto de segurança”, em português. Conforme o
contexto, o falante de português possivelmente entenderia a expressão, mas
a estranharia.
● Total incompreensão: Quando a tradução ao pé da letra não tem nenhuma
relação com o correspondente da língua-alvo, o falante pode simplesmente
não compreender nada do que está sendo dito. Isso pode acontecer, por
exemplo, quando se traduz uma expressão idiomática de maneira literal,
como no exemplo da frase francesa “les carrores sont cuites” que, embora
signifique “as cenouras estão cozidas, na realidade, expressa uma situação
que não é passível de ser mudada.
● Inadequação na compreensão: Além disso, o maior perigo da tradução literal
é a criação de uma frase ou expressão que na língua-alvo pode até fazer
sentido, porém, possuindo um significado completamente diferente do que se
pretende dizer, soando – por vezes – até como ofensivo ao falante da
línguaalvo, levando-o inclusive a construir um significado exatamente oposto
àquele que se pretendeu ter. Um bom exemplo é a palavra alemã
“Schwarzfahrer”, muito encontrada nos trens e metrôs na forma do aviso
“Schwarzfahrer zahlen €40”. Se a traduzirmos ao pé da letra para o
português, a placa diz que “passageiros negros pagam 40 euros”, o que,
inclusive, pode soar como uma afirmação completamente racista. Porém,
“Schwarzfahrer” usa o adjetivo “negro” para se referir a algo ilegal — isto é,
pessoas que usam o transporte sem pagar passagem —, da mesma forma
como, em português, usamos a expressão “mercado negro”.
● Evitando a tradução literal equivocada: Para se fugir desses perigos, antes de
qualquer coisa, é necessário verificar se o trecho que foi traduzido ao pé da
letra faz sentido na línguaalvo, e ainda se esse sentido se esse sentido é
igual ou pelo menos equivalente ao do original. Exemplificamos com a
expressão “falando do diabo” que, em inglês, significa “speaking of the devil”,
cuja tradução – nesse caso – tem realmente o mesmo significado em ambas
as línguas. No entanto, o melhor a se fazer é buscar um correspondente que
seja usado, na língua-alvo, mais ou menos no mesmo contexto que aquele
da língua-fonte. Para a expressão francesa “les carrotes sont cuites”,
abordada anteriormente, poderíamos usar a expressão “não adianta chorar
sobre o leite derramado”, indicando que agora é tarde para tentar mudar algo
que ocorreu no passado. Do mesmo modo, o aviso “Schwarzfahrer zahlen
€40” deve ser traduzido para outras línguas com a mesma expressão usada
no transporte público do país. No Brasil, como esse tipo de aviso não é
comum, seria possível dizer simplesmente algo como “proibido viajar sem
passagem” ou “viajar sem passagem acarreta multa de 40 euros”.De
qualquer forma, o melhor é procurar saber qual é a expressão exata usada
pelos nativos da língua-alvo em um contexto semelhante ao da língua-fonte.
● Traduções literais aceitáveis: Mesmo com todos esses perigos, há situações
em que a tradução literal é a melhor escolha. Isso acontece especialmente
em textos de alto valor literário, de preferência com comentários ou com
notas explicativas do tradutor, ou ainda em textos nos quais se pretende
tratar exatamente das diferenças entre dois ou mais idiomas. Nesses casos,
a tradução literal pode ajudar para que o leitor que possui pouco ou nenhum
conhecimento da língua estrangeira possa se familiarizar com sua construção
e também com sua forma de expressão de certos significados. Em textos
com funções mais práticas e objetivas, entretanto, permanece a regra de fugir
da tradução ao pé da letra sempre que isso for possível.
Compreende, caro aluno, porque a tradução literária (especialmente a literal) pode
ser um problema? É importante que prestemos atenção a isso, a fim de que
optemos sempre pela melhor escolha em se tratando de obra literária, seja original,
traduzida ou adaptada.
Das relações entre literatura comparada e tradução literária: algumas considerações
Na seção anterior, a partir da explanação do desenvolvimento da LiteraturaComparada, abordamos de forma breve algumas observações em relação à relação
entre LC e tradução literária.
Considerar a relevância do papel da tradução literária na história da literatura e
cultural reflete levar em conta o papel transformador da obra literária. Conforme
Sandra Bermann (2010, s/p)
À medida que o papel da tradução no contexto póscolonial, pós-estruturalista e pós-,
sub- e internacional se lança no cenário mundial hoje, sua capacidade tanto de
estender a vida dos textos literários e culturais, mas também de intervir em seus
efeitos globais vem à tona.
Para a autora, é importante que se leia da mesma forma como se traduz,
estando-se atento aos níveis linguísticos do texto (fonemático, semântico etc.),
como também uma tradução requer atenção ao contexto de produção da obra,
reconhecendo na obra os aspectos que formaram sua cultura.
Em parte, dizer que considerar os aspectos culturais de produção de uma obra
literária é importante no momento da tradução, significa ter mais do que uma versão
traduzida do texto. Alguns autores brasileiros do século passado já haviam atentado
para essa importância, chegando a afirmar – inclusive – que há uma diferença entre
os processos denominados “escritura” e “tradução”, sendo a primeira uma reescrita
decodificada, e a segunda, considerada uma tradução também do contexto.
Também, cabe mencionar que questão da tradução se refere ao fato de que a
residência “oficial” da arte literária é a língua nacional, sendo a forma linguística
original um dos elementos artísticos do texto. Porém, isso não significa que seja o
único elemento a ser considerado.
Deste modo, a grande discussão em torno da utilização de traduções para a
comparação está no fato de que se acredita que elementos linguísticos e até
mesmo contextuais importantes podem ser perdidos com as traduções. Porém, a
utilização dos originais linguísticos também apresenta seus obstáculos, dentre os
quais está o conhecimento das línguas e um domínio muito maior das literaturas.
Sara Rodrigues (s/d) salienta a importância de que se leia como se traduz, dando-se
atenção para todos os níveis textuais, desde o fonemático, ao semântico,
considerando também os aspectos culturais e situacionais dos textos
A grande questão da tradução para a Literatura Comparada encontra-se no
reconhecimento do outro, no respeito às suas singularidades. Afirma a autora que:
Ao tratar da (sempre presente) questão do papel da tradução em sua relação com a
literatura e a cultura (essencial, no caso dos cursos superiores de tradução), […]
pode-se concluir que a literatura e as demais áreas humanas, embora com
fronteiras disciplinares delineadas, interpenetramse continuamente. O fator de
definição desta relação é a tradução das teorias que enformam essa relação. A
tradução (a mais disciplinar das atividades) vincula-se de maneira muito especial
com a literatura, especialmente com a Literatura Comparada. A Literatura
Comparada, em nosso ponto de vista, é um modo de ler. Na Literatura Comparada
há a primazia do confronto, do estudo e da diferença. Este é o estudo que,
sublinhando a diferença, faz o diferente ser respeitado: de mãos dadas com os
Estudos de Tradução, foi uma das bases dos estudos pós-coloniais. Juntamente
com os Estudos de Tradução, pode auxiliar a tornar nossos paradigmas e
experiências no mundo contemporâneo inteligíveis, o que é condição primeira para
transpor limites e avançar. (RODRIGUES, 2010, p. 25)
Na visão da autora, os Estudos de Tradução, considerando a necessidade de que
se realize uma tradução mais contextualizada das obras, podem contribuir de forma
significativa para o aperfeiçoamento da Literatura Comparada.
Os estudos de tradução são um campo de conhecimento que se ocupa do estudo
de teorias relacionadas à tradução e interpretação, relacionando conhecimentos das
Ciências Sociais e Humanas.
A tradução literária é um movimento bastante complexo, que não pode ser
simplificado, na atualidade, em se “jogar” trechos do texto num tradutor online. Para
uma tradução literária de qualidade, primeiramente, o tradutor deve possuir um
conhecimento avançado daquela língua estrangeira, com um entendimento de suas
nuances, gírias, estigmas etc
Você já parou para pensar que expressões do nosso dia a dia podem não ser
entendidas tão facilmente por falantes de outras línguas? É o caso da expressão
“morrer de rir”, que pode não existir ou não ser dita deste modo em outras línguas.
De modo geral, a tradução literária é um elemento bastante importante no contexto
da Literatura Comparada, porque uma análise qualitativa dependerá da qualidade
da tradução. Por isso, é importante que o tradutor conheça não só a língua, mas –
como já mencionado anteriormente – as nuances linguísticas, as construções
culturais, as figuras de linguagem existentes naquela língua. Da mesma forma, a as
línguas estrangeiras também têm suas marcas sociais, esses detalhes são
importantes, tanto para a tradução, como para a análise comparada, uma vez que
esses elementos que ficam “nas entrelinhas culturais” da língua possibilitam a
construção de uma análise consistente.
Além disso, é relevante conhecer o contexto social que a obra enfoca, assim como
suas diferenças sociais, já que um determinado livro literário pode abordar essas
diferenças. Livros que abordam relações entre personagens de diferentes classes
sociais, por exemplo, necessitam desse enfoque.
Para concluir nossa discussão, existem muitas reflexões acerca da constituição da
tradução literária, e essa se tornou objeto de estudos da Literatura Comparada por
considerar-se que, como um campo do saber que analisa obras de diferentes
nacionalidades, para que se estabeleça relações de comparação e de diferenciação
fidedignas entre as obras, é necessária uma tradução que seja profundamente
conhecedora da língua original em que a obra for escrita. Se o pesquisador próprio
a traduzirá, ou se utilizará um volume já traduzido, dele levar em conta que tipo de
tradução foi realizada, para que as preciosidades daquela língua não se percam.
Claro, isso também é complexo, pois se o pesquisador também não conhece aquela
língua, em sua análise podem passar despercebidos elementos importantes
daquela cultura.
Claro, como mencionamos anteriormente, a linguagem do texto não é a única
preciosidade que ele possui, mas é essencial para que, juntamente com outras
características literárias que a obra possui, a Literatura Comparada possa
estabelecer e exercer seu papel.
Recomendamos os seguintes materiais complementares: PERISEÉ, Gabriel.
Literatura & Educação. 1 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
VEREDA LITERÁRIA – Tânia Franco Carvalhal fala sobre Literatura Comparada.
Nessa unidade, você aprendeu que os principais elementos que constituem a
linguagem literária, e que diferenciam textos literários de textos não-literários. A
definição e o contexto histórico da Literatura Comparada, que como ciência, vem se
desenvolvendo desde o século XIX. Os principais autores que contribuíram para o
desenvolvimento da Literatura Comparada. Os pressupostos em relação à Literatura
Comparada e à tradução.
UNIDADE 2
Compreendendo os gêneros literários: conceito, história e características gerais
A organização da literatura em gêneros: um pouco de história
Podemos dizer que, talvez, o primeiro pensador da teoria literária tenha sido o
filósofo Aristóteles (384-322 a.C.), que procurou classificar a literatura grega em três
classificações distintas, organizadas a partir de características que o filósofo
considerou comuns.
Naquele momento, Aristóteles deu para essa classificação o nome de “gênero”,
considerando nessa nomenclatura a noção de origem, e compreendendo que a
cada gênero são conferidas diferentes ramificações, compreendidas como
“espécies”.
Essa definição fica mais clara se compreendermos que a palavra gênero, em sua
origem latina genus-eris, significa origem, classe, espécie. E essa definição, desde a
Antiguidade, não mudou: quando falamos nos gêneros literários, estamos, sim,
dizendo que é possívelfiliar cada obra literária a uma determinada classe ou
espécie. Quando isso não é possível de ser feito, diz ter uma nova modalidade
literária. A filiação das obras, por sua vez, só se torna possível por meio de métodos
comparativos e classificatórios. A junção desses elementos comparativos possibilita
o estabelecimento de normas e regras gerais para cada gênero, que são
observadas nos textos literários por meio de sua predominância ou totalidade.
Há teóricos e estudiosos que, inclusive, defendem que a literatura apresente certa
universalidade em relação aos gêneros, qualificando – inclusive – a natureza que os
gêneros literários possuem não como um elemento descritivo, mas prescritivo e
imutável. Isso cria uma divisão entre aqueles que defendem a imutabilidade da
literatura e aqueles que acreditam na sua liberdade criadora.
Se retomarmos os antigos gregos, veremos que a primeira referência sobre os
gêneros literários, de autoria de Platão (cerca de 428 a.C. – cerca de 347 a. C.),
atribuía às artes uma função moralizadora por meio da imitação. Aristóteles, por sua
vez, recusava a hierarquia estabelecida por Platão, trazendo, em sua Poética o
conceito de mímesis.
O conceito de mímesis, embora não claramente formulado por Aristóteles, marca a
diferença entre o modo de perceber arte e realidade, relacionando a arte ao fruir de
um prazer que diferente do que se sente no mundo real. Essa diferenciação por
meio do prazer possibilita a valorização do trabalho poético.
A partir da concepção de mímesis, foi possível estabelecer algumas qualidades que,
embrionárias, configuraram os gêneros literários:
● Conforme o meio em que se realiza a mímesis, era possível diferenciar a
poesia ditirâmbica da trágica e da comédia, pois, ainda que todas utilizassem
o verso e a métrica, o faziam de forma diferente;
● Conforme o objeto da mímesis, há possibilidade de distinguir, por exemplo, a
tragédia (que apresentaria homens melhores para os padrões da
Antiguidade) da comédia (que representaria os homens “piores”);
● Segundo o modo da mímesis, seria possível diferenciar o processo narrativo
do processo dramático, pois no primeiro, o poeta narraria os fatos, enquanto
no segundo, aparentemente não haveria intervenção direta do narrador.
Aristóteles, diferentemente de Platão, via a diferença dos gêneros mais ligada ao
conteúdo.
Outro pensador da Antiguidade que auxilia a formulação dos gêneros literários é o
romano Horácio (65 a.C. – 8 a.C.), que atribui à literatura as funções poética e
didática, incluindo algumas reflexões sobre os gêneros, com foco na questão da
adequação entre o assunto escolhido e o ritmo, o metro e o tom, considerando
poeta aquele que consegue utilizar adequadamente esses aspectos. Nesse sentido,
Horácio contribuiu fortemente para a eliminação do hibridismo entre os gêneros.
Durante o medievo, novos conteúdos e novos gêneros foram surgindo, rompendo
com algumas concepções clássicas. Dante Alighieri, na Divina Comédia, contribuiu
para o hibridismo entre gêneros, alternando entre epopeia, tragédia, comédia e
elegia.
O Renascimento cultural, ocorrido a partir do século XV, retoma os preceitos da
tradição greco-latina, retomando a noção da mímesis de Aristóteles não como
recriação, mas como imitação da natureza. A partir disso, a teoria dos gêneros
adquire um caráter bastante normativo e de imitação.
No século XVII, o francês Nicolas Boileau-Despréaux, em sua Arte poética,
fundamenta a arte na razão, defendendo o bom senso, o equilíbrio, a clareza e
adequação como condições principais da poesia. A noção de gênero literário
horaciana permanece como espécie fixa, de regras que devem ser obedecidas.
Já na segunda metade do século XVIII, o movimento préromântico do “Sturm und
Drang” alemão contribui para a noção de gênero por meio da noção de
historicidade. É nesse período que a individualidade e a autonomia de cada obra
são valorizadas, sendo priorizada a liberdade de criação e a autonomia do escritor.
No século XIX, época em que as ciências naturais vigoraram, o professor
universitário francês Brunetière (1849- 1906) defendeu a noção de que os gêneros
literários evoluíam e se diferenciavam historicamente, como ocorria com as
espécies naturais. Nessa concepção, o gênero literário se assemelharia a um
organismo vivo. Era mantida, dessa forma, a normatividade dos gêneros, porém
essa normatividade, independentemente das criações literárias, seguiria uma ordem
natural. Eram os gêneros também que determinariam as características da
literatura, e não o contrário. Sua proposta era um estudo sobre a origem, a evolução
e a dissolução dos gêneros.
Ainda na esteira do século XIX, o italiano Benedetto Croce (1886 – 1952) se opôs à
ideia de Brunetière, especialmente no que se referia às suas concepções
dogmáticas. Segundo ele, o conhecimento era intuitivo, e lógico, produzindo
imagens e conceitos, o que dispensaria a total submissão à rigidez das regras
Dessa forma, Croce se aproximava mais das concepções românticas, avançando
com o argumento de que as semelhanças entre as obras seriam elementos
secundários na análise literária. Inicialmente, o autor chegou – inclusive – a
abandonar a noção de gêneros, o que foi retomado em sua obra posteriormente.
De modo geral, o pensamento croceano negava a substancialidade dos gêneros
literários, mas considerava a importância de sua instrumentalidade.
O século XX foi um momento de efervescência de teorias e de modos de
compreender os gêneros literários, dentre os quais destacamos trabalhos como os
de Vossler, que ajudou a criar a compreensão da estilística moderna, as
proposições do New Cristicism do autor Allan Tade, o início do Formalismo Russo
por meio da teoria do estranhamento, de Chklovski.
Tynianov foi um autor que contribuiu, por meio do movimento formalista, para
aproximar a série literária e a não literária, por meio dos princípios de função,
sistema, e dominante, tornando a noção de gênero um fenômeno mais dinâmico e
mutável.
Tomachevski, também representante do grupo formalista, observava os traços dos
gêneros como agrupamentos de procedimentos possíveis de se perceber,
ressaltando a impossibilidade de se estabelecer uma classificação lógica ou mesmo
fechada dos gêneros, já que eles são elementos históricos.
Outro autor, Luiz Costa Lima, fundamentado em Bakhtin, se voltaria para a questão
da percepção nos gêneros literários que, além dos traços linguísticos, consideraria
também as expectativas do receptor, assim como a maneira como a obra literária
capta a realidade. Com isso, o autor abandonava as propostas caracterizadoras do
literário apenas pela linguagem.
Roman Jakobson, a partir de sua teoria sobre a hierarquização das funções de
linguagem no texto poético, afirma que o texto literário possui predominância na
função poética de linguagem, e no que se refere aos gêneros, abaixo da função
poética dominante dos textos estariam a função referencial no gênero épico, a
função emotiva no gênero lírico e a função conotativa no gênero dramático.
É também ao longo da primeira metade do século XX que floresce a ideia de
“formas naturais” para o texto poético, herdadas do Romantismo de Goethe. Tais
formas seriam o épos, a lírica e também o drama. André Jolles distingue nove
formas simples do que considera serem “formas fundamentais” da literatura: chiste,
conto, memorável, caso, ditado, adivinha, mito, saga e legenda.
Emil Staiger, em seu livro Conceitos fundamentais da poética (1946) propõe que os
traços estilísticos líricos, dramáticos ou épicos pode ou não se manifestar em
qualquer texto, independentemente do gênero. Esses traços poderiam aparecer em
maior ou menor quantidade, serem combinados, de forma que nenhuma obra, na
visão do autor, seria predominantemente pertencente a um só gênero.
No livro Anatomia da crítica (1957), Northop Frye traz a noção dos gêneros
clássicos e acrescenta um quarto gênero: a ficção. Afirma o autor que cada um dos
gêneros tem sua própria forma de mímesis.
Hans Robert Jauss também se debruçou sobre o tema, afirmandoque toda obra se
vincula a um conjunto de informações e a uma situação particular de apreensão,
pertencendo a um gênero na medida em que admite determinadas expectativas.
Desse modo, o gênero seria um elemento histórico, guiado pelo conhecimento das
expectativas de recepção e de produção.
De modo geral, podemos dizer que o estudo dos gêneros literários não é algo novo.
Desde a Antiguidade, filósofos e estudiosos já discutiam acerca da natureza da
linguagem literária. A partir disso, podemos resumir nossa breve incursão histórica
pela história dos gêneros literários em cinco pontos:
1. Ainda que se leve em consideração as características genéricas do texto
literário, não se deve descrever um gênero de forma desconectada de sua
recepção, e das formas como o receptor atua sobre ele;
2. Os gêneros literários, como produtos históricos, têm suas características em
constante transformação. Isso permite dizer que a disponibilidade para
perceber a liberdade de criação deve ser maior do que a busca por
elementos normativos e fixos;
3. Os receptores dos textos literários são diferentes; portanto, diferentes leituras
de um mesmo texto podem ser feitas. E também, mesmo que a estrutura do
texto busque desconstruir a noção de gênero, essa desconstrução só é
possível porque há um conjunto de obras que possibilitam a formação de um
horizonte de expectativas em relação à obra e ao próprio poeta;
4. Identificar isoladamente determinados traços numa obra não é tão importante
quanto a observação de como cada traço se relaciona com outros da mesma
obra, a fim de reconhecer o texto como pertencente a um campo semântico
lírico, narrativo ou dramático;
5. É importante tomarmos a teoria dos gêneros literários como um meio para
nos auxiliares em relação ao conhecimento literário necessário para
reconhecimento, apreciação e julgamento de uma obra. Porém, as
características dos gêneros, olhadas isoladamente, não nos ajudam a
localizar uma obra dentro da literatura.
É importante você compreender que os gêneros literários não são categorias fixas,
imutáveis ou impossíveis de serem desconstruídas/ hibridizadas. Os gêneros
existem porque, ao longo dos séculos, por meio da comparação literária,
procurou-se estabelecer algumas características aparentemente fixas em
determinados traços linguísticos e estruturais das obras. Porém, isso não quer dizer
que essas características não possam ser redefinidas ou redesenhadas na
constituição da pluralidade das formas literárias. Os gêneros literários funcionam
como uma espécie de ferramenta que nos auxilia na compreensão e na recepção de
um texto literário. Certo? A seguir, veremos algumas características comuns aos
gêneros literários.
Gêneros literários: algumas características gerais
Embora, em nosso estudo, recusemos a noção de que as características dos
gêneros literários sejam imutáveis e atemporais, isso não significa que não existam
alguns conjuntos de regras gerais e particulares de cada gênero, que precisem ser
conhecidas. É dessas regras mais gerais que trataremos nesta seção.
Sabemos que, em linhas gerais, a linguagem poética se diferencia da linguagem do
dia a dia porque estabelece uma relação entre significante e significado um pouco
diferente da comunicação cotidiana, tornando-a uma linguagem distinta. A
linguagem, de modo geral, pode ser compreendida como um conjunto de signos que
obedecem a determinadas regras de combinação, a fim de expressarem um
determinado modelo de mundo.
Assim, a literatura poderia ser comparada a um modelo secundário, criado a partir
de um sistema linguístico já existente – o do mundo real. A teoria dos signos
linguísticos, na qual o signo seria constituído por um significante (o conjunto de sons
que tornam a palavra acusticamente possível, trazendo-a para o mundo real) e
aquilo que ela representa no mundo mental que constitui uma determinada cultura,
o qual chamamos de significado. Ferdinand de Saussure, linguista do século XIX, é
quem traz essa importante contribuição para o campo da linguagem.
● Exemplo: Se pensarmos em um livro, seu nome, ou seja, seu significante, é
constituído de cinco sinais gráficos, a saber: l + i + v + r + o. Da mesma
forma, o som da palavra é constituído pelos cinco fonemas que são
representados por pelos sinais gráficos (letras) que o formam. Todos aqueles
sujeitos imersos em nossa cultura compreendem, através de suas faculdades
mentais, que um livro, independente das preferências particulares do sujeito,
é um elemento que possibilita a leitura, independentemente, inclusive, se for
um livro físico ou mesmo virtual. Essa imagem mental que cada um associa a
palavra “livro” é o que podemos chamar de significado.
Para Louis Hjelmslev, a linguagem literária é um sistema cujo plano de expressão
pertence a um plano desenvolvido a partir do plano denotativo da linguagem natural.
Dito de outros modos, a arte literária torna-se conotativa a partir da base da
linguagem denotativa utilizada no mundo real. De modo geral, podemos afirmar que
as características comuns aos gêneros literários são:
● Significado conotativo: o sentido da linguagem literária será sempre diferente
daquele construído culturalmente, por meio da linguagem denotativa;
● Liberdade de criação: a linguagem literária permite o fruir da criatividade por
não se prender ao sentido literal das palavras, nem a realidade. Isso
possibilita diferentes criações e formas de apresentação da linguagem
literária;
● Estruturas diferenciadas em relação a gêneros textuais cotidianos: não
podemos nos esquecer de que a estrutura do texto literário, embora tenha
algumas particularidades, não é cativa delas, mas pode ser inovada, tanto em
termos históricos como por meio da individualidade de quem escreve. O
mundo da literatura é aberto, não sendo necessária uma rigidez estrutural
para que o emissor se faça entender pelos receptores;
● Imitação da realidade: independente da forma como se apresente, todo
gênero literário (e consequentemente, todo texto literário) será uma imitação
do real, não podendo e não devendo ser tomado no sentido denotativo, literal
das palavras;
● Funções diferentes das dos textos não-ficcionais: a literatura pode estar
conectada com a realidade, apresentando denúncias e críticas sobre essa.
Porém, para além disso, a literatura também funciona como uma forma de
desenvolvimento artístico e de entretenimento. Sua funcionalidade está mais
para o fruir estético do que para uma utilização real. Por isso, trata-se de uma
arte subjetiva. Ela é polifônica e autônoma em relação às suas funções,
podendo ou não exercer algum papel intencional, mas sempre estando
aberta para outras possibilidades de compreensão de suas funções;
● Linguagem em poesia ou em prosa: a noção de poesia, até o período do
Neoclassicismo, havia sido considerada como um elemento exclusivamente
inerente aos textos escritos em versos. Porém, do século XIX para cá,
passou-se a compreender a poesia em um sentido mais amplo, abrangendo
o fazer artístico. A poesia, dessa forma, seria o conjunto das atribuições que
torna um objeto artístico, o que possibilita que qualquer forma de arte seja
considerada poética, inclusive os textos literários em prosa;
● Possibilidade de interpretação por diferentes níveis de linguagem: o texto
literário, independente do gênero, permite que o leitor analise em seis níveis,
a saber: a) nível fabular: seria o nível da história ficcional, da interligação
entre os fatos, bem como o estabelecimento de elementos que tornem
possível a compreensão do que trata aquele texto; b) nível atorial:
corresponde à análise do fazer e do ser, bem como das funções do
personagem na narrativa; c) nível reflexivo: trata dos comentários tecidos
pelos personagens, ou das considerações sobre a vida e a realidade,
explanadas ao longo do texto; d) nível discursivo: possibilita a análise das
figuras de linguagem que tornam o texto literário; e) nível descritivo: trata da
análise do espaço onde se desenvolve a trama literária, que pode ser físico
ou psicológico (ocorrendo no interiordas personagens); f) nível fônico:
analisa os elementos sonoros que constituem o texto, sendo importante para
o estabelecimento de relações entre os sons e os sentidos do texto.
Esses seis elementos podem ser encontrados em qualquer texto literário, pois, de
modo geral, compõem sua estrutura. O que os diferencia na classificação dos
gêneros é que alguns elementos podem predominar mais do que os outros dentro
do texto, o que não impede que eles existam. Por isso, de acordo com essas
predominâncias, na teoria literária, se tem dividido o estudo dos textos literários em
teoria da narrativa, teoria da lírica e teoria do drama.
resumo bastante prático e interessante sobre os gêneros literários: Acesse o vídeo
“Gêneros literários – quer que eu desenhe – descomplica”,
Resumindo: A classificação e descrição dos gêneros literários é um estudo
fundamentalmente comparativo, uma vez que pressupõe que se busque elementos
comuns na linguagem e na estrutura de diferentes textos, não para estabelecer
regras imutáveis, mas incidências repetitivas. Até aqui, você aprendeu que a noção
de gênero literário surgiu como uma forma de agrupamento dos textos, tanto para
fins de estudo e análise, como para fins didáticos. Os gêneros literários seriam os
grupos de semelhanças que constituem uma determinada modalidade da linguagem
literária. Estariam, talvez, mais preocupados em explicar o que não faz parte
daquele gênero do que propriamente o que faz parte, não que isso também não
apareça. Porém, o estudo dos gêneros literários parece ser tão eficiente em explicar
por que um determinado texto pertence a um determinado gênero e não a outro do
que em somente defender sua classificação sem comparar também suas
diferenças, além das semelhanças com outros textos. Os gêneros literários têm sido
discutidos desde a Antiguidade, porém, nos dias de hoje, o que se tem percebido é
que, embora sejam caracterizados por elementos considerados “genéricos”, isso
não significa que esses elementos sejam regras fixas e imutáveis, tanto pela história
como pela liberdade de criação individual. Há um conjunto de características que
distinguem o texto literário do texto não literário. E dessas características, podemos
observar a liberdade em relação ao uso da linguagem, a possibilidade de criação
poética, a subjetividade e os múltiplos sentidos. Além disso, o texto literário
dificilmente apresentará uma função prática, mas será algo mais relacionado à
possibilidade de diálogo entre o texto e seu receptor, de acordo com a visão de
mundo que esse último apresenta.
Identificando os gêneros lírico e dramático
O gênero lírico
Leia o poema a seguir, de autoria de Vinícius de Moraes:
Um poema acentuadamente lírico
Apavorado acordo, em treva. O luar
É como o espectro do meu sonho em mim
E sem destino, e louco, sou o mar
Patético, sonâmbulo e sem fim.
Desço da noite, envolto em sono; e os braços
Como ímãs, atraio o firmamento
Enquanto os bruxos, velhos e devassos
Assoviam de mim na voz do vento.
Sou o mar! Sou o mar! Meu corpo informe
Sem dimensão e sem razão me leva
Para o silêncio onde o Silêncio dorme
Enorme. E como o mar dentro da treva
Num constante arremesso largo e aflito
Eu me despedaço em vão contra o infinito.
(MORAES, 1985, p. 1)
Visualmente, o poema de Vinícius de Moraes é um soneto, pois é formado por
quatro estrofes, sendo que a primeira e a segunda possuem quatro versos cada; a
terceira e a quarta estrofes possuem três versos cada. Há, também, o esquema de
rimas externas, caracterizado por: A-B-A-B; C-D-C-D; E-F-E; F-G-G.
As rimas externas são aquelas que aparecem no final dos versos, sendo que cada
sílaba tônica da última palavra é indicada por uma letra do alfabeto, e ao repetir-se o
som, repete-se a letra indicativa. No caso do poema, as letras “A”, por exemplo,
correspondem a “luar” e “o mar”; as letras “B”, correspondem a “em mim” e “sem
fim”, e assim, sucessivamente.
No soneto de Vinícius de Moraes, a um eu, uma voz que fala no poema. Essa voz
apresenta angústia, solidão, e um traço importante: fusão entre o sujeito e o objeto,
o que se percebe em versos como “[...] sou o mar”. Percebemos a presença do
sujeito lírico não apenas pela utilização do pronome “eu”, ou pela flexão dos verbos
na 1ª pessoa do singular, mas também pela forma como ele se projeta nos arranjos
linguísticos durante todo o poema. Além disso, a emoção lírica no texto é percebida
pela repetição constante da conjunção coordenativa aditiva e, o que impede uma
conexão lógica. O esquema de rimas externas, abordado anteriormente, confere ao
poema um tom de musicalidade, caracterizando o caráter emocional do texto. Entre
o quinto e o sexto versos, temos uma quebra da linearidade frasal, com o trecho
“[...] e os braços”, o que torna as ideias incompletas, caracterizando o que se chama
de enjambement, caracterizando, também, uma mímesis de um estado afetivo.
Além disso, há a presença de uma disposição anímica eliminando os
distanciamentos entre as coisas, por meio do estado afetivo, e os recursos sonoros
criam uma unidade de significação difícil de ser alterada.
Em poucas linhas fizemos a análise literária de um poema. Agora, passaremos a
discutir alguns elementos fundamentais que constituem o gênero lírico. Antes de
mais nada, um detalhe histórico: o gênero lírico surgiu na Grécia Antiga, como uma
forma de manifestação em verso para expressar diferentes emoções da esfera
humana. Seu nome está associado ao instrumento musical que acompanhava as
declamações: a lira. Até boa parte da Idade Média, poesia e música não eram
entendidos como elementos separados, sendo indissociável a utilização da melodia
durante as declamações. Somente a partir do Renascimento Cultural, no período
literário conhecido como Humanismo, começa haver uma separação maior entre
essas duas artes.
Ao gênero lírico, em grande medida, pertencem os poemas nas suas mais variadas
formas, o que não impede – obviamente – a pertença de outros gêneros textuais,
desde que apresentem a predominância das marcas do gênero. Da mesma forma,
como vimos no capítulo anterior, há uma diferença entre poesia e poema. A poesia
é um conjunto de características e técnicas de elaboração artística; o poema é uma
das manifestações concretas da poesia.
Um dos primeiros elementos a se observar na análise do poema é sua estrutura
visual (número de estrofes e de versos, disposição visual etc). Essa observação é
importante para que se estabeleça relações de sentido entre o texto e sua forma
visual. Essa análise é também conhecida como a análise do nível gráfico do poema,
ou seja, da forma como ele está escrito. Nessa análise, também é importante
observar o título, pois ele serve como uma espécie de slogan do poema, interferindo
em sua significação. Tanto a disposição das palavras quanto os espaços em branco
são importantes para essa análise.
Após a “leitura visual” do poema, passamos para a análise do nível fônico do
poema, observando os elementos de versificação, as repetições, a acentuação, a
entonação etc. Podemos dividir essa análise nas seguintes verificações:
● Construção métrica: de que forma os versos estão constituídos? Há quantas
sílabas ortográficas em cada verso?
● Acentuação: de que forma está disposta a organização das sílabas tônicas
nos versos? Lembre-se que as sílabas tônicas conferem a musicalidade ao
poema, e nem sempre essas sílabas estão de acordo com a linguagem
denotativa;
● Figuras sonoras: de que modos estão organizadas as rimas do poema?
Estão no final dos versos (externas) ou aparecem em seu interior (internas)?
São feitas por meio de consoantes (aliteração) ou de vogais (assonância)?
● Enjambements: há “quebras” de sentido na linearidade do texto? Como elas
interferem na compreensão geral do poema?
Outro nível relevante a ser considerado no poema é o nível lexical. De que forma o
sentido denotativo das palavras constitui sua literariedade? Há a presença de
metaplasmos (desvios morfológicos), metataxes (desvios sintáticos) ou
metassememas (desvios semânticos) da linguagem poética

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