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UNIDADE 1
Conhecendo o campo da teoria literária
Você já assistiu a alguma adaptação cinematográfica que tenha surgido de algum
livro literário? Já teve a experiência de ler o livro do filme a que assistiu, ele já se
deparou com pessoas que disseram “ah, mas eu li o livro e é diferente, tem mais
detalhes”? Há quem diga preferir ler o livro antes de assistir ao filme, inclusive, por
acreditar que a visão do cinema influenciará na imaginação leitora… todos esses
elementos, de modo geral, configuram nosso objeto de estudo, a literatura
comparada.
Já sabemos que a literatura, em linhas gerais, é uma forma de arte que utiliza a
palavra como seu elemento fundamental. O pesquisador Massaud Moisés, em seu
Dicionário de Termos Literários (Editora Cultrix, São Paulo, 2004, p. 264), define a
literatura como a arte da escrita, porém, ao longo das várias páginas seguintes,
problematiza esse conceito, uma vez que a palavra literatura é polissêmica, e seu
significado depende de seu contexto de uso.
Apesar da multiplicidade de significados - já que as palavras têm história – vamos
delimitar a literatura àquele trabalho técnico e artístico, que não possui compromisso
direto com a realidade, e que se constitui como obra a partir do campo da ficção,
sendo formada por arranjos estéticos que exploram diferentes dimensões das
palavras.
É essa forma de literatura que atravessa épocas, que se cria e se recria ao longo
dos séculos, e que, por meio de diferentes linguagens (dentre as quais está o
cinema), produz efeitos de sentido sobre nossos modos de ser e de viver,
possibilitando-nos ver a realidade sob diferentes ângulos. É como diz o poema de
Carlos Drummond de Andrade:
Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
[…]
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escrito.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume com seu poder de palavra e seu poder
de silêncio.
(ANDRADE, 1945, p. 6)
Em linhas gerais, entende-se que o poema nos aconselha a fecharmos os sentidos
para os significados tradicionais, dicionarizados das palavras que nos cercam, para
que possamos deixar fluir a arte da escrita literária, transformando e reinventando o
significado das palavras. Esse mundo à parte, o mundo que o poema afirma ser o
dos versos, não é um mundo em movimento, mas um lugar estático, que está lá
para ser descoberto, sem pressa.
Da mesma forma, a literatura não existe para cumprir uma função objetiva, mas
para explorar as palavras, criar novas e outras formas de linguagem e de
compreensão, e para possibilitar que cheguemos à compreensão de que enquanto
a humanidade existir, a arte será produzida, como forma de registrar nossa
passagem por esse mundo e como modo de registrar nossas angústias, anseios e
nossa qualidade humana.
Mas qual seria a natureza do texto literário? Sabemos que, em linhas gerais, todo
sistema que foi criado pelo homem serve para a comunicação humana, e pode ser
denominado como uma linguagem. A linguagem por sua vez, pode ser entendida
como um grande sistema de signos, dos quais uma de suas materialidades é a
língua. As regras que regem os sistemas de signos representam e constituem
visões de mundo e possibilidades semânticas, que podem ser possíveis em
determinadas culturas e em outras não.
Nesse sentido, a literatura pode ser considerada como um sistema linguístico
secundário dentro da cultura, pois ela é uma forma de expressão da linguagem,
criada com um fim específico. Uma das diferenças entre a literatura e as demais
linguagens, como será abordado mais adiante, está no significado das palavras, que
adquirem outro sentido, o conotativo.
Isso significa que a linguagem literária não possui a mesma forma que ela adquire
em contextos e situações reais de uso. Por isso, essa linguagem possibilita
múltiplas interpretações, tornando-se subjetiva.
A linguagem literária
Você conhece o mito da torre de Babel? Esse mito perpassa a consolidação da
Babilônia na Antiguidade, onde hoje se localiza o Iraque. Vamos à leitura?
Naquele tempo, toda a humanidade falava uma só língua. Deslocando-se e
espalhando-se em direção ao oriente, os homens descobriram uma planície na terra
de Sinar e depressa a povoaram. E começaram a falar em construir uma grande
cidade, para o que fizeram tijolos de terra bem cozida, para servir de pedra de
construção e usaram alcatrão em vez de argamassa. Depois eles disseram: “Vamos
construir uma cidade com uma torre altíssima, que chegue até aos céus; dessa
forma, o nosso nome será honrado por todos e jamais seremos dispersos pela face
da Terra!”
O Senhor desceu para ver a cidade e a torre que estavam a levantar.
“Vejamos se isto é o que eles são capazes de fazer; sendo um só povo, com uma só
língua, não haverá limites para tudo o que ousarem fazer. Vamos descer e fazer
com que a língua deles comece a diferenciar-se, de forma que uns não entendam
os outros.”
E foi dessa forma que o Senhor os espalhou sobre toda a face da Terra, tendo
cessado a construção daquela cidade. Por isso, ficou a chamar-se Babel, porque ali
foi que o Senhor confundiu a língua dos homens e a espalhou sobre a Terra.
(GÊNESIS, s/d, 11:1-8.)
Como o texto é mais antigo, uma figura dessa torre demonstra a interpretação
literária de um leitor do texto sobre a lenda da torre de Babel. Ilustramos dessa
forma para mostrar que o código escrito, mesmo sendo único, não garante que
todos tenham a mesma interpretação dos fatos.
Observe atentamente o texto. O que você vê? Há uma progressão narrativa, que
pode ser percebida pelo uso dos verbos no pretérito perfeito do modo indicativo, o
que significa que para o narrador, a história tem caráter verídico. Temos, como
referência a personagens “os homens”, o que nos traz a noção de grupo, de vários
seres humanos. Nesse sentido, “os homens” pode ser compreendido como a raça
humana, por se tratar de uma denominação ampla. Eles (os homens) estavam em
um determinado lugar, no tempo em que todos falavam uma só língua (situação
inicial). Descobriram, então, uma planície na terra de Sinar, onde começaram a
construir uma grande cidade, na qual tiveram a ideia de construir uma grande torre
para chegar até o céu, e para que não se espalhassem sobre a Terra (nó).
Foi a partir daí que, segundo o texto, Deus resolveu visitar a cidade para ver o que
ocorria e, então, vendo a construção da torre, decidiu confundir a língua dos
homens, para que esses se espalhassem sobre a Terra (clímax) e, com a separação
dos homens pelas diferentes línguas, a cidade parou de ser construída (desfecho).
Temos, no texto, uma sequência narrativa completa, rica em detalhes. Na pintura de
Bruegel, por sua vez, percebemos uma parte dessa história, mais focada na
construção da torre. Observa-se que as proporções do monumento em relação à
cidade são gigantescas. Nuvens, inclusive, estão mais baixas do que a torre. No
lado esquerdo da torre, que ocupa o centro e o primeiro plano da pintura, vemos a
fabricação de tijolos sendo interrompida pela visita de uma figura masculina que,
acompanhada de uma comitiva e tendo causado a parada da produção, revela ser
alguém muito importante, o que pode ser percebido tanto pelas roupas como pela
coroa que usa.
A arquitetura da torre, imponente, não remonta técnicas orientais de construção,
mas remete à cultura romana, símbolo de perseguição aos cristãos, num formato
que chega a assemelharse ao Coliseu romano, um dos grandes símbolos do
orgulho e da opulência de Roma. Com isso, chegamos à conclusão de que o artista,
ao retratar a obra, quis enfatizar a arrogânciade seus construtores, considerando
merecido o castigo divino que os acometeu.
Usaremos a torre de Babel como metáfora para explicarmos que a literatura
comparada pressupõe analisar a obra literária sob a perspectiva de diferentes
línguas, ou seja, analisar uma obra literária comparando-a com as formas como os
outros a apresentam por meio de outras linguagens.
Caso você tenha notado, o que já realizamos aqui foi um exercício de literatura
comparada: partimos do texto para uma de suas releituras, buscando, ao analisar
essa releitura, realizar conexões com o texto original. Observemos, a seguir, mais
um exemplo:
Ainda que eu falasse a língua dos homens
E falasse a língua dos anjos sem amor eu nada seria
É só o amor, é só o amor
Que conhece o que é verdade
O amor é bom, não quer o mal
Não sente inveja ou se envaidesse
O amor é o fogo que arde sem se ver
É ferida que dói e não se sente
É um contentamento descontente
É dor que desatina sem doer
Ainda que eu falasse a língua dos homens
E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria
É um não querer mais que bem querer
É solitário andar por entre a gente
É um não contentar-se de contente
É cuidar que se ganha em se perder
É um estar-se preso por vontade
É servir a quem vence, o vencedor
É ter com quem nos mata lealdade
Tão contrário a si é o mesmo amor
Estou acordado e todos dormem, todos dormem, todos dormem
Agora vejo em parte, mas não vejo face a face
É só o amor, é só o amor
Que conhece o que é verdade
Ainda que eu falasse a língua dos homens
E falasse a língua dos anjos, sem amor nada seria
(Legião Urbana, 1989)
Ninguém pode discordar do lirismo da canção de Renato Russo. O tema do texto é
a descrição do amor. Percebemos o tom descritivo do texto pela ampla utilização do
verbo de ligação “ser”, flexionado na forma “é”. Ao mesmo tempo, o amor, no texto,
não é vinculado à noção de amor sexual, mas de amor fraternal, como algo que
deve ser naturalizado e universal.
Outro detalhe importante que chama nossa atenção nesse texto é que ele dialoga
com outros dois textos mais antigos. Vejamos:
Texto 1:
Ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria
como o metal que soa ou como o sino que tine. […]
O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com
leviandade, não se ensoberbece.
Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não
suspeita mal;
Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade;
Tudo sobre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. […]
(I CORÍNTIOS, s/d, 13:1)
Texto 2:
Amor é um fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que se ganha em se perder;
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos, amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
(CAMÕES, p. 15)
Observa as semelhanças temáticas? Um texto do século XX dialogando com dois
textos, sendo que ambos, já possuem, no mínimo, cinco séculos! E o arranjo dos
dois, juntos, constitui uma obra prima da música brasileira.
O tema de ambos os textos é o amor. O texto de Luís Vaz de Camões busca
descrevê-lo por meio de uma série de figuras de linguagem, de elementos marcados
por contrastes, de uma atmosfera de tensão.
A canção escrita por Renato Russo, por sua vez, é marcada por um tom descritivo
acerca do amor, sendo que, em sua constituição, a mesma se utiliza de paráfrases e
de citações do poema “amor é fogo que arde sem se ver”, de Camões, e também de
elementos relacionados aos textos bíblicos, que abordam o mesmo tema.
É possível perceber, na canção de Renato Russo, deste modo, uma relação
intertextual com o poema de Camões e com o texto bíblico, uma vez que os textos
mais atuais - no caso, a letra da canção – retomam os anteriores, citando-os,
complementando-os, indo além daquilo que foi dito.
Desde modo, a intertextualidade se manifesta como uma possibilidade de
“conversar” com outros textos, de modo a atribuir-lhes determinados sentidos, ou
mesmo, de “criar” novas possibilidades interpretativas e semânticas.
No texto de Camões, por exemplo, o amor tratado é o amor romântico; já na canção
de Renato Russo, sua citação complementa o sentido da definição de um amor
mais fraternal. Com isso, modifica-se também o sentido do texto de origem,
reforçando ainda mais sua literariedade.
Perceba que a intertextualidade só se torna possível quando o diálogo estabelecido
entre os textos é um diálogo literário. Outros textos, do mundo real, com linguagem
objetiva, talvez não tenham a mesma possibilidade.
Nenhum texto surge do nada; antes, ele é o resultado das interações de mundo que
seu autor foi realizando ao longo da vida.
O filme “Somos tão jovens” (2013) retrata a biografia de Renato Russo, bem como
suas produções de maior sucesso. Vale a pena conferir.
Vimos até aqui que a literatura comparada trata das relações existentes entre uma
obra literária e outras obras artísticas, sejam elas literárias ou não, além de outros
campos do saber, aspectos culturais e históricos, dentre outros.
A literatura da qual falamos até aqui remete àquela produção artística que utiliza a
palavra como elemento principal, sendo caracterizada por um tipo de linguagem
específico, que caracteriza a obra literária como objeto artístico.
Neste capítulo, você aprendeu que o texto literário é, antes de tudo, uma produção
humana, que utiliza a linguagem de um modo diferente do cotidiano. A literatura
pode ser definida como a arte das palavras. As obras de arte (literatura, pintura,
escultura, música etc.) conversam entre si. Essa conversa marca tanto formas de
interpretação da obra anterior, quanto um elemento denominado “intertextualidade”.
Identificando as marcas da linguagem literária
Características da linguagem literária
Para avançarmos em nossos estudos, precisamos definir alguns elementos que
caracterizam a linguagem literária, possibilitando ao leitor diferenciar textos literários
de nãoliterários. Domício Proença Filho (2004) nos ajuda a compreender esses
elementos, vamos lá!
Ambiguidade
A ambiguidade, num texto literário, atinge uma dimensão de multiplicidade de
sentidos, possibilitando diferentes interpretações de um dado texto, a partir da
compreensão leitora e de mundo de quem lê. Um exemplo clássico dessa
ambiguidade é a eterna dúvida que o narrador de “Dom Casmurro”, de autoria de
Machado de Assis, deixa aos seus leitores: afinal de contas, Capitu traiu ou não
traiu Bentinho? Não há evidências concretas, a não ser a desconfiança do
personagem, por elementos que ele deduz de sua própria observação.
Multissignificação
A linguagem literária não tem obrigação de seguir à risca o pacto linguístico
estabelecido entre os falantes de uma língua, o que permite que as palavras
ganhem novos e outros sentidos, diferentes dos habituais. Na frase proferida por
Brás Cubas, narrador da obra “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de autoria de
Machado de Assis, o narrador personagem, ao falar sobre sua experiência com
Marcela, afirma que ela o amou “durante quinze meses e onze contos de réis”,
tornando a lógica do amor sensual em interesse financeiro.
Ficção
Segundo o Dicionário Mini Aurélio (2008, p. 404) ficção é “1. Ato ou efeito de fingir.
2. Coisa imaginária, fantasia, criação.” Aqui, temos uma lição importantíssima: toda
obra literária é uma obra de ficção, ou seja, a literatura, ainda que seja baseada em
fatos reais, não tem absolutamente nenhum compromisso com a realidade.
Certa vez, em 2011, no estado do Rio Grande do Sul, foi aberta, por tempo limitado,
a exposição “Titanic: A Exposição – Objetos Reais, Histórias Reais”. Nessa
exposição, uma das primeiras falas do guia era a de que os personagens Rose
DeWitt Bukater e Jack Dawson, dirigido por James Cameron e Jon Landau, em
1997, não haviam existido.Com isso, percebemos que o cinema adaptou uma
história real para transformá-la em arte, utilizando-se da liberdade artística e poética
para criar uma história ficcional. Com isso, também se pode definir a ficção como
uma imitação da realidade, nunca como a realidade.
Conotação
Essa é uma das características mais importantes do texto literário, pois remete à
noção de que um texto literário não deve ser interpretado ao pé da letra, como se
cada palavra ali existente tivesse o mesmo significado que está cristalizado em
nossa cultura. A linguagem conotativa pode ser compreendida como figurada e, por
conseguinte, como literária. Por isso, o código literário se constitui na dimensão da
subjetividade, possibilitando que cada leitor dialogue com o texto de acordo com
suas próprias habilidades leitoras. Isso não acontece, por exemplo, num manual de
instruções ou numa bula de remédio, que deve ser utilizada como forma de
orientação. Vejamos um exemplo:
Receita
Ingredientes:
2 conflitos de gerações
4 esperanças perdidas
3 litros de sangue fervido
5 sonhos eróticos
2 canções dos Beatles
Modo de preparar
dissolva os sonhos eróticos
nos dois litros de sangue fervido
e deixe gelar seu coração
leve a mistura ao fogo
adicionando dois conflitos de gerações
às esperanças perdidas
corte tudo em pedacinhos
e repita com as canções dos Beatles
o mesmo processo usado com os sonhos
eróticos mas desta vez deixe ferver um
pouco mais e mexa até dissolver
parte do sangue pode ser substituído
por suco de groselha
mas os resultados não serão os mesmos
sirva o poema simples ou com ilusões.
(Behr, 1958, s/p.)
O poema “Receita” pode ser interpretado ao pé da letra? Seus elementos (ou
ingredientes) são palpáveis e do nosso cotidiano físico? Possivelmente, a receita
não conseguiria ser “reproduzida”, uma vez que trata de aspectos denotativos e
ficcionais.
Criatividade
Para que a linguagem literária se firme como tal, é imperativo que ela se caracterize
pelo desvio da norma linguística tradicional. Poremos dizer que a linguagem literária
“milita” contra a automatização do uso linguístico, trazendo de volta expressões em
desuso, lançando mão de neologismos, criando metáforas, reorganizando o léxico e
os sintagmas. O livro “Grande Sertão: Veredas”, de Graciliano Ramos, é um
exemplo do uso criativo da linguagem literária, pois, o autor dá voz a um
narrador-homem-do-sertão, com suas nuances de linguagem sem a maquiagem
linguística dos grandes centros urbanos. Conforme D’Onofrio (2007, p. 19),
[...] o poeta produz uma linguagem que, mesmo usando palavras comuns, recria
essas palavras para tornar possíveis relações sempre novas com a realidade. Daí
os efeitos surpreendentes, fascinantes, fantásticos da linguagem e da cosmovisão
artísticas.
A essa criatividade, também chamamos de liberdade poética e entendemos que,
mesmo que uma obra literária se utilize da realidade para a criação, ela irá se
desviar do curso sem que se atribuam juízos de valor a isso.
Estruturação
Na literatura, ao contrário de outros gêneros textuais, a estrutura da linguagem pode
ser considerada intuitiva, personificada, individual e subjetiva. A utilização
metafórica da linguagem possibilita desvios, tanto no campo da interpretação como
da estruturação.
Literaridade
A literariedade pode ser entendida como um conjunto de características que, juntas,
conferem a um texto a à sua linguagem a qualidade poética. Em linhas gerais, a um
texto só será literário se apresentar marcas de literariedade.
Verossimilhança
Dizemos que a obra literária é verossímil porque se assemelha a elementos do
mundo exterior, porém não é verdadeira; apenas possui a equivalência da verdade.
Essa verossimilhança pode ocupar dois domínios dentro do texto, a do “poder ser” e
a do “poder acontecer”. São elas que estabelecem a coerência interna e externa do
texto. A verossimilhança interna refere-se à sua coerência estrutural, enquanto a
verossimilhança externa remete à proximidade, fora do texto, com o mundo real.
Deste modo, a obra literária pode não possuir verossimilhança externa, porém,
sempre deverá ter verossimilhança interna, para estabelecer a relação coesiva.
Vejamos:
[...] Quando a noite caiu – morna, estrelada, pingada de vaga-lumes e rascada de
grilos – o alto da colina estava completamente deserto de humanidade viva.
Numerosas turmas de formigas faziam serão. Lagartos corriam por entre macegas e
caraguatás. Aves noturnas, frechavam o ar em voos curtos, acomodavam-se nas
árvores ou nos túmulos, eventualmente bicavam insetos ou vermes.
Cerca de três da madrugada, um vulto humano saiu do seu esconderijo – um valo
encoberto pela copa de árvores – e caminhou meio agachado na direção do
cemitério. O seu nome? Nem ele mesmo se lembrava, direito, pois tinha usado
muitos em sua vida, uma para cada cidade onde operava. Estava sendo procurado
pela polícia de muitos municípios por delitos de furto e roubo. Soubera à tardinha
que o mais fino dos sete esquifes insepultos continha uma defunta ricaça, coberta
de joias valiosas. Fizera o seu plano e metera-se no valo, antes do sol sumir-se.
Agora, se conseguisse fazer o “serviço” rapidamente e fugir para o estrangeiro,
poderia ir vendendo as joias aos poucos, com a maior precaução. Um cúmplice o
esperava com um cavalo encilhado, numa das muitas encruzilhadas nas
vizinhanças de Antares. Ele tentaria cruzar o rio perto da divisa com o Estado de
Santa Catarina e tentar a sorte na Argentina ou mesmo no Paraguai.
Continuou a andar com toda a cautela, parando de quando em quando para olhar
em torno e ficar atento aos ruídos da noite. Levava no bolso do casaco uma lanterna
elétrica e no das calças um pé-de-cabra. Era a primeira vez que ia espoliar um
cadáver. O principal não era chamar a atenção dos operários que guardavam as
entradas das ruas, a uns duzentos metros do cemitério. Só acenderia a lanterna
quando o caixão estivesse já aberto e ele precisasse localizar as joias no corpo da
defunta.
Seu coração batia sereno. Tinha bons nervos. Se não tivesse, não poderia exercer
aquela profissão.
Chegou a uma das esquinas do cemitério e sondou com o olhar a entrada das ruas
fronteiras. A cidade estava às escuras. À fraca luz da lua não divisou nenhum vulto
humano. Felizmente a uns dez metros à frente do muro principal, do cemitério
estendia-se um longo renque de cinamomos copados, que produziam uma zona de
sombra onde ele poderia trabalhar sem ser percebido. Teria o cuidado de esconder
a luz da lanterna com o próprio corpo.
Sempre colado ao muro (boa ideia, ter vestido a roupa clara) o ladrão aproximou-se
dos sete esquifes. O primeiro deles, bem à frente do portão de entrada, era preto e
havia sido trazido às cinco horas da tarde. O seguinte – o claro e pequeno – era o
que procurava. Ajoelhou-se ao pé dele, desatarraxou-lhe a tampa e, contendo a
respiração, ergueu-a, fazendo-a depois escorregar de mansinho para um lado. Tirou
a lanterna do bolso e acendeu-a. focou primeiro as mãos da morta, pois ouvira falar
no famoso solitário de brilhante. Opa! Naqueles dedos cor de cera de abelha não viu
nenhum anel. Os pulsos estavam sem pulseiras. Iluminou o peito da defunta e não
viu nenhum broche. No pescoço, nenhum colar... numa relutância supersticiosa
focou o rosto do cadáver da dama e estremeceu. Os olhos dela estavam abertos,
seus lábios começaram a mover-se e deles saiu primeiro um ronco e depois estas
palavras, nítidas: “Senhor, em vossas mãos eu entrego a minha alma.” O ladrão
soltou um grito abafado, ergueu-se rápido, deixou cair a lanterna acesa e o
pé-de-cabra, e rompeu a correr na direção dos campos desertos...
(Érico Veríssimo. Incidente em Antares, cap. XVIII).
Observe que a estrutura do enredo narrativo nos leva a viajarmos até a cena do
ladrão, pronto para arrombar o esquife de dona Quitéria Campolargo. Até o
momento da abertura do caixão, não há nada que não esteja no campo do “pode
acontecer”, e não há dúvidas de que, ao longo do texto, a verossimilhança interna
funciona perfeitamente. O que nos chama atenção, entretanto,é a morta falar,
elemento que não condiz mais com a noção do “pode acontecer”. O texto extrapola
a verossimilhança externa, porém sua estrutura e coesão interna continuam
perfeitos. O “acordar” de dona Quitéria faz com que a estrutura da narrativa ficcional
se torne fantástica.
A narrativa fantástica é uma forma de literatura cuja estrutura narrativa apresenta
todos os elementos convencionais, porém, seu conteúdo é algo que não existe, ou
que não pode ser reconhecido em nossa realidade.
Neste capítulo, você aprendeu que a linguagem literária, mesmo que se utilize do
mesmo sistema linguístico da linguagem não-literária, é constituída por regras
próprias, as quais fogem da objetividade. O texto literário, embora seja semelhante
à realidade, não deve ser compreendido como tal, haja vista sua possibilidade de
ser interpretado a partir das visões de mundo do leitor. Para se reconhecer a
linguagem literária, há algumas características que, resumidas, podem ser: múltiplos
sentidos, ambiguidade semântica e liberdade de criação. Essas três características
abrem-se para todas as demais estudadas ao longo dessa seção.
Conceituando literatura comparada
É comum que as pessoas representem a noção de literatura a partir da leitura de
um determinado livro. Aceitemos ou não, os livros são a representação idealizada
da literatura e, em se tratando de uma análise literária, um grande volume de livros
sobre uma mesa pode ser uma das representações iniciais que se tem.
Em termos gerais, pode-se dizer que a Literatura Comparada é um campo de
estudos oriundo da Teoria Literária que compara diferentes textos, buscando
elementos transversais que se aproximam ou se afastam entre essas obras.
Um pouco de história
A literatura comparada, como campo do saber, tem sua origem histórica a partir do
século XVI, sendo uma ciência que se desenvolveu paralelamente ao
desenvolvimento dos estudos comparados realizados pelo campo das Ciências
Naturais.
Na virada dos séculos XVI e XVII, Francis Meres escreveu seu “Discurso
comparado de nossos poetas ingleses com os poetas gregos, latinos e italianos.”
Mais tarde, em 1602, William Fulbecke escreveu “Um discurso comparado das leis”
e, John Gregory publicou “Anatomia comparada dos animais selvagens”.
A expressão “literatura comparada” surgiu a partir da corrente cosmopolita de
pensamento do século XIX, quando o campo das Ciências Naturais utilizava o
método comparativo para extrair leis gerais. Nesse período, obras como “Lições de
anatomia comparada”, escrita por Cuvier (1800), “História comparada dos sistemas
de filosofia”, de autoria de Degérand (1804) e “Fisiologia Comparada”, de Blainville
(1833) estabeleceram alguns marcos para o desenvolvimento da literatura
comparada.
Nesse mesmo século, na França, o termo “literatura comparada” possui terreno
fértil, já que o conceito de literatura para designar um grupo de obras já estava
sendo cunhado, publicado – inclusive – no Dictionnaire philosophique de Voltaire.
É em 1816 que Noël e Laplace publicam várias antologias literárias, sob o título de
“Curso de literatura comparada”, ainda que não houvesse em seu conteúdo,
necessariamente, um confrontamento entre as obras.
A expressão ganhou popularidade na França a partir do curso “Panorama da
literatura francesa do século XVII”, ministrado por Abel-François Villemain na
Sorbonne, entre 1828 e 1829. Nessa época, os termos usados pelo autor eram,
além de “literatura comparada”, “panoramas comparados” e “história comparada”.
Mais tarde, em 1830, J.-J. Ampère, aborda o que chama de “história comparativa
das artes e da literatura”, nas obras “Discurso sobre a história da poesia (1830) e
“História da literatura francesa na Idade Média comparada às literaturas
estrangeiras” (1841). Foi por meio desse autor que a literatura comparada adentrou
o campo da crítica literária, por meio de um elogio feito por Sainte-Beuve, na Revue
des Deux Mondes, nomeando Ampère como uma espécie de fundador da história
literária comparada.
Além disso, no âmbito francês, em 1835 Philarète Chasles fórmula alguns dos
princípios básicos da história literária comparada, que abrange não só a história da
literatura isoladamente, mas também a filosofia e a política. Esses fundamentos
foram divulgados por Chasles em seus cursos ministrados no Collège de France,
uma das instituições de ensino mais tradicionais da França, pela qual já passaram
inúmeros pensadores franceses, em 1841.
Em 1887, surge em Lyon a primeira cátedra de literatura comparada, e, em 1910, na
Sorbonne, tendo à sua frente nomes como Joseph Texte, Fernand Baldensperger e
J.-M. Carré.
No contexto alemão, Moriz Carrière adota a expressão vergleichende
Literaturgeschichte (história comparativa da literartura), como forma de estudar a
evolução da poesia para integrar a literatura comparada à História Geral da
Civilização. Entre 1887 e 1810, Max Koch edita o primeiro períodico comparativista,
intitulado Zeitschrift der vergleichenden.
Em 1886, na Inglaterra, Hutcheson Macaulay Posnett publica o livro Comparative
Literature e, na Itália, De Sanctis lecionará, em 1836, a disciplina de literatura
comparada em Nápoles. Nos Estados Unidos, são criados Departamentos de
Literatura Comparada em Columbia (1899) e em Harvard (1904), sendo ambos
bastante influenciados pelos estudos de Irving Babbitt. Em Portugal, a literatura
comparada foi introduzida por Teófilo Braga, mas o estudo de Fidelino de
Figueiredo, intitulado “Literatura comparada”, como parte de seu livro “A crítica
literária como ciência” (1912), é considerado seu pioneiro metodológico.
Cabe lembrarmos que a Universidade de Harvard, na atualidade, é uma das
principais universidades do mundo, tendo alguns dos mais brilhantes e importantes
cientistas de nossa época.
Nas primeiras décadas do século XX, a literatura comparada, como disciplina, foi
ganhando forma, sendo introduzida nas universidades europeias e
norte-americanas.
Em 1921, o primeiro número da Revue de Littérature Comparée, de autoria de
Fernand Baldensperger e Paul Hazard, orientavam a validação das comparações
literárias pelo contato real e comprovado dos autores com as obras, ou dos autores
com países, o que abria espaço para que se estudasse fontes e influências, ao
passo que também começaram a surgir estudos que se ocupavam com o destino
das obras literárias fora de seu país de origem.
Também nessa época se considerava importante filiar os estudos literários
comparados a uma perspectiva histórica, tornando essa forma de literatura uma
ramificação da história literária.
Mas não se pode afirmar que essas formas de analisar a literatura comparada foram
unânimes. Elas faziam parte do que se pode chamar de “escola francesa” de
literatura comparada que, mais tarde, foi questionada por outros pesquisadores,
como no caso de René Wllek, cuja oposição ao historicismo francês levou à divisão
da literatura comparada, naquele momento, em escolas francesa e norte-americana.
Isso não significa, porém, que os norte-americanos não seguissem orientações
historicistas, porém, não com a mesma ênfase francesa.
Ao lado das escolas europeia e norte-americana, destacase também, como um dos
“clássicos” da literatura comparada a escola soviética. Essa escola, que teve como
principal representante Victor Zhirmunsky, procurou buscar compreender a literatura
como um produto social, procurando diferenciar analogias tipológicas e influências
culturais, que para eles seriam marcadores de evolução social. Destacamos como
especialistas nessas formas de análise o tcheco Dionýz Durisin.
Contribuições teóricas para a área – parte I
Manuais franceses
Da contribuição dos autores franceses para a literatura comparada, podemos
destacar o trabalho de Paul Van Tieghem (1931), que considerava a literatura
comparada uma preparação para a literatura geral. Além desses, destacam-se os
trabalhos de Marius-François Guyard (“A literatura comparada”, traduzida em 1956),
Claude Pichois e André-Michel Rousseau (La littérature comparée, 1968) e Etiemble
(Comparaison n’estpas raison, 1963; Essais de littérature (vraiment) générale,
1974).
Manual brasileiro
No Brasil, os primeiros estudos de literatura comparada, iniciados por Tasso da
Silveira, no livro “Literatura Comparada”, seguiram os traços de Van Tieghen, além
de autores como F. Baldensperger, Fr Loliée e A. Doupoy. Há uma grande
insistência na busca de fontes e de influências. Na prática, considera-se o trabalho
de Tasso da Silveira como uma repetição dos manuais franceses, porém, cabe
destacar que seu trabalho foi importante para a introdução da literatura comparada
no Brasil, na Faculdade de Filosofia do Instituto Lafayette. Outro brasileiro, João
Ribeiro, anteriormente, em 1905, havia escrito o livro “Páginas de Estética”, onde
traz ideias importantes para a literatura comparada, propondo que se explore os
aspectos históricos, críticos, linguísticos e literários nas análises. Diferentemente de
Silveira, João Ribeiro seguia uma linha mais germânica em seus estudos. Além
desses nomes, destacam-se os pesquisadores Otto Maria Carpeaux, Eugênio
Gomes e Augusto Meyer.
Função da literatura comparada
Em si, o termo “literatura comparada” não é, a grosso modo, de difícil interpretação,
por remeter a comparação entre obras literárias. Se literatura, como já vimos antes,
é a arte construída por palavras, comparação significa estabelecer elos e confrontos
entre objetos, literaturas, obras etc. Porém,
[…] quando começamos a tomar contato com trabalhos classificados como “estudos
literários comparados”, percebemos que essa denominação acaba por rotular
investigações bem variadas, que adotam diferentes metodologias e que, pela
diversificação dos objetos de análise, concedem à literatura comparada um vasto
campo de atuação. (CARVALHAL, 2009, p. 5).
A literatura comparada (ou literaturas comparadas) consiste numa análise literária
que estabelece um diálogo entre duas ou mais obras. Dada sua diversidade de
metodologias de análise, ela se constitui como um campo bastante eclético, tanto
em termos de metodologias como de materiais a serem comparados. Porém, não se
pode reduzi-la a um comparativismo livre. Segundo Carvalhal (2009, p. 7, grifos da
autora),
Pode-se dizer, então, que a literatura comparada compara não pelo procedimento
em si, mas porque, como recurso analítico e interpretativo, a comparação possibilita
a esse tipo de estudo literário uma exploração adequada de seus campos de
trabalho e o alcance dos objetivos a que se propõe.
Desse modo, pode-se entender que a literatura comparada não tem um fim em si
mesma, mas pode e deve ser usada como um recurso investigativo para se atingir
um determinado fim.
Isso não significa dizer que não existem divergências em relação à compreensão do
que é literatura comparada, principalmente porque esse é um estudo de natureza
ambígua. Também, como já abordamos na seção anterior, essa dificuldade se
caracteriza pela diferenciação das vertentes e dos manuais que a estudam, que
partem de concepções mais tradicionais ou mais generalizadas.
Divergências de entendimentos à parte, há uma questão na qual se tem
concordado: a literatura comparada abrange mais uma pluralidade de
procedimentos de análise literária do que propriamente um único método ou teoria;
estaria mais perto do que denomina Carvalhal (2006): seria um “procedimento
mental” e, como tal, generaliza ou diferencia.
O ato de comparação faz parte da natureza humana e consiste em colocar “lado a
lado” mais de um elemento, estabelecendo potencialidades e limites entre eles,
sendo estabelecidos, inclusive, padrões e juízos de valor. Deste modo, a
comparação existe para diferenciar ou para igualar elementos.
Quando a comparação ocupa lugar central num estudo literário, podemos dizer que
estamos falando de um estudo comparado, pois:
[…] a literatura comparada compara não pelo procedimento em si, mas porque,
como recurso analítico e interpretativo, a comparação possibilita a esse tipo de
estudo literário uma exploração adequada de seus campos de trabalho e o alcance
dos objetivos a que se propõe. Em síntese, a comparação, mesmos nos estudos
comparados, é um meio, não um fim. (CARVALHAL, 2006, p. 7, grifos da autora).
Podemos entender que a literatura comparada trabalha não apenas com temas
históricos e nacionais, mas com temas sociais, filosóficos, sociológicos e abrange
diferentes vertentes, sejam literárias ou não. Tudo a que o pesquisador se propuser
a estabelecer semelhanças e diferenças com uma obra literária, desde que a obra
literária seja o ponto de partida, pode ser compreendido como uma forma de
procedimento comparativo.
[…] os estudos literários comparados não estão a serviço das literaturas nacionais,
pois o comparativismo deve colaborar decisivamente para uma história das formas
literárias, para um traçado de sua evolução, situando crítica e historicamente os
fenômenos literários. (CARVALHAL, 2006, p. 85).
Pode-se perceber, deste modo, que literatura comparada designa não apenas a
comparação despretensiosa entre as obras, mas, mais do que isso, trata-se de um
procedimento plural e sério, que contribui significativamente para o campo de
estudos da crítica literária.
Para Guyard (1994), um dos pensadores clássicos do tema, a Literatura Comparada
é a história das relações literárias internacionais. Afirma o autor que:
O comparatista se encontra nas fronteiras, linguísticas ou nacionais, e acompanha
as mudanças de temas, de ideias, de livros ou de sentimentos entre duas ou mais
literaturas. Seu método de trabalho deve se adaptar à diversidade de suas
pesquisas. (GUYARD, 1994, p. 97).
Assim, verifica-se que a literatura comparada auxilia e é auxiliada pelo campo da
Teoria Literária, realizando o trabalho de, durante a análise de textos literários
oriundos de diferentes culturas e nacionalidades, estabelecer relações das mais
diversas entre eles. Na prática, embora bastante calcada na História da Literatura,
os livros didáticos de Língua Portuguesa, por exemplo, realizam exercícios de
comparação quando estabelecem, para um determinado período literário,
comparações entre obras francesas, portuguesas e brasileiras, por exemplo.
Crises teóricas
Ainda que os estudos comparados florescessem em outros lugares longe da
França, por décadas os manuais franceses obtiveram certa hegemonia na
orientação do campo teórico. Porém, esse terreno exclusivo sofreu seu primeiro
abalo no ano de 1958, durante o 2º Congresso da Associação Internacional de
Literatura Comparada, durante a conferência “A crise da literatura comparada”,
proferida por René Wellek. Nessa conferência, Wellek aborda as fragilidades da
disciplina, bem como sua dificuldade em estabelecer um objeto de estudo e uma
metodologia, opondo-se à literatura comparada e à literatura geral.
Segundo Wellek, a literatura comparada estaria reduzida à seleção de fragmentos
para análise, deixando de lado aspectos mais integrais das obras. Além disso, a
investigação dos aspectos internacionais das obras levaria o pesquisador a se
ocupar somente com aspectos externos às obras. Ainda, Wellek rejeita o princípio
causalista dos estudos clássicos, considerando-os ineficientes.
Wellek propôs um modelo de análise inspirado nos princípios do estruturalismo de
Praga, o que foi algo inovador na época, divididos em relações de solidariedade
tipológica e em contatos externos.
A partir daí, embora o modelo proposto por Wellek, apesar de inovador ainda
possuísse fragilidades, durante a continuidade do século XX, os estudos literários
ganharam maior caráter científico, impulsionando a teoria literária.
Neste capítulo, você aprendeu que a Literatura Comparada é um campo de
conhecimentos que busca analisar e estabelecer proximidades e distanciamentos
entre diferentes textos literários. O estudo comparado da literatura começa a ser
desenvolvido a partir do século XIX. Desde seu surgimento, a literatura comparada
é palco de diferentes ênfases teóricas que, mesmo discordantes, são importantes
para sua constituição e consolidação como campo científico.
Relacionando literaturacomparada e tradução literária
Nem sempre, ao comprarmos um livro literário, podemos ater acesso ao original,
especialmente no que se refere às barreiras linguísticas. Diante disso, ou o leitor
compra uma obra em língua estrangeira e se torna uma espécie de autodidata, ou
opta por uma tradução.
Neste segundo caso, há que se considerar uma série de elementos, já que, nem
sempre, as traduções, ou mesmo as adaptações literárias, são fiéis ao original.
Isso pode acontecer por diversos fatores, entre eles, a fluência do tradutor – um
tradutor que conhece a cultura da língua que está traduzindo pode possuir uma
visão diferente de um tradutor técnico -, a existência de expressões “intraduzíveis”
em nossa língua, dentre outros fatores.
Algo que chama atenção, também, no que se refere à tradução, é o contexto, já que
a obra literária, como uma imitação da realidade, pode remeter a situações típicas
de uma região e de uma cultura, o que nem sempre pode ser “legível” em outro
espaço.
Daí, nesse caso, entra o trabalho da Literatura Comparada: oferecer uma forma de
tradução que seja capaz de traduzir não apenas a língua, mas suas nuances e
desdobramentos culturais, que nem sempre se aprende nos manuais de estudo.
Para esclarecer o que queremos refletir nesse espaço, trazemos uma reflexão a
partir do texto “Entenda o perigo de uma tradução literária ao pé da letra!”,
disponibilizado pelo site 2tr e que, embora fale apenas sobre a tradução, também
pode ser pensado no contexto da tradução literária:
Traduzir um texto de forma automática tem facilitado o dia a dia de muita gente que
necessita entender ou se fazer entender em outro idioma de forma rápida e prática.
No entanto, quem já se utilizou de um software de tradução pelo menos uma vez
sabe que sua tendência é traduzir as palavras e expressões ao pé da letra, tornando
os textos - por vezes – sem sentido e engraçados.
Mesmo que seja relativamente inofensivo nas comunicações informais do dia a dia,
a tradução de uma palavra de forma literal pode ser perigosa, especialmente para
quem precisa empregá-las em contextos mais complexos.
Historicamente, a chamada “tradução ao pé da letra” ser perigosa não é nenhuma
novidade para quem conhece ou necessita conhecer uma segunda língua,
especialmente para quem trabalha com tradução. Os perigos da tradução literal –
diga-se de passagem – são conhecidos desde os primórdios da história da
tradução.
Durante a Antiguidade, Cícero – que foi um dos primeiros tradutores da história -,
defendia que era necessário buscar repassar de uma língua para outra o peso das
palavras no lugar, apenas, de seu número, ou seja, seu sentido geral no lugar da
análise dos termos de forma separada. Alguns séculos depois, São Jerônimo, que
foi o primeiro tradutor da Bíblia, considerado atualmente o patrono dos tradutores,
procurou trabalhar numa tradução por ideias ao invés de por palavras, com o
objetivo de preservar ao máximo o sentido original. E no período do Iluminismo, o
filósofo alemão Voltaire tencionou o mito de Babel, pela sugestão que nele ficava
implícita, de que todas as línguas teriam a mesma origem, o que corresponderia
também que todas tinham correspondência perfeita entre elas e, por isso, poderiam
ser traduzidas literalmente, sem nenhum cuidado.
Seu pensamento levou os estudiosos a perceberem a impossibilidade de uma
tradução sempre literal, especialmente, por poder apresentar alguns perigos, tais
como:
● Compreensão com estranhamento: É óbvio que existe a possibilidade –
mesmo que remota – de uma frase ou expressão de um determinado idioma
ter o mesmo sentido em outro, porém, isso é bem raro de acontecer, e o
melhor que pode ocorrer, numa tradução literal, quando não há
correspondência linguística, é que o falante da língua-alvo (isto é, do idioma
para o qual se está traduzindo) tenha um entendimento parcial ou total do
texto, ainda que haja alguma confusão. Isso ocorre, por exemplo, quando se
traduz a expressão inglesa “seat belt” ao pé da letra, que significa “cinto de
assento”, ao invés de “cinto de segurança”, em português. Conforme o
contexto, o falante de português possivelmente entenderia a expressão, mas
a estranharia.
● Total incompreensão: Quando a tradução ao pé da letra não tem nenhuma
relação com o correspondente da língua-alvo, o falante pode simplesmente
não compreender nada do que está sendo dito. Isso pode acontecer, por
exemplo, quando se traduz uma expressão idiomática de maneira literal,
como no exemplo da frase francesa “les carrores sont cuites” que, embora
signifique “as cenouras estão cozidas, na realidade, expressa uma situação
que não é passível de ser mudada.
● Inadequação na compreensão: Além disso, o maior perigo da tradução literal
é a criação de uma frase ou expressão que na língua-alvo pode até fazer
sentido, porém, possuindo um significado completamente diferente do que se
pretende dizer, soando – por vezes – até como ofensivo ao falante da
línguaalvo, levando-o inclusive a construir um significado exatamente oposto
àquele que se pretendeu ter. Um bom exemplo é a palavra alemã
“Schwarzfahrer”, muito encontrada nos trens e metrôs na forma do aviso
“Schwarzfahrer zahlen €40”. Se a traduzirmos ao pé da letra para o
português, a placa diz que “passageiros negros pagam 40 euros”, o que,
inclusive, pode soar como uma afirmação completamente racista. Porém,
“Schwarzfahrer” usa o adjetivo “negro” para se referir a algo ilegal — isto é,
pessoas que usam o transporte sem pagar passagem —, da mesma forma
como, em português, usamos a expressão “mercado negro”.
● Evitando a tradução literal equivocada: Para se fugir desses perigos, antes de
qualquer coisa, é necessário verificar se o trecho que foi traduzido ao pé da
letra faz sentido na línguaalvo, e ainda se esse sentido se esse sentido é
igual ou pelo menos equivalente ao do original. Exemplificamos com a
expressão “falando do diabo” que, em inglês, significa “speaking of the devil”,
cuja tradução – nesse caso – tem realmente o mesmo significado em ambas
as línguas. No entanto, o melhor a se fazer é buscar um correspondente que
seja usado, na língua-alvo, mais ou menos no mesmo contexto que aquele
da língua-fonte. Para a expressão francesa “les carrotes sont cuites”,
abordada anteriormente, poderíamos usar a expressão “não adianta chorar
sobre o leite derramado”, indicando que agora é tarde para tentar mudar algo
que ocorreu no passado. Do mesmo modo, o aviso “Schwarzfahrer zahlen
€40” deve ser traduzido para outras línguas com a mesma expressão usada
no transporte público do país. No Brasil, como esse tipo de aviso não é
comum, seria possível dizer simplesmente algo como “proibido viajar sem
passagem” ou “viajar sem passagem acarreta multa de 40 euros”.De
qualquer forma, o melhor é procurar saber qual é a expressão exata usada
pelos nativos da língua-alvo em um contexto semelhante ao da língua-fonte.
● Traduções literais aceitáveis: Mesmo com todos esses perigos, há situações
em que a tradução literal é a melhor escolha. Isso acontece especialmente
em textos de alto valor literário, de preferência com comentários ou com
notas explicativas do tradutor, ou ainda em textos nos quais se pretende
tratar exatamente das diferenças entre dois ou mais idiomas. Nesses casos,
a tradução literal pode ajudar para que o leitor que possui pouco ou nenhum
conhecimento da língua estrangeira possa se familiarizar com sua construção
e também com sua forma de expressão de certos significados. Em textos
com funções mais práticas e objetivas, entretanto, permanece a regra de fugir
da tradução ao pé da letra sempre que isso for possível.
Compreende, caro aluno, porque a tradução literária (especialmente a literal) pode
ser um problema? É importante que prestemos atenção a isso, a fim de que
optemos sempre pela melhor escolha em se tratando de obra literária, seja original,
traduzida ou adaptada.
Das relações entre literatura comparada e tradução literária: algumas considerações
Na seção anterior, a partir da explanação do desenvolvimento da LiteraturaComparada, abordamos de forma breve algumas observações em relação à relação
entre LC e tradução literária.
Considerar a relevância do papel da tradução literária na história da literatura e
cultural reflete levar em conta o papel transformador da obra literária. Conforme
Sandra Bermann (2010, s/p)
À medida que o papel da tradução no contexto póscolonial, pós-estruturalista e pós-,
sub- e internacional se lança no cenário mundial hoje, sua capacidade tanto de
estender a vida dos textos literários e culturais, mas também de intervir em seus
efeitos globais vem à tona.
Para a autora, é importante que se leia da mesma forma como se traduz,
estando-se atento aos níveis linguísticos do texto (fonemático, semântico etc.),
como também uma tradução requer atenção ao contexto de produção da obra,
reconhecendo na obra os aspectos que formaram sua cultura.
Em parte, dizer que considerar os aspectos culturais de produção de uma obra
literária é importante no momento da tradução, significa ter mais do que uma versão
traduzida do texto. Alguns autores brasileiros do século passado já haviam atentado
para essa importância, chegando a afirmar – inclusive – que há uma diferença entre
os processos denominados “escritura” e “tradução”, sendo a primeira uma reescrita
decodificada, e a segunda, considerada uma tradução também do contexto.
Também, cabe mencionar que questão da tradução se refere ao fato de que a
residência “oficial” da arte literária é a língua nacional, sendo a forma linguística
original um dos elementos artísticos do texto. Porém, isso não significa que seja o
único elemento a ser considerado.
Deste modo, a grande discussão em torno da utilização de traduções para a
comparação está no fato de que se acredita que elementos linguísticos e até
mesmo contextuais importantes podem ser perdidos com as traduções. Porém, a
utilização dos originais linguísticos também apresenta seus obstáculos, dentre os
quais está o conhecimento das línguas e um domínio muito maior das literaturas.
Sara Rodrigues (s/d) salienta a importância de que se leia como se traduz, dando-se
atenção para todos os níveis textuais, desde o fonemático, ao semântico,
considerando também os aspectos culturais e situacionais dos textos
A grande questão da tradução para a Literatura Comparada encontra-se no
reconhecimento do outro, no respeito às suas singularidades. Afirma a autora que:
Ao tratar da (sempre presente) questão do papel da tradução em sua relação com a
literatura e a cultura (essencial, no caso dos cursos superiores de tradução), […]
pode-se concluir que a literatura e as demais áreas humanas, embora com
fronteiras disciplinares delineadas, interpenetramse continuamente. O fator de
definição desta relação é a tradução das teorias que enformam essa relação. A
tradução (a mais disciplinar das atividades) vincula-se de maneira muito especial
com a literatura, especialmente com a Literatura Comparada. A Literatura
Comparada, em nosso ponto de vista, é um modo de ler. Na Literatura Comparada
há a primazia do confronto, do estudo e da diferença. Este é o estudo que,
sublinhando a diferença, faz o diferente ser respeitado: de mãos dadas com os
Estudos de Tradução, foi uma das bases dos estudos pós-coloniais. Juntamente
com os Estudos de Tradução, pode auxiliar a tornar nossos paradigmas e
experiências no mundo contemporâneo inteligíveis, o que é condição primeira para
transpor limites e avançar. (RODRIGUES, 2010, p. 25)
Na visão da autora, os Estudos de Tradução, considerando a necessidade de que
se realize uma tradução mais contextualizada das obras, podem contribuir de forma
significativa para o aperfeiçoamento da Literatura Comparada.
Os estudos de tradução são um campo de conhecimento que se ocupa do estudo
de teorias relacionadas à tradução e interpretação, relacionando conhecimentos das
Ciências Sociais e Humanas.
A tradução literária é um movimento bastante complexo, que não pode ser
simplificado, na atualidade, em se “jogar” trechos do texto num tradutor online. Para
uma tradução literária de qualidade, primeiramente, o tradutor deve possuir um
conhecimento avançado daquela língua estrangeira, com um entendimento de suas
nuances, gírias, estigmas etc
Você já parou para pensar que expressões do nosso dia a dia podem não ser
entendidas tão facilmente por falantes de outras línguas? É o caso da expressão
“morrer de rir”, que pode não existir ou não ser dita deste modo em outras línguas.
De modo geral, a tradução literária é um elemento bastante importante no contexto
da Literatura Comparada, porque uma análise qualitativa dependerá da qualidade
da tradução. Por isso, é importante que o tradutor conheça não só a língua, mas –
como já mencionado anteriormente – as nuances linguísticas, as construções
culturais, as figuras de linguagem existentes naquela língua. Da mesma forma, a as
línguas estrangeiras também têm suas marcas sociais, esses detalhes são
importantes, tanto para a tradução, como para a análise comparada, uma vez que
esses elementos que ficam “nas entrelinhas culturais” da língua possibilitam a
construção de uma análise consistente.
Além disso, é relevante conhecer o contexto social que a obra enfoca, assim como
suas diferenças sociais, já que um determinado livro literário pode abordar essas
diferenças. Livros que abordam relações entre personagens de diferentes classes
sociais, por exemplo, necessitam desse enfoque.
Para concluir nossa discussão, existem muitas reflexões acerca da constituição da
tradução literária, e essa se tornou objeto de estudos da Literatura Comparada por
considerar-se que, como um campo do saber que analisa obras de diferentes
nacionalidades, para que se estabeleça relações de comparação e de diferenciação
fidedignas entre as obras, é necessária uma tradução que seja profundamente
conhecedora da língua original em que a obra for escrita. Se o pesquisador próprio
a traduzirá, ou se utilizará um volume já traduzido, dele levar em conta que tipo de
tradução foi realizada, para que as preciosidades daquela língua não se percam.
Claro, isso também é complexo, pois se o pesquisador também não conhece aquela
língua, em sua análise podem passar despercebidos elementos importantes
daquela cultura.
Claro, como mencionamos anteriormente, a linguagem do texto não é a única
preciosidade que ele possui, mas é essencial para que, juntamente com outras
características literárias que a obra possui, a Literatura Comparada possa
estabelecer e exercer seu papel.
Recomendamos os seguintes materiais complementares: PERISEÉ, Gabriel.
Literatura & Educação. 1 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
VEREDA LITERÁRIA – Tânia Franco Carvalhal fala sobre Literatura Comparada.
Nessa unidade, você aprendeu que os principais elementos que constituem a
linguagem literária, e que diferenciam textos literários de textos não-literários. A
definição e o contexto histórico da Literatura Comparada, que como ciência, vem se
desenvolvendo desde o século XIX. Os principais autores que contribuíram para o
desenvolvimento da Literatura Comparada. Os pressupostos em relação à Literatura
Comparada e à tradução.
UNIDADE 2
Compreendendo os gêneros literários: conceito, história e características gerais
A organização da literatura em gêneros: um pouco de história
Podemos dizer que, talvez, o primeiro pensador da teoria literária tenha sido o
filósofo Aristóteles (384-322 a.C.), que procurou classificar a literatura grega em três
classificações distintas, organizadas a partir de características que o filósofo
considerou comuns.
Naquele momento, Aristóteles deu para essa classificação o nome de “gênero”,
considerando nessa nomenclatura a noção de origem, e compreendendo que a
cada gênero são conferidas diferentes ramificações, compreendidas como
“espécies”.
Essa definição fica mais clara se compreendermos que a palavra gênero, em sua
origem latina genus-eris, significa origem, classe, espécie. E essa definição, desde a
Antiguidade, não mudou: quando falamos nos gêneros literários, estamos, sim,
dizendo que é possívelfiliar cada obra literária a uma determinada classe ou
espécie. Quando isso não é possível de ser feito, diz ter uma nova modalidade
literária. A filiação das obras, por sua vez, só se torna possível por meio de métodos
comparativos e classificatórios. A junção desses elementos comparativos possibilita
o estabelecimento de normas e regras gerais para cada gênero, que são
observadas nos textos literários por meio de sua predominância ou totalidade.
Há teóricos e estudiosos que, inclusive, defendem que a literatura apresente certa
universalidade em relação aos gêneros, qualificando – inclusive – a natureza que os
gêneros literários possuem não como um elemento descritivo, mas prescritivo e
imutável. Isso cria uma divisão entre aqueles que defendem a imutabilidade da
literatura e aqueles que acreditam na sua liberdade criadora.
Se retomarmos os antigos gregos, veremos que a primeira referência sobre os
gêneros literários, de autoria de Platão (cerca de 428 a.C. – cerca de 347 a. C.),
atribuía às artes uma função moralizadora por meio da imitação. Aristóteles, por sua
vez, recusava a hierarquia estabelecida por Platão, trazendo, em sua Poética o
conceito de mímesis.
O conceito de mímesis, embora não claramente formulado por Aristóteles, marca a
diferença entre o modo de perceber arte e realidade, relacionando a arte ao fruir de
um prazer que diferente do que se sente no mundo real. Essa diferenciação por
meio do prazer possibilita a valorização do trabalho poético.
A partir da concepção de mímesis, foi possível estabelecer algumas qualidades que,
embrionárias, configuraram os gêneros literários:
● Conforme o meio em que se realiza a mímesis, era possível diferenciar a
poesia ditirâmbica da trágica e da comédia, pois, ainda que todas utilizassem
o verso e a métrica, o faziam de forma diferente;
● Conforme o objeto da mímesis, há possibilidade de distinguir, por exemplo, a
tragédia (que apresentaria homens melhores para os padrões da
Antiguidade) da comédia (que representaria os homens “piores”);
● Segundo o modo da mímesis, seria possível diferenciar o processo narrativo
do processo dramático, pois no primeiro, o poeta narraria os fatos, enquanto
no segundo, aparentemente não haveria intervenção direta do narrador.
Aristóteles, diferentemente de Platão, via a diferença dos gêneros mais ligada ao
conteúdo.
Outro pensador da Antiguidade que auxilia a formulação dos gêneros literários é o
romano Horácio (65 a.C. – 8 a.C.), que atribui à literatura as funções poética e
didática, incluindo algumas reflexões sobre os gêneros, com foco na questão da
adequação entre o assunto escolhido e o ritmo, o metro e o tom, considerando
poeta aquele que consegue utilizar adequadamente esses aspectos. Nesse sentido,
Horácio contribuiu fortemente para a eliminação do hibridismo entre os gêneros.
Durante o medievo, novos conteúdos e novos gêneros foram surgindo, rompendo
com algumas concepções clássicas. Dante Alighieri, na Divina Comédia, contribuiu
para o hibridismo entre gêneros, alternando entre epopeia, tragédia, comédia e
elegia.
O Renascimento cultural, ocorrido a partir do século XV, retoma os preceitos da
tradição greco-latina, retomando a noção da mímesis de Aristóteles não como
recriação, mas como imitação da natureza. A partir disso, a teoria dos gêneros
adquire um caráter bastante normativo e de imitação.
No século XVII, o francês Nicolas Boileau-Despréaux, em sua Arte poética,
fundamenta a arte na razão, defendendo o bom senso, o equilíbrio, a clareza e
adequação como condições principais da poesia. A noção de gênero literário
horaciana permanece como espécie fixa, de regras que devem ser obedecidas.
Já na segunda metade do século XVIII, o movimento préromântico do “Sturm und
Drang” alemão contribui para a noção de gênero por meio da noção de
historicidade. É nesse período que a individualidade e a autonomia de cada obra
são valorizadas, sendo priorizada a liberdade de criação e a autonomia do escritor.
No século XIX, época em que as ciências naturais vigoraram, o professor
universitário francês Brunetière (1849- 1906) defendeu a noção de que os gêneros
literários evoluíam e se diferenciavam historicamente, como ocorria com as
espécies naturais. Nessa concepção, o gênero literário se assemelharia a um
organismo vivo. Era mantida, dessa forma, a normatividade dos gêneros, porém
essa normatividade, independentemente das criações literárias, seguiria uma ordem
natural. Eram os gêneros também que determinariam as características da
literatura, e não o contrário. Sua proposta era um estudo sobre a origem, a evolução
e a dissolução dos gêneros.
Ainda na esteira do século XIX, o italiano Benedetto Croce (1886 – 1952) se opôs à
ideia de Brunetière, especialmente no que se referia às suas concepções
dogmáticas. Segundo ele, o conhecimento era intuitivo, e lógico, produzindo
imagens e conceitos, o que dispensaria a total submissão à rigidez das regras
Dessa forma, Croce se aproximava mais das concepções românticas, avançando
com o argumento de que as semelhanças entre as obras seriam elementos
secundários na análise literária. Inicialmente, o autor chegou – inclusive – a
abandonar a noção de gêneros, o que foi retomado em sua obra posteriormente.
De modo geral, o pensamento croceano negava a substancialidade dos gêneros
literários, mas considerava a importância de sua instrumentalidade.
O século XX foi um momento de efervescência de teorias e de modos de
compreender os gêneros literários, dentre os quais destacamos trabalhos como os
de Vossler, que ajudou a criar a compreensão da estilística moderna, as
proposições do New Cristicism do autor Allan Tade, o início do Formalismo Russo
por meio da teoria do estranhamento, de Chklovski.
Tynianov foi um autor que contribuiu, por meio do movimento formalista, para
aproximar a série literária e a não literária, por meio dos princípios de função,
sistema, e dominante, tornando a noção de gênero um fenômeno mais dinâmico e
mutável.
Tomachevski, também representante do grupo formalista, observava os traços dos
gêneros como agrupamentos de procedimentos possíveis de se perceber,
ressaltando a impossibilidade de se estabelecer uma classificação lógica ou mesmo
fechada dos gêneros, já que eles são elementos históricos.
Outro autor, Luiz Costa Lima, fundamentado em Bakhtin, se voltaria para a questão
da percepção nos gêneros literários que, além dos traços linguísticos, consideraria
também as expectativas do receptor, assim como a maneira como a obra literária
capta a realidade. Com isso, o autor abandonava as propostas caracterizadoras do
literário apenas pela linguagem.
Roman Jakobson, a partir de sua teoria sobre a hierarquização das funções de
linguagem no texto poético, afirma que o texto literário possui predominância na
função poética de linguagem, e no que se refere aos gêneros, abaixo da função
poética dominante dos textos estariam a função referencial no gênero épico, a
função emotiva no gênero lírico e a função conotativa no gênero dramático.
É também ao longo da primeira metade do século XX que floresce a ideia de
“formas naturais” para o texto poético, herdadas do Romantismo de Goethe. Tais
formas seriam o épos, a lírica e também o drama. André Jolles distingue nove
formas simples do que considera serem “formas fundamentais” da literatura: chiste,
conto, memorável, caso, ditado, adivinha, mito, saga e legenda.
Emil Staiger, em seu livro Conceitos fundamentais da poética (1946) propõe que os
traços estilísticos líricos, dramáticos ou épicos pode ou não se manifestar em
qualquer texto, independentemente do gênero. Esses traços poderiam aparecer em
maior ou menor quantidade, serem combinados, de forma que nenhuma obra, na
visão do autor, seria predominantemente pertencente a um só gênero.
No livro Anatomia da crítica (1957), Northop Frye traz a noção dos gêneros
clássicos e acrescenta um quarto gênero: a ficção. Afirma o autor que cada um dos
gêneros tem sua própria forma de mímesis.
Hans Robert Jauss também se debruçou sobre o tema, afirmandoque toda obra se
vincula a um conjunto de informações e a uma situação particular de apreensão,
pertencendo a um gênero na medida em que admite determinadas expectativas.
Desse modo, o gênero seria um elemento histórico, guiado pelo conhecimento das
expectativas de recepção e de produção.
De modo geral, podemos dizer que o estudo dos gêneros literários não é algo novo.
Desde a Antiguidade, filósofos e estudiosos já discutiam acerca da natureza da
linguagem literária. A partir disso, podemos resumir nossa breve incursão histórica
pela história dos gêneros literários em cinco pontos:
1. Ainda que se leve em consideração as características genéricas do texto
literário, não se deve descrever um gênero de forma desconectada de sua
recepção, e das formas como o receptor atua sobre ele;
2. Os gêneros literários, como produtos históricos, têm suas características em
constante transformação. Isso permite dizer que a disponibilidade para
perceber a liberdade de criação deve ser maior do que a busca por
elementos normativos e fixos;
3. Os receptores dos textos literários são diferentes; portanto, diferentes leituras
de um mesmo texto podem ser feitas. E também, mesmo que a estrutura do
texto busque desconstruir a noção de gênero, essa desconstrução só é
possível porque há um conjunto de obras que possibilitam a formação de um
horizonte de expectativas em relação à obra e ao próprio poeta;
4. Identificar isoladamente determinados traços numa obra não é tão importante
quanto a observação de como cada traço se relaciona com outros da mesma
obra, a fim de reconhecer o texto como pertencente a um campo semântico
lírico, narrativo ou dramático;
5. É importante tomarmos a teoria dos gêneros literários como um meio para
nos auxiliares em relação ao conhecimento literário necessário para
reconhecimento, apreciação e julgamento de uma obra. Porém, as
características dos gêneros, olhadas isoladamente, não nos ajudam a
localizar uma obra dentro da literatura.
É importante você compreender que os gêneros literários não são categorias fixas,
imutáveis ou impossíveis de serem desconstruídas/ hibridizadas. Os gêneros
existem porque, ao longo dos séculos, por meio da comparação literária,
procurou-se estabelecer algumas características aparentemente fixas em
determinados traços linguísticos e estruturais das obras. Porém, isso não quer dizer
que essas características não possam ser redefinidas ou redesenhadas na
constituição da pluralidade das formas literárias. Os gêneros literários funcionam
como uma espécie de ferramenta que nos auxilia na compreensão e na recepção de
um texto literário. Certo? A seguir, veremos algumas características comuns aos
gêneros literários.
Gêneros literários: algumas características gerais
Embora, em nosso estudo, recusemos a noção de que as características dos
gêneros literários sejam imutáveis e atemporais, isso não significa que não existam
alguns conjuntos de regras gerais e particulares de cada gênero, que precisem ser
conhecidas. É dessas regras mais gerais que trataremos nesta seção.
Sabemos que, em linhas gerais, a linguagem poética se diferencia da linguagem do
dia a dia porque estabelece uma relação entre significante e significado um pouco
diferente da comunicação cotidiana, tornando-a uma linguagem distinta. A
linguagem, de modo geral, pode ser compreendida como um conjunto de signos que
obedecem a determinadas regras de combinação, a fim de expressarem um
determinado modelo de mundo.
Assim, a literatura poderia ser comparada a um modelo secundário, criado a partir
de um sistema linguístico já existente – o do mundo real. A teoria dos signos
linguísticos, na qual o signo seria constituído por um significante (o conjunto de sons
que tornam a palavra acusticamente possível, trazendo-a para o mundo real) e
aquilo que ela representa no mundo mental que constitui uma determinada cultura,
o qual chamamos de significado. Ferdinand de Saussure, linguista do século XIX, é
quem traz essa importante contribuição para o campo da linguagem.
● Exemplo: Se pensarmos em um livro, seu nome, ou seja, seu significante, é
constituído de cinco sinais gráficos, a saber: l + i + v + r + o. Da mesma
forma, o som da palavra é constituído pelos cinco fonemas que são
representados por pelos sinais gráficos (letras) que o formam. Todos aqueles
sujeitos imersos em nossa cultura compreendem, através de suas faculdades
mentais, que um livro, independente das preferências particulares do sujeito,
é um elemento que possibilita a leitura, independentemente, inclusive, se for
um livro físico ou mesmo virtual. Essa imagem mental que cada um associa a
palavra “livro” é o que podemos chamar de significado.
Para Louis Hjelmslev, a linguagem literária é um sistema cujo plano de expressão
pertence a um plano desenvolvido a partir do plano denotativo da linguagem natural.
Dito de outros modos, a arte literária torna-se conotativa a partir da base da
linguagem denotativa utilizada no mundo real. De modo geral, podemos afirmar que
as características comuns aos gêneros literários são:
● Significado conotativo: o sentido da linguagem literária será sempre diferente
daquele construído culturalmente, por meio da linguagem denotativa;
● Liberdade de criação: a linguagem literária permite o fruir da criatividade por
não se prender ao sentido literal das palavras, nem a realidade. Isso
possibilita diferentes criações e formas de apresentação da linguagem
literária;
● Estruturas diferenciadas em relação a gêneros textuais cotidianos: não
podemos nos esquecer de que a estrutura do texto literário, embora tenha
algumas particularidades, não é cativa delas, mas pode ser inovada, tanto em
termos históricos como por meio da individualidade de quem escreve. O
mundo da literatura é aberto, não sendo necessária uma rigidez estrutural
para que o emissor se faça entender pelos receptores;
● Imitação da realidade: independente da forma como se apresente, todo
gênero literário (e consequentemente, todo texto literário) será uma imitação
do real, não podendo e não devendo ser tomado no sentido denotativo, literal
das palavras;
● Funções diferentes das dos textos não-ficcionais: a literatura pode estar
conectada com a realidade, apresentando denúncias e críticas sobre essa.
Porém, para além disso, a literatura também funciona como uma forma de
desenvolvimento artístico e de entretenimento. Sua funcionalidade está mais
para o fruir estético do que para uma utilização real. Por isso, trata-se de uma
arte subjetiva. Ela é polifônica e autônoma em relação às suas funções,
podendo ou não exercer algum papel intencional, mas sempre estando
aberta para outras possibilidades de compreensão de suas funções;
● Linguagem em poesia ou em prosa: a noção de poesia, até o período do
Neoclassicismo, havia sido considerada como um elemento exclusivamente
inerente aos textos escritos em versos. Porém, do século XIX para cá,
passou-se a compreender a poesia em um sentido mais amplo, abrangendo
o fazer artístico. A poesia, dessa forma, seria o conjunto das atribuições que
torna um objeto artístico, o que possibilita que qualquer forma de arte seja
considerada poética, inclusive os textos literários em prosa;
● Possibilidade de interpretação por diferentes níveis de linguagem: o texto
literário, independente do gênero, permite que o leitor analise em seis níveis,
a saber: a) nível fabular: seria o nível da história ficcional, da interligação
entre os fatos, bem como o estabelecimento de elementos que tornem
possível a compreensão do que trata aquele texto; b) nível atorial:
corresponde à análise do fazer e do ser, bem como das funções do
personagem na narrativa; c) nível reflexivo: trata dos comentários tecidos
pelos personagens, ou das considerações sobre a vida e a realidade,
explanadas ao longo do texto; d) nível discursivo: possibilita a análise das
figuras de linguagem que tornam o texto literário; e) nível descritivo: trata da
análise do espaço onde se desenvolve a trama literária, que pode ser físico
ou psicológico (ocorrendo no interiordas personagens); f) nível fônico:
analisa os elementos sonoros que constituem o texto, sendo importante para
o estabelecimento de relações entre os sons e os sentidos do texto.
Esses seis elementos podem ser encontrados em qualquer texto literário, pois, de
modo geral, compõem sua estrutura. O que os diferencia na classificação dos
gêneros é que alguns elementos podem predominar mais do que os outros dentro
do texto, o que não impede que eles existam. Por isso, de acordo com essas
predominâncias, na teoria literária, se tem dividido o estudo dos textos literários em
teoria da narrativa, teoria da lírica e teoria do drama.
resumo bastante prático e interessante sobre os gêneros literários: Acesse o vídeo
“Gêneros literários – quer que eu desenhe – descomplica”,
Resumindo: A classificação e descrição dos gêneros literários é um estudo
fundamentalmente comparativo, uma vez que pressupõe que se busque elementos
comuns na linguagem e na estrutura de diferentes textos, não para estabelecer
regras imutáveis, mas incidências repetitivas. Até aqui, você aprendeu que a noção
de gênero literário surgiu como uma forma de agrupamento dos textos, tanto para
fins de estudo e análise, como para fins didáticos. Os gêneros literários seriam os
grupos de semelhanças que constituem uma determinada modalidade da linguagem
literária. Estariam, talvez, mais preocupados em explicar o que não faz parte
daquele gênero do que propriamente o que faz parte, não que isso também não
apareça. Porém, o estudo dos gêneros literários parece ser tão eficiente em explicar
por que um determinado texto pertence a um determinado gênero e não a outro do
que em somente defender sua classificação sem comparar também suas
diferenças, além das semelhanças com outros textos. Os gêneros literários têm sido
discutidos desde a Antiguidade, porém, nos dias de hoje, o que se tem percebido é
que, embora sejam caracterizados por elementos considerados “genéricos”, isso
não significa que esses elementos sejam regras fixas e imutáveis, tanto pela história
como pela liberdade de criação individual. Há um conjunto de características que
distinguem o texto literário do texto não literário. E dessas características, podemos
observar a liberdade em relação ao uso da linguagem, a possibilidade de criação
poética, a subjetividade e os múltiplos sentidos. Além disso, o texto literário
dificilmente apresentará uma função prática, mas será algo mais relacionado à
possibilidade de diálogo entre o texto e seu receptor, de acordo com a visão de
mundo que esse último apresenta.
Identificando os gêneros lírico e dramático
O gênero lírico
Leia o poema a seguir, de autoria de Vinícius de Moraes:
Um poema acentuadamente lírico
Apavorado acordo, em treva. O luar
É como o espectro do meu sonho em mim
E sem destino, e louco, sou o mar
Patético, sonâmbulo e sem fim.
Desço da noite, envolto em sono; e os braços
Como ímãs, atraio o firmamento
Enquanto os bruxos, velhos e devassos
Assoviam de mim na voz do vento.
Sou o mar! Sou o mar! Meu corpo informe
Sem dimensão e sem razão me leva
Para o silêncio onde o Silêncio dorme
Enorme. E como o mar dentro da treva
Num constante arremesso largo e aflito
Eu me despedaço em vão contra o infinito.
(MORAES, 1985, p. 1)
Visualmente, o poema de Vinícius de Moraes é um soneto, pois é formado por
quatro estrofes, sendo que a primeira e a segunda possuem quatro versos cada; a
terceira e a quarta estrofes possuem três versos cada. Há, também, o esquema de
rimas externas, caracterizado por: A-B-A-B; C-D-C-D; E-F-E; F-G-G.
As rimas externas são aquelas que aparecem no final dos versos, sendo que cada
sílaba tônica da última palavra é indicada por uma letra do alfabeto, e ao repetir-se o
som, repete-se a letra indicativa. No caso do poema, as letras “A”, por exemplo,
correspondem a “luar” e “o mar”; as letras “B”, correspondem a “em mim” e “sem
fim”, e assim, sucessivamente.
No soneto de Vinícius de Moraes, a um eu, uma voz que fala no poema. Essa voz
apresenta angústia, solidão, e um traço importante: fusão entre o sujeito e o objeto,
o que se percebe em versos como “[...] sou o mar”. Percebemos a presença do
sujeito lírico não apenas pela utilização do pronome “eu”, ou pela flexão dos verbos
na 1ª pessoa do singular, mas também pela forma como ele se projeta nos arranjos
linguísticos durante todo o poema. Além disso, a emoção lírica no texto é percebida
pela repetição constante da conjunção coordenativa aditiva e, o que impede uma
conexão lógica. O esquema de rimas externas, abordado anteriormente, confere ao
poema um tom de musicalidade, caracterizando o caráter emocional do texto. Entre
o quinto e o sexto versos, temos uma quebra da linearidade frasal, com o trecho
“[...] e os braços”, o que torna as ideias incompletas, caracterizando o que se chama
de enjambement, caracterizando, também, uma mímesis de um estado afetivo.
Além disso, há a presença de uma disposição anímica eliminando os
distanciamentos entre as coisas, por meio do estado afetivo, e os recursos sonoros
criam uma unidade de significação difícil de ser alterada.
Em poucas linhas fizemos a análise literária de um poema. Agora, passaremos a
discutir alguns elementos fundamentais que constituem o gênero lírico. Antes de
mais nada, um detalhe histórico: o gênero lírico surgiu na Grécia Antiga, como uma
forma de manifestação em verso para expressar diferentes emoções da esfera
humana. Seu nome está associado ao instrumento musical que acompanhava as
declamações: a lira. Até boa parte da Idade Média, poesia e música não eram
entendidos como elementos separados, sendo indissociável a utilização da melodia
durante as declamações. Somente a partir do Renascimento Cultural, no período
literário conhecido como Humanismo, começa haver uma separação maior entre
essas duas artes.
Ao gênero lírico, em grande medida, pertencem os poemas nas suas mais variadas
formas, o que não impede – obviamente – a pertença de outros gêneros textuais,
desde que apresentem a predominância das marcas do gênero. Da mesma forma,
como vimos no capítulo anterior, há uma diferença entre poesia e poema. A poesia
é um conjunto de características e técnicas de elaboração artística; o poema é uma
das manifestações concretas da poesia.
Um dos primeiros elementos a se observar na análise do poema é sua estrutura
visual (número de estrofes e de versos, disposição visual etc). Essa observação é
importante para que se estabeleça relações de sentido entre o texto e sua forma
visual. Essa análise é também conhecida como a análise do nível gráfico do poema,
ou seja, da forma como ele está escrito. Nessa análise, também é importante
observar o título, pois ele serve como uma espécie de slogan do poema, interferindo
em sua significação. Tanto a disposição das palavras quanto os espaços em branco
são importantes para essa análise.
Após a “leitura visual” do poema, passamos para a análise do nível fônico do
poema, observando os elementos de versificação, as repetições, a acentuação, a
entonação etc. Podemos dividir essa análise nas seguintes verificações:
● Construção métrica: de que forma os versos estão constituídos? Há quantas
sílabas ortográficas em cada verso?
● Acentuação: de que forma está disposta a organização das sílabas tônicas
nos versos? Lembre-se que as sílabas tônicas conferem a musicalidade ao
poema, e nem sempre essas sílabas estão de acordo com a linguagem
denotativa;
● Figuras sonoras: de que modos estão organizadas as rimas do poema?
Estão no final dos versos (externas) ou aparecem em seu interior (internas)?
São feitas por meio de consoantes (aliteração) ou de vogais (assonância)?
● Enjambements: há “quebras” de sentido na linearidade do texto? Como elas
interferem na compreensão geral do poema?
Outro nível relevante a ser considerado no poema é o nível lexical. De que forma o
sentido denotativo das palavras constitui sua literariedade? Há a presença de
metaplasmos (desvios morfológicos), metataxes (desvios sintáticos) ou
metassememas (desvios semânticos) da linguagem poéticaem relação ao sentido
denotativo das palavras? De que forma ocorre a escolha lexical no texto? Se dá
mais pela sonoridade ou pela construção semântica? Etc...
No nível sintático, aprofunda-se a análise dos desvios sintáticos na construção do
texto.
No nível semântico, procura-se observar a estrutura de significação das palavras no
texto, por meio das semelhanças e diferenças entre o sentido do texto e o sentido
literal das palavras. Procura-se observar, também, quais figuras de sentido estão
sendo construídas ao longo do poema.
Além dessas análises, há algumas formas fixas de poemas que merecem ser
mencionadas:
● Hino: Geralmente, trata-se de um poema para canto coral, carregado de
valoração, caracterizado por sua ligação com a música;
● Ode: A ode, assim como o hino, é um poema carregado de musicalidade,
porém, interpretado apenas por um cantor, acompanhado de um instrumento
musical. Apresenta tons mais graves em relação ao hino e aos demais
poemas;
● Elegia: Poema que se apresenta como um canto grave, com a finalidade de
estimular a reflexão sobre os sentimentos mais profundos;
● Canção: Poesia relacionada diretamente à música e ao canto. Seu sentido se
completa com esses dois elementos;
● Cantiga: Semelhante à canção, associa-se ao canto, à música e também à
dança. Eram muito populares durante a Idade Média;
● Soneto: poema composto por quatro estrofes, sendo a primeira e a segunda
com quatro versos cada uma, e a terceira e a quarta estrofes com três versos
cada uma, obedecendo a um padrão de rimas externas e encerrando com
uma conclusão muitas vezes inesperada, denominada “chave de ouro”;
● Balada: forma poética surgida durante a Idade Média, composta para ser
musicada e cantada com acompanhamento coreográfico em festas culturais;
● Haicai: poema de origem japonesa, com forma breve e sentenciosa, que
busca correspondência entre o som e o sentido das palavras, por meio da
construção de onomatopeias e paranomásias.
É importante ressaltar que além dessas, há outras formas poéticas, fixas (rondó,
rondel, vilancete, redondilha, madrigal, epigrama, bucólica, caligrama, epístola, lira,
oitava, panegírico, parábola, quadra, rapsódia, sátira, sextina, terceto etc.) e livres
(sem rimas e sem métrica versal fixa) que podem ser aprendidas e exploradas.
Aqui, apresentamos algumas das mais importantes.
Para complementar seus estudos, sugerimos que você assista ao vídeo “Gênero
Lírico – Brasil Escola”
O gênero dramático
Observe o trecho a seguir:
JOÃO GRILO – Padre João! Padre João!
PADRE (aparecendo na igreja) – Que há? Que gritaria é essa?
Fala afetadamente com aquela pronúncia e aquele estilo que Leon Bloy chamava
“sacertotais”.
CHICÓ – Mandaram avisar para o senhor não sair, porque vem uma pessoa aqui
trazer um cachorro que está se ultimando para o senhor benzer.
PADRE – Para eu benzer?
CHICÓ – Sim.
PADRE – Com desprezo – Um cachorro?
CHICÓ – Sim.
PADRE – Que maluquice! Que besteira!
JOÃO GRILO – Cansei de dizer a ele que o senhor não benzia. Benze porque
benze, vim com ele.
PADRE – Não benzo de jeito nenhum.
CHICÓ – Mas padre, não vejo nada de mal em se benzer o bicho.
JOÃO GRILO – No dia em que chegou o motor novo do Major Antônio Morais o
senhor não benzeu?
PADRE – Motor é diferente, é uma coisa que todo mundo benze. Cachorro é que eu
nunca ouvi falar.
CHICÓ – Eu acho cachorro uma coisa muito melhor do que motor.
PADRE – É, mas quem vai ficar engraçado sou eu, benzendo o cachorro. Benzer
motor é fácil, todo mundo faz isso, mas benzer cachorro?
JOÃO GRILO – É, Chicó, o padre tem razão... Quem vai ficar engraçado é ele e
uma coisa é benzer o motor do Major Antônio Morais e outra é benzer o cachorro do
Major Antônio Morais.
PADRE – Mão em concha no ouvido – Como?
JOÃO GRILO – É. Eu não queria vir, com medo de que o senhor se zangasse, mas
o Major é rico e poderoso e eu trabalho na mina dele. Com medo de perder meu
emprego, fui forçado a obedecer, mas disse a Chicó: o padre vai se zangar.
PADRE – desfazendo-se em sorrisos – Zangar nada, João! Quem é um ministro de
Deus para ter direito de se zangar? Falei por falar, mas também vocês não tinham
dito de quem era o cachorro.
(SUASSUNA, 1972, p. 31-4.)
O trecho anteriormente apresentado, do Auto da compadecida, ilustra um texto do
gênero dramático. Observa-se que o trecho se manifesta quase em sua totalidade
por meio de diálogo, sem interferência direta de um narrador. Há, apenas, alguns
comentários grifados, para darem uma ideia da entonação e da emoção transmitida
no diálogo. Além disso, o texto tem uma progressão de ações, e ficamos curiosos
para saber o que acontecerá depois.
Originalmente, a palavra “drama” vem do grego dráo e significa “fazer”, “ação”. E
essa é uma das mais notáveis características do gênero dramático: o texto só se
“completa” durante a encenação. Por causa dessa característica tão peculiar, alguns
estudiosos chegam, inclusive, a defender o gênero dramático como uma arte
separada da literatura.
De modo geral, o teatro (ou o gênero dramático) envolve uma gama de elementos
um pouco maior do que os gêneros narrativo e lírico, dentre os quais podemos citar:
imagens visuais, sons, músicas, ritmos e arte pictórica, entre outros. O acerto da
peça teatral está no equilíbrio entre o texto, a dramatização e os demais elementos
que o constituem.
No drama, reúnem-se a objetividade do gênero épico e a subjetividade do gênero
lírico. A linguagem da peça teatral é peculiar em relação aos demais gêneros, sendo
caracterizada por um conflito (choque entre os objetivos das personagens) que vai
sendo desenvolvido por meio da linguagem dialógica. Ao mesmo tempo, o tempo do
gênero dramático é o agora. A seguir, apresentaremos alguns elementos
fundamentais para a constituição do gênero dramático:
● Texto: também chamado de script, o texto teatral é o elemento literário que
constitui o drama. Trata-se de um conjunto de falas e de apontamentos os
quais serão representadas pelos atores ao público. É formado pelas ações,
pelos personagens, pelas indicações para o cenário e pelas reflexões das
personagens. Semelhante ao gênero narrativo, o texto dramático apresenta
os seguintes elementos: exposição da situação inicial, o conflito, o
desenvolvimento, o clímax e o desenlace (esses elementos serão explicados
mais detalhadamente no próximo capítulo);
● Personagens: os personagens são aqueles que, interpretados por atores, dão
vida ao drama. São seres ficcionais, criados para exercerem determinadas
funções dentro da peça;
● Atores: os atores são os seres reais que, por meio do estudo dos roteiros e
da interpretação, dão vida aos personagens;
● Público: se há todo o investimento para que a peça seja encenada, essa
encenação, por sua vez, é realizada para ser mostrada para, talvez, o
elemento mais importante do teatro: o público, que é constituído por aqueles
que assistem à peça. A relação palco-público é fundamental para o sucesso
ou o fracasso do drama;
● Cenografia: corresponde ao cenário e seu responsável (cenógrafo), que
colaboram nos aspectos visuais da peça;
● Sonoplastia: a sonoplastia e seu responsável (sonoplasta) estão ligados a
todos os aspectos sonoros, musicais e as trilhas que constituem a peça;
● Diretor: Se o dramaturgo é quem escreveu o texto teatral, o diretor é aquele
que “escreve” o espetáculo. É ele que coordena todos os elementos que
compõem a peça e também quem deve ter uma interpretação profunda do
texto, para poder organizar a encenação do início ao fim.
Além dos elementos que constituem o drama, temos as formas dramáticas, dentre
as quais destacamos:
● Tragédia: constitui uma imitação de ações consideradas de caráter elevado,
extensa e com linguagem ornamentada, cujo conteúdo está ligado está ligado
a deuses ou a situações da vida, que levam a consequências fatais;
● Comédia: é uma peça teatral que se caracteriza pelo uso do humor nas artes
cênicas, com o intuito de provocar o público a refletir sobre uma determinada
situação cotidiana;
● Tragicomédia: trata-se de uma mescla de outros gêneros teatrais,tais como
tragédia, comédia, farsa, melodrama etc.;
● Farsa: peça teatral que mistura comédia, centrada em quadros da vida real,
com o objetivo de despertar o ridículo, provocando o riso como forma de
escape;
● Auto: peça teatral de caráter religioso.
Além dessas formas dramáticas, há outras, tais como ópera, mimo, momo,
vaudeville e marionetes. Procuramos, aqui, destacar as mais relevantes.
Para complementar seus estudos, sugerimos que você assista ao vídeo “Gênero
Dramático – Brasil Escola”,
Resumindo: Você deve ter aprendido que o gênero lírico é caracterizado pela
expressão dos sentimentos individuais, tendo como sua materialização mais comum
o poema, em suas mais variadas formas. A poesia é um elemento que constitui e
torna as obras artísticas, e o poema é uma forma de manifestação da poesia. Para
análise do poema, há que se considerar seus aspectos visuais, seus aspectos
linguísticos e seus aspectos semânticos. Já o gênero dramático é caracterizado pela
ação. Ele só se completa por meio da atuação das personagens. Como texto
literário, temos o script, que é a indicação dos diálogos e falas dos personagens, de
observações acerca da entonação e do cenário, dentre outros.
Identificando os elementos do gênero narrativo
Estamos entendendo o gênero narrativo como aquele cujos textos se caracterizam
por uma história imaginária, cuja ação dos personagens, dada num tempo e num
espaço, constitui o desenvolvimento da trama.
Observe o texto abaixo:
Pouco a pouco a cólera diminuiu, e sinhá Vitória, embalando as crianças, enjoou-se
da cadela achacada, gargarejou muxoxos e nomes feios. Bicho nojento, babão.
Inconveniência deixar cachorro doido solto em casa. Mas compreendia que estava
sendo severa demais, achava difícil Baleia endoidecer e lamentava que o marido
não houvesse esperado mais um dia para ver se realmente a execução era
indispensável.
Nesse momento Fabiano andava no copiar, batendo castanholas com os dedos.
Sinhá Vitória encolhei o pescoço e tentou encostar os ombros às orelhas. Como isto
era impossível, levantou os braços e, sem largar o filho, conseguiu ocultar um
pedaço da cabeça.
Fabiano percorreu o alpendre, olhando a baraúna e as porteiras, açulando um cão
invisível contra animais invisíveis:
- Ecô! Ecô!
Em seguida entrou na sala, atravessou o corredor e chegou à janela baixa da
cozinha. Examinou o terreiro, viu Baleia coçando-se a esfregar as peladuras no pé
de turco, levou a espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono desconfiada,
enroscou-se no tronco e foi desviando, até ficar no outro lado da árvore, agachada e
arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido com esta manobra,
Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se no
mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o animal estivesse de
frente e não apresentasse bom alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar às
catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos
traseiros e inutilizou uma perna de Baleia, que se pôs a latir desesperadamente.
Ouvindo os tiros e os latidos, sinhá Vitória pegouse à Virgem Maria e os meninos
rolaram na cama, chorando alto. Fabiano recolheu-se.
E Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho da esquerda,
passou rente aos craveiros e às panelas de losna, meteu-se por um buraco da cerca
e ganhou o pátio, correndo em três pés. Dirigiu-se ao copiar, mas temeu encontrar
Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras. Demorou-se aí um instante, meio
desorientada, saiu depois sem destino, aos pulos.
Defronte ao carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue,
andou como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do
corpo. Quis recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve medo da roda.
Encaminou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia uma barroca macia e
funda. Gostava de espojar-se ali: cobria-se de poeira, evitava as moscas e os
mosquitos, e quando se levantava, tinha folhas secas e gravetos colados às feridas,
era um bicho diferente dos outros.
Caiu antes de alcançar essa cova arrendada. Tentou erguer-se, endireitou a cabeça
e estirou as pernas dianteiras, mas o resto do corpo ficou deitado de banda.
[...]
Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queijos desgovernados, a língua
pendente e insensível. Não sabia o que tinha sucedido. O estrondo, a pancada que
recebera no quarto e a viagem difícil do barreiro ao fim do pátio desvaneciam-se no
seu espírito.
Provavelmente estava na cozinha, entre as pedras que serviam de trempe. Antes de
se deitar, sinhá Vitória retirava dali os carvões e a cinza, varria com um molho de
vassourinha o chão queimado, e aquilo ficava um bom lugar para cachorro
descansar. O calor afugentava as pulgas, a terra se amaciava. E, findos os cochilos,
numerosos preás corriam e saltavam, um formigueiro invadia a cozinha.
A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do peito para trás
era tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava,
espinhos de mandaracu penetravam na carne meio comida pela doença.
Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente
sinhá Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo.
Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as
mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam
com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de
preás, gordos, enormes.
(RAMOS, 1981, p. 86-91).
Esse trecho do clássico de Graciliano Ramos, além de triste, é uma obra admirável
da literatura brasileira. Nele, percebemos claramente a progressão dos fatos, e o
envolvimento das personagens (Baleia, Fabiano, sinhá Vitória e as crianças) no
desenrolar da narrativa. Baleia, a cachorra, estava doente, e Fabiano decidiu
matá-la. O clímax do trecho é o momento em que Fabiano consegue atingi-la, o que
ocasionou a morte de Baleia, descrita pelo narrador de forma singular. Isso tudo
aconteceu nas imediações da casa de Fabiano, e o narrador conhecia detalhes do
interior psicológico até de Baleia.
Esse trecho mostra claramente a presença de todos os elementos da narrativa, os
quais veremos a seguir.
Elementos da narrativa
Chamamos de elementos da narrativa todos os itens que são imprescindíveis para a
existência do gênero narrativo. Os elementos são:
● Narrador: o narrador não é o autor da história, é uma voz fictícia que discorre
os fatos contados. Quando o narrador participa do enredo é chamado de
narrador-personagem; quando apenas descreve o que vê, sabendo inclusive
o que os personagens pensam e sentem, é chamado de narrador-onisciente;
se os descreve apenas pela visão externa que possui desses, é denominado
narrador-testemunha, ou narrador-observador;
● Foco narrativo: de acordo com a visão que o narrador tem dos fatos,
podemos dizer que temos o foco narrativo em 1ª pessoa (quando o narrador
é um dos personagens) e em 3ª pessoa (quando o narrador não viveu,
apenas viu os fatos);
● Enredo: é o conjunto de fatos que se sucedem, dividindo-se em situação
inicial (apresentação do enredo e dos personagens), nó (espécie de
“problema” que movimenta os personagens ao longo da trama), clímax
(momento de maior tensão da narrativa, a partir do qual os fatos se
encaminharão para uma resolução) e desfecho (momento em que o nó é
resolvido, independente da forma como isso acontecer;
● Personagens: seres ficcionais que “vivem” enquanto a obra está sendo lida,
podendo incorporar a fisionomia humana, animal, de objetos, vegetal ou
mesmo de seres e elementos abstratos. Em geral, uma narrativa apresenta
um personagem afetado pelo nó e que tenta solucioná-lo (protagonista), um
personagem causador do nó (antagonista) e os demais personagens
(coadjuvantes). Além disso, o envolvimento dos personagens no enredo por
ser denominado plano (quando não há narrativa sobre seus sentimentos e
pensamentos, ficando o personagem numa base mais superficial) ou
profundo (quandoo personagem é mostrado em todas as suas dimensões);
● Espaço: é o lugar onde se desenrola a narrativa. Pode ser físico ou
psicológico;
● Tempo: trata-se da cronologia da narrativa, que pode se desenvolver num
espaço histórico-temporal ou psicológico.
Todos os elementos básicos apresentados são possíveis de serem analisados
dentro de um texto narrativo.
Você pode revisar noções básicas dos elementos da narrativa por meio do vídeo
“Elementos da narrativa – Brasil Escola”, disponível em:
Diferenças entre o gênero épico e o gênero narrativo
Abrimos esse tópico com o intuito de descrever as diferenças entre os gêneros
épico e narrativo, uma vez que alguns autores utilizam a denominação épico para
nomear textos narrativos, ou ainda a denominação “gênero épico-narrativo”.
A nomenclatura “épico” remonta a Grécia antiga, quando a epopeia era o texto
característico desse gênero. Somente séculos mais tarde, outras modalidades
narrativas foram surgindo.
Até então, o gênero épico era compreendido como aquele cujos textos eram
narrativas extensas, relacionadas a heróis, semideuses e deuses, elaboradas numa
linguagem versificada e com o intuito de engrandecer os feitos heroicos de um povo.
Cabe lembrar que, no gênero épico, a narrativa era escrita em versos.
O gênero narrativo, por sua vez, foi sendo caracterizado por formas textuais
diferentes da epopeia, sendo uma dessas formas a linguagem em prosa. Os
primeiros textos com essa característica surgiram no final do século XVIII, quando o
Romantismo entrou em voga.
Para retomar seus estudos sobre as características do gênero épico, você pode
acessar o vídeo “Gênero Épico- Brasil Escola”, disponível em:
Formas da narrativa
Veremos, a seguir, algumas das principais formas narrativas. Considerando a
multiplicidade de gêneros textuais narrativos, abordaremos, a seguir, alguns dos
mais comuns:
● Romance: trata-se de uma narrativa em prosa de maior extensão. As
personagens vivem seus acontecimentos num determinado espaço e tempo,
sendo possível que esses acontecimentos se desdobram em diversas
situações. Além disso, pela extensão, os romances ambientalizam com
riqueza de detalhes perfis psicológicos das personagens, ambientes e
épocas;
● Conto: trata-se de uma narrativa prosaica bem menos extensa do que o
romance, abrangendo maior rapidez e os elementos da narrativa de forma
mais sucinta, porém, também rigorosa na progressão do enredo. Possui
menos personagens do que o romance, assim como maior rapidez em sua
descrição;
● Crônica: narrativa prosaica, bem mais enxuta de detalhes, em relação ao
romance e ao conto. Aborda temas mais simples do cotidiano, criticando a
realidade social, política ou cultural, com humor;
● Novela: a novela se situa entre o romance e o conto, sendo menor que o
primeiro e maior que o segundo. Caracterizase pela dinâmica de vários
enredos que se interligam numa trama maior;
● Fábula: caracteriza-se pela presença de fatos fantásticos, podendo ser
narrada em prosa ou em verso. Seus protagonistas, em geral, são animais e
seu enredo possui caráter didático, por meio da moral;
● Ensaio: alguns estudiosos chegam a defender o ensaio literário como um
gênero descolado do narrativo, porém, ele apresenta os elementos da
narrativa, e se caracteriza pela apresentação de um ponto de vista impessoal
sobre um determinado assunto;
● Autobiografia: tipo de narrativa na qual o autor é o próprio personagem,
narrando fatos reais a partir de seu próprio ponto de vista. Há também as
biografias narradas por terceiros;
● Anedota: a anedota se trata de um pequeno relato de um acontecimento,
geralmente com humor. Fora da tradição oral, encontra-se inserida em outros
textos literários;
● Apólogo: história curta sobre objetos inanimados, caracterizada por uma
moral explícita ou implícita;
● Provérbio: saber popular, apresentado sob a forma de uma narrativa mínima.
O gênero narrativo pode apresentar diversas formas, mas quase todas elas
apresentam os elementos da narrativa em sua composição. Além disso, o gênero
narrativo geralmente se ambientaliza no tempo passado, tendo em sua composição
verbos de ação flexionados, uma vez que a narração pressupõe ações.
Outro detalhe importante é que a definição do gênero textual narrativo passa pela
identificação de detalhes como tipo e profundidade do enredo, tipos de
personagens, forma como o conteúdo é abordado, entre outros. Por isso, é muito
importante estar atento a todos esses elementos durante a análise.
Para retomar seus conhecimentos, você pode acessar esses dois vídeos a seguir:
“Vamos falar de gêneros narrativos?” e “Os elementos da narrativa”
Resumindo: Você deve ter aprendido que o gênero narrativo se caracteriza pela
atuação dos personagens dentro de um determinado tempo e espaço, fazendo com
que a trama evolua. A diferenciação entre os gêneros narrativo e épico está na
forma como o texto é narrado, e no gênero textual que o compõe: enquanto no
gênero épico as narrativas são realizadas em verso e seu gênero textual é a
epopeia, no gênero narrativo, a sequência dos fatos, em geral, é contada em prosa,
podendo o texto ter a forma de um conto, de um romance, de uma crônica, de uma
fábula etc. O gênero textual narrativo é definido pela observação de alguns
elementos básicos, tais como: profundidade narrativa, número de personagens,
enredos múltiplos ou único, conteúdo etc.
Conhecendo a natureza do fenômeno literário
Podemos considerar o fenômeno literário como algo situado historicamente e,
portanto, em constante mutação. Há diversos fatores que interferem no fenômeno
literário, tais como:
● História: os acontecimentos da história podem intervir no fenômeno literário,
alterando tanto as concepções de literatura, como o foco dos textos literários
e sua estrutura;
● Arte: as concepções de arte e estética vão sendo redefinidas historicamente,
e isso interfere no fenômeno literário, especialmente na questão do que seria
mais antiquado e mais atual, em se tratando de formas do texto literário;
Arte (do latim ars) é o conceito que engloba todas as criações feitas pelo ser
humano para expressar uma visão sensível sobre o mundo, real ou imaginário.
Através de recursos plásticos, linguísticos ou sonoros, a arte permite expressar
ideias, emoções, percepções e sensações. A história indica que, com o
aparecimento do Homo Sapiens, a arte tinha uma função ritual e mágico-religiosa,
que mudava com o tempo. De qualquer forma, a definição de arte varia de acordo
com o tempo e a cultura.
Com o Renascimento italiano, no final do século XV, começou a distinguir entre
artesanato e belas artes. O artesão é aquele que se dedica a produzir várias obras,
enquanto o artista é o criador de obras únicas.
Ideologia: o texto literário, em sua concepção, não é neutro no que se refere aos
modos de pensar das sociedades. Deste modo, é possível afirmar que
determinadas correntes ideológicas interferem diretamente na criação literária,
desde seu conteúdo, sua estética e sua visão sobre os acontecimentos;
Figura 1: Arte
Leitor: o leitor é um outro elemento que interfere no fenômeno literário, uma vez que
podemos considerar cada leitor único. Assim, conforme a visão de mundo de cada
leitor, a obra vai ganhando novos sentidos, novas leituras se, por vezes sendo
prestigiada, por vezes sendo rejeitada.
A leitura consiste basicamente em quatro etapas: a visualização (um processo
descontínuo, pois o olhar não desliza continuamente sobre as palavras), a fonação
(a articulação oral, consciente ou inconsciente, através da qual as informações vai
da visão para a fala), a audição (a informação passa para o ouvido) e a cerração (a
informação chega ao cérebro e culmina o processo de compreensão).
Existem várias técnicas ao iniciar uma leitura, que permitem adaptar a maneira
como você lê ao objetivo que você deseja alcançar o leitor. Geralmente, ela busca
maximizar a velocidade ou a compreensão do texto. Como esses objetivos são
contrários e se enfrentam, a leitura ideal implica um equilíbrio entre os dois.
Figura 2: LeitorOs lugares do autor e do leitor na criação literária
Se não há texto literário sem um autor, também podemos dizer que não há literatura
sem um leitor. A relação entre esses dois elementos é fundamental para que um
determinado texto se constitua como literário.
A criação, na literatura, pode ser livre, individual e subjetiva, submetida à vontade do
autor; porém, não é possível que esse autor desconsidere um possível leitor para
sua obra; por isso, há uma relação complexa entre aquele que escreve e aquele que
lê, uma vez que ambas as ações são subjetivas.
A leitura oferece muitas vantagens para quem a considera um hábito essencial em
suas vidas. Entre algumas das riquezas que se produz, estão o enriquecimento do
universo interno e o entendimento de outras realidades, a aquisição de
conhecimentos que podem nos servir, a melhoria de nossa capacidade de
comunicação (principalmente se for feita uma leitura oral) e a colaboração com o
desenvolvimento, da capacidade de analisar, resolver problemas e associações.
Além disso, não devemos esquecer que é uma fonte de entretenimento adequada
para todas as idades, sexos e status social. O segredo de ser apaixonado pela
leitura está em saber como encontrar o que se adapta aos nossos desejos,
interesses e necessidades.
Figura 3: Literatura é amor
Nesse exercício entre escrita e leitura, o texto literário pode atingir sentidos
diferentes daqueles esperados pelo escritor, e também surpreender o leitor em
relação às diferentes formas de interpretação.
Também, sendo a literatura uma arte que se utiliza da linguagem verbal, é, portanto,
um sistema semântico, cuja conotação se vincula à questão das diferenças sociais.
Deste modo, também se pode afirmar que só há literatura onde há um povo, pois o
fenômeno literário, além dos elementos anteriormente mencionados, está vinculado
também ao desenvolvimento das culturas.
Figura 4: Desenvolvimento das culturas
Sua matéria, portanto, é cultural, pois o autor retira de seu mundo elementos que
buscam representar totalidades coesivas que possam alcançar os diferentes tipos
de leitores.
Podemos dizer, também, que o fenômeno literário se constitui de uma maneira bem
singular, abrangendo um emaranhado de características definidas como
literariedade. É a literariedade, por sua vez, que nos permite diferenciar textos
literários e não-literários, conforme já abordamos.
O fenômeno literário, embora se utilize das bases culturais da linguagem,
ressignifica-se, dando a elas outras formas e outros sentidos, diferenciando a
linguagem literária da literal, ou a conotação da denotação. Isso é importante,
porque a literatura não tem o compromisso de estabelecer padrões de linguagem,
como muitos gramáticos chegaram a afirmar, mas criar outras possibilidades
linguísticas que diferenciem o real do ficcional. Observe o texto a seguir:
Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na
cama transformado num gigantesco inseto. Estava deitado sobre o dorso, tão duro
que parecia revestido de metal, e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou o
arredondado ventre castanho dividido em duros segmentos arqueados, sobre o qual
a colcha dificilmente mantinha a posição e estava a ponto de escorregar.
Comparadas com o resto do corpo, as inúmeras pernas, que eram miseravelmente
finas, agitavam-se desesperadamente diante dos seus olhos.
Que me aconteceu? – pensou. Não era nenhum sonho. O quarto, um vulgar quarto
humano, bastante acanhado, ali estava, como de costume, entre as quatro paredes
que lhe eram familiares. Por cima da mesa, onde estava deitado, desembrulhada e
em completa desordem, uma série de amostras de roupas: Samsa era
caixeiro-viajante, estava pendurada a fotografia que recentemente recortara de uma
revista ilustrada e colocara numa bonita moldura dourada.
Mostrava uma senhora, de chapéu e estola de peles, rigidamente sentada, ao
estender ao espectador um enorme regalo de peles, onde o antebraço sumia!
Gregório desviou então a vista para a janela e deu com o céu nublado – ouviamse
os pingos de chuva a baterem na calha da janela e isso o fez sentir-se bastante
melancólico. Não seria melhor dormir um pouco e esquecer aquele delírio? -
cogitou.
Mas era impossível, estava habituado a dormir para o lado direito e, na presente
situação, não podia virar-se. Por mais que se esforçasse por inclinar o corpo para a
direita, tornava sempre a rebolar, ficando de costas. Tentou, pelo menos, cem
vezes, fechando os olhos, para evitar ver as pernas a debaterem-se, e só desistiu
quando começou a sentir no flanco uma ligeira dor entorpecida que nunca antes
experimentara.
Oh, meu Deus, pensou, que trabalho tão cansativo escolhi! Viajar, dia sim, dia não.
É um trabalho muito mais irritante do que o trabalho do escritório propriamente dito,
e ainda por cima há ainda o desconforto de andar sempre a viajar, preocupado com
as ligações dos trens, com a cama e com as refeições irregulares, com
conhecimentos casuais, que são sempre novos e nunca se tornam amigos íntimos.
Diabos levem tudo isto! Sentiu uma leve comichão na barriga; arrastou-se
lentamente sobre as costas, — mais para cima na cama, de modo a conseguir
mexer mais facilmente a cabeça, identificou o local da comichão, que estava
rodeado de uma série de pequenas manchas brancas cuja natureza não
compreendeu no momento, e fez menção de tocar lá com uma perna, mas
imediatamente a retirou, pois, ao seu contato, sentiu-se percorrido por um arrepio
gela- do.
Voltou a deixar-se escorregar para a posição inicial. Isto de levantar cedo, pensou,
deixa a pessoa estúpida. Um homem necessita de sono. Há outros comerciantes
que vivem como mulheres de harém. Por exemplo, quando volto para o hotel, de
manhã, para tomar nota das encomendas que tenho, esses se limitam a sentar-se à
mesa para o pequeno almoço.
Eu que tentasse sequer fazer isso com o meu patrão: era logo despedido. De
qualquer maneira, era, capaz de ser bom para mim — quem sabe? Se não tivesse
de me aguentar, por causa dos meus pais, há muito tempo que me teria despedido;
iria ter com o patrão e lhe falar exatamente o que penso dele. Havia de cair ao
comprido em cima da secretária! Também é um hábito esquisito, esse de se sentar
a uma secretária em plano elevado e falar para baixo para os empregados, tanto
mais que eles têm de aproximar-se bastante, porque o patrão é ruim de ouvido.
Bem, ainda há uma esperança; depois de ter economizado o suficiente para pagar o
que os meus pais lhe devem — o que deve levar outros cinco ou seis anos —,
faço-o, com certeza. Nessa altura, vou me libertar completamente. Mas, para agora,
o melhor é me levantar, porque o meu trem parte às cinco. [...]
(KAFKA, 1915, p. 1)
O trecho do texto dirigido exemplifica o que estamos abordando acerca do
fenômeno literário: Samsa é um personagem que representa um homem comum do
mundo real, que trabalha, dorme e pode ter pesadelos. No entanto, algo de
extraordinário aconteceu com ele, pois ao acordar, percebeu que estava
transformado num grande inseto! Esse item, além de transportar a obra para um
realismo fantástico, também se constitui num divisor de águas entre a linguagem
conotativa e denotativa, marcando a literariedade do texto.
Figura 5: Ilustração do Samsa
Além disso, pelo que se percebe, o personagem está inserido dentro de uma cultura
possível, a cultura moderna ou capitalista/industrial. Esse contato do texto literário
com o mundo real, transportado para a ficção, cria diferentes expectativas no leitor,
levando-o a perceber – inclusive – os sentimentos do personagem e transportar-se
para dentro da história.
Resumindo: Você deve ter aprendido que o fenômeno literário é histórico, social e
cultural, relacionado diretamente à visão de mundo construída dentro de uma dada
cultura e também constituído nas possíveis relações subjetivas, existentes entre
autor e leitor. O fenômeno literário é marcado pela transformação da linguagem
denotativa em conotativa, de modo a recriar a realidade, mesclando fatos possíveis
e impossíveis. O conjuntodos elementos que constituem o fenômeno literário,
desde os arranjos de linguagem, até a estrutura do texto e seu conteúdo é
conhecido como literariedade. Desse modo, chegamos ao final desta unidade. É
importante que você revise este material, tome nota de suas principais
aprendizagens e principais dúvidas, busque nas indicações de pesquisa leituras e
vídeos que podem contribuir muito nessa etapa! Além disso, ao término desta
unidade, você encontrará as principais referências bibliográficas utilizadas na
elaboração dessa obra, que podem ser consultadas. Não desanime nas dificuldades
de estudo, mas faça com que essas dificuldades de hoje venham ajudá-lo a se
tornar um estudante e um profissional melhor amanhã! Grande abraço, e até a
próxima!
UNIDADE 3
Explorando a linguagem literária
A literatura e a arte
Não é muito difícil ouvirmos pessoas dizerem não ter gostado de determinado tipo
de livro, quadro ou filme, afirmando coisas do tipo “Acho José de Alencar muito
chato”. “Odeio ver tragédia: de trágica, já basta a vida.” “Como posso gostar se não
entendo?” “Não sei o que a crítica viu nisso, achei péssimo!”
Por que o público em geral não tem, quase sempre, o mesmo gosto dos críticos ou
dos intelectuais? Teriam esses últimos um gosto melhor do que o primeiro?
Há determinados livros de que os alunos só passam a gostar depois que o professor
explica. Outros, ainda, nem chegam a ser explorados. E como fica isso? Gosto se
discute, se aprende? A resposta é “com certeza”: gosto se discute, pode ser
mudado, pode-se aprender a gostar de algo. Tudo é uma questão de treino e de
ambiente.
O arranjo pode mudar as palavras
O que chamamos de “belo artístico” nem sempre é somente aquilo que retrata a
beleza. Qualquer tipo de assunto ou tema pode servir de inspiração para uma obra
de arte, desde que seu autor transmita por meio dela uma emoção.
As palavras estão em nosso mundo, à disposição de qualquer pessoa. O que as
transforma em Arte é o arranjo – a relação nova estabelecida entre elas. Vejamos
um exemplo disso:
Versos íntimos
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
(ANJOS, 2001, p. 61).
Perceba que se mantivermos a noção do belo como um elemento apenas positivo,
jamais perceberemos a beleza desses versos, que se tornam uma obra literária
autêntica pelo choque que o arranjo de palavras nos causa, assim como a
atmosfera de desprezo pela humanidade que ele nos passa.
O escritor serve de antena
A arte possui como matéria-prima a própria vida. O escritor percebe o mundo como
se tivesse antenas. Transmite, comunica, ajuda o leitor a conhecer o outro melhor,
assim como o mundo que o cerca. Por meio da obra literária, o leitor pode conhecer
outras faces do amor, do ódio, da fome, da guerra, da morte etc.
Ao fantasiar a realidade, o artista imagina e elabora uma outra realidade. Ele a imita
e a devolve, na obra, como se fosse nova. Vamos ver como isso acontece?
Soneto de fidelidade
De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vive-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espelhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, a angústia de quem vive,
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama,
Mas que seja infinito enquanto dure.
(MORAES, 2001, p. 101).
Observe, no poema, que o modo como vai se desenrolando o texto, cria um sentido
para fidelidade ao mesmo tempo semelhante com seu significado denotativo, mas
também ampliando seus horizontes. Trata-se da realidade captada pelo autor e
devolvida ao leitor, conforme mencionado anteriormente.
A supra-realidade criada pela arte literária
Conforme o filósofo Aristóteles (384 a 322 a.C.), o ser humano tem como ação
natural imitar, representar, criar imagens, a fim de experimentar o próprio universo.
Assim, a literatura é uma forma de imitação da vida por meio de palavras arranjadas
de tal modo que formam uma espécie de supra-realidade, isto é, uma realidade
paralela. Observe:
Garoto de aluguel
Baby!
Dê-me seu dinheiro que eu quero viver
Dê-me seu relógio que eu quero saber
Quanto tempo falta para lhe esquecer
Quanto vale um homem para amar você
Minha profissão é suja e vulgar
Quero um pagamento para me deitar
E junto com você estrangular meu riso
Dê-me seu amor que dele não preciso!
[...]
Baby!
Nossa relação acaba-se assim
Como um caramelo que chega-se ao fim
Na boca vermelha de uma dama louca
Pague meu dinheiro e vista sua roupa
Deixe a porta aberta quando for saindo
Você vai chorando e eu fico sorrindo
Conte pras amigas que tudo foi mal (tudo foi mal!)
Nada me preocupa de um marginal
[...]
(RAMALHO, 1979, s/d)
Perceba que a forma como as palavras estão arranjadas nessa letra de canção nos
remetem a uma determinada realidade, possível, mas que, trazendo do contexto da
canção para a vida real, nunca existiu.
A elaboração especial das palavras
A literatura se utiliza da palavra escrita, mas nem tudo o que é escrito é literatura. A
linguagem literária, ao contrário das demais formas de linguagens não-artísticas,
tem uma preocupação especial com cada palavra presente num texto. Por esse
motivo, há uma diferença gigantesca entre um texto de um manual de instruções e
um poema; entre uma notícia de jornal e um romance; entre um poema e uma
receita de bolo. Vejamos:
Receita
Ingredientes
2 conflitos de gerações
4 esperanças perdidas
3 litros de sangue fervido
5 sonhos eróticos
2 canções dos Beatles
Modo de preparar
Dissolva os sonhos eróticos nos dois litros de sangue fervido e deixe gelar seu
coração leve a mistura ao fogo adicionando dois conflitos de gerações às
esperanças perdidas corte tudo em pedacinhos e repita com as canções dos
Beatles o mesmo processo usado com os sonhos eróticos mas desta vez deixe
ferver um pouco mais e mexa até dissolver parte do sangue pode ser substituído por
suco de groselha mas os resultados não serão os mesmos sirva o poema simples
ou com ilusões (BEHR, 1982, s.p.)
Perceba que embora o texto tenha a estrutura do gênero textual receita, sua
compreensão só é possível por meio da interpretação subjetiva, e da compreensão
da linguagem literária. A forma como as palavras estão arranjadas no texto, à
primeira vista, lembram uma receita tradicional. Mas, na medida em que vamos
construindo os significados do texto, percebemos que o arranjo de palavras do
poema constitui sua literariedade.
Elementos da obra literária
Veremos, a seguir, dois conceitos importantes para a compreensão da linguagem
literária: denotação e conotação
Denotação
A denotação refere-se ao significado dicionarizado das palavras, àqueles
significados objetivos, considerados não literários. Nesse caso, dizemos que as
palavras estão em seu significado primitivo, que informa o que é objetivo, concreto.
Vejamos:
Bolo de aniversário
Ingredientes
½ xícara (de chá) de manteiga
½ xícara (de chá) de açúcar
2 ovos
1 ½ xícara (de chá) de farinha de trigo
1 colher (de sopa) de fermento em pó
1 pitada de sal
¾ xícara (de chá) de leite
1 colher (de chá) de essência de baunilha
Modo de preparar
Bata a manteiga e o açúcar por 15 minutos. Junte os ovos, um a um, a farinha, o sal
e o fermento peneirados juntos. Reserve. À parte, misture o leite com a baunilha e
acrescente à massa reservada Bata bem. Ponha a massa em uma forma untada.
Leve ao forno brando durante 1 hora. Desinforme. Sirva com o recheio e enfeitado a
gosto.
(MARIA,1985, s.p.)
A receita, por ser um texto objetivo, pode ser seguida e realizada, sem gerar várias
possibilidades de interpretação, dado que os significados das palavras que ela
contém são dicionarizados. A isso, chamamos de linguagem denotativa ou
denotação.
Conotação
Dizemos que um texto apresenta conotação/sentido conotativo/ sentido figurado
quando ele apresenta vários elementos que possibilitam mais de uma interpretação,
além de reações variadas no leitor. O poeta constrói no texto literário a sua imagem
de modo particular, expressando seus sentimentos e emoções. Vejamos:
12.207
Desembarcamos
Os ferros foram lançados
No porto e nos pulsos
Enquanto fomos expulsos
Da vida e do continente
Estando sujeitos ao pulsar
De incríveis sentimentos
E ao sabor
Das ondas e das contingências
Rondamos em redor
Das continências dos guardas.
Depois da viagem
Da travessia e do enjoo
Nos colocaram em uma sala
Tiraram nossa roupa
E nos vestiram
Nos revestiram de oco
E fizeram a chamada.
Ganhei um número de registro
E por um instante
Perdi as esperanças.
(POLARI, 1991, p. 39.)
Esse poema, embora descritivo e baseado em fatos reais (o poeta descreveu sua
entrada no presídio de Ilha Grande, em 1971), conta com uma descrição subjetiva
dos fatos, marcada pela expressão dos sentimentos do autor e pela continuidade
dos sentidos do texto, que devem ser atribuídas pelo leitor.
Textos literários e textos não literários
Por meio da definição de denotação e conotação, podemos, também, estabelecer
os limites entre o texto literário e o texto não literário:
● Texto literário: possui arranjos especiais da estética e da linguagem, a serviço
da intencionalidade comunicativa do autor. São carregados de sentimentos,
sua linguagem é conotativa e a interpretação, para que se efetive, parte da
visão de mundo que o leitor possui. Desse modo, o texto literário possui
significados múltiplos e possibilita mais de uma interpretação;
● Texto não-literário: a estética e a linguagem estão a serviço da objetividade,
regulada pelos jogos sociais e pelos contratos de comunicação do mundo
real. Sua linguagem tende a ser objetiva, e seu sentido, denotativo, a fim de
transmitir informações precisas. Por meio dele, o autor comunica algo,
conforme seus objetivos e sua mensagem, para outros leitores, esperando
que as interpretações dadas ao texto não sejam plurais como ocorre na
literatura.
Resumindo: Você deve ter aprendido que a linguagem literária possui suas próprias
características e marcas, estando a serviço da subjetividade e possuindo
significados múltiplos. A denotação remete ao sentido literal, dicionarizado das
palavras; a conotação, remete ao sentido literário, figurado das palavras. O texto
literário é marcado pela subjetividade, pela conotação e pelo arranjo especial da
linguagem. O texto não literário é objetivo, marcado pelas regras denotativas de
comunicação. Preparado para a próxima competência? Vamos lá!
Conhecendo as figuras de linguagem e de pensamento
As figuras de linguagem
Chamamos de linguagem figurada aquele que tem seu significado transformado,
provocando a alteração do pensamento. Ela é a grande responsável pela
ambiguidade dos textos literários, isto é, a possibilidade de que exista mais de uma
interpretação para o mesmo texto. Quando maior a ambiguidade, maior a
literariedade. E para auxiliar na construção da literariedade, um recurso são as
figuras de linguagem, que podem ser considerados ornamentos linguísticos, desvios
intencionais das convenções da linguagem. Apresentaremos a seguir, as principais
figuras de linguagem:
Comparação
A comparação é uma figura que linguagem muito usada, que consiste na
identificação de dois objetos a partir de uma característica que lhe é comum.
Remete sempre um termo comparado e outro(s) com o(s) qual(quais) se compara.
Observe:
Um índio
Um índio descerá
De uma estrela colorida brilhante
De uma estrela que virá
Numa velocidade estonteante
E pousará no coração do hemisfério sul,
Na América num claro instante
Depois de exterminada
A última nação indígena
E o espírito dos pássaros
Das fontes de água límpida
Mais avançado que a mais avançada das mais
avançadas das tecnologias
Virá
Impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranquilo e infalível como Bruce Lee
Virá que eu vi
[...]
(VELOSO, 1977, s.p.)
O texto apresenta uma estrutura de comparação bem definida, na qual o índio é
comparado, por exemplo, com Muhammad Adi por ambos possuírem impavidez,
com Peri, por ambos serem apaixonantes, e assim, sucessivamente
Metáfora
A metáfora consiste numa figura de sustentação da linguagem literária, sendo uma
comparação que não explícita exatamente qual termo está sendo comparado, nem
o termo comparativo, nem o ponto de comparação. Resulta, apenas, de uma
interseção de ideias. Quando se diz “ela é uma flor”, está-se comparando uma
pessoa a uma flor, porém, a interpretação de qual elemento da flor está sendo
comparado à pessoa é definido pela interpretação do leitor.
Catacrese
Figura de linguagem utilizada como uma espécie de “metáfora forçada”, quando
numa determinada língua não há um nome específico para determinado objeto,
sendo necessário lançar mão de outros já existentes com propriedades
semelhantes. É o caso, por exemplo, de “pé da mesa”, “barriga da perna”, etc.
Metonímia
Consiste na associação de termos e de ideias relacionados por meio da substituição
de um termo por outro. Essa figura, como o significado de sua denominação,
significa “mudança de nome”. Ela pode se manifestar das seguintes maneiras:
1. Substituição da obra pelo autor: “Estou lendo Machado de Assis”;
2. Substituição do conteúdo pelo continente: “Tomar um copo d’água”, ao invés
de tomar a água que está dentro do copo;
3. Substituição do efeito pela causa: “Ganhar a vida”, ao invés de ganhar os
meios de vida;
4. Substituição da causa pelo efeito: “Sua a camisa para viver”, ao invés de
“porque trabalha muito para viver, sua a camisa”;
5. Substituição do todo pela parte, ou da parte pelo todo: “Morar na cidade”, ao
invés de “morar numa parte da cidade”;
6. Substituição do objeto pela matéria: “Não vale um níquel”, ao invés de “não
vale uma moeda feita de níquel”;
7. Substituição do produto pelo lugar ou marca: “Beber Coca-Cola’, ao invés de
“beber um refrigerante fabricado pela Coca-Cola”.
Paranomásia
A paranomásia consiste na realização de um trocadilho feito por meio de um jogo de
palavras conhecidas, como por exemplo, em “uma gata nada borralheira”, um
trocadilho referente ao conto de fadas “A gata borralheira”.
Sinestesia
A sinestesia é caracterizada pelo predomínio dos sentimentos na linguagem. É uma
espécie de metáfora que consiste na utilização da comparação por meio dos
sentidos (audição, visão, paladar, tato, olfato). A expressão “grito áspero” é um
exemplo claro de sinestesia.
Onomatopeia
Consiste na utilização de palavras que tentem imitar os sons não humanos. Trata-se
de uma figura bastante interessante, por tornar a língua mais viva, mais real.
Palavras como “miar”, “miau”, “tic-tac” etc. São exemplos de onomatopeias.
Aliteração
A aliteração ocorre quando se utiliza da repetição de sons consonantais para se dar
ritmo a um enunciado. Trata-se de uma figura bastante comum em poemas, como
ocorre a seguir:
Procissão de pelúcia
Aonde é que vai o praça
Que passa
De peliça,
Com pressa,
Na praça?
Ia pôr uma compressa
Depressa
No rei da Prússia?
Mas o praça
Não sabe o preço
Para ir da praça
À Prússia.
(MEIRELES, 2002, p. 79)
Note que no poema a repetição dos fonemas /p/ e /s/ conferem a ele um ritmo de
movimentação.
Assonância
A assonância também se refere à repetição de sons ao longo de um texto literário,
porém essa repetição se dá por meio da repetição de sons vocálicos, como no
exemplo:
A onda
A onda anda
Aonde anda
A onda?
A onda ainda
Ainda onda
Ainda anda
Aonde?
Aonde?
A onda anda
(BANDEIRA, 1963, s.p.)
A repetição dos sons nasais, representados por /on/ e /in/ conferem a assonância do
poema.
Perífrase ou anatomásiaA perífrase se caracteriza por dar “apelido” às coisas ou pessoas, para expressar,
com ênfase, alguma qualidade desses. Quando se chama o Rio de Janeiro de
“Cidade Maravilhosa” ou Castro Alves de “Poeta dos Escravos”, temos exemplos de
perífrases.
As figuras de pensamento
As figuras de pensamento são aquelas figuras de linguagem que alteram o campo
semântico e o sentido das expressões, conforme veremos a seguir.
Ironia
A ironia consiste em se realizar uma construção que, por meio da linguagem, diga o
contrário do que se pensa. Diz-se, por meio da ironia, o oposto do que se quer dizer,
correndo-se às vezes, o risco de ser mal interpretado pelo interlocutor. Quando se
diz que uma criança mal comportada é um anjo, por exemplo, está-se utilizando da
ironia como recurso de linguagem.
Antítese
É o nome dado à figura de linguagem que consiste na utilização de palavras de
significados antônimos, como amor e ódio, por exemplo. Às vezes, porém, os
termos podem se opor pela forma como são escritos. Mas, sempre se identifica
duas palavras, explícitas, assumindo a posição de antônimas.
Paradoxo
É a denominação que se dá ao resultado de imagens de sentido opostas, colocadas
lado a lado dentro de um texto. A conjunção das imagens possibilita essa
construção. É o caso de dizermos, por exemplo, que embora alguém estivesse
doente, saiu para trabalhar. A ideia embutida nesse enunciado é a de que quem
está doente está impossibilitado de realizar tarefas de trabalho.
Eufemismo
O eufemismo é uma figura que consiste na atenuação de uma mensagem que pode
chocar o destinatário. Essa figura consiste na busca de termos mais brandos, que
tornem o enunciado menos bruto para quem o recebe. É o caso de se usar, por
exemplo, a expressão “virar estrelinha” para se explicar a morte de alguém.
Hipérbole
A hipérbole é um recurso linguístico caracterizado pelo exagero ao longo do
discurso textual. Desejar “milhões de beijos” para alguém é um exemplo dessa
figura de pensamento.
Personificação ou prosopopeia
Figura que ocorre quando se atribui características e qualidades humanas a seres
não humanos ou a objetos. Quando dizemos, por exemplo, que “o amor chegou”,
estamos atribuindo a um ser não humano uma ação característica de seres vivos.
Gradação
Figura de pensamento que ocorre quando se organiza as ideias de modo
ascendente (gradação crescente) ou descendente (gradação decrescente), como no
exemplo retirado do poema “Mãos de finada, aquelas mãos de neve”, de Alphonsus
de Guimaraens:
[...]
Sinto-as agora, ao luar, descendo juntas,
Grandes, magoadas, pálidas, tacteantes,
Cerrando os olhos das visões defuntas...
(GUIMARAENS, 2014)
A gradação, no exemplo dado, ocorre por meio da intensificação dada aos adjetivos.
Apóstrofe
Figura de pensamento caracterizada pela utilização de vocativos. Trata-se de uma
interpelação (de pessoas, objetos ou sentimentos), com a finalidade de enfatizar
alguma ideia ou expressão. Quando se diz, por exemplo, “Ó, céus! Ó vida! Ó Deus!”
se tem um exemplo de apóstrofe.
Você pode ampliar seus estudos, assistindo aos seguintes vídeos: Figuras de
Linguagem - Pablo Jamilk e Figuras de Pensamento – Brasil Escola.
2020.
Resumindo: Você deve ter aprendido que o que confere a literariedade de um texto
é o arranjo especial com que se organiza as palavras, formando novos sentidos,
desvios e construções inusitadas, que criam diferentes reações do leitor. São as
chamadas figuras de linguagem e de pensamento. As figuras de linguagem
possuem sentido mais “preso” ao texto, relacionadas, principalmente, ao plano
morfológico do texto sendo facilmente identificadas por meio do vocabulário
utilizado. As figuras de pensamento requerem um pouco mais de atenção, pois se
dão mais no plano semântico do texto, organizando-se por meio da relação de
ideias.
Conhecendo as figuras de sintaxe
As figuras de sintaxe
Também chamadas de figuras de construção, as figuras de sintaxe são recursos
estilísticos que subvertem os aspectos lógicos da língua. Alguns dos seus recursos
mais frequentes são os desvios ortográficos, semânticos e sintáticos. Porém, não se
deve pensar nesses desvios como algo ocasional, mas como algo realizado por
pura intencionalidade do escritor. A seguir, veremos as figuras de sintaxe da nossa
língua.
Elipse
A elipse é caracterizada pela omissão de algum termo anteriormente enunciado, ou
sugerido no contexto da escrita. Caracteriza-se por uma revelação “posterior” do
objeto da fala. Quando dizemos algo do tipo “São festeiros, mas são gente boa
esses meus amigos”, temos um exemplo de elipse do termo “meus amigos”, no
período “são festeiros”. Fica subentendido, na leitura do trecho, de quem se trata,
não havendo a necessidade de repetição.
Zeugma
Trata-se de uma figura sintática semelhante à elipse, porém, a omissão de um termo
se dá após ele já ter sido enunciado. Utilizando-se do exemplo anterior, podemos
dizer que teríamos zeugma caso o enunciado estivesse escrito da seguinte forma:
“Meus amigos são festeiros, mas são gente boa”.
Assíndeto
O assíndeto se caracteriza pela omissão de conjunções coordenativas ao longo de
um enunciado. Se alguém disser “quero que você estude, trabalhe, tenha família,
seja gente de bem”, temos a omissão da conjunção coordenativa explicativa “que”.
Polissíndeto
Ao contrário do assíndeto, o polissíndeto é caracterizado pela repetição enfática das
conjunções coordenativas ao longo do enunciado: “Quero que você trabalhe, que
estude, que tenha família, que seja gente de bem”.
Pleonasmo literário
O pleonasmo literário é caracterizado pela repetição constante de uma ideia ao
longo do texto, com o objetivo de enfatizá-la. Observe:
Poema só para Jaime Ovalle
Quando hoje acordei, ainda fazia escuro
(Embora a manhã já estivesse avançada).
Chovia.
Chovia uma triste chuva de resignação
Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite.
Então me levantei,
Bebi o café e me preparei,
Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando...
- Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.
(BANDEIRA, 1967).
Nesse belíssimo poema de Manuel Bandeira (o qual vale apena ser todo lido), o
trecho em destaque configura um exemplo de pleonasmo literário.
Silepse
É uma forma de concordância ideológica, nem sempre diretamente expressa no
texto, mas que pode ser subentendida, podendo ocorrer dos seguintes modos:
Silepse de gênero
Ocorre a silepse de gênero (masculino e feminino) quando a concordância se faz
com a ideia que a palavra comporta, e não com seu gênero. Quando dizemos “a
grande Porto Alegre é muito populosa”, temos um exemplo de silepse de gênero,
pois, embora Porto Alegre seja uma palavra masculina, concorda-se em gênero com
a ideia de cidade.
Silepse de número
A silepse de número (singular e plural) acontece quando o verbo da oração não
concorda gramaticalmente com o sujeito, mas com a ideia nele contida, como
quando se diz: “Família, vão viajar?” Observe que “família” está na segunda pessoa
do singular, porém o verbo, flexionado na terceira pessoa do plural.
Silepse de pessoa
A silepse de pessoa (primeira, segunda, terceira) ocorre quando o verbo não
concorda com o sujeito da oração, mas com a pessoa inscrita no sujeito. É um
exemplo de silepse de pessoa a seguinte frase: “Todos os professores temos o
dever de zelarmos pela educação”. Nesse caso, o enunciador, embora esteja
falando de uma terceira pessoa, inclui-se nela, flexionando o verbo para se incluir.
Hipérbato
O hipérbato é caracterizado pela troca da ordem direta dos termos de uma oração,
em “ouviram todos os importantes conselhos?” (Todos ouviram os conselhos
importantes?).
Anáfora
A anáfora é uma figura de linguagem que consiste na repetição de palavras ou de
expressões, com o intuito de enfatizar uma ideia ou dar um determinado caráter
àquilo que se quer transmitir. O poema “Ladainha”, de Cassiano Ricardo, ilustra bem
essa noção:
Ladainha
Por se tratar de uma ilha deram-lhe o nome
De ilha de Vera Cruz.
Ilha cheia de graça
Ilha cheia de pássaros
Ilha cheia de luz.
[...]Depois mudaram-lhe o nome
Pra terra de Santa Cruz.
Terra cheia de graça
Terra cheia de pássaros
Terra cheia de luz.
A grande Terra girassol onde havia guerreiros de tanga e onças ruivas
[deitadas à sombra das árvores mosqueadas de sol.
[...]
Deram-lhe o nome de Brasil.
Brasil cheio de graça
Brasil cheio de pássaros
Brasil cheio de luz.
(RICARDO, 2015, s. p.)
A ladainha, como gênero textual, faz parte do contexto religioso, sendo marcada
pelas repetições. Da mesma forma, o poema de Cassiano Ricardo repete ideias
sobre os nomes e sobre as belezas do Brasil. Talvez por essa repetição constante, o
poeta tenha dado esse título ao texto.
Os pontos fora da curva: vícios de linguagem
Opostos às figuras de linguagem, os vícios de linguagem são palavras e
construções que vão de encontro às normas gramaticais, que mais representam
descuido ou desconhecimento das regras por parte do autor do que propriamente
um elemento literário. A seguir, apresentaremos a classificação desses vícios.
Pleonasmo vicioso ou redundância
O pleonasmo vicioso é marcado por expressões linguísticas com sentido
redundante, muito utilizadas na fala, mas que devem ser evitadas na escrita, tais
como “subir para cima” e “brisa matinal da manhã”.
Barbarismo
O barbarismo se caracteriza pela utilização de uma palavra de forma errônea,
podendo ser classificado das seguintes formas:
Barbarismo de pronúncia
É aquele que ocorre quando se grafa ou se pronuncia uma palavra em desacordo
com a norma culta, como no caso de “pesquiza” ao invés de “pesquisa”, na escrita,
ou na pronúncia de “rúbrica” ao invés de “rubrica”.
Barbarismo de morfologia
O barbarismo de morfologia ocorre quando da utilização de um enunciado cuja
construção morfológica é contrária à norma culta, como por exemplo, “sou o mais
maior desta sala”.
Barbarismo semântico
Ocorre quando se utiliza uma palavra atribuindo-lhe um sentido não permitido pela
norma, como em “a cessão solene começará às 21 horas”, ao invés de “sessão”.
Esses vícios de linguagem são comuns de serem utilizados, principalmente, com
palavras de pronúncias semelhantes.
Estrangeirismo
Ocorre quando se utiliza um estrangeirismo para uma palavra já aportuguesada,
como em “vou para a night”, ao invés de “vou para a festa à noite”.
Solecismo
Desvio da norma culta em relação à construção sintática dos enunciados, como em
“fazem dois anos que não tiro férias”, ao invés de “faz dois anos que não tiro férias”.
Solecismo de concordância
Ocorre quando o problema sintático está na concordância verbal ou nominal:
“haviam muitas pessoas ali”, ao invés de “havia muitas pessoas ali”.
Solecismo de regência
Esse tipo de solecismo é mais comum, por passar despercebido, muitas vezes,
durante a escrita. Ocorre quando se utiliza erroneamente uma regência verbal ou
nominal no enunciado: “assisti o filme ontem”, ao invés de “assisti ao filme ontem”.
Solecismo de colocação
Ocorre quando a construção apresenta erros de colocação pronominal, em relação
à norma culta, como em “dancei tanto que não aguentei-me em pé”, ao invés de
“dancei tanto que não me aguentei em pé”.
Ambiguidade ou anfibiologia
Marcada pela construção de enunciados de duplo sentido, como “o guarda deteve o
suspeito em sua casa” (na casa de quem?).
Cacófato ou cacofonia
Ocorre quando na construção do enunciado, o mau uso das palavras produz sons e
termos que não estavam previstos nos enunciados, graças à junção de palavras,
como em “a boca dela tem um batom lindo!”
Arcaísmo
Consiste na utilização de palavras que já caíram em desuso na língua, com o
objetivo de ornamentá-la, mas cuja colocação não faz sentido no momento histórico
atual, como em “vossa mercê precisa de ajuda?”, ao invés de “você precisa de
ajuda?”
Eco
Consiste na repetição de palavras terminadas pelo mesmo som, como em “a
decisão da eleição causou indignação.”
Neologismo
Ainda que com o desenvolvimento da informação e ampliação de conhecimentos
haja a necessidade de criação de novos conceitos, o neologismo é marcado quando
se cria palavras novas sem que sejam necessárias, como em “essa situação é
impossibilitável” ao invés de “essa situação é impossível/ inviável”.
Aprofunde e amplie seus estudos através dos vídeos: Figuras de sintaxe ou de
construção. s/d. e #FICAaDICA DO NEWTÃO. Vícios de linguagem. s/d.
Resumindo: Você deve ter aprendido que as figuras de sintaxe são desvios da
norma culta, com o objetivo de criação de determinados efeitos de sentido no texto
literário. Ao contrário das figuras de linguagem, de pensamento e de sintaxe, os
vícios de linguagem são desvios que vão contra a norma culta, produzindo efeitos
de sentido esdrúxulos.
Identificando a constituição de linguagem poética
Intertextualidade e metalinguagem
Conforme já abordado nas outras unidades, a intertextualidade se manifesta pelo
diálogo entre textos, intencional, que faz com que um texto mais recente amplie ou
“responda” a outro texto, ampliando, desconstruindo e pluralizando suas ideias.
A metalinguagem se manifesta quando, por meio da linguagem, se procura
descrever a própria linguagem. O texto literário apresenta essa característica
quando procura conceituar determinados temas, ainda que de forma conotativa.
Poesia e poema
A poesia é um conjunto de características e técnicas de elaboração artística; o
poema é uma das manifestações concretas da poesia. A noção de poesia está
ligada ao grego poiésis, que era sinônimo de processo criativo, e depois, passou a
nomear o processo criativo da poesia. Também, segundo Platão, poiésis designava
os processos para se alcançar a imortalidade.
Na atualidade, os significados de poiésis não se modificaram muito, haja vista que
por meio da poesia, os homens se tornam imortais, uma vez que suas criações
artísticas falam por eles.
O poema é uma manifestação concreta da poesia, assim como a dança, a música, o
cinema, a literatura, o romance, etc. Aquilo que atinge a perfeição artística possui
poesia; o poema cuja perfeição ultrapassa os limites do cotidiano e do nãoartístico é
um poema (seja ele haicai, soneto, ode, balada etc.) carregado de poesia.
Língua e arte literária
A língua de um povo dito civilizado é constituída por várias modalidades, que podem
existir juntas, com suas peculiaridades, sem necessariamente, romperem com sua
unidade linguística.
A língua denominada geral é aquela oficializada por um país, vivificada pelo uso
comum e aceita socialmente. Está acima das regionalidades, sempre existentes. No
contexto brasileiro, é a língua portuguesa, vista em seu conjunto.
A língua geral tende a conviver com as tonalidades regionais, na fonética e no
vocabulário, resultando dali os falares regionais, que atingem fortemente a
expressão cultural e literária em algumas áreas geográficas do país. Quando essas
características são muito acentuadas, temos o que se chama de dialeto.
O linguajar regional, com seus modismos e peculiaridades, é comumente retratado
por escritores regionalistas em suas obras literárias.
A língua popular é a fala espontânea do dia a dia de um povo. Quase sempre,
destoa da norma gramatical e é rica em plebeísmos (palavras vulgares e gírias).
Nessa modalidade da língua está inserida a fala familiar ou coloquial, sem a
preocupação com a correção gramatical, dependendo do nível de escolaridade de
seus falantes.
A língua culta é utilizada pelas pessoas instruídas das diferentes profissões e níveis
sociais. É pautada pelos preceitos vigentes da gramática normativa e se caracteriza
pelo cuidado com a forma e o léxico. Seu vocabulário é mais prestigiado, servindo
de ferramenta para as ciências e para o ensino nas escolas. Em língua culta se
elaboram as obras científicas, as obras didáticas, textos midiáticos, documentos
oficiais etc. A mais artificial dessas linguagens ocupa o âmbito artístico, sendo
conhecida como linguagem literária.
Uma língua pode ser tanto falada como escrita, conforme são utilizados os signos
vocais e os sinais gráficos. A língua falada é viva e atual; a língua escrita é a
representação ou a imagemda língua escrita. A fala é mais comunicativa e
insinuante, pois as palavras pressupõem sonoridade e inflexões, ritmos e
gesticulação, dentre outros fatores.
A comunicação oral ou escrita acontece em diferentes níveis de expressão.
Dependendo das circunstâncias do ato comunicativo, o indivíduo utiliza um tipo de
linguagem adequado à situação.
O grau de instrução do usuário de língua portuguesa, seu meio sociocultural, sua
profissão, entre outros fatores, atua fortemente na variação do idioma.
Elementos da obra literária
Podemos dividir os elementos fundamentais da obra literária em conteúdo e forma.
● Conteúdo ou fundo: São ideias, conceitos, apelos, sentimentos e imagens
imateriais que as palavras transmitem da mente do escritor para os leitores;
● Forma: É a expressão linguística, a linguagem falada ou escrita, veículo de
ideias e de sentimentos.
● A forma como uma obra literária pode se apresentar se manifesta sob dois
aspectos diferentes: a prosa e o verso.
● Prosa é a linguagem objetiva, usual, direta, veículo comum de pensamento.
Mesmo que seja vazada em prosa, uma obra literária pode estar quase que
predominantemente permeada de pensamentos poéticos;
● A poesia é a linguagem subjetiva, carregada de emoção e sentimento, com
ritmo, melodia constante, beleza e tão indefinível quando o mundo interior do
poeta, objetivando a um efeito estético.
● Distribuída em linhas descontínuas ou versos, que podem ser metrificados ou
livres, a linguagem poética, sob o aspecto melódico ou mesmo auditivo, se
caracteriza pelo ritmo bem mais acentuado do que na linguagem em prosa, e
pela eventual utilização de rimas.
Considera-se, também, que a obra literária é somente o escrito que se diferencia
dos demais pela beleza da forma e pela excelência de conteúdo. Será tanto mais
apreciada quanto maior seu poder de sugerir, de tocar nossa sensibilidade, de
empolgar o nosso espírito. As obras literárias de alcance universal tem, comumente,
mais valor que as de caráter estritamente nacional ou regional.
Estilo
Denominamos por estilo a maneira como cada um exprime seus pensamentos,
sentimentos e emoções por meio da linguagem.
Cada escritor possui seu estilo próprio e pessoal, ou seja, sua expressão reveste
uma forma característica, pela qual são manifestos seus impulsos emotivos, sua
sensibilidade, a feição peculiar de seu espírito. Em outras palavras, o estilo é o
espelho em que se reflete a alma do escritor, a tela em que é projetada a
personalidade do artista.
Além dessas características individuais que diferenciam os autores uns dos outros,
o estilo mostra também os traços psicológicos e culturais da raça e as tendências
dominantes das diversas escolas e correntes literárias que fizeram época através
dos tempos. Por isso, dizemos que há um estilo clássico, um estilo barroco, um
estilo romântico, etc.
É pelo seu estilo primoroso e brilhante que os grandes artistas da palavra
conseguem criar obras de grande beleza.
No estilo cumpre diferenciar o aspecto material ou linguístico e o aspecto mental,
psíquico, subjetivo, os traços que exprimem sua dimensão psicológica, suas
tendências, seu modo de ver e de julgar a vida e o mundo em que vive. Da fusão de
todos esses elementos, é que surge o estilo.
Versificação
A versificação é a técnica ou a arte de se fazer versos. Em linhas gerais, o verso é
uma linha poética, com número determinado de sílabas e agradável movimento de
ritmo.
● Metro: Metro é a medida ou extensão da linha poética. Em língua portuguesa,
os poetas têm utilizado doze tipos de versos, que vão de uma a doze sílabas,
sendo raros os versos que ultrapassam esse número silábico. Conforme o
número de sílabas, os versos são classificados da seguinte forma:
Tabela 1: Classificação dos versos quanto ao número de sílabas
(FALTAM DUAS IMAGENS AQUI)
Fonte: Elaborado pelo autor
As sílabas métricas, isto é, as sílabas dos versos coincidem com as sílabas
gramaticais, porém sua contagem se faz auditivamente, e se subordina aos
seguintes princípios:
a. Sempre que duas ou mais vogais se encontram no fim de uma palavra e no
começo de outra, e podem ser ditas numa só emissão de voz, unem-se numa
mesma sílaba métrica;
Tabela 2: Exemplo ( FALTA UMA IMAGEM AQUI)
b. Ditongos crescentes valem, quase sempre, uma única sílaba métrica;
Tabela 3: Exemplo ( FALTA UMA IMAGEM AQUI)
c. Não se conta(m) a(s) sílaba(s) que se segue(m) ao último acento tônico do verso;
Tabela 4: Exemplo ( FALTA UMA IMAGEM AQUI)
Essa última regra só se atinge versos graves (que terminam por palavras
paroxítonas) e esdrúxulos (que terminam por palavras proparoxítonas). Nos versos
agudos (que terminam por palavras oxítonas) contam-se todas as sílabas.
Ritmo
O ritmo é o resultado da singular sucessão de sílabas átonas ou fracas e de sílabas
tônicas ou fortes. É o elemento melódico do verso, tão importante à poesia como o é
para a música. Junto com a rima e as imagens poéticas, transmite a versos um
misterioso poder de emoção e de encantamento.
Os acentos tônicos ou as sílabas tônicas devem se repetir com intervalos
semelhantes, de modo que o verso se torne melodioso. Não se distribuem as
sílabas tônicas arbitrariamente, mas devem, segundo o tipo de verso, recair em
determinadas sílabas.
Simetria e assimetria
Podemos definir a simetria como uma espécie de regularidade métrica e rítmica dos
versos, enquanto a assimetria é caracterizada por maior liberdade em relação às
regularidades dos versos.
Encadeamento
Quando a pausa final do verso não coincide com a pausa respiratória, ou quando o
verso não finaliza juntamente com um segmento sintático, temos aquilo que
chamamos de encadeamento ou transbordamento, mais conhecido pela palavra
francesa enjambement. Em geral, procura-se não realizar pausa no fim dos versos,
porém, pode-se fazer uma breve pausa, mas conservando-se a voz suspensa.
Rima
A rima é considerada a identidade ou a semelhança de som do fim (ou do meio dos
versos. Mesmo que seja um elemento secundário e até mesmo dispensável, a rima
é aproveitada pelos poetas para comunicar aos versos maior harmonização. É um
recurso musical que agrada aos ouvidos. Foneticamente, as rimas podem ser:
● Perfeitas: sereno e moreno, nele e leve etc;
● Imperfeitas: Deus e céus, estrela e vela etc;
● Toantes: são rimas idênticas somente na vogal tônica, como casa e vale, lírio
e livro etc.
Segundo a posição do acento tônico das palavras, as rimas podem ser:
● Agudas ou masculinas: feroz e atroz, amor e clamor etc;
● Graves ou femininas: festa e manifesta, flores e cores etc;
● Esdrúxulas: mágico e trágico, lírico e onírico etc.
Conforme o valor, são as rimas classificadas em:
● Pobres: são as rimas consideradas vulgares e as formadas com palavras de
mesma morfologia, como coração e oração, amor e temor etc;
● Ricas: rimas formadas com palavras de classes gramaticais diferentes, como
prece e adormece, penas e apenas etc;
● Raras: são as rimas que são obtidas com palavras de muito poucas rimas
possíveis, como cisne e tisne, bosque e enrosque etc;
● Preciosas: são rimas artificiais, como vê-la e estrela, trantuilo e ouvilo etc.
Versos regulares
São os versos que obedecem às regras clássicas, que determinam a posição das
sílabas acentuadas em cada tipo de verso. Suas rimas aparecem de modo regular,
sendo marcadas pela semelhança fônica no final de cada verso.
Versos brancos
São versos que obedecem a certa métrica, porém, sem a presença de rimas.
Versos livres
Não obedecem a regras nem quanto ao metro, nem quanto à posição silábica.
Também não apresentam regularidade de rimas.
Versos polimétricos
São versos que apresentam certa regularidade, mas tamanhos diferentes, com
sílabas fortes localizadas em posições indicadas pelas métricas tradicionais.
Estrofe
A estrofe, também chamada de estância, é um grupo de versos de um poema Elas
podem ser formadas por versos de medida igual ou diferentes. Conforme o número
de versos, são denominadas das seguintes maneiras:
Tabela 5: Nomenclatura das estrofes
( FALTA UMA IMAGEM AQUI)Fonte: Elaborado pelo autor
Você deve ter aprendido que a intertextualidade é um elemento que faz parte dos
textos, uma vez que cada texto literário pode ampliar, tensionar, reformular
conceitos de textos anteriores. A metalinguagem de um texto literário se manifesta
quando, por meio da linguagem literária, se busca conceituar determinados
elementos. O texto poético, em especial aquele pertencente ao gênero lírico,
apresenta uma constituição bastante rica, marcada por ornamentos e por jogos de
linguagem possíveis, a fim de atingir determinadas perfeições artísticas.
UNIDADE 4
Explorando a teoria da narrativa 1: Discurso e enredo
Definição para narrativa
A narrativa pode ser entendida por todo discurso que nos apresenta uma história
originária como se fosse real, atravessada por uma pluralidade de personagens,
cujas trajetórias de vida se entrelaçam num tempo e num espaço determinados.
Desta forma, o conceito de narrativa não está restrito apenas ao romance, ao conto
e a novela, mas também ao poema épico e a outras formas de literatura.
Muitas são as narrativas que existem. Há, primeiramente, uma grande variedade de
gêneros, distribuídos em substâncias diferentes, como se toda matéria fosse
potente para que o homem sobre elas escrevesse narrativas. A narrativa pode ser
sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem, fixa ou móvel,
pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas essas substâncias; marca presença
no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopeia, na história, na
tragédia, no drama, na comédia, na pantomina, na pintura, no vitral, no cinema, nas
histórias em quadrinhos, no fait divers, na conversação. Também, é sob essas
formas quase infinitas que a narrativa se faz presente em todos os tempos, lugares,
sociedades... internacional, transhistórica, transcultural, etc.
Apesar da universalidade e da grande variedade da narrativa, é possível e
importante encontrar elementos constitutivos, os sistemas de regras que constituem
a narratividade, para melhor compreender os elementos invariáveis, específicos de
cada tipo narrativo, separando-os dos elementos variáveis, específicos de cada tipo
particular.
O plano do discurso
Um problema importante que se apresenta a quem se propõe a estudar uma obra
ficcional é perceber quem narra e o que se passa num romance ou conto, pois o
narrador não é o autor. No contexto da narrativa, o narrador nunca é o autor, mas
um papel por ele criado: é uma personagem ficcional no qual o autor se
metamorfoseia. O narrador é um ser ficcional e autônomo, independente do ser real
do autor que o criou. As ideias, sentimentos, a cosmovisão do narrador de um texto
literário não se relaciona direta e necessariamente com o ponto de vista do autor.
Esse pode ocultar sua axiologia atrás do narrador e de outros personagens, como
também pode optar por não compartilhar as opiniões de nenhuma personagem.
Gustave Flaubert, autor de Madame Bovary, defendeu-se das acusações judiciais
de ter incentivado o adultério, mostrando que as ações e as ideias da protagonista
do romance, a personagem Emma, não podiam ser confundidas com o
posicionamento ideológico do próprio autor. De toda forma, não cabe ao analista da
obra julgar os critérios e os valores do escritor somente com base em elementos
intratextuais, pois, quem narra não é quem escreve, e quem escreve, não é quem é.
O autor é pertencente ao mundo da realidade histórica; o narrador, a um universo de
imaginação: entre esses dois mundos pode até haver analogia, mas nunca
identidade. Essa confusão vem do fato de que o sujeito da enunciação, que é um
sujeito lógico, é considerado como um sujeito ontológico.
A literariedade de um romance é estabelecida pelo único motivo de que o eu do
narrador não é o eu do escritor. Até mesmo nos casos-limite do uso da vida
particular para fins artísticos, num poema ou em um romance escrito em primeira
pessoa e com o uso de dados biográficos da pessoa do autor, quem nos dirige a
palavra só pode ser uma entidade da ficção.
Exemplificamos com a obra “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, enquanto o
narrador do romance é o personagem Bentinho. O primeiro, o autor, pertence ao
mundo real, exerceu a profissão de escritor de contos e romances; o segundo – o
narrador -, é uma personagem inventada pela fantasia de Machado, para nos contar
a história de seu relacionamento com Capitu. O que se passa no romance deve ser
percebido a partir do olhar de Bentinho, o narrador da fábula, e não pela perspectiva
do autor, que é um ser externo à própria obra. E qualquer produção de arte (um
romance, um filme, um quadro, uma escultura), a partir do momento em que fora
criada, adquire sua autonomia, podendo ser analisada e apreciada
independentemente de se conhecer o autor.
Além do narrador, existe outra entidade a ele ligada: o narratário ou destinatário.
A tríade emissor – mensagem – receptor deve ser verificada externa e internamente
ao texto literário, ou seja, no plano da realidade e no plano da fantasia. No mundo
da existência física, o emissor é o autor que destina sua obra a um leitor imaginado.
No texto artístico, o emissor é um personagem (o narrador) que comunica a outro
personagem (receptor) fatos, acontecimentos, ideias e sentimentos (mensagem).
Numa narrativa, é importantíssima a percepção de quando uma personagem está
atuando como ser que participa dos fatos ou quando está exercendo somente a
função de narrador.
O processo enunciativo dentro do texto literário, na maior parte das narrativas está
camuflado, pois o narrador raras vezes se mostra como tal, identificando-se numa
personagem. A função desse narrador é revelada por índices específicos e
procedimentos acessórios. O que muitos estudiosos denominam como “aparelho
formal da enunciação” é formado por todos os elementos que estabelecem uma
relação de amostra entre o emissor, o discurso e seu destinatário. Os linguistas
chamam esses elementos de indicadores da instância do discurso, shifters ou
dêiticos. A seguir, veremos os principais componentes desse aparelho formal de
enunciação.
● Pronomes de primeira e segunda pessoas: a relação eu-tu é fundamental no
processo enunciativo, pois estabelece o contato entre o locutor e o ouvinte,
entre narrador e destinatário. A enunciação é caracterizada pela relação
discursiva entre dois termos que possuem a mesma estrutura dialógica. Ao
emissor deve, obrigatoriamente, corresponder um receptor, seja ele presente
ou oculto, real ou imaginário, coletivo ou individual. Até o monólogo não deixa
de ser um diálogo interiorizado entre um eu, central na enunciação, que
funciona ora como locutor, ora como ouvinte;
● Os demonstrativos (adjetivos e advérbios) são formas que, além de apontar
objetos e lugares, ostentam a instância da enunciação pela proximidade
imaginária com o receptor;
● Os adjetivos qualificativos expressam juízo de valor ético ou estético,
revelando os predicados semânticos atribuídos a personagens ou a eventos
pelo narrador;
● A categoria do presente verbal e adverbial é uma noção materializada pelo
ato de enunciação. O presente formal nada mais é que tornar explícito o
presente referente à enunciação, que se renova a cada produção de
discurso;
● Algumas formas modais de verbos e de advérbios pertencem ao plano
enunciatário por sugerirem atitudes particulares de quem fala.
Os narradores
De modo geral, o narrador é aquele que conta a história. Sua presença, assim como
a das personagens, é fundamental para o desenvolvimento do texto narrativo. A
seguir, veremos as formas como o narrador do texto literário se apresenta.
Narrador pressuposto
A essa categoria pertencem as narrativas que não referenciam explicitamente o
narrador e o destinatário:
● Narrador onisciente neutro: Caracteriza-se quando o foco narrativo parece
contar-se a si mesmo, supostamente abrindo mão da figura do narrador. Este
tipo de narrador é onipresente, e o narrador, em sua visão, se coloca por
detrás e cima dos personagens, sabendo – inclusive – mais do que eles pelo
motivo deque sabe tudo. As narrativas ocorrem de um modo neutro,
impessoal, sem que o narrador tome partido ou defenda algum ponto de
vista;
● Narrador onisciente intruso: Semelhante ao narrador onisciente neutro, essa
forma de narrador se caracteriza por volta e meia interromper a narração dos
fatos ou mesmo a descrição dos personagens para tecer considerações e
para emitir julgamentos de valor;
● Narrador onisciente seletivo: Este foco narrativo se dá quando o narrador,
mesmo sendo ele o sujeito do discurso, apresenta um ponto de vista plural,
não somente seu, mas de um ou de vários personagens, não a posteriori,
mas diretamente, no momento presente, pela mente do personagem. Sua
diferença estilística está na forma do discurso indireto: neste caso, é utilizado
o chamado discurso indireto livre, por meio do qual o narrador interpreta com
palavras suas ideias e pensamentos de personagens;
● Narrador-câmera: Esse narrador conta os fatos com uma visão de fora, como
se fosse – de fato – um cameraman que, se colocando atrás da câmera
cinematográfica, só mostra o que essa câmera é capaz de captar. Ele não
pode falar do passado, não está em vários lugares ao mesmo tempo, não
pode penetrar na consciência do personagem; apenas exerce o papel de
observador imparcial, que analisa realisticamente a conduta e o meio como
materialmente observáveis.
Narrador-personagem
Nesta categoria, estão os narradores que são manifestadas diretamente por um
ente ficcional que, dentro do texto literário, assume o papel de narrador:
● Narrador-protagonista: O narrador se identifica como o eu do personagem
principal que vive os fatos. Trata-se de um ator que acumula o papel de
sujeito da enunciação e de sujeito do enunciado. Ele nos conta a história por
ele vivida, a história de parte de sua existência. É por meio de seus olhos e
de seus sentimentos que são apresentados os elementos que constituem a
narrativa: os fatos, os outros personagens, os temas e os motivos, o espaço
e o tempo. Em algumas narrativas, o personagem central faz uma sondagem
na profundidade de sua consciência, remisturando sentimentos e sensações
do presente com lembranças passadas;
● Narrador-personagem secundário: Esse tipo de narrador não é o
protagonista, mas outro personagem que, mesmo participando dos
acontecimentos, não pode ser confundido com o protagonista ou com os
demais personagens da história, mas é por meio desse narrador que os
conhecemos;
● Narrador-testemunha: Possui uma focalização centrada sobre um
personagem que está centrado no texto só para narrar os acontecimentos,
sem se confundir nem com o protagonista, nem com os outros personagens;
● Narração dramática: É uma técnica usurpada do gênero dramático, do teatro,
no qual não há um narrador específico, mas todas as personagens, por meio
do diálogo, funcionam como narradores e como destinatários da mensagem.
O enredo
De modo geral, podemos dizer que o enredo é a história propriamente dita, de seu
início ao seu fim. Ele faz parte do gênero narrativo porque é a noção de enredo que
possibilita a percepção do movimento da narrativa. Outros tipos discursivos, como a
descrição, não possuem o enredo em sua estrutura; ficam como se estagnadas no
tempo e no espaço. A seguir, veremos as principais características que constituem o
enredo das tramas narrativas.
Situação inicial
A situação inicial pode ser definida como aquela que tem a função de apresentar ao
leitor, por meio do narrador, a história que será contada. É por meio da situação
inicial, que conhecemos, de forma breve ou aprofundada, o protagonista, o tempo, o
lugar em que se passa a história e sua situação de vida, no momento em que o foco
narrativo se coloca sobre ele. Dito de outro modo, é quando o contexto narrativo é
apresentado.
Nó
A partir da apresentação da situação inicial, algo ocorre que modifica seu estado de
início, trazendo uma forma de desequilíbrio para o ambiente narrativo e para o
protagonista: o nó. O nó do enredo pode ser entendido como o conflito que colocará
os personagens em ação ao longo da trama.
Clímax
Com a movimentação das personagens ao longo da história, na busca pela
resolução do conflito, surge um ponto máximo, crucial para a constituição de um
novo equilíbrio: o clímax. É esse o elemento da narrativa que se caracteriza pelo
momento mais tenso do enredo, quando, todo o nó e revelado, e a possibilidade de
resolução do conflito, independentemente da forma que ocorrer, está próxima. O
clímax, de modo geral, é o prenúncio do fim da história.
Desfecho
Após toda a tensão do clímax, finalmente o enredo se encaminha para o final,
quando os personagens, de alguma forma, resolverão seus conflitos. A narrativa
nunca volta exatamente para a situação inicial no desfecho, mas mostra como o
protagonista superou (ou não) aquele conflito, ou os desdobramentos do nó, com
uma nova situação inicial.
A estrutura do enredo, também chamada de estrutura fabular, é importantíssima no
desenvolvimento e na consolidação de uma narrativa, pois sem ela, a ação não
pode ocorrer, prejudicando a literariedade, a discursividade e as próprias
características do gênero narrativo.
Para saber mais sobre o assunto, continue seus estudos assistindo aos seguintes
vídeos: CINEPLOT. 2018. O que é narrativa? e BRASIL
ESCOLA. 2018. Tipos de narrador ou tipos de foco discursivo. e
VEVSVALADARES. 2015. Passeando pela teoria literária #3:
Resumindo: Você deve ter aprendido que narrativa é ação, não há texto narrativo
sem que ocorram ações desenvolvidas pelos personagens num tempo e num
espaço. O plano do discurso pode ocorrer de dentro do texto, por um narrador que
participa dos fatos, ou de fora do texto, por um narrador que apenas os observa. O
narrador é aquele que conta a história. É um ser ficcional, que não deve ser
confundido com o autor. O enredo consiste na movimentação da trama narrativa,
sendo marcado por situação inicial, nó, clímax e desfecho. Preparado(a) para a
próxima competência? Vamos lá!
Explorando a teoria da narrativa 2: personagem, tempo e espaço
O estudo da personagem
Em geral, da leitura de um romance fica a impressão de uma série de fatos que se
organizam em enredo, e de personagens que vivenciam tais fatos. É uma impressão
praticamente indissolúvel: quando pensamos no enredo, pensamos,
simultaneamente, nos personagens; quando pensamos nos personagens,
pensamos na vida em que vivem, nas dificuldades em que se envolvem, no seu
destino, traçado de acordo com uma duração temporal, referido a determinadas
condições de ambiente. O enredo existe através dos personagens; os personagens
vivem do enredo. Tanto enredo como personagens exprimem, ligados, os intuitos do
romance, a visão de mundo que ele apresenta, os significados e valores que
constrói.
Percebemos que há uma profunda ligação entre a estrutura narrativa (ou estrutura
fabular) e seus componentes atoriais. Os personagens constituem os suportes vivos
da ação e a movimentação das ideias que povoam uma narrativa. Se fosse didática
e praticamente possível, a análise dos personagens deveria acompanhar o estudo
do enredo, pois sua caracterização ilumina o sentido da história e vice-versa.
Sua estrutura
Podemos dizer que toda narrativa é composta por elementos variáveis e elementos
invariáveis. Os elementos invariáveis se constituem pelo nome dos personagens,
sexo, idade, atributos etc., pelo conjunto de suas qualidades externas e suas
características psicológicas. Os elementos invariáveis são os sujeitos das funções
da narrativa.
D’Onofrio (2007), ao estudar a formação do personagem, afirma que há uma
espécie de modelo actancial, no qual há uma divisão entre ator e actante. O ator
seria o que se chama de personagem, aquele que pode ser identificado como
sujeito numa narrativa. Os atores são elementos variáveis, em número ilimitado, que
povoam as obras literárias e se encontram na estrutura de manifestação.
Os actantes seriam uma classe de atores que exercem funções idênticas, estando
relacionados a conceitos abstratos, categorias metalinguísticas, quesó podem ser
percebidos numa estrutura narrativa mais aprofundada, no nível sintático, e não
lexemático. Dito de outro modo, os actantes são as relações gramaticais ou
funcionais que existem entre os atores de uma narrativa.
A estrutura actancial, por sua vez, parte do pressuposto de que a principal relação
sintática do discurso é aquela que opõe sujeito e objeto. Semanticamente, pode-se
dizer que o sujeito de uma ação é quem sente falta de algo e inicia o processo de
transformação para possuir o objeto desejado, e o objeto pode ser entendido como
a coisa encontrada, como o valor de que sente falta.
Junto aos actantes principais, há também os actantes secundários, que participam
das ações de forma circunstancial. O sujeito, em sua caminhada pela posse de um
objeto-valor, geralmente precisa da ajuda de outro actante.
O objeto, por conseguinte, também pode ser o centro de um eixo sintático-
semântico, dando vida a outra dupla actancial: destinador e destinatário. Isso ocorre
quando numa narrativa ocorre que um ator que funciona como mandante ou
destinador do objeto e outro ator, a quem esse objeto-valor se destina, o
destinatário.
Em relação ao estudo dos atores, seu estudo é mais potente no nível da estrutura
de manifestação, tendo presentes narrativasocorrências.
Entendemos por ator o personagem que, numa dada narrativa, exerce uma ou mais
funções actanciais. Ele pode ser figurativo (seres divinos, animais, humanos,
objetos) ou noológico (conceito: amor, virtude, ódio etc.).
Conforme as funções actanciais que exerce, o ator é investido de um papel
temático, ou seja, tem uma missão a ser executada. O ator pode ser qualificado
desde o começo da narrativa para sua função ou pode receber as qualificações de
que precisa gradativamente. No primeiro caso, tem-se um tipo de personagem
conhecido como “de costume” ou “plano”, mascado de início para sempre com
determinados traços.
No segundo caso, a narrativa apresenta o personagem, de início, como um
assemantema ou zero semântico, desqualificado: é o personagem de natureza ou
esférico, que será modelado aos poucos.
Para que a performance do ator ocorra, ele deve previamente atingir a competência
específica. Essa competência, por sua vez, pode ser vista por três modalidades:
querer o sujeito, antes de mais nada, deve realmente conseguir aquilo que deseja e
demonstrar a vontade de conseguir o objeto-valor); o saber (ele deve saber onde
está o objeto desejado e o que deve fazer para alcança-lo); o poder (o sujeito deve
possuir os meios adequados para que possa conseguir se apossar do objeto-valor.
Sua evolução
Olhar de forma diacrônica para a tipologia do personagem nos mostra como ele
adquiriu diferentes configurações e representações ideológicas ao longo da história
da ficção literária. Um longo caminho, por exemplo, separa o herói clássico do
personagem anônimo do século XX. Percebe-se rupturas em relação aos heróis
clássico e romântico, surgido a partir do século XVIII, desde suas qualidades, seus
valores, seus modos de ver o mundo, etc.
Ao mesmo tempo, na atualidade, a teoria do novo romance decreta a morte do herói
romanesco e, ao mesmo tempo, destrói a estrutura fabular. Porém, essa tendência é
considerada mais intelectualizada nas ideias vanguardistas. A literatura de massa,
escrita, filmada ou televisionada, pelo contrário, ainda se interessa pela produção do
herói tradicional, ainda que o vista com uma roupagem mais moderna. Uma parte
cada vez mais considerável de romances e filmes policiais e de ficção científica
apresenta o herói não com a espada, revólver ou socos, mas com microscópios,
sofisticados aparelhos de balística, incríveis astronaves.
Os personagens
O personagem é um ser ficcional responsável pelo desempenho do enredo; dito de
outro modo, é quem faz a ação acontecer. Por mais real que pareça, o personagem
é sempre uma invenção, mesmo quando se percebe que determinados
personagens são baseados em sujeitos reais ou em elementos da personalidade de
determinados indivíduos.
O personagem é um ser pertencente à história e que, portanto, só existe como tal se
participa do enredo, se age ou se fala. Se um determinado ser é mencionado na
história por outros personagens, mas nada faz direta ou indiretamente, não interfere
de nenhuma forma no enredo, não devendo ser considerado um personagem.
Animais, seres humanos ou coisas, personagens se definem pelo enredo, pelo que
fazem e dizem, e pelo julgamento o narrador ou os outros personagens fazem dele.
Classificação dos personagens
Quanto ao papel que desempenham no enredo, os personagens podem ser
classificados da seguinte forma:
● Protagonista: é o personagem principal do enredo. Pode ser:
○ Herói: quando o protagonista possui características consideradas
superiores às de seu grupo;
○ Anti-herói: quando o protagonista apresenta características iguais ou
inferiores às de seu grupo, mas, por algum motivo, está na posição de
herói, mesmo que sem competência para tanto.
● No Brasil, ou melhor, na literatura brasileira, são mais frequentes os
anti-heróis, geralmente vítimas das adversidades e desigualdades, ou de
seus próprios defeitos de caráter.
● Antagonista: é o personagem que se coloca em oposição ao protagonista,
seja por sua ação que o atrapalha, seja por suas características
diametralmente opostas às do protagonista. Em outras palavras, seria o vilão
da história;
● Personagens secundários: são os personagens menos importantes na
história, isto é, que possuem uma participação menor ou menos frequente no
enredo. Podem desempenhar papéis de ajudantes do protagonista ou do
antagonista, ou se assemelhar a figurantes.
Quanto à caracterização que desempenham no enredo, os personagens
podem se classificar como:
● Personagens planos: são aqueles personagens que se caracterizam por um
número pequeno de atributos, que são facilmente identificados pelo leitor. De
modo geral, os personagens planos são pouco complexos. Desse tipo de
personagens, podemos descrever dois mais conhecidos:
○ Tipo: é um personagem reconhecido, geralmente, por características
típicas, que não variam. Essas características podem ser morais,
sociais, econômicas, ou de qualquer outra ordem;
○
Caricatura: é uma forma de personagem que pode ser reconhecida por
características consideradas fixas e ridículas. Em geral, mais presente
nas histórias de humor;
● Personagens redondos: são personagens bem mais complexos do que os
planos, pois apresentam uma variedade mais ampla de características que,
por sua vez, podem ser:
○ Físicas: corpo, voz, gestos, roupas;
○ Psicológicas: referem-se à personalidade e aos estados de espírito;
○ Sociais: indicam classe social, profissão, atividades sociais;
○ Ideológicas: referem-se ao modo de pensar do personagem, sua
filosofia de vida, suas opções políticas, sua religião etc.;/li>
○ Morais: referem-se a julgamento, isto é, em dizer se o personagem é
bom ou mal, se é honesto ou desonesto, se é moral ou imoral, de
acordo com determinados pontos de vista.
Um mesmo personagem redondo pode ser julgado de diferentes modos por
personagens, narrador, leitor; por tanto, poderá apresentar características morais
distintas, relacionadas ao ponto de vista adotado. Também, ao se analisar um
personagem redondo, deve-se considerar o fato de que ele pode mudar no decorrer
da história, e que uma qualificação inicial pode não dar conta de caracterizá-lo.
O tempo
Outro elemento importante que constitui o enredo, o tempo é que permite vermos a
movimentação dos personagens. Importante que, dentro da literatura, estamos nos
referindo a um tempo que chamamos de fictício, ou seja, interno ao texto,
entranhado no enredo. Podemos dimensioná-lo a partir de algumas constatações,
como veremos a seguir.
Época em que se passa e duração da história
Constitui o pano de fundo para o enredo. A época da história nem sempre está de
acordo com o tempo real em que foi publicada ou escrita a obra.
Há muitas histórias que se passam em um certo período de tempo, já outras
possuem um enredo que se estendeao longo de muitos anos. Os contos, em geral,
apresentam uma temporalidade curta em relação aos romances, nos quais o
decorrer do tempo é mais explorado.
Para se identificar o tempo-época ou a duração, precisa-se realizar um
levantamento dos índices de tempo, pois essas referências representam marcações
de tempo.
Tempo cronológico
É o nome que damos ao tempo que transcorre na ordem natural dos fatos no
enredo, isto é, do começo para o fim. Está ligado ao enredo linear (que não altera a
ordem em que os fatos ocorreram), e chama-se cronológico porque é mensurável
em horas, dias, anos, séculos. Para que se compreenda melhor essa forma de
tempo, podemos imaginar uma história que começa narrando a infância do
personagem e depois os demais fatos de sua vida na ordem em que eles
ocorreram.
Tempo psicológico
É o nome que damos ao tempo que transcorre numa ordem determinada pelo
desejo e/ ou pela imaginação do narrador ou dos personagens, ou seja, a ordem
natural do tempo é alterada, formando um enredo não-linear (no qual os
acontecimentos estão fora da ordem natural). Uma das técnicas mais conhecidas e
usadas a serviço do tempo psicológico é o flashback, que consiste na ação de voltar
no tempo.
O espaço
O espaço é, por definição, o lugar onde se passa a ação da narrativa. Caso a ação
seja concentrada, isto é, se houver poucos fatos na história, ou se o enredo for
psicológico, haverá menos variedade de espaços. Se, por outro lado, a narrativa for
recheada de acontecimentos, maior será a diversificação de espaços.
O espaço tem como funções principais situar as ações dos personagens,
estabelecendo com eles uma interação, quer influenciando suas atitudes,
pensamentos ou emoções, que sofrendo eventuais transformações provocadas
pelos personagens.
Como ocorre com os personagens, o espaço pode ser caracterizado de forma mais
detalhada em trechos descritivos, ou as referências de espaço podem estar diluídas
na narração. De qualquer modo, é possível identificar-lhe as características, por
exemplo, espaço fechado ou aberto, espaço urbano ou rural, e assim por diante.
O termo “espaço”, de modo geral, apenas dá conta do lugar físico em que a
narrativa ocorre. Para designar o lugar psicológico, social, econômico etc., usa-se a
noção de “ambiente.”
O ambiente
É o espaço carregado de características abstratas (socioeconômicas, morais e
psicológicas) em que vivem os personagens. Nesse sentido, o ambiente é um
conceito próximo do tempo e do espaço, pois junta esses dois elementos,
acrescentando um clima.
Clima é o conjunto de determinantes que cercam os personagens, que podem ser
resumidos às condições socioeconômicas, morais, religiosas e psicológicas.
Funções do ambiente
Dentre as principais funções que o ambiente possui na obra literária, podemos citar:
1. Situar os personagens no tempo, espaço, grupo social, e nas condições em
que vivem;
2. Projetar os conflitos vividos pelos personagens;
3. Conflituar com os personagens. Em algumas narrativas, o ambiente se opõe
aos personagens, estabelecendo com eles um conflito;
4. Fornecer índices para o andamento do enredo.
Resumindo: Você deve ter aprendido que o personagem é aquele que movimenta o
enredo da narrativa. Ele pode estar diretamente relacionado ao enredo, ou participar
dele como figurante. Sem os personagens, que são os atores da ficção narrativa,
ela não acontece. O tempo é quando a narrativa ocorreu, que geralmente pode ter
marcas cronológicas ou ainda psicológicas. Pode ou não ser linear. O espaço é
onde a narrativa ocorreu, no que se refere ao espaço físico. Espaços não físicos,
onde há conflitos de elementos abstratos, são denominados como ambientes. Além
disso, a importância de todos os elementos que abordamos nesse capítulo é que
eles servem para estruturar a história literária pois, sem eles, o enredo não existirá.
Deste modo, é importante que, na análise de obras literárias, o estudante busque
compreender esses elementos primeiramente, suas formas de apresentação e suas
configurações, a fim de que sua interpretação dos fatos não seja vaga, nula ou
mesmo equivocada. Vimos nesse capítulo, também, que os elementos que
constituem o enredo literário não estão disponibilizados de forma elencada dentro
do texto, mas é a na progressão da leitura que conseguimos percebê-los.
Conhecendo as formas narrativas
No momento em que definimos a narrativa, já acenamos à grande variedade de
formas, cujos elementos estruturais não pertencem apenas à arte literária, mas
também ao cinema, ao teatro, à pintura, à rádio, à televisão. Alguns autores dividem
os textos narrativos em formas simples e formas cultas. As formas simples seriam
as criações coletivas, representando a cultura popular, tais como: mito, lenda, conto
popular, saga, adivinhação, causo, anedota, provérbio. As formas ditas cultas
seriam as criações individuais da arte: poesia épica, novela, romance, conto erudito,
crônica. Muitas vezes, se dá a passagem de uma forma simples para uma forma
culta, quando o autor opta por utilizar elementos da cultura popular no texto. Ao se
atualizar numa obra literária, a forma simples perde sua mobilidade e se fixa de
forma definitiva, adquirindo o caráter da unicidade. Às vezes, são usados
indiferentemente os termos mito, conto popular, gesta ou saga para denominar a
mesma história de ficção.
Mito
O mito vem do grego mythos, que corresponde à fábula latina. Foi usado por
Aristóteles como elemento estrutural da teoria narrativa, a fim de indicar um
conjunto de ações. Porém, em sua concepção geral, mito é uma história ficcional
sobre divindades, criada pelos homens para explicar a origem das coisas ou
justificar padrões de comportamento. O que há em comum entre os dois usos do
termo “mito” é que se trata de uma história fantástica, inventada ou por um poeta ou
pelo povo. No segundo caso, estamos diante de uma forma simples de narrativa,
uma vez que o mito brota espontaneamente do seio de um povo ainda num estágio
primitivo. Algumas de suas características:
● Trata-se de uma história fantástico-religiosa;
● Adquire o status de crença-verdade;
● Segue um pensamento lógico peculiar.
Lenda
A lenda se originou do termo latino “legenda”, forma gerúndio do verbo legere (ler),
que na Idade Média, se tornou um substantivo. O nome feminino “legenda”, de onde
se origina a palavra “lenda”, significa, etimologicamente, “o que se deve ler”. Tal
substantivo passou a denominar o relato da vida dos santos e dos mártires da Igreja
Católica. O etimológico do nome “lenda” já sugere a disposição mental: aquilo que
deve ser imitado. As hagiografias (biografias dos santos), por exemplo, deviam ser
lidas para que se conhecesse e imitasse as virtudes dos heróis religiosos. Essa é
uma diferença importante entre mito e lenda: a história mítica, ligada a entes
sobrenaturais, tem como atitude mental a crença; diferentemente, o relato lendário
tem como heróis seres humanos cujo grande valor cívico do espiritual estimula a
imitação. Outra diferença está no fato de que a lenda se origina de um fato histórico,
mesmo que sua verdade, com o passar do tempo, seja transfigurada pela
imaginação popular.
Aliás, como se depreende do sentido do adjetivo “lendário”, há quase uma
disposição entre história e lenda: chama-se lenda o fato historicamente não
comprovado.
Conto popular ou maravilhoso
É uma forma universal de transmissão da cultura de um povo, ainda na fase da
oralidade. O conto popular ou maravilhoso documenta usos, costumes, modos,
formulares jurídicas, folclore, etc. Mostra as inclinações do ser humano para o
maravilhoso, visto como natural, para a bondade, a justiça, a verdade, a beleza
física e espiritual, o amor sentimentalmente vivido. Expressão da psicologia coletiva,
dispõe da moral natural: as coisas se passam como nós gostaríamos que se
passassem, sempre com o triunfo do bem sobre o mal. O julgamento moral da
massa popular é absoluto porque é sentimental, em contraste com o mundo da
realidade, que é trágico porque o que deveria ser quase sempre não é. Rompendo
comas barreiras do real, o conto popular desafia a própria morte: o jovem casal,
após superar diversos obstáculos, será feliz para sempre: se não morreu na história
ficcional, é de deduzir que ainda vive no desejo dos ouvintes ou dos leitores. Sob a
denominação de conto popular, de fada ou da carochinha, agrupam-se inúmeros
textos, com narrativas as mais variadas possíveis. A seguir, apresentamos alguns
temas comuns nos contos populares ou maravilhosos:
● Encantamentos: histórias de fadas, da carochinha e de magia, com
predominância do elemento sobrenatural;
● Exemplos: micronarrativas com intenção moralizante;
● Contos edificantes;
● Fábulas: animais que falam;
● Contos religiosos: com a intervenção divina;
● Narrativas etiológicas: sobre a origem de objetos ou de costumes;
● Adivinhações;
● Contos acumulativos: casos de intertextualidade, de contos de nunca acabar,
de trava língua;
● Facécias: anedotas e patranhas;
● Natureza denunciante: um ato criminoso é revelado por um elemento natural;
● Demônio logrado: a vitória do bem sobre o mal;
● Ciclo da morte.
Literatura infanto-juvenil
A literatura destinada à leitura infantil e adolescente ultimamente tem despertado
muito interesse, uma vez que se percebeu seu importante papel para o
desenvolvimento da personalidade humana. Desde a primeira infância, ainda antes
da alfabetização, a criança deve ser colocada em contato com livros que contam
historinhas ilustradas para despertar sua imaginação, visualizando seres do mundo
animal e vegetal e relacionando realidade e fantasia.
Conto erudito ou literário
Duas características importantes diferenciam o conto literário denominado erudito
ou culto, do conto popular: é produzido por um autor historicamente conhecido; e
refere-se a um episódio da vida real, não verdadeiro por ser um produto da ficção,
mas verossímil, ou seja, o fato narrado não aconteceu no mundo físico, mas poderia
acontecer. Mesmo que seja possível apontar exceções de contos fantásticos, como
recurso ao sobrenatural, escritos por autores famosos, a regra do conto erudito é
ater-se ao real, sem abrir mão da verossimilhança, pois a atitude mental que dele se
depreende não é idealizar, mas contestar valores.
O conto erudito se diferencia do romance e da novela por ser uma narrativa curta.
Ele possui todas as características do romance, mas em dose menor. O foco
narrativo geralmente é centrado no narrador onisciente ou em um personagem. A
fábula é reduzida apenas a um episódio de vida. Os personagens são pouquíssimos
(em torno de três), constituindo o famoso triângulo amoroso. O espaço é reduzido a
um ou dois ambientes. O tempo também é bastante limitado. As descrições e
reflexões, quando existem, são muito rápidas.
A diminuição dos elementos estruturais confere ao conto uma grande densidade
dramática. Enquanto no romance o conteúdo textual se encontra diluído na
multiplicidade de ações, personagens, espaços, tempos, descrições, reflexões, no
conto há um enxugamento do sentido, que se revela ao leitor mais rapidamente. O
contista tem uma ideia fundamental a expressar. Inventa, então, uma pequena
história vivida por alguns personagens cujo desfecho leva o leitor a deduzir a
parcela de sentido do mundo que a narrativa apresenta.
Quanto à tipologia do conto, ela não é muito diferente da classificação do romance,
pois, a depender do tamanho, falamos de romance ou de conto policial, de romance
ou conto de terror etc. Entendido, entretanto, que a diferença entre o conto e o
romance não é somente quantitativa: sua brevidade ou extensão importam. Ainda,
pode-se dizer que o conto é um romance condensado e o romance um conto
diluído.
Epopeia
Do grego epos, epopeia significa narração e designava também um tipo específico
de verso, o hexâmetro, composto de seis pés, usado para poemas longos que
exaltavam os feitos heróicos das divindades ou de homens importantes. Essa forma
métrica passou a designar um tipo de poesia, a épica, também chamada de
epopeia. Aristóteles diferenciou o epos, a palavra narrada, da lírica, que era a
palavra cantada, e do drama, que era a palavra apresentada. O gênero épico, mais
adiante, tornou-se quase sinônimo de gênero narrativo, em prosa ou em verso.
A poesia épica é a primeira forma culta da civilização ocidental. As narrações
míticas e lendárias, que a imaginação popular foi constituindo baseada em um
acontecimento histórico, após a fase da transmissão oral, quando o povo chega a
dominar o alfabeto e a ter uma língua ou dialetos escritos, são elaboradas por um
poema que lhes dá uma veste literária e as consagra eternamente.
Sua parente, a saga, é uma lenda pagã em torno de uma árvore genealógica, de
relações de sangue.
Essas são as formas da poesia épica primitiva, aquela que surge espontaneamente
do seio de um povo na fase arcaica de sua formação cultural, sendo que nem
sequer podemos saber o nome do autor que deu sua forma artística aos cantos
heróicos provenientes da oralidade. Diferente é a epopeia chamada “reflexa”, criada
por um poeta historicamente conhecido.
Em relação à sua estrutura, o poema épico é composto de uma parte importante,
que abrange a proposição (antecipação do assunto que será tratado), a invocação
(pedido de ajuda a uma divindade) e, às vezes, a dedicatória (a um homem ilustre),
e da parte maior (chamada de narração). Geralmente, esta não segue a ordem
cronológica na apresentação dos fatos, mas começa a trama com a narração de um
episódio importante e, a partir daí, mediante o recurso técnico da retrospecção, um
personagem nos conta o que aconteceu antes disso.
O foco narrativo está centrado sobre um narrador onisciente, mas volta e meia
surgem outros focos, evidenciados pelas falas dos personagens, ou pela
intervenção do eu poético. O estilo pode ser considerado solene, a linguagem
rebuscada e a composição das estrofes, rímica e métrica, segue cânones rígidos
apropriados a esse gênero. Além disso, há um recurso bastante utilizado:
independentemente de o texto ter origem pagã ou cristã, as divindades participam
ativamente das ações humanas, privilegiando-se a força do destino que dirige os
acontecimentos e as condutas dos heróis.
Em relação ao sentido, a epopeia é o canto da totalidade de vida de um povo em
determinado estágio civilizatório. Essa narração, além de verter sobre um fato bélico
grandioso, historicamente ocorrido, mas idealizado pela imaginação coletiva
criadora de mitos e lendas, está diretamente relacionada com o surgimento ou o
progresso de uma nacionalidade. A totalidade implica a transcendência: esse herói
épico, ser híbrido – semideus ou homem cujo valor supera ao de todos os outros –
representa o elo entre o humano e o divino, o sonho da humanidade de superar sua
natureza contingente e de aproximarse do absoluto. A trajetória do herói na epopeia
é longa e acidentada porque o interesse do poeta vai além da narração das
aventuras e comportamentos, em descrever ambientes e costumes, organizações
sociais, crenças religiosas, e todos os traços possíveis de serem descritos sobre
uma civilização. Daí o conceito de épico ir além dos limites de uma forma narrativa
em versos, aplicando-se também a outras manifestações culturais consideradas
grandiosas: teatro épico, romance épico, cinema épico, etc.
Romance
A palavra romance deriva de uma expressão latina, romanice loqui, que significa
“falar romântico”, ou seja, falar num dos vários dialetos europeus que se formaram
do latim romano, em oposição ao latine loqui, que era a língua culta durante a Idade
Média. E porque nesses dialetos populares se contavam histórias de amor e de
aventuras cavalheirescas, transmitidas pela oralidade, a palavra romance passou a
indicar uma longa narrativa sentimental, forma cultural que viveu à margem da
literatura oficial durante o Classicismo.
Também no mundo grego-romano aconteceu o mesmo fenômeno: em paralelo aos
gêneros literários considerados “clássicos”, havia outras formas literárias que
circulavam entre a grande massa do povo analfabeto. Uma delas era a ficção em
prosa, que tinhaduas vertentes. A narrativa “idealizante” era constituída por longas
histórias de amor e aventura, centradas sobre um casal de namorados que, após
superar diversos problemas com o auxílio divino, chegava a realizar seu sonho
amoroso.
Havia, também, outra vertente narrativa, “satirizante”, que foi difundida mais no
mundo latino: de cunho fortemente realístico, mostrava quadros da vida cotidiana
nos quais estavam as mazelas das várias classes sociais.
Como se pode ver, quer na narrativa sentimental, quer na narrativa satírica, ainda
que sem o nome de romance, esse tem suas origens bastante remotas. Ocorre que
esse tipo de ficção viveu por longo tempo sendo ofuscado pelos gêneros literários
clássicos e não recebeu a devida apreciação, sendo estudado mais profundamente
somente a partir do início do século XVIII, assumindo – então – o papel da epopeia
e ganhando o estatuto de gênero literário. O romance, considerado o filho bastardo
da epopeia, passou, então, a ser uma forma literária que melhor exprimia os anseios
da nascente burguesia, produto das revoluções industriais e comerciais que
derrubaram o absolutismo político e cultural. A literatura não estava mais destinada
a um pequeno círculo culto, mas a classe média, ávida por encontrar consignados
em forma de arte suas questões existenciais.
O protagonista do romance, diferente do herói da epopeia, é um ser humano
comum, de natureza puramente humana: um médico, uma prostituta, um operário,
uma jovem apaixonada. A temática é variada como é a vida. Sua tipologia é
bastante extensa, das quais há o romance picaresco, de aventura, de capa e
espada, histórico, psicológico, gótico ou de terror, realista, de formação, naturalista,
existencialista, de realismo crítico, de realismo fantástico, psicanalítico, de
experimentalismo formal, do absurdo humano, etc.
Há outras formas de classificação, feitas não em função do tema, as levando em
conta a presença de um dos elementos constitutivos do gênero narrativo. Assim,
fala-se em romance de ação quando predomina o nível fabular; em romance de
personagem quando se dá preferência para a caracterização do protagonista e de
outros personagens; em romance de espaço a narrativa centrada na descrição de
um ambiente, e há ainda, o romance urbano, campesino, regionalista. O romance
de fluxo de consciência destaca a problemática do tempo psicológico e do foco
narrativo.
Novela
Do italiano novella (notícia nova), a novela literária passou a indicar um incidente
chocante que dá a impressão de um evento realmente acontecido. As primeiras
formas literárias que ganharam esse nome estão relacionadas com a instituição
medieval da cavalaria. Aos poucos, deixaram o domínio da poesia épica e passaram
a se tornar prosificadas, adentrando o campo das novelas de cavalaria. No século
XIV, surge a novela toscana, designando-a com esse nome coletâneas de narrativas
curtas, anedóticas, geralmente de cunho satírico.
A novela, gênero literário que tem suas características estruturais e semânticas bem
peculiares, não está centrada sobre uma única história ficcional. Seu enredo é
formado por uma pluralidade de histórias encaixadas numa microfábula. Trata-se de
uma narrativa de estrutura aberta, sendo possível que sempre se acrescente mais
um episódio, fazendo intervir mais de um personagem e deslocando a ação num
outro espaço e tempo. Diferente do romance, que é uma narrativa de estrutura
fechada, apresentando uma história com começo, meio e fim bem definidos, ao
redor de um protagonista, sendo que os demais personagens existem apenas em
função da caracterização do ator principal.
Além disso, enquanto o romance está voltado mais para o real, a novela se refugia
no mundo da fantasia, sem ter em conta o princípio da verossimilhança. Em seu
universo, as coisas acontecem em conformidade com a psicologia do inconsciente
coletivo: a beleza triunfa sobre a feiura, o amor sobre o ódio, a verdade sobre a
mentira, enfim, o bem sobre o mal. Trata-se da idealização da vida nos moldes da
literatura de massa.
Sua forma, quer na literatura, quer na televisão, aparece dividida em capítulos, e
seus atores recebem papéis mais ou menos importantes.
Crônica
Do grego krónos, significa “tempo”, sendo o registro de acontecimentos num tempo
e num espaço determinados. A crônica literária é produzida por poetas e ficcionistas
que, embora possam se apoiar em fatos conhecidos, transformam a realidade do
dia a dia pela força criadora da fantasia. Daí decorre que suas crônicas são ou
poemas em prosa ou pequenos contos, dependendo do pendor do autor para o
gênero lírico ou narrativo. Geralmente, a crônica pode ser considerada como a mais
curta forma de narrativa literária já consagrada.
Autobiografia
Advindo dos termos autos (próprio), bios (vida) e gráphein (escrever), autobiografia
designa o autor que narra sua própria vida. Porém, se o autor se limitasse apenas a
registrar os dados de sua existência, sem o concurso da imaginação
transformadora, não teríamos uma obra de arte. Uma autobiografia, portanto, só
pertence à literatura, num sentido estrito, quando o autor extravasa o seu eu,
fazendo uso da linguagem poética, revestindo os fatos de sua vida com ideias,
sentimentos, emoções.
Resumindo: Você deve ter aprendido que as narrativas podem ser múltiplas. Seus
critérios de classificação se encontram na função literária, na forma, na estrutura e
no conteúdo. Assim como ocorre com os gêneros textuais do nosso dia a dia, as
narrativas literárias surgem para um determinado fim comunicativo, mesmo que
artístico. O mito, o conto maravilhoso e a lenda, por exemplo, são considerados
narrativas primordiais, que surgiram antes mesmo da escrita, com o objetivo de
transmitir uma informação ou de explicar a realidade. A epopeia surgiu na
Antiguidade Clássica, quando o homem já dominava a cultura escrita, a fim de
transmitir o legado de um povo. Os romances, novelas e contos surgiram com o
advento do Romantismo, no século XIX, como uma forma de expressão da classe
que ascendia ao poder e que tinha gosto por esses formatos estéticos: a burguesia.
Crônica e autobiografia são gêneros mais recentes, surgidos especialmente no
século XX. Por fim, a literatura infanto-juvenil, que iniciou (com autores brasileiros)
em nosso país na virada do século XIX para o XX, marca um público específico,
sendo – em nossa compreensão atual – indispensável para a formação dos leitores
desde as primeiras fases da vida.
Analisando textos narrativos
Ao término deste capítulo você será capaz de entender como se analisa um texto
narrativo, e sua importância para o estudo da Literatura Comparada. Conhecer a
natureza dos gêneros literários, e como eles constituem os gêneros textuais
considerados como pertencentes à linguagem literária será fundamental para o
exercício de sua profissão. E então? Motivado para desenvolver esta competência?
Então vamos lá. Avante!
Formas narrativas minúsculas
No capítulo anterior, analisamos as formas narrativas literárias mais conhecidas, e
também com formas mais abrangentes. Apresentaremos, a seguir, algumas formas
literárias menores, mais sintéticas e também de importante valor literário.
Anedota
Trata-se de um pequeno relato de um acontecimento curioso ou engraçado. Como o
provérbio, a anedota, fora da tradição oral, está inserida em textos literários.
Apólogo
Historinha que se passa entre objetos inanimados, apresentando uma moral
explícita ou implícita.
Fábula
A fábula, como gênero literário, se difere do conceito de fábula como elemento
estrutural de um texto, correspondente ao mito grego, como já apresentado
anteriormente. Consiste numa história ficcional, cujos personagens são animais.
Provérbio
Trata-se de um saber popular expresso por meio de uma narrativa mínima.
Teorias literárias
As teorias literárias consistem nas bases teóricas que sustentam os principais
campos de estudos da literatura. A seguir, nas próximas páginas, veremos as
teorias que já se consolidaram na ciência.
A teoria do efeito
Iser (1978), através de sua “teoria do efeitoestético”, apresenta uma grade
conceitual importante para a literatura, trazendo uma ruptura das noções
originalmente pensadas, desde os tempos clássicos, para a literatura. Isso se dá por
meio de um afastamento da relação realidade-ficção, sujeito-objeto, que nortearam
as metodologias analíticas ao longo do século XX, e redireciona para a
fenomenologia da leitura, procurando compreender a relação do leitor com a leitura,
abrindo mão de um modelo literário formal.
A teoria do efeito estético se volta para o exame das percepções do leitor em
contato com a obra, o que resultou na construção de três paradigmas que
sustentam a teoria: o polo artístico (estrutura verbal da literatura), o polo estético
(correlato ao leitor na construção da significação) e as ocorrências de trânsito entre
os dois polos.
Sua concepção literária reside na dependência da caracterização dessas três
instâncias, consideradas simultâneas e integradas. Porém, nessa relação, surge
uma especificidade da estrutura do discurso ficcional, cujos requisitos permitem
denominá-la como “estética do performativo”.
A literatura é uma estrutura comunicativa, pois conduz o leitor a vivenciar uma
experiência estética, para a partir daí, estabelecer conexões que lhe permitam
pensar sobre sua inserção social.
Para que haja essa possibilidade, a literatura não pode estar carregada de fins
didáticos, fugindo aos contextos do mundo real.
Também, por meio da teoria do efeito, é descartada a noção da relação entre
“imagem” e significado, tão presente nas teorias tradicionais. Sendo imagética a
natureza do significado, somente quando o leitor entra em contato com o texto há o
surgimento de condições para uma experiência estética. Paralelo a isso, prevalece a
noção de que o efeito de significado em forma de imagem não pode permanecer
indefinitivamente como tal. Por ser uma ordem de significação, o efeito se transmuta
discursivamente em uma significação, cuja natureza pertence à ordem cognitiva.
A prosa literária seria o espaço onde se promove uma reorganização performática
dos códigos e dos sistemas sociais, de maneira que o leitor, provocado pela
experiência estética, busque respostas para o contexto social onde atua. Somente
por meio de uma performance da literatura na alusão do sistema social o leitor pode
realizar uma experimentação.
Na interação com a obra, o leitor mantém certos dados de informação, formulando
projeções para o que acontece no decorrer da leitura. Isso pressupõe operações da
mente de ordem mais complexa do que aqueles resultantes da interação com um
objeto visual, apenas.
Ainda, convém mencionar que, por meio da teoria do efeito, entende-se que a
realidade literária abala a realidade pragmática, pois o texto literário não tem a
função de se equilibrar ao real. Não há um quadro vertical equilibrando as normas,
como se a literatura fosse construída acima do mundo real, ou a partir dele. A obra
literária incorpora os sistemas de significação do mundo, mas os “reorganiza
horizontalmente”, desprovendo-os da validade que possuíam no contexto
referencial.
A teoria da expressão
A chamada teoria da expressão é resulta da forma como os artistas, escritores,
poetas, pintores etc. utilizam a obra de arte: como forma de expressar suas
experiências individuais. Ao invés de mostrarem a natureza apenas, procuram, por
meio de suas obras, exprimir os sentimentos de seu universo interior.
Há diferentes nuances da teoria da arte como expressão, sendo que uma das mais
importantes seria aquela formulada pelo romancista russo Leão Tolstói (1828 –
1910), segundo o qual não existe arte se não houver expressão de sentimentos, ou
se esse sentimento não contagiar alguma pessoa. Dessa forma, é defendida a ideia
de que a arte é uma forma de expressão e de comunicação de sentimentos e não
de outra coisa qualquer. Dizia Tolstói que “X é arte se, e só se, é expressão de
sentimentos”. A respeito da expressão, o autor defendia sobre ela sete aspectos:
1. O artista precisa sentir emoção;
2. O público precisa sentir emoção;
3. As emoções do artista e do público têm que ser as mesmas;
4. Deve haver autenticidade da parte do artista;
5. O artista deve possuir a intenção de provocar emoções;
6. Os sentimentos expressos devem ser individualizados;
7. A expressão consiste no ato de clarificar sentimentos.
8. As vantagens dessa teoria estão em explicar o conteúdo da arte, explicar a
ligação emocional que podemos ter com a arte e ser bastante abrangente.
A teoria da recepção
A teoria da recepção, ou estética da recepção, propõe que seja reformulada a
historiografia literária, rompendo com a exclusividade da produção e representação
da estética tradicional, pois considera a literatura como produção, recepção e
comunicação, numa relação dinâmica entre autor, obra e leitor.
A teoria da recepção aponta para a investigação literária e discursiva por meio de
uma mudança paradigmática, remetendo o ato de leitura a um horizonte duplo: o
implicado pela obra e o projetado pelo leitor de determinada sociedade.
Além disso, a estética da recepção se volta para as condições sócio-históricas das
diversas interpretações textuais. Nessa perspectiva, o discurso literário se
constituiria através de seu processo receptivo, como pluralidade de estruturas de
sentido historicamente mediadas. A estética da recepção auxiliou o
desenvolvimento da teoria do efeito, de Wolfgang Iser.
Elementos da obra literária: Uma retomada
Na unidade anterior, já estudamos os elementos da obra literária; porém, iremos
retomá-los aqui, uma vez que o assunto também é importante quando falamos em
análise de obras literárias. Podemos dividir os elementos fundamentais da obra
literária em conteúdo e forma.
● Conteúdo ou fundo: São ideias, conceitos, apelos, sentimentos e imagens
imateriais que as palavras transmitem da mente do escritor para os leitores;
● Forma: É a expressão linguística, a linguagem falada ou escrita, veículo de
ideias e de sentimentos.
● A forma como uma obra literária pode se apresentar se manifesta sob dois
aspectos diferentes: a prosa e o verso.
● Prosa é a linguagem objetiva, usual, direta, veículo comum de pensamento.
Mesmo que seja vazada em prosa, uma obra literária pode estar quase que
predominantemente permeada de pensamentos poéticos;
● A poesia é a linguagem subjetiva, carregada de emoção e sentimento, com
ritmo, melodia constante, beleza e tão indefinível quando o mundo interior do
poeta, objetivando a um efeito estético.
Distribuída em linhas descontínuas ou versos, que podem ser metrificados ou livres,
a linguagem poética, sob o aspecto melódico ou mesmo auditivo, se caracteriza
pelo ritmo bem mais acentuado do que na linguagem em prosa, e pela eventual
utilização de rimas.
Considera-se, também, que a obra literária é somente o escrito que se diferencia
dos demais pela beleza da forma e pela excelência de conteúdo. Será tanto mais
apreciada quanto maior seu poder de sugerir, de tocar nossa sensibilidade, de
empolgar o nosso espírito. As obras literárias de alcance universal têm, comumente,
mais valor que as de caráter estritamente nacional ou regional.
Exemplo de análise de um texto narrativo
Após você ter estudado todos os elementos importantes e fundamentais para o
conhecimento da Teoria Literária e, especialmente, da Literatura Comparada,
passaremos agora à reflexão sobre a análise literária de textos reais, para que seu
conhecimento e sua experiência literária sejam aprofundadas.
A Cartomante, de Machado de Assis
Plano da enunciação: O conto é narrado em terceira pessoa, com uma visão “por
detrás”: o narrador parece saber mais do que os personagens, pois tem uma visão
geral dos acontecimentos, uma compreensão reflexiva dos sentimentos mais
íntimos que movem os atores. Esse narrador não está participando dos
acontecimentos, mas está presente na narrativa apenas com a função de narrador,
usando a primeira pessoa, referindo-se ao ato de contar a história: cuido que [...] e
digo mal [...] vamos a ela [...] vimos que [...].
O narrador desse contoé um personagem apenas para contar a história, que está
presente apenas para narrar, alguém que sabe tudo a respeito de todos. A narração
em terceira pessoa, porém, é interrompida constantemente pela reprodução das
falas dos personagens por meio de discurso direto, em que temos a citação exata
das palavras por eles proferidas, caso em que o narrador respeita todas as marcas
subjetivas desses personagens. Alguns discursos, no entanto, fogem dessa regra,
marcando o estilo do autor: Tal foi a opinião de Rita que, por outras palavras mal
compostas, formulou este pensamento: - a virtude é preguiçosa e ávara, não gasta
tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.
No excerto apresentado, não temos um discurso direto, pois o narrador expressa os
pensamentos da personagem com suas palavras. Também, não se trata de um
discurso indireto, pois encontramos no texto os dois-pontos e o travessão. Resta,
somente, qualificar esse discurso como discurso indireto livre.
De modo geral, o texto apresenta o que chamamos de plurifocalização: ao discurso
em terceira pessoa, o narrador dá um tom de objetividade; os discursos diretos em
primeira pessoa referem-se aos próprios personagens, que manifestam suas
personalidades; e o discurso indireto livre, torna o narrador uma espécie de diretor
da cena, em que se mantém distanciado dos personagens e apenas organiza suas
falas.
Plano do enunciado: A história está toda centrada em um fato banal: um triângulo
amoroso constituído por Vilela (marido), Rita (esposa) e Camilo (amigo de vilela e
amante de Rita). Quando vilela descobre o caso, mata os dois. É interessante
perceber que a narrativa não é linear, não havendo coincidência entre o início da
trama (história artisticamente apresentada) e o início da fábula (a história na ordem
cronológica dos acontecimentos): o relato dos fatos começa pelo meio, quando Rita
e Camilo já têm um caso há tempo, estando preocupados com a possibilidade de
sua relação ser descoberta por Vilela. Por meio de um olhar retrospectivo
(flashback), o narrador informa ao leitor sobre a amizade de infância e o surgimento
do amor entre Camilo e Rita. A seguir, apresentaremos um panorama do enredo:
● Situação inicial: Camilo e Rita se amam e vivem num estado de felicidade.
Mas, sendo sua relação amorosa um adultério, essa situação de equilíbrio
apresenta, virtualmente, um motivo de conflito: a possibilidade da descoberta
e também do castigo. Daí os protagonistas tomarem os cuidados necessários
para evitar a revelação do dano feito a Vilela e à sociedade: encontros
secretos na casa de uma comprovinciana de Rita, que funciona como
alcoviteira.
● Atualização do conflito: Uma carta anônima acusa Camilo de sua relação,
chamando-o de imoral. Em face da revelação de que o caso amoroso é de
conhecimento de outros, Rita e Camilo são tomados pelo medo da vingança
de Vilela, caso este venha a descobrir a traição. Mais medidas de precaução
são tomadas: Camilo deixa de visitar a residência de Rita e Vilela.
● Paroxismo do conflito: Camilo recebe um bilhete de Vilela: Vem já, já, à nossa
casa: preciso falar-te sem demora. Camilo desconhece o motivo dessa
chamada do amigo, e o sentimento de culpa o faz acreditar na descoberta da
traição e na iminência de uma tragédia. É possuído por um estado psíquico
anormal, pois, pela imaginação, sente a presença de Vilela dizendo-lhe, ao
ouvido, as palavras ameaçadoras e vê o amigo lavar a honra com o sangue
dos traidores.
● Pedido de socorro: A caminho da casa de Vilela, um acidente de trânsito faz
com que o veículo de Camilo pare quase na porta da casa de uma
cartomante já consultada por Rita. Camilo, mesmo incrédulo, acossado pelo
medo, é induzido a ter uma consulta, na esperança de que a adivinha o
liberte da situação de dúvida em que se encontra. Com efeito, a cartomante o
deixa aliviado com suas palavras, afirmando que Vilela não sabe de nada.
● Tragédia final: Camilo, passando a acreditar piamente nas palavras da
cartomante, vai à casa de Vilela com espírito sereno, certo de que o bilhete
não se refere ao caso amoroso. A expressão vá, regazzo innamorato, que é
apenas uma fórmula de despedida da cartomante, é relacionada de forma
inconsciente com as palavras do bilhete de Vilela. A dúvida de Camilo entre ir
e não ir se acaba. Mas a verdade é outra: Vilela o espera para mata-lo, como
já matara a esposa, momentos antes.
Personagens: O conto é um drama de quatro personagens, dos quais dois investem
o eixo actancial do “querer” e dois do “poder”
Rita e Camilo são mutuamente sujeitos e objeto do desejo, pois se procuram
reciprocamente. Rita, mais velha e mais experiente, é mais ativa que Camilo. É ela
que se apaixona primeiro, e se aproxima de Camilo. De caráter decidido, sabe o que
procura, e quando está em dúvida sobre o amor de Camilo, recorre à cartomante,
para sair desse estado.
Camilo é fraco de caráter, mais jovem do que todos, e não resiste à sedução de
Rita, vencendo facilmente ao problema de consciência da traição. Mais tarde,
porém, o medo da descoberta da traição e da vingança de Vilela o faz perder esse
equilíbrio, a ponto de vencer suas próprias crenças e procurar a cartomante para
tirar essa dúvida.
Vilela representa os valores sociais, a vingança, a reparação do dano feito à
instituição do casamento. Esposo e amigo dedicado, perante a descoberta da
traição muda seu comportamento habitual e torna impiedosa sua vingança. Sua
frieza é estarrecedora e sua imparcialidade espelha a insensibilidade da norma
social, que não tem em conta os anseios individuais.
A cartomante, personagem-título, é a figura central da narrativa. A ela o autor
confere maior riqueza de pormenores qualificativos, quer no nível do ser, quer no do
fazer, descrevendo o ambiente físico em que vive em consonância com seu caráter
e ações. Dela, sabemos apenas a função na história, como se a cartomante fosse
um ser generalizado.
Se interessou pela história de Machado de Assis? Leia A Cartomante
Resumindo: Você deve ter aprendido que os textos narrativos e em prosa não são
apenas extensos; há textos curtos e de origem popular, como a anedota e o
provérbio. Há diversas teorias pelas quais um texto narrativo, seja ele literário ou
cinematográfico – um texto artístico - pode ser analisado. A teoria do efeito observa,
em linhas gerais, a construção dos sentidos que o texto e o leitor realizam no
momento da interação. A teoria da expressão considera a obra de arte uma
expressividade da emoção do artista, e sem o diálogo dessas emoções, não é
possível realizar uma interpretação. A teoria da recepção busca analisar as
condições em que o texto foi produzido e os elementos que contribuíram para sua
interpretação ser como é, num dado momento. A análise de um texto narrativo
pressupõe elementos internos e externos ao texto, como estrutura, enredo,
personagens, traços de autoria etc.

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