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UNIDADE 1 Conhecendo o campo da teoria literária Você já assistiu a alguma adaptação cinematográfica que tenha surgido de algum livro literário? Já teve a experiência de ler o livro do filme a que assistiu, ele já se deparou com pessoas que disseram “ah, mas eu li o livro e é diferente, tem mais detalhes”? Há quem diga preferir ler o livro antes de assistir ao filme, inclusive, por acreditar que a visão do cinema influenciará na imaginação leitora… todos esses elementos, de modo geral, configuram nosso objeto de estudo, a literatura comparada. Já sabemos que a literatura, em linhas gerais, é uma forma de arte que utiliza a palavra como seu elemento fundamental. O pesquisador Massaud Moisés, em seu Dicionário de Termos Literários (Editora Cultrix, São Paulo, 2004, p. 264), define a literatura como a arte da escrita, porém, ao longo das várias páginas seguintes, problematiza esse conceito, uma vez que a palavra literatura é polissêmica, e seu significado depende de seu contexto de uso. Apesar da multiplicidade de significados - já que as palavras têm história – vamos delimitar a literatura àquele trabalho técnico e artístico, que não possui compromisso direto com a realidade, e que se constitui como obra a partir do campo da ficção, sendo formada por arranjos estéticos que exploram diferentes dimensões das palavras. É essa forma de literatura que atravessa épocas, que se cria e se recria ao longo dos séculos, e que, por meio de diferentes linguagens (dentre as quais está o cinema), produz efeitos de sentido sobre nossos modos de ser e de viver, possibilitando-nos ver a realidade sob diferentes ângulos. É como diz o poema de Carlos Drummond de Andrade: Não faças versos sobre acontecimentos. Não há criação nem morte perante a poesia. Diante dela, a vida é um sol estático, não aquece nem ilumina. As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam. Não faças poesia com o corpo, esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica. […] Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escrito. Estão paralisados, mas não há desespero, há calma e frescura na superfície intata. Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam. Espera que cada um se realize e consume com seu poder de palavra e seu poder de silêncio. (ANDRADE, 1945, p. 6) Em linhas gerais, entende-se que o poema nos aconselha a fecharmos os sentidos para os significados tradicionais, dicionarizados das palavras que nos cercam, para que possamos deixar fluir a arte da escrita literária, transformando e reinventando o significado das palavras. Esse mundo à parte, o mundo que o poema afirma ser o dos versos, não é um mundo em movimento, mas um lugar estático, que está lá para ser descoberto, sem pressa. Da mesma forma, a literatura não existe para cumprir uma função objetiva, mas para explorar as palavras, criar novas e outras formas de linguagem e de compreensão, e para possibilitar que cheguemos à compreensão de que enquanto a humanidade existir, a arte será produzida, como forma de registrar nossa passagem por esse mundo e como modo de registrar nossas angústias, anseios e nossa qualidade humana. Mas qual seria a natureza do texto literário? Sabemos que, em linhas gerais, todo sistema que foi criado pelo homem serve para a comunicação humana, e pode ser denominado como uma linguagem. A linguagem por sua vez, pode ser entendida como um grande sistema de signos, dos quais uma de suas materialidades é a língua. As regras que regem os sistemas de signos representam e constituem visões de mundo e possibilidades semânticas, que podem ser possíveis em determinadas culturas e em outras não. Nesse sentido, a literatura pode ser considerada como um sistema linguístico secundário dentro da cultura, pois ela é uma forma de expressão da linguagem, criada com um fim específico. Uma das diferenças entre a literatura e as demais linguagens, como será abordado mais adiante, está no significado das palavras, que adquirem outro sentido, o conotativo. Isso significa que a linguagem literária não possui a mesma forma que ela adquire em contextos e situações reais de uso. Por isso, essa linguagem possibilita múltiplas interpretações, tornando-se subjetiva. A linguagem literária Você conhece o mito da torre de Babel? Esse mito perpassa a consolidação da Babilônia na Antiguidade, onde hoje se localiza o Iraque. Vamos à leitura? Naquele tempo, toda a humanidade falava uma só língua. Deslocando-se e espalhando-se em direção ao oriente, os homens descobriram uma planície na terra de Sinar e depressa a povoaram. E começaram a falar em construir uma grande cidade, para o que fizeram tijolos de terra bem cozida, para servir de pedra de construção e usaram alcatrão em vez de argamassa. Depois eles disseram: “Vamos construir uma cidade com uma torre altíssima, que chegue até aos céus; dessa forma, o nosso nome será honrado por todos e jamais seremos dispersos pela face da Terra!” O Senhor desceu para ver a cidade e a torre que estavam a levantar. “Vejamos se isto é o que eles são capazes de fazer; sendo um só povo, com uma só língua, não haverá limites para tudo o que ousarem fazer. Vamos descer e fazer com que a língua deles comece a diferenciar-se, de forma que uns não entendam os outros.” E foi dessa forma que o Senhor os espalhou sobre toda a face da Terra, tendo cessado a construção daquela cidade. Por isso, ficou a chamar-se Babel, porque ali foi que o Senhor confundiu a língua dos homens e a espalhou sobre a Terra. (GÊNESIS, s/d, 11:1-8.) Como o texto é mais antigo, uma figura dessa torre demonstra a interpretação literária de um leitor do texto sobre a lenda da torre de Babel. Ilustramos dessa forma para mostrar que o código escrito, mesmo sendo único, não garante que todos tenham a mesma interpretação dos fatos. Observe atentamente o texto. O que você vê? Há uma progressão narrativa, que pode ser percebida pelo uso dos verbos no pretérito perfeito do modo indicativo, o que significa que para o narrador, a história tem caráter verídico. Temos, como referência a personagens “os homens”, o que nos traz a noção de grupo, de vários seres humanos. Nesse sentido, “os homens” pode ser compreendido como a raça humana, por se tratar de uma denominação ampla. Eles (os homens) estavam em um determinado lugar, no tempo em que todos falavam uma só língua (situação inicial). Descobriram, então, uma planície na terra de Sinar, onde começaram a construir uma grande cidade, na qual tiveram a ideia de construir uma grande torre para chegar até o céu, e para que não se espalhassem sobre a Terra (nó). Foi a partir daí que, segundo o texto, Deus resolveu visitar a cidade para ver o que ocorria e, então, vendo a construção da torre, decidiu confundir a língua dos homens, para que esses se espalhassem sobre a Terra (clímax) e, com a separação dos homens pelas diferentes línguas, a cidade parou de ser construída (desfecho). Temos, no texto, uma sequência narrativa completa, rica em detalhes. Na pintura de Bruegel, por sua vez, percebemos uma parte dessa história, mais focada na construção da torre. Observa-se que as proporções do monumento em relação à cidade são gigantescas. Nuvens, inclusive, estão mais baixas do que a torre. No lado esquerdo da torre, que ocupa o centro e o primeiro plano da pintura, vemos a fabricação de tijolos sendo interrompida pela visita de uma figura masculina que, acompanhada de uma comitiva e tendo causado a parada da produção, revela ser alguém muito importante, o que pode ser percebido tanto pelas roupas como pela coroa que usa. A arquitetura da torre, imponente, não remonta técnicas orientais de construção, mas remete à cultura romana, símbolo de perseguição aos cristãos, num formato que chega a assemelharse ao Coliseu romano, um dos grandes símbolos do orgulho e da opulência de Roma. Com isso, chegamos à conclusão de que o artista, ao retratar a obra, quis enfatizar a arrogânciade seus construtores, considerando merecido o castigo divino que os acometeu. Usaremos a torre de Babel como metáfora para explicarmos que a literatura comparada pressupõe analisar a obra literária sob a perspectiva de diferentes línguas, ou seja, analisar uma obra literária comparando-a com as formas como os outros a apresentam por meio de outras linguagens. Caso você tenha notado, o que já realizamos aqui foi um exercício de literatura comparada: partimos do texto para uma de suas releituras, buscando, ao analisar essa releitura, realizar conexões com o texto original. Observemos, a seguir, mais um exemplo: Ainda que eu falasse a língua dos homens E falasse a língua dos anjos sem amor eu nada seria É só o amor, é só o amor Que conhece o que é verdade O amor é bom, não quer o mal Não sente inveja ou se envaidesse O amor é o fogo que arde sem se ver É ferida que dói e não se sente É um contentamento descontente É dor que desatina sem doer Ainda que eu falasse a língua dos homens E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria É um não querer mais que bem querer É solitário andar por entre a gente É um não contentar-se de contente É cuidar que se ganha em se perder É um estar-se preso por vontade É servir a quem vence, o vencedor É ter com quem nos mata lealdade Tão contrário a si é o mesmo amor Estou acordado e todos dormem, todos dormem, todos dormem Agora vejo em parte, mas não vejo face a face É só o amor, é só o amor Que conhece o que é verdade Ainda que eu falasse a língua dos homens E falasse a língua dos anjos, sem amor nada seria (Legião Urbana, 1989) Ninguém pode discordar do lirismo da canção de Renato Russo. O tema do texto é a descrição do amor. Percebemos o tom descritivo do texto pela ampla utilização do verbo de ligação “ser”, flexionado na forma “é”. Ao mesmo tempo, o amor, no texto, não é vinculado à noção de amor sexual, mas de amor fraternal, como algo que deve ser naturalizado e universal. Outro detalhe importante que chama nossa atenção nesse texto é que ele dialoga com outros dois textos mais antigos. Vejamos: Texto 1: Ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. […] O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece. Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal; Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade; Tudo sobre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. […] (I CORÍNTIOS, s/d, 13:1) Texto 2: Amor é um fogo que arde sem se ver; É ferida que dói, e não se sente; É um contentamento descontente; É dor que desatina sem doer. É um não querer mais que bem querer; É um andar solitário entre a gente; É nunca contentar-se de contente; É um cuidar que se ganha em se perder; É querer estar preso por vontade; É servir a quem vence, o vencedor; É ter com quem nos mata, lealdade. Mas como causar pode seu favor Nos corações humanos, amizade, Se tão contrário a si é o mesmo Amor? (CAMÕES, p. 15) Observa as semelhanças temáticas? Um texto do século XX dialogando com dois textos, sendo que ambos, já possuem, no mínimo, cinco séculos! E o arranjo dos dois, juntos, constitui uma obra prima da música brasileira. O tema de ambos os textos é o amor. O texto de Luís Vaz de Camões busca descrevê-lo por meio de uma série de figuras de linguagem, de elementos marcados por contrastes, de uma atmosfera de tensão. A canção escrita por Renato Russo, por sua vez, é marcada por um tom descritivo acerca do amor, sendo que, em sua constituição, a mesma se utiliza de paráfrases e de citações do poema “amor é fogo que arde sem se ver”, de Camões, e também de elementos relacionados aos textos bíblicos, que abordam o mesmo tema. É possível perceber, na canção de Renato Russo, deste modo, uma relação intertextual com o poema de Camões e com o texto bíblico, uma vez que os textos mais atuais - no caso, a letra da canção – retomam os anteriores, citando-os, complementando-os, indo além daquilo que foi dito. Desde modo, a intertextualidade se manifesta como uma possibilidade de “conversar” com outros textos, de modo a atribuir-lhes determinados sentidos, ou mesmo, de “criar” novas possibilidades interpretativas e semânticas. No texto de Camões, por exemplo, o amor tratado é o amor romântico; já na canção de Renato Russo, sua citação complementa o sentido da definição de um amor mais fraternal. Com isso, modifica-se também o sentido do texto de origem, reforçando ainda mais sua literariedade. Perceba que a intertextualidade só se torna possível quando o diálogo estabelecido entre os textos é um diálogo literário. Outros textos, do mundo real, com linguagem objetiva, talvez não tenham a mesma possibilidade. Nenhum texto surge do nada; antes, ele é o resultado das interações de mundo que seu autor foi realizando ao longo da vida. O filme “Somos tão jovens” (2013) retrata a biografia de Renato Russo, bem como suas produções de maior sucesso. Vale a pena conferir. Vimos até aqui que a literatura comparada trata das relações existentes entre uma obra literária e outras obras artísticas, sejam elas literárias ou não, além de outros campos do saber, aspectos culturais e históricos, dentre outros. A literatura da qual falamos até aqui remete àquela produção artística que utiliza a palavra como elemento principal, sendo caracterizada por um tipo de linguagem específico, que caracteriza a obra literária como objeto artístico. Neste capítulo, você aprendeu que o texto literário é, antes de tudo, uma produção humana, que utiliza a linguagem de um modo diferente do cotidiano. A literatura pode ser definida como a arte das palavras. As obras de arte (literatura, pintura, escultura, música etc.) conversam entre si. Essa conversa marca tanto formas de interpretação da obra anterior, quanto um elemento denominado “intertextualidade”. Identificando as marcas da linguagem literária Características da linguagem literária Para avançarmos em nossos estudos, precisamos definir alguns elementos que caracterizam a linguagem literária, possibilitando ao leitor diferenciar textos literários de nãoliterários. Domício Proença Filho (2004) nos ajuda a compreender esses elementos, vamos lá! Ambiguidade A ambiguidade, num texto literário, atinge uma dimensão de multiplicidade de sentidos, possibilitando diferentes interpretações de um dado texto, a partir da compreensão leitora e de mundo de quem lê. Um exemplo clássico dessa ambiguidade é a eterna dúvida que o narrador de “Dom Casmurro”, de autoria de Machado de Assis, deixa aos seus leitores: afinal de contas, Capitu traiu ou não traiu Bentinho? Não há evidências concretas, a não ser a desconfiança do personagem, por elementos que ele deduz de sua própria observação. Multissignificação A linguagem literária não tem obrigação de seguir à risca o pacto linguístico estabelecido entre os falantes de uma língua, o que permite que as palavras ganhem novos e outros sentidos, diferentes dos habituais. Na frase proferida por Brás Cubas, narrador da obra “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de autoria de Machado de Assis, o narrador personagem, ao falar sobre sua experiência com Marcela, afirma que ela o amou “durante quinze meses e onze contos de réis”, tornando a lógica do amor sensual em interesse financeiro. Ficção Segundo o Dicionário Mini Aurélio (2008, p. 404) ficção é “1. Ato ou efeito de fingir. 2. Coisa imaginária, fantasia, criação.” Aqui, temos uma lição importantíssima: toda obra literária é uma obra de ficção, ou seja, a literatura, ainda que seja baseada em fatos reais, não tem absolutamente nenhum compromisso com a realidade. Certa vez, em 2011, no estado do Rio Grande do Sul, foi aberta, por tempo limitado, a exposição “Titanic: A Exposição – Objetos Reais, Histórias Reais”. Nessa exposição, uma das primeiras falas do guia era a de que os personagens Rose DeWitt Bukater e Jack Dawson, dirigido por James Cameron e Jon Landau, em 1997, não haviam existido.Com isso, percebemos que o cinema adaptou uma história real para transformá-la em arte, utilizando-se da liberdade artística e poética para criar uma história ficcional. Com isso, também se pode definir a ficção como uma imitação da realidade, nunca como a realidade. Conotação Essa é uma das características mais importantes do texto literário, pois remete à noção de que um texto literário não deve ser interpretado ao pé da letra, como se cada palavra ali existente tivesse o mesmo significado que está cristalizado em nossa cultura. A linguagem conotativa pode ser compreendida como figurada e, por conseguinte, como literária. Por isso, o código literário se constitui na dimensão da subjetividade, possibilitando que cada leitor dialogue com o texto de acordo com suas próprias habilidades leitoras. Isso não acontece, por exemplo, num manual de instruções ou numa bula de remédio, que deve ser utilizada como forma de orientação. Vejamos um exemplo: Receita Ingredientes: 2 conflitos de gerações 4 esperanças perdidas 3 litros de sangue fervido 5 sonhos eróticos 2 canções dos Beatles Modo de preparar dissolva os sonhos eróticos nos dois litros de sangue fervido e deixe gelar seu coração leve a mistura ao fogo adicionando dois conflitos de gerações às esperanças perdidas corte tudo em pedacinhos e repita com as canções dos Beatles o mesmo processo usado com os sonhos eróticos mas desta vez deixe ferver um pouco mais e mexa até dissolver parte do sangue pode ser substituído por suco de groselha mas os resultados não serão os mesmos sirva o poema simples ou com ilusões. (Behr, 1958, s/p.) O poema “Receita” pode ser interpretado ao pé da letra? Seus elementos (ou ingredientes) são palpáveis e do nosso cotidiano físico? Possivelmente, a receita não conseguiria ser “reproduzida”, uma vez que trata de aspectos denotativos e ficcionais. Criatividade Para que a linguagem literária se firme como tal, é imperativo que ela se caracterize pelo desvio da norma linguística tradicional. Poremos dizer que a linguagem literária “milita” contra a automatização do uso linguístico, trazendo de volta expressões em desuso, lançando mão de neologismos, criando metáforas, reorganizando o léxico e os sintagmas. O livro “Grande Sertão: Veredas”, de Graciliano Ramos, é um exemplo do uso criativo da linguagem literária, pois, o autor dá voz a um narrador-homem-do-sertão, com suas nuances de linguagem sem a maquiagem linguística dos grandes centros urbanos. Conforme D’Onofrio (2007, p. 19), [...] o poeta produz uma linguagem que, mesmo usando palavras comuns, recria essas palavras para tornar possíveis relações sempre novas com a realidade. Daí os efeitos surpreendentes, fascinantes, fantásticos da linguagem e da cosmovisão artísticas. A essa criatividade, também chamamos de liberdade poética e entendemos que, mesmo que uma obra literária se utilize da realidade para a criação, ela irá se desviar do curso sem que se atribuam juízos de valor a isso. Estruturação Na literatura, ao contrário de outros gêneros textuais, a estrutura da linguagem pode ser considerada intuitiva, personificada, individual e subjetiva. A utilização metafórica da linguagem possibilita desvios, tanto no campo da interpretação como da estruturação. Literaridade A literariedade pode ser entendida como um conjunto de características que, juntas, conferem a um texto a à sua linguagem a qualidade poética. Em linhas gerais, a um texto só será literário se apresentar marcas de literariedade. Verossimilhança Dizemos que a obra literária é verossímil porque se assemelha a elementos do mundo exterior, porém não é verdadeira; apenas possui a equivalência da verdade. Essa verossimilhança pode ocupar dois domínios dentro do texto, a do “poder ser” e a do “poder acontecer”. São elas que estabelecem a coerência interna e externa do texto. A verossimilhança interna refere-se à sua coerência estrutural, enquanto a verossimilhança externa remete à proximidade, fora do texto, com o mundo real. Deste modo, a obra literária pode não possuir verossimilhança externa, porém, sempre deverá ter verossimilhança interna, para estabelecer a relação coesiva. Vejamos: [...] Quando a noite caiu – morna, estrelada, pingada de vaga-lumes e rascada de grilos – o alto da colina estava completamente deserto de humanidade viva. Numerosas turmas de formigas faziam serão. Lagartos corriam por entre macegas e caraguatás. Aves noturnas, frechavam o ar em voos curtos, acomodavam-se nas árvores ou nos túmulos, eventualmente bicavam insetos ou vermes. Cerca de três da madrugada, um vulto humano saiu do seu esconderijo – um valo encoberto pela copa de árvores – e caminhou meio agachado na direção do cemitério. O seu nome? Nem ele mesmo se lembrava, direito, pois tinha usado muitos em sua vida, uma para cada cidade onde operava. Estava sendo procurado pela polícia de muitos municípios por delitos de furto e roubo. Soubera à tardinha que o mais fino dos sete esquifes insepultos continha uma defunta ricaça, coberta de joias valiosas. Fizera o seu plano e metera-se no valo, antes do sol sumir-se. Agora, se conseguisse fazer o “serviço” rapidamente e fugir para o estrangeiro, poderia ir vendendo as joias aos poucos, com a maior precaução. Um cúmplice o esperava com um cavalo encilhado, numa das muitas encruzilhadas nas vizinhanças de Antares. Ele tentaria cruzar o rio perto da divisa com o Estado de Santa Catarina e tentar a sorte na Argentina ou mesmo no Paraguai. Continuou a andar com toda a cautela, parando de quando em quando para olhar em torno e ficar atento aos ruídos da noite. Levava no bolso do casaco uma lanterna elétrica e no das calças um pé-de-cabra. Era a primeira vez que ia espoliar um cadáver. O principal não era chamar a atenção dos operários que guardavam as entradas das ruas, a uns duzentos metros do cemitério. Só acenderia a lanterna quando o caixão estivesse já aberto e ele precisasse localizar as joias no corpo da defunta. Seu coração batia sereno. Tinha bons nervos. Se não tivesse, não poderia exercer aquela profissão. Chegou a uma das esquinas do cemitério e sondou com o olhar a entrada das ruas fronteiras. A cidade estava às escuras. À fraca luz da lua não divisou nenhum vulto humano. Felizmente a uns dez metros à frente do muro principal, do cemitério estendia-se um longo renque de cinamomos copados, que produziam uma zona de sombra onde ele poderia trabalhar sem ser percebido. Teria o cuidado de esconder a luz da lanterna com o próprio corpo. Sempre colado ao muro (boa ideia, ter vestido a roupa clara) o ladrão aproximou-se dos sete esquifes. O primeiro deles, bem à frente do portão de entrada, era preto e havia sido trazido às cinco horas da tarde. O seguinte – o claro e pequeno – era o que procurava. Ajoelhou-se ao pé dele, desatarraxou-lhe a tampa e, contendo a respiração, ergueu-a, fazendo-a depois escorregar de mansinho para um lado. Tirou a lanterna do bolso e acendeu-a. focou primeiro as mãos da morta, pois ouvira falar no famoso solitário de brilhante. Opa! Naqueles dedos cor de cera de abelha não viu nenhum anel. Os pulsos estavam sem pulseiras. Iluminou o peito da defunta e não viu nenhum broche. No pescoço, nenhum colar... numa relutância supersticiosa focou o rosto do cadáver da dama e estremeceu. Os olhos dela estavam abertos, seus lábios começaram a mover-se e deles saiu primeiro um ronco e depois estas palavras, nítidas: “Senhor, em vossas mãos eu entrego a minha alma.” O ladrão soltou um grito abafado, ergueu-se rápido, deixou cair a lanterna acesa e o pé-de-cabra, e rompeu a correr na direção dos campos desertos... (Érico Veríssimo. Incidente em Antares, cap. XVIII). Observe que a estrutura do enredo narrativo nos leva a viajarmos até a cena do ladrão, pronto para arrombar o esquife de dona Quitéria Campolargo. Até o momento da abertura do caixão, não há nada que não esteja no campo do “pode acontecer”, e não há dúvidas de que, ao longo do texto, a verossimilhança interna funciona perfeitamente. O que nos chama atenção, entretanto,é a morta falar, elemento que não condiz mais com a noção do “pode acontecer”. O texto extrapola a verossimilhança externa, porém sua estrutura e coesão interna continuam perfeitos. O “acordar” de dona Quitéria faz com que a estrutura da narrativa ficcional se torne fantástica. A narrativa fantástica é uma forma de literatura cuja estrutura narrativa apresenta todos os elementos convencionais, porém, seu conteúdo é algo que não existe, ou que não pode ser reconhecido em nossa realidade. Neste capítulo, você aprendeu que a linguagem literária, mesmo que se utilize do mesmo sistema linguístico da linguagem não-literária, é constituída por regras próprias, as quais fogem da objetividade. O texto literário, embora seja semelhante à realidade, não deve ser compreendido como tal, haja vista sua possibilidade de ser interpretado a partir das visões de mundo do leitor. Para se reconhecer a linguagem literária, há algumas características que, resumidas, podem ser: múltiplos sentidos, ambiguidade semântica e liberdade de criação. Essas três características abrem-se para todas as demais estudadas ao longo dessa seção. Conceituando literatura comparada É comum que as pessoas representem a noção de literatura a partir da leitura de um determinado livro. Aceitemos ou não, os livros são a representação idealizada da literatura e, em se tratando de uma análise literária, um grande volume de livros sobre uma mesa pode ser uma das representações iniciais que se tem. Em termos gerais, pode-se dizer que a Literatura Comparada é um campo de estudos oriundo da Teoria Literária que compara diferentes textos, buscando elementos transversais que se aproximam ou se afastam entre essas obras. Um pouco de história A literatura comparada, como campo do saber, tem sua origem histórica a partir do século XVI, sendo uma ciência que se desenvolveu paralelamente ao desenvolvimento dos estudos comparados realizados pelo campo das Ciências Naturais. Na virada dos séculos XVI e XVII, Francis Meres escreveu seu “Discurso comparado de nossos poetas ingleses com os poetas gregos, latinos e italianos.” Mais tarde, em 1602, William Fulbecke escreveu “Um discurso comparado das leis” e, John Gregory publicou “Anatomia comparada dos animais selvagens”. A expressão “literatura comparada” surgiu a partir da corrente cosmopolita de pensamento do século XIX, quando o campo das Ciências Naturais utilizava o método comparativo para extrair leis gerais. Nesse período, obras como “Lições de anatomia comparada”, escrita por Cuvier (1800), “História comparada dos sistemas de filosofia”, de autoria de Degérand (1804) e “Fisiologia Comparada”, de Blainville (1833) estabeleceram alguns marcos para o desenvolvimento da literatura comparada. Nesse mesmo século, na França, o termo “literatura comparada” possui terreno fértil, já que o conceito de literatura para designar um grupo de obras já estava sendo cunhado, publicado – inclusive – no Dictionnaire philosophique de Voltaire. É em 1816 que Noël e Laplace publicam várias antologias literárias, sob o título de “Curso de literatura comparada”, ainda que não houvesse em seu conteúdo, necessariamente, um confrontamento entre as obras. A expressão ganhou popularidade na França a partir do curso “Panorama da literatura francesa do século XVII”, ministrado por Abel-François Villemain na Sorbonne, entre 1828 e 1829. Nessa época, os termos usados pelo autor eram, além de “literatura comparada”, “panoramas comparados” e “história comparada”. Mais tarde, em 1830, J.-J. Ampère, aborda o que chama de “história comparativa das artes e da literatura”, nas obras “Discurso sobre a história da poesia (1830) e “História da literatura francesa na Idade Média comparada às literaturas estrangeiras” (1841). Foi por meio desse autor que a literatura comparada adentrou o campo da crítica literária, por meio de um elogio feito por Sainte-Beuve, na Revue des Deux Mondes, nomeando Ampère como uma espécie de fundador da história literária comparada. Além disso, no âmbito francês, em 1835 Philarète Chasles fórmula alguns dos princípios básicos da história literária comparada, que abrange não só a história da literatura isoladamente, mas também a filosofia e a política. Esses fundamentos foram divulgados por Chasles em seus cursos ministrados no Collège de France, uma das instituições de ensino mais tradicionais da França, pela qual já passaram inúmeros pensadores franceses, em 1841. Em 1887, surge em Lyon a primeira cátedra de literatura comparada, e, em 1910, na Sorbonne, tendo à sua frente nomes como Joseph Texte, Fernand Baldensperger e J.-M. Carré. No contexto alemão, Moriz Carrière adota a expressão vergleichende Literaturgeschichte (história comparativa da literartura), como forma de estudar a evolução da poesia para integrar a literatura comparada à História Geral da Civilização. Entre 1887 e 1810, Max Koch edita o primeiro períodico comparativista, intitulado Zeitschrift der vergleichenden. Em 1886, na Inglaterra, Hutcheson Macaulay Posnett publica o livro Comparative Literature e, na Itália, De Sanctis lecionará, em 1836, a disciplina de literatura comparada em Nápoles. Nos Estados Unidos, são criados Departamentos de Literatura Comparada em Columbia (1899) e em Harvard (1904), sendo ambos bastante influenciados pelos estudos de Irving Babbitt. Em Portugal, a literatura comparada foi introduzida por Teófilo Braga, mas o estudo de Fidelino de Figueiredo, intitulado “Literatura comparada”, como parte de seu livro “A crítica literária como ciência” (1912), é considerado seu pioneiro metodológico. Cabe lembrarmos que a Universidade de Harvard, na atualidade, é uma das principais universidades do mundo, tendo alguns dos mais brilhantes e importantes cientistas de nossa época. Nas primeiras décadas do século XX, a literatura comparada, como disciplina, foi ganhando forma, sendo introduzida nas universidades europeias e norte-americanas. Em 1921, o primeiro número da Revue de Littérature Comparée, de autoria de Fernand Baldensperger e Paul Hazard, orientavam a validação das comparações literárias pelo contato real e comprovado dos autores com as obras, ou dos autores com países, o que abria espaço para que se estudasse fontes e influências, ao passo que também começaram a surgir estudos que se ocupavam com o destino das obras literárias fora de seu país de origem. Também nessa época se considerava importante filiar os estudos literários comparados a uma perspectiva histórica, tornando essa forma de literatura uma ramificação da história literária. Mas não se pode afirmar que essas formas de analisar a literatura comparada foram unânimes. Elas faziam parte do que se pode chamar de “escola francesa” de literatura comparada que, mais tarde, foi questionada por outros pesquisadores, como no caso de René Wllek, cuja oposição ao historicismo francês levou à divisão da literatura comparada, naquele momento, em escolas francesa e norte-americana. Isso não significa, porém, que os norte-americanos não seguissem orientações historicistas, porém, não com a mesma ênfase francesa. Ao lado das escolas europeia e norte-americana, destacase também, como um dos “clássicos” da literatura comparada a escola soviética. Essa escola, que teve como principal representante Victor Zhirmunsky, procurou buscar compreender a literatura como um produto social, procurando diferenciar analogias tipológicas e influências culturais, que para eles seriam marcadores de evolução social. Destacamos como especialistas nessas formas de análise o tcheco Dionýz Durisin. Contribuições teóricas para a área – parte I Manuais franceses Da contribuição dos autores franceses para a literatura comparada, podemos destacar o trabalho de Paul Van Tieghem (1931), que considerava a literatura comparada uma preparação para a literatura geral. Além desses, destacam-se os trabalhos de Marius-François Guyard (“A literatura comparada”, traduzida em 1956), Claude Pichois e André-Michel Rousseau (La littérature comparée, 1968) e Etiemble (Comparaison n’estpas raison, 1963; Essais de littérature (vraiment) générale, 1974). Manual brasileiro No Brasil, os primeiros estudos de literatura comparada, iniciados por Tasso da Silveira, no livro “Literatura Comparada”, seguiram os traços de Van Tieghen, além de autores como F. Baldensperger, Fr Loliée e A. Doupoy. Há uma grande insistência na busca de fontes e de influências. Na prática, considera-se o trabalho de Tasso da Silveira como uma repetição dos manuais franceses, porém, cabe destacar que seu trabalho foi importante para a introdução da literatura comparada no Brasil, na Faculdade de Filosofia do Instituto Lafayette. Outro brasileiro, João Ribeiro, anteriormente, em 1905, havia escrito o livro “Páginas de Estética”, onde traz ideias importantes para a literatura comparada, propondo que se explore os aspectos históricos, críticos, linguísticos e literários nas análises. Diferentemente de Silveira, João Ribeiro seguia uma linha mais germânica em seus estudos. Além desses nomes, destacam-se os pesquisadores Otto Maria Carpeaux, Eugênio Gomes e Augusto Meyer. Função da literatura comparada Em si, o termo “literatura comparada” não é, a grosso modo, de difícil interpretação, por remeter a comparação entre obras literárias. Se literatura, como já vimos antes, é a arte construída por palavras, comparação significa estabelecer elos e confrontos entre objetos, literaturas, obras etc. Porém, […] quando começamos a tomar contato com trabalhos classificados como “estudos literários comparados”, percebemos que essa denominação acaba por rotular investigações bem variadas, que adotam diferentes metodologias e que, pela diversificação dos objetos de análise, concedem à literatura comparada um vasto campo de atuação. (CARVALHAL, 2009, p. 5). A literatura comparada (ou literaturas comparadas) consiste numa análise literária que estabelece um diálogo entre duas ou mais obras. Dada sua diversidade de metodologias de análise, ela se constitui como um campo bastante eclético, tanto em termos de metodologias como de materiais a serem comparados. Porém, não se pode reduzi-la a um comparativismo livre. Segundo Carvalhal (2009, p. 7, grifos da autora), Pode-se dizer, então, que a literatura comparada compara não pelo procedimento em si, mas porque, como recurso analítico e interpretativo, a comparação possibilita a esse tipo de estudo literário uma exploração adequada de seus campos de trabalho e o alcance dos objetivos a que se propõe. Desse modo, pode-se entender que a literatura comparada não tem um fim em si mesma, mas pode e deve ser usada como um recurso investigativo para se atingir um determinado fim. Isso não significa dizer que não existem divergências em relação à compreensão do que é literatura comparada, principalmente porque esse é um estudo de natureza ambígua. Também, como já abordamos na seção anterior, essa dificuldade se caracteriza pela diferenciação das vertentes e dos manuais que a estudam, que partem de concepções mais tradicionais ou mais generalizadas. Divergências de entendimentos à parte, há uma questão na qual se tem concordado: a literatura comparada abrange mais uma pluralidade de procedimentos de análise literária do que propriamente um único método ou teoria; estaria mais perto do que denomina Carvalhal (2006): seria um “procedimento mental” e, como tal, generaliza ou diferencia. O ato de comparação faz parte da natureza humana e consiste em colocar “lado a lado” mais de um elemento, estabelecendo potencialidades e limites entre eles, sendo estabelecidos, inclusive, padrões e juízos de valor. Deste modo, a comparação existe para diferenciar ou para igualar elementos. Quando a comparação ocupa lugar central num estudo literário, podemos dizer que estamos falando de um estudo comparado, pois: […] a literatura comparada compara não pelo procedimento em si, mas porque, como recurso analítico e interpretativo, a comparação possibilita a esse tipo de estudo literário uma exploração adequada de seus campos de trabalho e o alcance dos objetivos a que se propõe. Em síntese, a comparação, mesmos nos estudos comparados, é um meio, não um fim. (CARVALHAL, 2006, p. 7, grifos da autora). Podemos entender que a literatura comparada trabalha não apenas com temas históricos e nacionais, mas com temas sociais, filosóficos, sociológicos e abrange diferentes vertentes, sejam literárias ou não. Tudo a que o pesquisador se propuser a estabelecer semelhanças e diferenças com uma obra literária, desde que a obra literária seja o ponto de partida, pode ser compreendido como uma forma de procedimento comparativo. […] os estudos literários comparados não estão a serviço das literaturas nacionais, pois o comparativismo deve colaborar decisivamente para uma história das formas literárias, para um traçado de sua evolução, situando crítica e historicamente os fenômenos literários. (CARVALHAL, 2006, p. 85). Pode-se perceber, deste modo, que literatura comparada designa não apenas a comparação despretensiosa entre as obras, mas, mais do que isso, trata-se de um procedimento plural e sério, que contribui significativamente para o campo de estudos da crítica literária. Para Guyard (1994), um dos pensadores clássicos do tema, a Literatura Comparada é a história das relações literárias internacionais. Afirma o autor que: O comparatista se encontra nas fronteiras, linguísticas ou nacionais, e acompanha as mudanças de temas, de ideias, de livros ou de sentimentos entre duas ou mais literaturas. Seu método de trabalho deve se adaptar à diversidade de suas pesquisas. (GUYARD, 1994, p. 97). Assim, verifica-se que a literatura comparada auxilia e é auxiliada pelo campo da Teoria Literária, realizando o trabalho de, durante a análise de textos literários oriundos de diferentes culturas e nacionalidades, estabelecer relações das mais diversas entre eles. Na prática, embora bastante calcada na História da Literatura, os livros didáticos de Língua Portuguesa, por exemplo, realizam exercícios de comparação quando estabelecem, para um determinado período literário, comparações entre obras francesas, portuguesas e brasileiras, por exemplo. Crises teóricas Ainda que os estudos comparados florescessem em outros lugares longe da França, por décadas os manuais franceses obtiveram certa hegemonia na orientação do campo teórico. Porém, esse terreno exclusivo sofreu seu primeiro abalo no ano de 1958, durante o 2º Congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada, durante a conferência “A crise da literatura comparada”, proferida por René Wellek. Nessa conferência, Wellek aborda as fragilidades da disciplina, bem como sua dificuldade em estabelecer um objeto de estudo e uma metodologia, opondo-se à literatura comparada e à literatura geral. Segundo Wellek, a literatura comparada estaria reduzida à seleção de fragmentos para análise, deixando de lado aspectos mais integrais das obras. Além disso, a investigação dos aspectos internacionais das obras levaria o pesquisador a se ocupar somente com aspectos externos às obras. Ainda, Wellek rejeita o princípio causalista dos estudos clássicos, considerando-os ineficientes. Wellek propôs um modelo de análise inspirado nos princípios do estruturalismo de Praga, o que foi algo inovador na época, divididos em relações de solidariedade tipológica e em contatos externos. A partir daí, embora o modelo proposto por Wellek, apesar de inovador ainda possuísse fragilidades, durante a continuidade do século XX, os estudos literários ganharam maior caráter científico, impulsionando a teoria literária. Neste capítulo, você aprendeu que a Literatura Comparada é um campo de conhecimentos que busca analisar e estabelecer proximidades e distanciamentos entre diferentes textos literários. O estudo comparado da literatura começa a ser desenvolvido a partir do século XIX. Desde seu surgimento, a literatura comparada é palco de diferentes ênfases teóricas que, mesmo discordantes, são importantes para sua constituição e consolidação como campo científico. Relacionando literaturacomparada e tradução literária Nem sempre, ao comprarmos um livro literário, podemos ater acesso ao original, especialmente no que se refere às barreiras linguísticas. Diante disso, ou o leitor compra uma obra em língua estrangeira e se torna uma espécie de autodidata, ou opta por uma tradução. Neste segundo caso, há que se considerar uma série de elementos, já que, nem sempre, as traduções, ou mesmo as adaptações literárias, são fiéis ao original. Isso pode acontecer por diversos fatores, entre eles, a fluência do tradutor – um tradutor que conhece a cultura da língua que está traduzindo pode possuir uma visão diferente de um tradutor técnico -, a existência de expressões “intraduzíveis” em nossa língua, dentre outros fatores. Algo que chama atenção, também, no que se refere à tradução, é o contexto, já que a obra literária, como uma imitação da realidade, pode remeter a situações típicas de uma região e de uma cultura, o que nem sempre pode ser “legível” em outro espaço. Daí, nesse caso, entra o trabalho da Literatura Comparada: oferecer uma forma de tradução que seja capaz de traduzir não apenas a língua, mas suas nuances e desdobramentos culturais, que nem sempre se aprende nos manuais de estudo. Para esclarecer o que queremos refletir nesse espaço, trazemos uma reflexão a partir do texto “Entenda o perigo de uma tradução literária ao pé da letra!”, disponibilizado pelo site 2tr e que, embora fale apenas sobre a tradução, também pode ser pensado no contexto da tradução literária: Traduzir um texto de forma automática tem facilitado o dia a dia de muita gente que necessita entender ou se fazer entender em outro idioma de forma rápida e prática. No entanto, quem já se utilizou de um software de tradução pelo menos uma vez sabe que sua tendência é traduzir as palavras e expressões ao pé da letra, tornando os textos - por vezes – sem sentido e engraçados. Mesmo que seja relativamente inofensivo nas comunicações informais do dia a dia, a tradução de uma palavra de forma literal pode ser perigosa, especialmente para quem precisa empregá-las em contextos mais complexos. Historicamente, a chamada “tradução ao pé da letra” ser perigosa não é nenhuma novidade para quem conhece ou necessita conhecer uma segunda língua, especialmente para quem trabalha com tradução. Os perigos da tradução literal – diga-se de passagem – são conhecidos desde os primórdios da história da tradução. Durante a Antiguidade, Cícero – que foi um dos primeiros tradutores da história -, defendia que era necessário buscar repassar de uma língua para outra o peso das palavras no lugar, apenas, de seu número, ou seja, seu sentido geral no lugar da análise dos termos de forma separada. Alguns séculos depois, São Jerônimo, que foi o primeiro tradutor da Bíblia, considerado atualmente o patrono dos tradutores, procurou trabalhar numa tradução por ideias ao invés de por palavras, com o objetivo de preservar ao máximo o sentido original. E no período do Iluminismo, o filósofo alemão Voltaire tencionou o mito de Babel, pela sugestão que nele ficava implícita, de que todas as línguas teriam a mesma origem, o que corresponderia também que todas tinham correspondência perfeita entre elas e, por isso, poderiam ser traduzidas literalmente, sem nenhum cuidado. Seu pensamento levou os estudiosos a perceberem a impossibilidade de uma tradução sempre literal, especialmente, por poder apresentar alguns perigos, tais como: ● Compreensão com estranhamento: É óbvio que existe a possibilidade – mesmo que remota – de uma frase ou expressão de um determinado idioma ter o mesmo sentido em outro, porém, isso é bem raro de acontecer, e o melhor que pode ocorrer, numa tradução literal, quando não há correspondência linguística, é que o falante da língua-alvo (isto é, do idioma para o qual se está traduzindo) tenha um entendimento parcial ou total do texto, ainda que haja alguma confusão. Isso ocorre, por exemplo, quando se traduz a expressão inglesa “seat belt” ao pé da letra, que significa “cinto de assento”, ao invés de “cinto de segurança”, em português. Conforme o contexto, o falante de português possivelmente entenderia a expressão, mas a estranharia. ● Total incompreensão: Quando a tradução ao pé da letra não tem nenhuma relação com o correspondente da língua-alvo, o falante pode simplesmente não compreender nada do que está sendo dito. Isso pode acontecer, por exemplo, quando se traduz uma expressão idiomática de maneira literal, como no exemplo da frase francesa “les carrores sont cuites” que, embora signifique “as cenouras estão cozidas, na realidade, expressa uma situação que não é passível de ser mudada. ● Inadequação na compreensão: Além disso, o maior perigo da tradução literal é a criação de uma frase ou expressão que na língua-alvo pode até fazer sentido, porém, possuindo um significado completamente diferente do que se pretende dizer, soando – por vezes – até como ofensivo ao falante da línguaalvo, levando-o inclusive a construir um significado exatamente oposto àquele que se pretendeu ter. Um bom exemplo é a palavra alemã “Schwarzfahrer”, muito encontrada nos trens e metrôs na forma do aviso “Schwarzfahrer zahlen €40”. Se a traduzirmos ao pé da letra para o português, a placa diz que “passageiros negros pagam 40 euros”, o que, inclusive, pode soar como uma afirmação completamente racista. Porém, “Schwarzfahrer” usa o adjetivo “negro” para se referir a algo ilegal — isto é, pessoas que usam o transporte sem pagar passagem —, da mesma forma como, em português, usamos a expressão “mercado negro”. ● Evitando a tradução literal equivocada: Para se fugir desses perigos, antes de qualquer coisa, é necessário verificar se o trecho que foi traduzido ao pé da letra faz sentido na línguaalvo, e ainda se esse sentido se esse sentido é igual ou pelo menos equivalente ao do original. Exemplificamos com a expressão “falando do diabo” que, em inglês, significa “speaking of the devil”, cuja tradução – nesse caso – tem realmente o mesmo significado em ambas as línguas. No entanto, o melhor a se fazer é buscar um correspondente que seja usado, na língua-alvo, mais ou menos no mesmo contexto que aquele da língua-fonte. Para a expressão francesa “les carrotes sont cuites”, abordada anteriormente, poderíamos usar a expressão “não adianta chorar sobre o leite derramado”, indicando que agora é tarde para tentar mudar algo que ocorreu no passado. Do mesmo modo, o aviso “Schwarzfahrer zahlen €40” deve ser traduzido para outras línguas com a mesma expressão usada no transporte público do país. No Brasil, como esse tipo de aviso não é comum, seria possível dizer simplesmente algo como “proibido viajar sem passagem” ou “viajar sem passagem acarreta multa de 40 euros”.De qualquer forma, o melhor é procurar saber qual é a expressão exata usada pelos nativos da língua-alvo em um contexto semelhante ao da língua-fonte. ● Traduções literais aceitáveis: Mesmo com todos esses perigos, há situações em que a tradução literal é a melhor escolha. Isso acontece especialmente em textos de alto valor literário, de preferência com comentários ou com notas explicativas do tradutor, ou ainda em textos nos quais se pretende tratar exatamente das diferenças entre dois ou mais idiomas. Nesses casos, a tradução literal pode ajudar para que o leitor que possui pouco ou nenhum conhecimento da língua estrangeira possa se familiarizar com sua construção e também com sua forma de expressão de certos significados. Em textos com funções mais práticas e objetivas, entretanto, permanece a regra de fugir da tradução ao pé da letra sempre que isso for possível. Compreende, caro aluno, porque a tradução literária (especialmente a literal) pode ser um problema? É importante que prestemos atenção a isso, a fim de que optemos sempre pela melhor escolha em se tratando de obra literária, seja original, traduzida ou adaptada. Das relações entre literatura comparada e tradução literária: algumas considerações Na seção anterior, a partir da explanação do desenvolvimento da LiteraturaComparada, abordamos de forma breve algumas observações em relação à relação entre LC e tradução literária. Considerar a relevância do papel da tradução literária na história da literatura e cultural reflete levar em conta o papel transformador da obra literária. Conforme Sandra Bermann (2010, s/p) À medida que o papel da tradução no contexto póscolonial, pós-estruturalista e pós-, sub- e internacional se lança no cenário mundial hoje, sua capacidade tanto de estender a vida dos textos literários e culturais, mas também de intervir em seus efeitos globais vem à tona. Para a autora, é importante que se leia da mesma forma como se traduz, estando-se atento aos níveis linguísticos do texto (fonemático, semântico etc.), como também uma tradução requer atenção ao contexto de produção da obra, reconhecendo na obra os aspectos que formaram sua cultura. Em parte, dizer que considerar os aspectos culturais de produção de uma obra literária é importante no momento da tradução, significa ter mais do que uma versão traduzida do texto. Alguns autores brasileiros do século passado já haviam atentado para essa importância, chegando a afirmar – inclusive – que há uma diferença entre os processos denominados “escritura” e “tradução”, sendo a primeira uma reescrita decodificada, e a segunda, considerada uma tradução também do contexto. Também, cabe mencionar que questão da tradução se refere ao fato de que a residência “oficial” da arte literária é a língua nacional, sendo a forma linguística original um dos elementos artísticos do texto. Porém, isso não significa que seja o único elemento a ser considerado. Deste modo, a grande discussão em torno da utilização de traduções para a comparação está no fato de que se acredita que elementos linguísticos e até mesmo contextuais importantes podem ser perdidos com as traduções. Porém, a utilização dos originais linguísticos também apresenta seus obstáculos, dentre os quais está o conhecimento das línguas e um domínio muito maior das literaturas. Sara Rodrigues (s/d) salienta a importância de que se leia como se traduz, dando-se atenção para todos os níveis textuais, desde o fonemático, ao semântico, considerando também os aspectos culturais e situacionais dos textos A grande questão da tradução para a Literatura Comparada encontra-se no reconhecimento do outro, no respeito às suas singularidades. Afirma a autora que: Ao tratar da (sempre presente) questão do papel da tradução em sua relação com a literatura e a cultura (essencial, no caso dos cursos superiores de tradução), […] pode-se concluir que a literatura e as demais áreas humanas, embora com fronteiras disciplinares delineadas, interpenetramse continuamente. O fator de definição desta relação é a tradução das teorias que enformam essa relação. A tradução (a mais disciplinar das atividades) vincula-se de maneira muito especial com a literatura, especialmente com a Literatura Comparada. A Literatura Comparada, em nosso ponto de vista, é um modo de ler. Na Literatura Comparada há a primazia do confronto, do estudo e da diferença. Este é o estudo que, sublinhando a diferença, faz o diferente ser respeitado: de mãos dadas com os Estudos de Tradução, foi uma das bases dos estudos pós-coloniais. Juntamente com os Estudos de Tradução, pode auxiliar a tornar nossos paradigmas e experiências no mundo contemporâneo inteligíveis, o que é condição primeira para transpor limites e avançar. (RODRIGUES, 2010, p. 25) Na visão da autora, os Estudos de Tradução, considerando a necessidade de que se realize uma tradução mais contextualizada das obras, podem contribuir de forma significativa para o aperfeiçoamento da Literatura Comparada. Os estudos de tradução são um campo de conhecimento que se ocupa do estudo de teorias relacionadas à tradução e interpretação, relacionando conhecimentos das Ciências Sociais e Humanas. A tradução literária é um movimento bastante complexo, que não pode ser simplificado, na atualidade, em se “jogar” trechos do texto num tradutor online. Para uma tradução literária de qualidade, primeiramente, o tradutor deve possuir um conhecimento avançado daquela língua estrangeira, com um entendimento de suas nuances, gírias, estigmas etc Você já parou para pensar que expressões do nosso dia a dia podem não ser entendidas tão facilmente por falantes de outras línguas? É o caso da expressão “morrer de rir”, que pode não existir ou não ser dita deste modo em outras línguas. De modo geral, a tradução literária é um elemento bastante importante no contexto da Literatura Comparada, porque uma análise qualitativa dependerá da qualidade da tradução. Por isso, é importante que o tradutor conheça não só a língua, mas – como já mencionado anteriormente – as nuances linguísticas, as construções culturais, as figuras de linguagem existentes naquela língua. Da mesma forma, a as línguas estrangeiras também têm suas marcas sociais, esses detalhes são importantes, tanto para a tradução, como para a análise comparada, uma vez que esses elementos que ficam “nas entrelinhas culturais” da língua possibilitam a construção de uma análise consistente. Além disso, é relevante conhecer o contexto social que a obra enfoca, assim como suas diferenças sociais, já que um determinado livro literário pode abordar essas diferenças. Livros que abordam relações entre personagens de diferentes classes sociais, por exemplo, necessitam desse enfoque. Para concluir nossa discussão, existem muitas reflexões acerca da constituição da tradução literária, e essa se tornou objeto de estudos da Literatura Comparada por considerar-se que, como um campo do saber que analisa obras de diferentes nacionalidades, para que se estabeleça relações de comparação e de diferenciação fidedignas entre as obras, é necessária uma tradução que seja profundamente conhecedora da língua original em que a obra for escrita. Se o pesquisador próprio a traduzirá, ou se utilizará um volume já traduzido, dele levar em conta que tipo de tradução foi realizada, para que as preciosidades daquela língua não se percam. Claro, isso também é complexo, pois se o pesquisador também não conhece aquela língua, em sua análise podem passar despercebidos elementos importantes daquela cultura. Claro, como mencionamos anteriormente, a linguagem do texto não é a única preciosidade que ele possui, mas é essencial para que, juntamente com outras características literárias que a obra possui, a Literatura Comparada possa estabelecer e exercer seu papel. Recomendamos os seguintes materiais complementares: PERISEÉ, Gabriel. Literatura & Educação. 1 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. VEREDA LITERÁRIA – Tânia Franco Carvalhal fala sobre Literatura Comparada. Nessa unidade, você aprendeu que os principais elementos que constituem a linguagem literária, e que diferenciam textos literários de textos não-literários. A definição e o contexto histórico da Literatura Comparada, que como ciência, vem se desenvolvendo desde o século XIX. Os principais autores que contribuíram para o desenvolvimento da Literatura Comparada. Os pressupostos em relação à Literatura Comparada e à tradução. UNIDADE 2 Compreendendo os gêneros literários: conceito, história e características gerais A organização da literatura em gêneros: um pouco de história Podemos dizer que, talvez, o primeiro pensador da teoria literária tenha sido o filósofo Aristóteles (384-322 a.C.), que procurou classificar a literatura grega em três classificações distintas, organizadas a partir de características que o filósofo considerou comuns. Naquele momento, Aristóteles deu para essa classificação o nome de “gênero”, considerando nessa nomenclatura a noção de origem, e compreendendo que a cada gênero são conferidas diferentes ramificações, compreendidas como “espécies”. Essa definição fica mais clara se compreendermos que a palavra gênero, em sua origem latina genus-eris, significa origem, classe, espécie. E essa definição, desde a Antiguidade, não mudou: quando falamos nos gêneros literários, estamos, sim, dizendo que é possívelfiliar cada obra literária a uma determinada classe ou espécie. Quando isso não é possível de ser feito, diz ter uma nova modalidade literária. A filiação das obras, por sua vez, só se torna possível por meio de métodos comparativos e classificatórios. A junção desses elementos comparativos possibilita o estabelecimento de normas e regras gerais para cada gênero, que são observadas nos textos literários por meio de sua predominância ou totalidade. Há teóricos e estudiosos que, inclusive, defendem que a literatura apresente certa universalidade em relação aos gêneros, qualificando – inclusive – a natureza que os gêneros literários possuem não como um elemento descritivo, mas prescritivo e imutável. Isso cria uma divisão entre aqueles que defendem a imutabilidade da literatura e aqueles que acreditam na sua liberdade criadora. Se retomarmos os antigos gregos, veremos que a primeira referência sobre os gêneros literários, de autoria de Platão (cerca de 428 a.C. – cerca de 347 a. C.), atribuía às artes uma função moralizadora por meio da imitação. Aristóteles, por sua vez, recusava a hierarquia estabelecida por Platão, trazendo, em sua Poética o conceito de mímesis. O conceito de mímesis, embora não claramente formulado por Aristóteles, marca a diferença entre o modo de perceber arte e realidade, relacionando a arte ao fruir de um prazer que diferente do que se sente no mundo real. Essa diferenciação por meio do prazer possibilita a valorização do trabalho poético. A partir da concepção de mímesis, foi possível estabelecer algumas qualidades que, embrionárias, configuraram os gêneros literários: ● Conforme o meio em que se realiza a mímesis, era possível diferenciar a poesia ditirâmbica da trágica e da comédia, pois, ainda que todas utilizassem o verso e a métrica, o faziam de forma diferente; ● Conforme o objeto da mímesis, há possibilidade de distinguir, por exemplo, a tragédia (que apresentaria homens melhores para os padrões da Antiguidade) da comédia (que representaria os homens “piores”); ● Segundo o modo da mímesis, seria possível diferenciar o processo narrativo do processo dramático, pois no primeiro, o poeta narraria os fatos, enquanto no segundo, aparentemente não haveria intervenção direta do narrador. Aristóteles, diferentemente de Platão, via a diferença dos gêneros mais ligada ao conteúdo. Outro pensador da Antiguidade que auxilia a formulação dos gêneros literários é o romano Horácio (65 a.C. – 8 a.C.), que atribui à literatura as funções poética e didática, incluindo algumas reflexões sobre os gêneros, com foco na questão da adequação entre o assunto escolhido e o ritmo, o metro e o tom, considerando poeta aquele que consegue utilizar adequadamente esses aspectos. Nesse sentido, Horácio contribuiu fortemente para a eliminação do hibridismo entre os gêneros. Durante o medievo, novos conteúdos e novos gêneros foram surgindo, rompendo com algumas concepções clássicas. Dante Alighieri, na Divina Comédia, contribuiu para o hibridismo entre gêneros, alternando entre epopeia, tragédia, comédia e elegia. O Renascimento cultural, ocorrido a partir do século XV, retoma os preceitos da tradição greco-latina, retomando a noção da mímesis de Aristóteles não como recriação, mas como imitação da natureza. A partir disso, a teoria dos gêneros adquire um caráter bastante normativo e de imitação. No século XVII, o francês Nicolas Boileau-Despréaux, em sua Arte poética, fundamenta a arte na razão, defendendo o bom senso, o equilíbrio, a clareza e adequação como condições principais da poesia. A noção de gênero literário horaciana permanece como espécie fixa, de regras que devem ser obedecidas. Já na segunda metade do século XVIII, o movimento préromântico do “Sturm und Drang” alemão contribui para a noção de gênero por meio da noção de historicidade. É nesse período que a individualidade e a autonomia de cada obra são valorizadas, sendo priorizada a liberdade de criação e a autonomia do escritor. No século XIX, época em que as ciências naturais vigoraram, o professor universitário francês Brunetière (1849- 1906) defendeu a noção de que os gêneros literários evoluíam e se diferenciavam historicamente, como ocorria com as espécies naturais. Nessa concepção, o gênero literário se assemelharia a um organismo vivo. Era mantida, dessa forma, a normatividade dos gêneros, porém essa normatividade, independentemente das criações literárias, seguiria uma ordem natural. Eram os gêneros também que determinariam as características da literatura, e não o contrário. Sua proposta era um estudo sobre a origem, a evolução e a dissolução dos gêneros. Ainda na esteira do século XIX, o italiano Benedetto Croce (1886 – 1952) se opôs à ideia de Brunetière, especialmente no que se referia às suas concepções dogmáticas. Segundo ele, o conhecimento era intuitivo, e lógico, produzindo imagens e conceitos, o que dispensaria a total submissão à rigidez das regras Dessa forma, Croce se aproximava mais das concepções românticas, avançando com o argumento de que as semelhanças entre as obras seriam elementos secundários na análise literária. Inicialmente, o autor chegou – inclusive – a abandonar a noção de gêneros, o que foi retomado em sua obra posteriormente. De modo geral, o pensamento croceano negava a substancialidade dos gêneros literários, mas considerava a importância de sua instrumentalidade. O século XX foi um momento de efervescência de teorias e de modos de compreender os gêneros literários, dentre os quais destacamos trabalhos como os de Vossler, que ajudou a criar a compreensão da estilística moderna, as proposições do New Cristicism do autor Allan Tade, o início do Formalismo Russo por meio da teoria do estranhamento, de Chklovski. Tynianov foi um autor que contribuiu, por meio do movimento formalista, para aproximar a série literária e a não literária, por meio dos princípios de função, sistema, e dominante, tornando a noção de gênero um fenômeno mais dinâmico e mutável. Tomachevski, também representante do grupo formalista, observava os traços dos gêneros como agrupamentos de procedimentos possíveis de se perceber, ressaltando a impossibilidade de se estabelecer uma classificação lógica ou mesmo fechada dos gêneros, já que eles são elementos históricos. Outro autor, Luiz Costa Lima, fundamentado em Bakhtin, se voltaria para a questão da percepção nos gêneros literários que, além dos traços linguísticos, consideraria também as expectativas do receptor, assim como a maneira como a obra literária capta a realidade. Com isso, o autor abandonava as propostas caracterizadoras do literário apenas pela linguagem. Roman Jakobson, a partir de sua teoria sobre a hierarquização das funções de linguagem no texto poético, afirma que o texto literário possui predominância na função poética de linguagem, e no que se refere aos gêneros, abaixo da função poética dominante dos textos estariam a função referencial no gênero épico, a função emotiva no gênero lírico e a função conotativa no gênero dramático. É também ao longo da primeira metade do século XX que floresce a ideia de “formas naturais” para o texto poético, herdadas do Romantismo de Goethe. Tais formas seriam o épos, a lírica e também o drama. André Jolles distingue nove formas simples do que considera serem “formas fundamentais” da literatura: chiste, conto, memorável, caso, ditado, adivinha, mito, saga e legenda. Emil Staiger, em seu livro Conceitos fundamentais da poética (1946) propõe que os traços estilísticos líricos, dramáticos ou épicos pode ou não se manifestar em qualquer texto, independentemente do gênero. Esses traços poderiam aparecer em maior ou menor quantidade, serem combinados, de forma que nenhuma obra, na visão do autor, seria predominantemente pertencente a um só gênero. No livro Anatomia da crítica (1957), Northop Frye traz a noção dos gêneros clássicos e acrescenta um quarto gênero: a ficção. Afirma o autor que cada um dos gêneros tem sua própria forma de mímesis. Hans Robert Jauss também se debruçou sobre o tema, afirmandoque toda obra se vincula a um conjunto de informações e a uma situação particular de apreensão, pertencendo a um gênero na medida em que admite determinadas expectativas. Desse modo, o gênero seria um elemento histórico, guiado pelo conhecimento das expectativas de recepção e de produção. De modo geral, podemos dizer que o estudo dos gêneros literários não é algo novo. Desde a Antiguidade, filósofos e estudiosos já discutiam acerca da natureza da linguagem literária. A partir disso, podemos resumir nossa breve incursão histórica pela história dos gêneros literários em cinco pontos: 1. Ainda que se leve em consideração as características genéricas do texto literário, não se deve descrever um gênero de forma desconectada de sua recepção, e das formas como o receptor atua sobre ele; 2. Os gêneros literários, como produtos históricos, têm suas características em constante transformação. Isso permite dizer que a disponibilidade para perceber a liberdade de criação deve ser maior do que a busca por elementos normativos e fixos; 3. Os receptores dos textos literários são diferentes; portanto, diferentes leituras de um mesmo texto podem ser feitas. E também, mesmo que a estrutura do texto busque desconstruir a noção de gênero, essa desconstrução só é possível porque há um conjunto de obras que possibilitam a formação de um horizonte de expectativas em relação à obra e ao próprio poeta; 4. Identificar isoladamente determinados traços numa obra não é tão importante quanto a observação de como cada traço se relaciona com outros da mesma obra, a fim de reconhecer o texto como pertencente a um campo semântico lírico, narrativo ou dramático; 5. É importante tomarmos a teoria dos gêneros literários como um meio para nos auxiliares em relação ao conhecimento literário necessário para reconhecimento, apreciação e julgamento de uma obra. Porém, as características dos gêneros, olhadas isoladamente, não nos ajudam a localizar uma obra dentro da literatura. É importante você compreender que os gêneros literários não são categorias fixas, imutáveis ou impossíveis de serem desconstruídas/ hibridizadas. Os gêneros existem porque, ao longo dos séculos, por meio da comparação literária, procurou-se estabelecer algumas características aparentemente fixas em determinados traços linguísticos e estruturais das obras. Porém, isso não quer dizer que essas características não possam ser redefinidas ou redesenhadas na constituição da pluralidade das formas literárias. Os gêneros literários funcionam como uma espécie de ferramenta que nos auxilia na compreensão e na recepção de um texto literário. Certo? A seguir, veremos algumas características comuns aos gêneros literários. Gêneros literários: algumas características gerais Embora, em nosso estudo, recusemos a noção de que as características dos gêneros literários sejam imutáveis e atemporais, isso não significa que não existam alguns conjuntos de regras gerais e particulares de cada gênero, que precisem ser conhecidas. É dessas regras mais gerais que trataremos nesta seção. Sabemos que, em linhas gerais, a linguagem poética se diferencia da linguagem do dia a dia porque estabelece uma relação entre significante e significado um pouco diferente da comunicação cotidiana, tornando-a uma linguagem distinta. A linguagem, de modo geral, pode ser compreendida como um conjunto de signos que obedecem a determinadas regras de combinação, a fim de expressarem um determinado modelo de mundo. Assim, a literatura poderia ser comparada a um modelo secundário, criado a partir de um sistema linguístico já existente – o do mundo real. A teoria dos signos linguísticos, na qual o signo seria constituído por um significante (o conjunto de sons que tornam a palavra acusticamente possível, trazendo-a para o mundo real) e aquilo que ela representa no mundo mental que constitui uma determinada cultura, o qual chamamos de significado. Ferdinand de Saussure, linguista do século XIX, é quem traz essa importante contribuição para o campo da linguagem. ● Exemplo: Se pensarmos em um livro, seu nome, ou seja, seu significante, é constituído de cinco sinais gráficos, a saber: l + i + v + r + o. Da mesma forma, o som da palavra é constituído pelos cinco fonemas que são representados por pelos sinais gráficos (letras) que o formam. Todos aqueles sujeitos imersos em nossa cultura compreendem, através de suas faculdades mentais, que um livro, independente das preferências particulares do sujeito, é um elemento que possibilita a leitura, independentemente, inclusive, se for um livro físico ou mesmo virtual. Essa imagem mental que cada um associa a palavra “livro” é o que podemos chamar de significado. Para Louis Hjelmslev, a linguagem literária é um sistema cujo plano de expressão pertence a um plano desenvolvido a partir do plano denotativo da linguagem natural. Dito de outros modos, a arte literária torna-se conotativa a partir da base da linguagem denotativa utilizada no mundo real. De modo geral, podemos afirmar que as características comuns aos gêneros literários são: ● Significado conotativo: o sentido da linguagem literária será sempre diferente daquele construído culturalmente, por meio da linguagem denotativa; ● Liberdade de criação: a linguagem literária permite o fruir da criatividade por não se prender ao sentido literal das palavras, nem a realidade. Isso possibilita diferentes criações e formas de apresentação da linguagem literária; ● Estruturas diferenciadas em relação a gêneros textuais cotidianos: não podemos nos esquecer de que a estrutura do texto literário, embora tenha algumas particularidades, não é cativa delas, mas pode ser inovada, tanto em termos históricos como por meio da individualidade de quem escreve. O mundo da literatura é aberto, não sendo necessária uma rigidez estrutural para que o emissor se faça entender pelos receptores; ● Imitação da realidade: independente da forma como se apresente, todo gênero literário (e consequentemente, todo texto literário) será uma imitação do real, não podendo e não devendo ser tomado no sentido denotativo, literal das palavras; ● Funções diferentes das dos textos não-ficcionais: a literatura pode estar conectada com a realidade, apresentando denúncias e críticas sobre essa. Porém, para além disso, a literatura também funciona como uma forma de desenvolvimento artístico e de entretenimento. Sua funcionalidade está mais para o fruir estético do que para uma utilização real. Por isso, trata-se de uma arte subjetiva. Ela é polifônica e autônoma em relação às suas funções, podendo ou não exercer algum papel intencional, mas sempre estando aberta para outras possibilidades de compreensão de suas funções; ● Linguagem em poesia ou em prosa: a noção de poesia, até o período do Neoclassicismo, havia sido considerada como um elemento exclusivamente inerente aos textos escritos em versos. Porém, do século XIX para cá, passou-se a compreender a poesia em um sentido mais amplo, abrangendo o fazer artístico. A poesia, dessa forma, seria o conjunto das atribuições que torna um objeto artístico, o que possibilita que qualquer forma de arte seja considerada poética, inclusive os textos literários em prosa; ● Possibilidade de interpretação por diferentes níveis de linguagem: o texto literário, independente do gênero, permite que o leitor analise em seis níveis, a saber: a) nível fabular: seria o nível da história ficcional, da interligação entre os fatos, bem como o estabelecimento de elementos que tornem possível a compreensão do que trata aquele texto; b) nível atorial: corresponde à análise do fazer e do ser, bem como das funções do personagem na narrativa; c) nível reflexivo: trata dos comentários tecidos pelos personagens, ou das considerações sobre a vida e a realidade, explanadas ao longo do texto; d) nível discursivo: possibilita a análise das figuras de linguagem que tornam o texto literário; e) nível descritivo: trata da análise do espaço onde se desenvolve a trama literária, que pode ser físico ou psicológico (ocorrendo no interiordas personagens); f) nível fônico: analisa os elementos sonoros que constituem o texto, sendo importante para o estabelecimento de relações entre os sons e os sentidos do texto. Esses seis elementos podem ser encontrados em qualquer texto literário, pois, de modo geral, compõem sua estrutura. O que os diferencia na classificação dos gêneros é que alguns elementos podem predominar mais do que os outros dentro do texto, o que não impede que eles existam. Por isso, de acordo com essas predominâncias, na teoria literária, se tem dividido o estudo dos textos literários em teoria da narrativa, teoria da lírica e teoria do drama. resumo bastante prático e interessante sobre os gêneros literários: Acesse o vídeo “Gêneros literários – quer que eu desenhe – descomplica”, Resumindo: A classificação e descrição dos gêneros literários é um estudo fundamentalmente comparativo, uma vez que pressupõe que se busque elementos comuns na linguagem e na estrutura de diferentes textos, não para estabelecer regras imutáveis, mas incidências repetitivas. Até aqui, você aprendeu que a noção de gênero literário surgiu como uma forma de agrupamento dos textos, tanto para fins de estudo e análise, como para fins didáticos. Os gêneros literários seriam os grupos de semelhanças que constituem uma determinada modalidade da linguagem literária. Estariam, talvez, mais preocupados em explicar o que não faz parte daquele gênero do que propriamente o que faz parte, não que isso também não apareça. Porém, o estudo dos gêneros literários parece ser tão eficiente em explicar por que um determinado texto pertence a um determinado gênero e não a outro do que em somente defender sua classificação sem comparar também suas diferenças, além das semelhanças com outros textos. Os gêneros literários têm sido discutidos desde a Antiguidade, porém, nos dias de hoje, o que se tem percebido é que, embora sejam caracterizados por elementos considerados “genéricos”, isso não significa que esses elementos sejam regras fixas e imutáveis, tanto pela história como pela liberdade de criação individual. Há um conjunto de características que distinguem o texto literário do texto não literário. E dessas características, podemos observar a liberdade em relação ao uso da linguagem, a possibilidade de criação poética, a subjetividade e os múltiplos sentidos. Além disso, o texto literário dificilmente apresentará uma função prática, mas será algo mais relacionado à possibilidade de diálogo entre o texto e seu receptor, de acordo com a visão de mundo que esse último apresenta. Identificando os gêneros lírico e dramático O gênero lírico Leia o poema a seguir, de autoria de Vinícius de Moraes: Um poema acentuadamente lírico Apavorado acordo, em treva. O luar É como o espectro do meu sonho em mim E sem destino, e louco, sou o mar Patético, sonâmbulo e sem fim. Desço da noite, envolto em sono; e os braços Como ímãs, atraio o firmamento Enquanto os bruxos, velhos e devassos Assoviam de mim na voz do vento. Sou o mar! Sou o mar! Meu corpo informe Sem dimensão e sem razão me leva Para o silêncio onde o Silêncio dorme Enorme. E como o mar dentro da treva Num constante arremesso largo e aflito Eu me despedaço em vão contra o infinito. (MORAES, 1985, p. 1) Visualmente, o poema de Vinícius de Moraes é um soneto, pois é formado por quatro estrofes, sendo que a primeira e a segunda possuem quatro versos cada; a terceira e a quarta estrofes possuem três versos cada. Há, também, o esquema de rimas externas, caracterizado por: A-B-A-B; C-D-C-D; E-F-E; F-G-G. As rimas externas são aquelas que aparecem no final dos versos, sendo que cada sílaba tônica da última palavra é indicada por uma letra do alfabeto, e ao repetir-se o som, repete-se a letra indicativa. No caso do poema, as letras “A”, por exemplo, correspondem a “luar” e “o mar”; as letras “B”, correspondem a “em mim” e “sem fim”, e assim, sucessivamente. No soneto de Vinícius de Moraes, a um eu, uma voz que fala no poema. Essa voz apresenta angústia, solidão, e um traço importante: fusão entre o sujeito e o objeto, o que se percebe em versos como “[...] sou o mar”. Percebemos a presença do sujeito lírico não apenas pela utilização do pronome “eu”, ou pela flexão dos verbos na 1ª pessoa do singular, mas também pela forma como ele se projeta nos arranjos linguísticos durante todo o poema. Além disso, a emoção lírica no texto é percebida pela repetição constante da conjunção coordenativa aditiva e, o que impede uma conexão lógica. O esquema de rimas externas, abordado anteriormente, confere ao poema um tom de musicalidade, caracterizando o caráter emocional do texto. Entre o quinto e o sexto versos, temos uma quebra da linearidade frasal, com o trecho “[...] e os braços”, o que torna as ideias incompletas, caracterizando o que se chama de enjambement, caracterizando, também, uma mímesis de um estado afetivo. Além disso, há a presença de uma disposição anímica eliminando os distanciamentos entre as coisas, por meio do estado afetivo, e os recursos sonoros criam uma unidade de significação difícil de ser alterada. Em poucas linhas fizemos a análise literária de um poema. Agora, passaremos a discutir alguns elementos fundamentais que constituem o gênero lírico. Antes de mais nada, um detalhe histórico: o gênero lírico surgiu na Grécia Antiga, como uma forma de manifestação em verso para expressar diferentes emoções da esfera humana. Seu nome está associado ao instrumento musical que acompanhava as declamações: a lira. Até boa parte da Idade Média, poesia e música não eram entendidos como elementos separados, sendo indissociável a utilização da melodia durante as declamações. Somente a partir do Renascimento Cultural, no período literário conhecido como Humanismo, começa haver uma separação maior entre essas duas artes. Ao gênero lírico, em grande medida, pertencem os poemas nas suas mais variadas formas, o que não impede – obviamente – a pertença de outros gêneros textuais, desde que apresentem a predominância das marcas do gênero. Da mesma forma, como vimos no capítulo anterior, há uma diferença entre poesia e poema. A poesia é um conjunto de características e técnicas de elaboração artística; o poema é uma das manifestações concretas da poesia. Um dos primeiros elementos a se observar na análise do poema é sua estrutura visual (número de estrofes e de versos, disposição visual etc). Essa observação é importante para que se estabeleça relações de sentido entre o texto e sua forma visual. Essa análise é também conhecida como a análise do nível gráfico do poema, ou seja, da forma como ele está escrito. Nessa análise, também é importante observar o título, pois ele serve como uma espécie de slogan do poema, interferindo em sua significação. Tanto a disposição das palavras quanto os espaços em branco são importantes para essa análise. Após a “leitura visual” do poema, passamos para a análise do nível fônico do poema, observando os elementos de versificação, as repetições, a acentuação, a entonação etc. Podemos dividir essa análise nas seguintes verificações: ● Construção métrica: de que forma os versos estão constituídos? Há quantas sílabas ortográficas em cada verso? ● Acentuação: de que forma está disposta a organização das sílabas tônicas nos versos? Lembre-se que as sílabas tônicas conferem a musicalidade ao poema, e nem sempre essas sílabas estão de acordo com a linguagem denotativa; ● Figuras sonoras: de que modos estão organizadas as rimas do poema? Estão no final dos versos (externas) ou aparecem em seu interior (internas)? São feitas por meio de consoantes (aliteração) ou de vogais (assonância)? ● Enjambements: há “quebras” de sentido na linearidade do texto? Como elas interferem na compreensão geral do poema? Outro nível relevante a ser considerado no poema é o nível lexical. De que forma o sentido denotativo das palavras constitui sua literariedade? Há a presença de metaplasmos (desvios morfológicos), metataxes (desvios sintáticos) ou metassememas (desvios semânticos) da linguagem poéticaem relação ao sentido denotativo das palavras? De que forma ocorre a escolha lexical no texto? Se dá mais pela sonoridade ou pela construção semântica? Etc... No nível sintático, aprofunda-se a análise dos desvios sintáticos na construção do texto. No nível semântico, procura-se observar a estrutura de significação das palavras no texto, por meio das semelhanças e diferenças entre o sentido do texto e o sentido literal das palavras. Procura-se observar, também, quais figuras de sentido estão sendo construídas ao longo do poema. Além dessas análises, há algumas formas fixas de poemas que merecem ser mencionadas: ● Hino: Geralmente, trata-se de um poema para canto coral, carregado de valoração, caracterizado por sua ligação com a música; ● Ode: A ode, assim como o hino, é um poema carregado de musicalidade, porém, interpretado apenas por um cantor, acompanhado de um instrumento musical. Apresenta tons mais graves em relação ao hino e aos demais poemas; ● Elegia: Poema que se apresenta como um canto grave, com a finalidade de estimular a reflexão sobre os sentimentos mais profundos; ● Canção: Poesia relacionada diretamente à música e ao canto. Seu sentido se completa com esses dois elementos; ● Cantiga: Semelhante à canção, associa-se ao canto, à música e também à dança. Eram muito populares durante a Idade Média; ● Soneto: poema composto por quatro estrofes, sendo a primeira e a segunda com quatro versos cada uma, e a terceira e a quarta estrofes com três versos cada uma, obedecendo a um padrão de rimas externas e encerrando com uma conclusão muitas vezes inesperada, denominada “chave de ouro”; ● Balada: forma poética surgida durante a Idade Média, composta para ser musicada e cantada com acompanhamento coreográfico em festas culturais; ● Haicai: poema de origem japonesa, com forma breve e sentenciosa, que busca correspondência entre o som e o sentido das palavras, por meio da construção de onomatopeias e paranomásias. É importante ressaltar que além dessas, há outras formas poéticas, fixas (rondó, rondel, vilancete, redondilha, madrigal, epigrama, bucólica, caligrama, epístola, lira, oitava, panegírico, parábola, quadra, rapsódia, sátira, sextina, terceto etc.) e livres (sem rimas e sem métrica versal fixa) que podem ser aprendidas e exploradas. Aqui, apresentamos algumas das mais importantes. Para complementar seus estudos, sugerimos que você assista ao vídeo “Gênero Lírico – Brasil Escola” O gênero dramático Observe o trecho a seguir: JOÃO GRILO – Padre João! Padre João! PADRE (aparecendo na igreja) – Que há? Que gritaria é essa? Fala afetadamente com aquela pronúncia e aquele estilo que Leon Bloy chamava “sacertotais”. CHICÓ – Mandaram avisar para o senhor não sair, porque vem uma pessoa aqui trazer um cachorro que está se ultimando para o senhor benzer. PADRE – Para eu benzer? CHICÓ – Sim. PADRE – Com desprezo – Um cachorro? CHICÓ – Sim. PADRE – Que maluquice! Que besteira! JOÃO GRILO – Cansei de dizer a ele que o senhor não benzia. Benze porque benze, vim com ele. PADRE – Não benzo de jeito nenhum. CHICÓ – Mas padre, não vejo nada de mal em se benzer o bicho. JOÃO GRILO – No dia em que chegou o motor novo do Major Antônio Morais o senhor não benzeu? PADRE – Motor é diferente, é uma coisa que todo mundo benze. Cachorro é que eu nunca ouvi falar. CHICÓ – Eu acho cachorro uma coisa muito melhor do que motor. PADRE – É, mas quem vai ficar engraçado sou eu, benzendo o cachorro. Benzer motor é fácil, todo mundo faz isso, mas benzer cachorro? JOÃO GRILO – É, Chicó, o padre tem razão... Quem vai ficar engraçado é ele e uma coisa é benzer o motor do Major Antônio Morais e outra é benzer o cachorro do Major Antônio Morais. PADRE – Mão em concha no ouvido – Como? JOÃO GRILO – É. Eu não queria vir, com medo de que o senhor se zangasse, mas o Major é rico e poderoso e eu trabalho na mina dele. Com medo de perder meu emprego, fui forçado a obedecer, mas disse a Chicó: o padre vai se zangar. PADRE – desfazendo-se em sorrisos – Zangar nada, João! Quem é um ministro de Deus para ter direito de se zangar? Falei por falar, mas também vocês não tinham dito de quem era o cachorro. (SUASSUNA, 1972, p. 31-4.) O trecho anteriormente apresentado, do Auto da compadecida, ilustra um texto do gênero dramático. Observa-se que o trecho se manifesta quase em sua totalidade por meio de diálogo, sem interferência direta de um narrador. Há, apenas, alguns comentários grifados, para darem uma ideia da entonação e da emoção transmitida no diálogo. Além disso, o texto tem uma progressão de ações, e ficamos curiosos para saber o que acontecerá depois. Originalmente, a palavra “drama” vem do grego dráo e significa “fazer”, “ação”. E essa é uma das mais notáveis características do gênero dramático: o texto só se “completa” durante a encenação. Por causa dessa característica tão peculiar, alguns estudiosos chegam, inclusive, a defender o gênero dramático como uma arte separada da literatura. De modo geral, o teatro (ou o gênero dramático) envolve uma gama de elementos um pouco maior do que os gêneros narrativo e lírico, dentre os quais podemos citar: imagens visuais, sons, músicas, ritmos e arte pictórica, entre outros. O acerto da peça teatral está no equilíbrio entre o texto, a dramatização e os demais elementos que o constituem. No drama, reúnem-se a objetividade do gênero épico e a subjetividade do gênero lírico. A linguagem da peça teatral é peculiar em relação aos demais gêneros, sendo caracterizada por um conflito (choque entre os objetivos das personagens) que vai sendo desenvolvido por meio da linguagem dialógica. Ao mesmo tempo, o tempo do gênero dramático é o agora. A seguir, apresentaremos alguns elementos fundamentais para a constituição do gênero dramático: ● Texto: também chamado de script, o texto teatral é o elemento literário que constitui o drama. Trata-se de um conjunto de falas e de apontamentos os quais serão representadas pelos atores ao público. É formado pelas ações, pelos personagens, pelas indicações para o cenário e pelas reflexões das personagens. Semelhante ao gênero narrativo, o texto dramático apresenta os seguintes elementos: exposição da situação inicial, o conflito, o desenvolvimento, o clímax e o desenlace (esses elementos serão explicados mais detalhadamente no próximo capítulo); ● Personagens: os personagens são aqueles que, interpretados por atores, dão vida ao drama. São seres ficcionais, criados para exercerem determinadas funções dentro da peça; ● Atores: os atores são os seres reais que, por meio do estudo dos roteiros e da interpretação, dão vida aos personagens; ● Público: se há todo o investimento para que a peça seja encenada, essa encenação, por sua vez, é realizada para ser mostrada para, talvez, o elemento mais importante do teatro: o público, que é constituído por aqueles que assistem à peça. A relação palco-público é fundamental para o sucesso ou o fracasso do drama; ● Cenografia: corresponde ao cenário e seu responsável (cenógrafo), que colaboram nos aspectos visuais da peça; ● Sonoplastia: a sonoplastia e seu responsável (sonoplasta) estão ligados a todos os aspectos sonoros, musicais e as trilhas que constituem a peça; ● Diretor: Se o dramaturgo é quem escreveu o texto teatral, o diretor é aquele que “escreve” o espetáculo. É ele que coordena todos os elementos que compõem a peça e também quem deve ter uma interpretação profunda do texto, para poder organizar a encenação do início ao fim. Além dos elementos que constituem o drama, temos as formas dramáticas, dentre as quais destacamos: ● Tragédia: constitui uma imitação de ações consideradas de caráter elevado, extensa e com linguagem ornamentada, cujo conteúdo está ligado está ligado a deuses ou a situações da vida, que levam a consequências fatais; ● Comédia: é uma peça teatral que se caracteriza pelo uso do humor nas artes cênicas, com o intuito de provocar o público a refletir sobre uma determinada situação cotidiana; ● Tragicomédia: trata-se de uma mescla de outros gêneros teatrais,tais como tragédia, comédia, farsa, melodrama etc.; ● Farsa: peça teatral que mistura comédia, centrada em quadros da vida real, com o objetivo de despertar o ridículo, provocando o riso como forma de escape; ● Auto: peça teatral de caráter religioso. Além dessas formas dramáticas, há outras, tais como ópera, mimo, momo, vaudeville e marionetes. Procuramos, aqui, destacar as mais relevantes. Para complementar seus estudos, sugerimos que você assista ao vídeo “Gênero Dramático – Brasil Escola”, Resumindo: Você deve ter aprendido que o gênero lírico é caracterizado pela expressão dos sentimentos individuais, tendo como sua materialização mais comum o poema, em suas mais variadas formas. A poesia é um elemento que constitui e torna as obras artísticas, e o poema é uma forma de manifestação da poesia. Para análise do poema, há que se considerar seus aspectos visuais, seus aspectos linguísticos e seus aspectos semânticos. Já o gênero dramático é caracterizado pela ação. Ele só se completa por meio da atuação das personagens. Como texto literário, temos o script, que é a indicação dos diálogos e falas dos personagens, de observações acerca da entonação e do cenário, dentre outros. Identificando os elementos do gênero narrativo Estamos entendendo o gênero narrativo como aquele cujos textos se caracterizam por uma história imaginária, cuja ação dos personagens, dada num tempo e num espaço, constitui o desenvolvimento da trama. Observe o texto abaixo: Pouco a pouco a cólera diminuiu, e sinhá Vitória, embalando as crianças, enjoou-se da cadela achacada, gargarejou muxoxos e nomes feios. Bicho nojento, babão. Inconveniência deixar cachorro doido solto em casa. Mas compreendia que estava sendo severa demais, achava difícil Baleia endoidecer e lamentava que o marido não houvesse esperado mais um dia para ver se realmente a execução era indispensável. Nesse momento Fabiano andava no copiar, batendo castanholas com os dedos. Sinhá Vitória encolhei o pescoço e tentou encostar os ombros às orelhas. Como isto era impossível, levantou os braços e, sem largar o filho, conseguiu ocultar um pedaço da cabeça. Fabiano percorreu o alpendre, olhando a baraúna e as porteiras, açulando um cão invisível contra animais invisíveis: - Ecô! Ecô! Em seguida entrou na sala, atravessou o corredor e chegou à janela baixa da cozinha. Examinou o terreiro, viu Baleia coçando-se a esfregar as peladuras no pé de turco, levou a espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono desconfiada, enroscou-se no tronco e foi desviando, até ficar no outro lado da árvore, agachada e arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido com esta manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o animal estivesse de frente e não apresentasse bom alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar às catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos traseiros e inutilizou uma perna de Baleia, que se pôs a latir desesperadamente. Ouvindo os tiros e os latidos, sinhá Vitória pegouse à Virgem Maria e os meninos rolaram na cama, chorando alto. Fabiano recolheu-se. E Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho da esquerda, passou rente aos craveiros e às panelas de losna, meteu-se por um buraco da cerca e ganhou o pátio, correndo em três pés. Dirigiu-se ao copiar, mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras. Demorou-se aí um instante, meio desorientada, saiu depois sem destino, aos pulos. Defronte ao carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo. Quis recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve medo da roda. Encaminou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia uma barroca macia e funda. Gostava de espojar-se ali: cobria-se de poeira, evitava as moscas e os mosquitos, e quando se levantava, tinha folhas secas e gravetos colados às feridas, era um bicho diferente dos outros. Caiu antes de alcançar essa cova arrendada. Tentou erguer-se, endireitou a cabeça e estirou as pernas dianteiras, mas o resto do corpo ficou deitado de banda. [...] Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queijos desgovernados, a língua pendente e insensível. Não sabia o que tinha sucedido. O estrondo, a pancada que recebera no quarto e a viagem difícil do barreiro ao fim do pátio desvaneciam-se no seu espírito. Provavelmente estava na cozinha, entre as pedras que serviam de trempe. Antes de se deitar, sinhá Vitória retirava dali os carvões e a cinza, varria com um molho de vassourinha o chão queimado, e aquilo ficava um bom lugar para cachorro descansar. O calor afugentava as pulgas, a terra se amaciava. E, findos os cochilos, numerosos preás corriam e saltavam, um formigueiro invadia a cozinha. A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do peito para trás era tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de mandaracu penetravam na carne meio comida pela doença. Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente sinhá Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo. Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes. (RAMOS, 1981, p. 86-91). Esse trecho do clássico de Graciliano Ramos, além de triste, é uma obra admirável da literatura brasileira. Nele, percebemos claramente a progressão dos fatos, e o envolvimento das personagens (Baleia, Fabiano, sinhá Vitória e as crianças) no desenrolar da narrativa. Baleia, a cachorra, estava doente, e Fabiano decidiu matá-la. O clímax do trecho é o momento em que Fabiano consegue atingi-la, o que ocasionou a morte de Baleia, descrita pelo narrador de forma singular. Isso tudo aconteceu nas imediações da casa de Fabiano, e o narrador conhecia detalhes do interior psicológico até de Baleia. Esse trecho mostra claramente a presença de todos os elementos da narrativa, os quais veremos a seguir. Elementos da narrativa Chamamos de elementos da narrativa todos os itens que são imprescindíveis para a existência do gênero narrativo. Os elementos são: ● Narrador: o narrador não é o autor da história, é uma voz fictícia que discorre os fatos contados. Quando o narrador participa do enredo é chamado de narrador-personagem; quando apenas descreve o que vê, sabendo inclusive o que os personagens pensam e sentem, é chamado de narrador-onisciente; se os descreve apenas pela visão externa que possui desses, é denominado narrador-testemunha, ou narrador-observador; ● Foco narrativo: de acordo com a visão que o narrador tem dos fatos, podemos dizer que temos o foco narrativo em 1ª pessoa (quando o narrador é um dos personagens) e em 3ª pessoa (quando o narrador não viveu, apenas viu os fatos); ● Enredo: é o conjunto de fatos que se sucedem, dividindo-se em situação inicial (apresentação do enredo e dos personagens), nó (espécie de “problema” que movimenta os personagens ao longo da trama), clímax (momento de maior tensão da narrativa, a partir do qual os fatos se encaminharão para uma resolução) e desfecho (momento em que o nó é resolvido, independente da forma como isso acontecer; ● Personagens: seres ficcionais que “vivem” enquanto a obra está sendo lida, podendo incorporar a fisionomia humana, animal, de objetos, vegetal ou mesmo de seres e elementos abstratos. Em geral, uma narrativa apresenta um personagem afetado pelo nó e que tenta solucioná-lo (protagonista), um personagem causador do nó (antagonista) e os demais personagens (coadjuvantes). Além disso, o envolvimento dos personagens no enredo por ser denominado plano (quando não há narrativa sobre seus sentimentos e pensamentos, ficando o personagem numa base mais superficial) ou profundo (quandoo personagem é mostrado em todas as suas dimensões); ● Espaço: é o lugar onde se desenrola a narrativa. Pode ser físico ou psicológico; ● Tempo: trata-se da cronologia da narrativa, que pode se desenvolver num espaço histórico-temporal ou psicológico. Todos os elementos básicos apresentados são possíveis de serem analisados dentro de um texto narrativo. Você pode revisar noções básicas dos elementos da narrativa por meio do vídeo “Elementos da narrativa – Brasil Escola”, disponível em: Diferenças entre o gênero épico e o gênero narrativo Abrimos esse tópico com o intuito de descrever as diferenças entre os gêneros épico e narrativo, uma vez que alguns autores utilizam a denominação épico para nomear textos narrativos, ou ainda a denominação “gênero épico-narrativo”. A nomenclatura “épico” remonta a Grécia antiga, quando a epopeia era o texto característico desse gênero. Somente séculos mais tarde, outras modalidades narrativas foram surgindo. Até então, o gênero épico era compreendido como aquele cujos textos eram narrativas extensas, relacionadas a heróis, semideuses e deuses, elaboradas numa linguagem versificada e com o intuito de engrandecer os feitos heroicos de um povo. Cabe lembrar que, no gênero épico, a narrativa era escrita em versos. O gênero narrativo, por sua vez, foi sendo caracterizado por formas textuais diferentes da epopeia, sendo uma dessas formas a linguagem em prosa. Os primeiros textos com essa característica surgiram no final do século XVIII, quando o Romantismo entrou em voga. Para retomar seus estudos sobre as características do gênero épico, você pode acessar o vídeo “Gênero Épico- Brasil Escola”, disponível em: Formas da narrativa Veremos, a seguir, algumas das principais formas narrativas. Considerando a multiplicidade de gêneros textuais narrativos, abordaremos, a seguir, alguns dos mais comuns: ● Romance: trata-se de uma narrativa em prosa de maior extensão. As personagens vivem seus acontecimentos num determinado espaço e tempo, sendo possível que esses acontecimentos se desdobram em diversas situações. Além disso, pela extensão, os romances ambientalizam com riqueza de detalhes perfis psicológicos das personagens, ambientes e épocas; ● Conto: trata-se de uma narrativa prosaica bem menos extensa do que o romance, abrangendo maior rapidez e os elementos da narrativa de forma mais sucinta, porém, também rigorosa na progressão do enredo. Possui menos personagens do que o romance, assim como maior rapidez em sua descrição; ● Crônica: narrativa prosaica, bem mais enxuta de detalhes, em relação ao romance e ao conto. Aborda temas mais simples do cotidiano, criticando a realidade social, política ou cultural, com humor; ● Novela: a novela se situa entre o romance e o conto, sendo menor que o primeiro e maior que o segundo. Caracterizase pela dinâmica de vários enredos que se interligam numa trama maior; ● Fábula: caracteriza-se pela presença de fatos fantásticos, podendo ser narrada em prosa ou em verso. Seus protagonistas, em geral, são animais e seu enredo possui caráter didático, por meio da moral; ● Ensaio: alguns estudiosos chegam a defender o ensaio literário como um gênero descolado do narrativo, porém, ele apresenta os elementos da narrativa, e se caracteriza pela apresentação de um ponto de vista impessoal sobre um determinado assunto; ● Autobiografia: tipo de narrativa na qual o autor é o próprio personagem, narrando fatos reais a partir de seu próprio ponto de vista. Há também as biografias narradas por terceiros; ● Anedota: a anedota se trata de um pequeno relato de um acontecimento, geralmente com humor. Fora da tradição oral, encontra-se inserida em outros textos literários; ● Apólogo: história curta sobre objetos inanimados, caracterizada por uma moral explícita ou implícita; ● Provérbio: saber popular, apresentado sob a forma de uma narrativa mínima. O gênero narrativo pode apresentar diversas formas, mas quase todas elas apresentam os elementos da narrativa em sua composição. Além disso, o gênero narrativo geralmente se ambientaliza no tempo passado, tendo em sua composição verbos de ação flexionados, uma vez que a narração pressupõe ações. Outro detalhe importante é que a definição do gênero textual narrativo passa pela identificação de detalhes como tipo e profundidade do enredo, tipos de personagens, forma como o conteúdo é abordado, entre outros. Por isso, é muito importante estar atento a todos esses elementos durante a análise. Para retomar seus conhecimentos, você pode acessar esses dois vídeos a seguir: “Vamos falar de gêneros narrativos?” e “Os elementos da narrativa” Resumindo: Você deve ter aprendido que o gênero narrativo se caracteriza pela atuação dos personagens dentro de um determinado tempo e espaço, fazendo com que a trama evolua. A diferenciação entre os gêneros narrativo e épico está na forma como o texto é narrado, e no gênero textual que o compõe: enquanto no gênero épico as narrativas são realizadas em verso e seu gênero textual é a epopeia, no gênero narrativo, a sequência dos fatos, em geral, é contada em prosa, podendo o texto ter a forma de um conto, de um romance, de uma crônica, de uma fábula etc. O gênero textual narrativo é definido pela observação de alguns elementos básicos, tais como: profundidade narrativa, número de personagens, enredos múltiplos ou único, conteúdo etc. Conhecendo a natureza do fenômeno literário Podemos considerar o fenômeno literário como algo situado historicamente e, portanto, em constante mutação. Há diversos fatores que interferem no fenômeno literário, tais como: ● História: os acontecimentos da história podem intervir no fenômeno literário, alterando tanto as concepções de literatura, como o foco dos textos literários e sua estrutura; ● Arte: as concepções de arte e estética vão sendo redefinidas historicamente, e isso interfere no fenômeno literário, especialmente na questão do que seria mais antiquado e mais atual, em se tratando de formas do texto literário; Arte (do latim ars) é o conceito que engloba todas as criações feitas pelo ser humano para expressar uma visão sensível sobre o mundo, real ou imaginário. Através de recursos plásticos, linguísticos ou sonoros, a arte permite expressar ideias, emoções, percepções e sensações. A história indica que, com o aparecimento do Homo Sapiens, a arte tinha uma função ritual e mágico-religiosa, que mudava com o tempo. De qualquer forma, a definição de arte varia de acordo com o tempo e a cultura. Com o Renascimento italiano, no final do século XV, começou a distinguir entre artesanato e belas artes. O artesão é aquele que se dedica a produzir várias obras, enquanto o artista é o criador de obras únicas. Ideologia: o texto literário, em sua concepção, não é neutro no que se refere aos modos de pensar das sociedades. Deste modo, é possível afirmar que determinadas correntes ideológicas interferem diretamente na criação literária, desde seu conteúdo, sua estética e sua visão sobre os acontecimentos; Figura 1: Arte Leitor: o leitor é um outro elemento que interfere no fenômeno literário, uma vez que podemos considerar cada leitor único. Assim, conforme a visão de mundo de cada leitor, a obra vai ganhando novos sentidos, novas leituras se, por vezes sendo prestigiada, por vezes sendo rejeitada. A leitura consiste basicamente em quatro etapas: a visualização (um processo descontínuo, pois o olhar não desliza continuamente sobre as palavras), a fonação (a articulação oral, consciente ou inconsciente, através da qual as informações vai da visão para a fala), a audição (a informação passa para o ouvido) e a cerração (a informação chega ao cérebro e culmina o processo de compreensão). Existem várias técnicas ao iniciar uma leitura, que permitem adaptar a maneira como você lê ao objetivo que você deseja alcançar o leitor. Geralmente, ela busca maximizar a velocidade ou a compreensão do texto. Como esses objetivos são contrários e se enfrentam, a leitura ideal implica um equilíbrio entre os dois. Figura 2: LeitorOs lugares do autor e do leitor na criação literária Se não há texto literário sem um autor, também podemos dizer que não há literatura sem um leitor. A relação entre esses dois elementos é fundamental para que um determinado texto se constitua como literário. A criação, na literatura, pode ser livre, individual e subjetiva, submetida à vontade do autor; porém, não é possível que esse autor desconsidere um possível leitor para sua obra; por isso, há uma relação complexa entre aquele que escreve e aquele que lê, uma vez que ambas as ações são subjetivas. A leitura oferece muitas vantagens para quem a considera um hábito essencial em suas vidas. Entre algumas das riquezas que se produz, estão o enriquecimento do universo interno e o entendimento de outras realidades, a aquisição de conhecimentos que podem nos servir, a melhoria de nossa capacidade de comunicação (principalmente se for feita uma leitura oral) e a colaboração com o desenvolvimento, da capacidade de analisar, resolver problemas e associações. Além disso, não devemos esquecer que é uma fonte de entretenimento adequada para todas as idades, sexos e status social. O segredo de ser apaixonado pela leitura está em saber como encontrar o que se adapta aos nossos desejos, interesses e necessidades. Figura 3: Literatura é amor Nesse exercício entre escrita e leitura, o texto literário pode atingir sentidos diferentes daqueles esperados pelo escritor, e também surpreender o leitor em relação às diferentes formas de interpretação. Também, sendo a literatura uma arte que se utiliza da linguagem verbal, é, portanto, um sistema semântico, cuja conotação se vincula à questão das diferenças sociais. Deste modo, também se pode afirmar que só há literatura onde há um povo, pois o fenômeno literário, além dos elementos anteriormente mencionados, está vinculado também ao desenvolvimento das culturas. Figura 4: Desenvolvimento das culturas Sua matéria, portanto, é cultural, pois o autor retira de seu mundo elementos que buscam representar totalidades coesivas que possam alcançar os diferentes tipos de leitores. Podemos dizer, também, que o fenômeno literário se constitui de uma maneira bem singular, abrangendo um emaranhado de características definidas como literariedade. É a literariedade, por sua vez, que nos permite diferenciar textos literários e não-literários, conforme já abordamos. O fenômeno literário, embora se utilize das bases culturais da linguagem, ressignifica-se, dando a elas outras formas e outros sentidos, diferenciando a linguagem literária da literal, ou a conotação da denotação. Isso é importante, porque a literatura não tem o compromisso de estabelecer padrões de linguagem, como muitos gramáticos chegaram a afirmar, mas criar outras possibilidades linguísticas que diferenciem o real do ficcional. Observe o texto a seguir: Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto. Estava deitado sobre o dorso, tão duro que parecia revestido de metal, e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou o arredondado ventre castanho dividido em duros segmentos arqueados, sobre o qual a colcha dificilmente mantinha a posição e estava a ponto de escorregar. Comparadas com o resto do corpo, as inúmeras pernas, que eram miseravelmente finas, agitavam-se desesperadamente diante dos seus olhos. Que me aconteceu? – pensou. Não era nenhum sonho. O quarto, um vulgar quarto humano, bastante acanhado, ali estava, como de costume, entre as quatro paredes que lhe eram familiares. Por cima da mesa, onde estava deitado, desembrulhada e em completa desordem, uma série de amostras de roupas: Samsa era caixeiro-viajante, estava pendurada a fotografia que recentemente recortara de uma revista ilustrada e colocara numa bonita moldura dourada. Mostrava uma senhora, de chapéu e estola de peles, rigidamente sentada, ao estender ao espectador um enorme regalo de peles, onde o antebraço sumia! Gregório desviou então a vista para a janela e deu com o céu nublado – ouviamse os pingos de chuva a baterem na calha da janela e isso o fez sentir-se bastante melancólico. Não seria melhor dormir um pouco e esquecer aquele delírio? - cogitou. Mas era impossível, estava habituado a dormir para o lado direito e, na presente situação, não podia virar-se. Por mais que se esforçasse por inclinar o corpo para a direita, tornava sempre a rebolar, ficando de costas. Tentou, pelo menos, cem vezes, fechando os olhos, para evitar ver as pernas a debaterem-se, e só desistiu quando começou a sentir no flanco uma ligeira dor entorpecida que nunca antes experimentara. Oh, meu Deus, pensou, que trabalho tão cansativo escolhi! Viajar, dia sim, dia não. É um trabalho muito mais irritante do que o trabalho do escritório propriamente dito, e ainda por cima há ainda o desconforto de andar sempre a viajar, preocupado com as ligações dos trens, com a cama e com as refeições irregulares, com conhecimentos casuais, que são sempre novos e nunca se tornam amigos íntimos. Diabos levem tudo isto! Sentiu uma leve comichão na barriga; arrastou-se lentamente sobre as costas, — mais para cima na cama, de modo a conseguir mexer mais facilmente a cabeça, identificou o local da comichão, que estava rodeado de uma série de pequenas manchas brancas cuja natureza não compreendeu no momento, e fez menção de tocar lá com uma perna, mas imediatamente a retirou, pois, ao seu contato, sentiu-se percorrido por um arrepio gela- do. Voltou a deixar-se escorregar para a posição inicial. Isto de levantar cedo, pensou, deixa a pessoa estúpida. Um homem necessita de sono. Há outros comerciantes que vivem como mulheres de harém. Por exemplo, quando volto para o hotel, de manhã, para tomar nota das encomendas que tenho, esses se limitam a sentar-se à mesa para o pequeno almoço. Eu que tentasse sequer fazer isso com o meu patrão: era logo despedido. De qualquer maneira, era, capaz de ser bom para mim — quem sabe? Se não tivesse de me aguentar, por causa dos meus pais, há muito tempo que me teria despedido; iria ter com o patrão e lhe falar exatamente o que penso dele. Havia de cair ao comprido em cima da secretária! Também é um hábito esquisito, esse de se sentar a uma secretária em plano elevado e falar para baixo para os empregados, tanto mais que eles têm de aproximar-se bastante, porque o patrão é ruim de ouvido. Bem, ainda há uma esperança; depois de ter economizado o suficiente para pagar o que os meus pais lhe devem — o que deve levar outros cinco ou seis anos —, faço-o, com certeza. Nessa altura, vou me libertar completamente. Mas, para agora, o melhor é me levantar, porque o meu trem parte às cinco. [...] (KAFKA, 1915, p. 1) O trecho do texto dirigido exemplifica o que estamos abordando acerca do fenômeno literário: Samsa é um personagem que representa um homem comum do mundo real, que trabalha, dorme e pode ter pesadelos. No entanto, algo de extraordinário aconteceu com ele, pois ao acordar, percebeu que estava transformado num grande inseto! Esse item, além de transportar a obra para um realismo fantástico, também se constitui num divisor de águas entre a linguagem conotativa e denotativa, marcando a literariedade do texto. Figura 5: Ilustração do Samsa Além disso, pelo que se percebe, o personagem está inserido dentro de uma cultura possível, a cultura moderna ou capitalista/industrial. Esse contato do texto literário com o mundo real, transportado para a ficção, cria diferentes expectativas no leitor, levando-o a perceber – inclusive – os sentimentos do personagem e transportar-se para dentro da história. Resumindo: Você deve ter aprendido que o fenômeno literário é histórico, social e cultural, relacionado diretamente à visão de mundo construída dentro de uma dada cultura e também constituído nas possíveis relações subjetivas, existentes entre autor e leitor. O fenômeno literário é marcado pela transformação da linguagem denotativa em conotativa, de modo a recriar a realidade, mesclando fatos possíveis e impossíveis. O conjuntodos elementos que constituem o fenômeno literário, desde os arranjos de linguagem, até a estrutura do texto e seu conteúdo é conhecido como literariedade. Desse modo, chegamos ao final desta unidade. É importante que você revise este material, tome nota de suas principais aprendizagens e principais dúvidas, busque nas indicações de pesquisa leituras e vídeos que podem contribuir muito nessa etapa! Além disso, ao término desta unidade, você encontrará as principais referências bibliográficas utilizadas na elaboração dessa obra, que podem ser consultadas. Não desanime nas dificuldades de estudo, mas faça com que essas dificuldades de hoje venham ajudá-lo a se tornar um estudante e um profissional melhor amanhã! Grande abraço, e até a próxima! UNIDADE 3 Explorando a linguagem literária A literatura e a arte Não é muito difícil ouvirmos pessoas dizerem não ter gostado de determinado tipo de livro, quadro ou filme, afirmando coisas do tipo “Acho José de Alencar muito chato”. “Odeio ver tragédia: de trágica, já basta a vida.” “Como posso gostar se não entendo?” “Não sei o que a crítica viu nisso, achei péssimo!” Por que o público em geral não tem, quase sempre, o mesmo gosto dos críticos ou dos intelectuais? Teriam esses últimos um gosto melhor do que o primeiro? Há determinados livros de que os alunos só passam a gostar depois que o professor explica. Outros, ainda, nem chegam a ser explorados. E como fica isso? Gosto se discute, se aprende? A resposta é “com certeza”: gosto se discute, pode ser mudado, pode-se aprender a gostar de algo. Tudo é uma questão de treino e de ambiente. O arranjo pode mudar as palavras O que chamamos de “belo artístico” nem sempre é somente aquilo que retrata a beleza. Qualquer tipo de assunto ou tema pode servir de inspiração para uma obra de arte, desde que seu autor transmita por meio dela uma emoção. As palavras estão em nosso mundo, à disposição de qualquer pessoa. O que as transforma em Arte é o arranjo – a relação nova estabelecida entre elas. Vejamos um exemplo disso: Versos íntimos Vês! Ninguém assistiu ao formidável Enterro de tua última quimera. Somente a Ingratidão – esta pantera – Foi tua companheira inseparável! Acostuma-te à lama que te espera! O Homem, que nesta terra miserável, Mora, entre feras, sente inevitável Necessidade de também ser fera. Toma um fósforo. Acende teu cigarro! O beijo, amigo, é a véspera do escarro, A mão que afaga é a mesma que apedreja. Se a alguém causa inda pena a tua chaga, Apedreja essa mão vil que te afaga, Escarra nessa boca que te beija! (ANJOS, 2001, p. 61). Perceba que se mantivermos a noção do belo como um elemento apenas positivo, jamais perceberemos a beleza desses versos, que se tornam uma obra literária autêntica pelo choque que o arranjo de palavras nos causa, assim como a atmosfera de desprezo pela humanidade que ele nos passa. O escritor serve de antena A arte possui como matéria-prima a própria vida. O escritor percebe o mundo como se tivesse antenas. Transmite, comunica, ajuda o leitor a conhecer o outro melhor, assim como o mundo que o cerca. Por meio da obra literária, o leitor pode conhecer outras faces do amor, do ódio, da fome, da guerra, da morte etc. Ao fantasiar a realidade, o artista imagina e elabora uma outra realidade. Ele a imita e a devolve, na obra, como se fosse nova. Vamos ver como isso acontece? Soneto de fidelidade De tudo ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento. Quero vive-lo em cada vão momento E em seu louvor hei de espelhar meu canto E rir meu riso e derramar meu pranto Ao seu pesar ou seu contentamento. E assim, quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, a angústia de quem vive, Quem sabe a solidão, fim de quem ama Eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama, Mas que seja infinito enquanto dure. (MORAES, 2001, p. 101). Observe, no poema, que o modo como vai se desenrolando o texto, cria um sentido para fidelidade ao mesmo tempo semelhante com seu significado denotativo, mas também ampliando seus horizontes. Trata-se da realidade captada pelo autor e devolvida ao leitor, conforme mencionado anteriormente. A supra-realidade criada pela arte literária Conforme o filósofo Aristóteles (384 a 322 a.C.), o ser humano tem como ação natural imitar, representar, criar imagens, a fim de experimentar o próprio universo. Assim, a literatura é uma forma de imitação da vida por meio de palavras arranjadas de tal modo que formam uma espécie de supra-realidade, isto é, uma realidade paralela. Observe: Garoto de aluguel Baby! Dê-me seu dinheiro que eu quero viver Dê-me seu relógio que eu quero saber Quanto tempo falta para lhe esquecer Quanto vale um homem para amar você Minha profissão é suja e vulgar Quero um pagamento para me deitar E junto com você estrangular meu riso Dê-me seu amor que dele não preciso! [...] Baby! Nossa relação acaba-se assim Como um caramelo que chega-se ao fim Na boca vermelha de uma dama louca Pague meu dinheiro e vista sua roupa Deixe a porta aberta quando for saindo Você vai chorando e eu fico sorrindo Conte pras amigas que tudo foi mal (tudo foi mal!) Nada me preocupa de um marginal [...] (RAMALHO, 1979, s/d) Perceba que a forma como as palavras estão arranjadas nessa letra de canção nos remetem a uma determinada realidade, possível, mas que, trazendo do contexto da canção para a vida real, nunca existiu. A elaboração especial das palavras A literatura se utiliza da palavra escrita, mas nem tudo o que é escrito é literatura. A linguagem literária, ao contrário das demais formas de linguagens não-artísticas, tem uma preocupação especial com cada palavra presente num texto. Por esse motivo, há uma diferença gigantesca entre um texto de um manual de instruções e um poema; entre uma notícia de jornal e um romance; entre um poema e uma receita de bolo. Vejamos: Receita Ingredientes 2 conflitos de gerações 4 esperanças perdidas 3 litros de sangue fervido 5 sonhos eróticos 2 canções dos Beatles Modo de preparar Dissolva os sonhos eróticos nos dois litros de sangue fervido e deixe gelar seu coração leve a mistura ao fogo adicionando dois conflitos de gerações às esperanças perdidas corte tudo em pedacinhos e repita com as canções dos Beatles o mesmo processo usado com os sonhos eróticos mas desta vez deixe ferver um pouco mais e mexa até dissolver parte do sangue pode ser substituído por suco de groselha mas os resultados não serão os mesmos sirva o poema simples ou com ilusões (BEHR, 1982, s.p.) Perceba que embora o texto tenha a estrutura do gênero textual receita, sua compreensão só é possível por meio da interpretação subjetiva, e da compreensão da linguagem literária. A forma como as palavras estão arranjadas no texto, à primeira vista, lembram uma receita tradicional. Mas, na medida em que vamos construindo os significados do texto, percebemos que o arranjo de palavras do poema constitui sua literariedade. Elementos da obra literária Veremos, a seguir, dois conceitos importantes para a compreensão da linguagem literária: denotação e conotação Denotação A denotação refere-se ao significado dicionarizado das palavras, àqueles significados objetivos, considerados não literários. Nesse caso, dizemos que as palavras estão em seu significado primitivo, que informa o que é objetivo, concreto. Vejamos: Bolo de aniversário Ingredientes ½ xícara (de chá) de manteiga ½ xícara (de chá) de açúcar 2 ovos 1 ½ xícara (de chá) de farinha de trigo 1 colher (de sopa) de fermento em pó 1 pitada de sal ¾ xícara (de chá) de leite 1 colher (de chá) de essência de baunilha Modo de preparar Bata a manteiga e o açúcar por 15 minutos. Junte os ovos, um a um, a farinha, o sal e o fermento peneirados juntos. Reserve. À parte, misture o leite com a baunilha e acrescente à massa reservada Bata bem. Ponha a massa em uma forma untada. Leve ao forno brando durante 1 hora. Desinforme. Sirva com o recheio e enfeitado a gosto. (MARIA,1985, s.p.) A receita, por ser um texto objetivo, pode ser seguida e realizada, sem gerar várias possibilidades de interpretação, dado que os significados das palavras que ela contém são dicionarizados. A isso, chamamos de linguagem denotativa ou denotação. Conotação Dizemos que um texto apresenta conotação/sentido conotativo/ sentido figurado quando ele apresenta vários elementos que possibilitam mais de uma interpretação, além de reações variadas no leitor. O poeta constrói no texto literário a sua imagem de modo particular, expressando seus sentimentos e emoções. Vejamos: 12.207 Desembarcamos Os ferros foram lançados No porto e nos pulsos Enquanto fomos expulsos Da vida e do continente Estando sujeitos ao pulsar De incríveis sentimentos E ao sabor Das ondas e das contingências Rondamos em redor Das continências dos guardas. Depois da viagem Da travessia e do enjoo Nos colocaram em uma sala Tiraram nossa roupa E nos vestiram Nos revestiram de oco E fizeram a chamada. Ganhei um número de registro E por um instante Perdi as esperanças. (POLARI, 1991, p. 39.) Esse poema, embora descritivo e baseado em fatos reais (o poeta descreveu sua entrada no presídio de Ilha Grande, em 1971), conta com uma descrição subjetiva dos fatos, marcada pela expressão dos sentimentos do autor e pela continuidade dos sentidos do texto, que devem ser atribuídas pelo leitor. Textos literários e textos não literários Por meio da definição de denotação e conotação, podemos, também, estabelecer os limites entre o texto literário e o texto não literário: ● Texto literário: possui arranjos especiais da estética e da linguagem, a serviço da intencionalidade comunicativa do autor. São carregados de sentimentos, sua linguagem é conotativa e a interpretação, para que se efetive, parte da visão de mundo que o leitor possui. Desse modo, o texto literário possui significados múltiplos e possibilita mais de uma interpretação; ● Texto não-literário: a estética e a linguagem estão a serviço da objetividade, regulada pelos jogos sociais e pelos contratos de comunicação do mundo real. Sua linguagem tende a ser objetiva, e seu sentido, denotativo, a fim de transmitir informações precisas. Por meio dele, o autor comunica algo, conforme seus objetivos e sua mensagem, para outros leitores, esperando que as interpretações dadas ao texto não sejam plurais como ocorre na literatura. Resumindo: Você deve ter aprendido que a linguagem literária possui suas próprias características e marcas, estando a serviço da subjetividade e possuindo significados múltiplos. A denotação remete ao sentido literal, dicionarizado das palavras; a conotação, remete ao sentido literário, figurado das palavras. O texto literário é marcado pela subjetividade, pela conotação e pelo arranjo especial da linguagem. O texto não literário é objetivo, marcado pelas regras denotativas de comunicação. Preparado para a próxima competência? Vamos lá! Conhecendo as figuras de linguagem e de pensamento As figuras de linguagem Chamamos de linguagem figurada aquele que tem seu significado transformado, provocando a alteração do pensamento. Ela é a grande responsável pela ambiguidade dos textos literários, isto é, a possibilidade de que exista mais de uma interpretação para o mesmo texto. Quando maior a ambiguidade, maior a literariedade. E para auxiliar na construção da literariedade, um recurso são as figuras de linguagem, que podem ser considerados ornamentos linguísticos, desvios intencionais das convenções da linguagem. Apresentaremos a seguir, as principais figuras de linguagem: Comparação A comparação é uma figura que linguagem muito usada, que consiste na identificação de dois objetos a partir de uma característica que lhe é comum. Remete sempre um termo comparado e outro(s) com o(s) qual(quais) se compara. Observe: Um índio Um índio descerá De uma estrela colorida brilhante De uma estrela que virá Numa velocidade estonteante E pousará no coração do hemisfério sul, Na América num claro instante Depois de exterminada A última nação indígena E o espírito dos pássaros Das fontes de água límpida Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias Virá Impávido que nem Muhammad Ali Virá que eu vi Apaixonadamente como Peri Virá que eu vi Tranquilo e infalível como Bruce Lee Virá que eu vi [...] (VELOSO, 1977, s.p.) O texto apresenta uma estrutura de comparação bem definida, na qual o índio é comparado, por exemplo, com Muhammad Adi por ambos possuírem impavidez, com Peri, por ambos serem apaixonantes, e assim, sucessivamente Metáfora A metáfora consiste numa figura de sustentação da linguagem literária, sendo uma comparação que não explícita exatamente qual termo está sendo comparado, nem o termo comparativo, nem o ponto de comparação. Resulta, apenas, de uma interseção de ideias. Quando se diz “ela é uma flor”, está-se comparando uma pessoa a uma flor, porém, a interpretação de qual elemento da flor está sendo comparado à pessoa é definido pela interpretação do leitor. Catacrese Figura de linguagem utilizada como uma espécie de “metáfora forçada”, quando numa determinada língua não há um nome específico para determinado objeto, sendo necessário lançar mão de outros já existentes com propriedades semelhantes. É o caso, por exemplo, de “pé da mesa”, “barriga da perna”, etc. Metonímia Consiste na associação de termos e de ideias relacionados por meio da substituição de um termo por outro. Essa figura, como o significado de sua denominação, significa “mudança de nome”. Ela pode se manifestar das seguintes maneiras: 1. Substituição da obra pelo autor: “Estou lendo Machado de Assis”; 2. Substituição do conteúdo pelo continente: “Tomar um copo d’água”, ao invés de tomar a água que está dentro do copo; 3. Substituição do efeito pela causa: “Ganhar a vida”, ao invés de ganhar os meios de vida; 4. Substituição da causa pelo efeito: “Sua a camisa para viver”, ao invés de “porque trabalha muito para viver, sua a camisa”; 5. Substituição do todo pela parte, ou da parte pelo todo: “Morar na cidade”, ao invés de “morar numa parte da cidade”; 6. Substituição do objeto pela matéria: “Não vale um níquel”, ao invés de “não vale uma moeda feita de níquel”; 7. Substituição do produto pelo lugar ou marca: “Beber Coca-Cola’, ao invés de “beber um refrigerante fabricado pela Coca-Cola”. Paranomásia A paranomásia consiste na realização de um trocadilho feito por meio de um jogo de palavras conhecidas, como por exemplo, em “uma gata nada borralheira”, um trocadilho referente ao conto de fadas “A gata borralheira”. Sinestesia A sinestesia é caracterizada pelo predomínio dos sentimentos na linguagem. É uma espécie de metáfora que consiste na utilização da comparação por meio dos sentidos (audição, visão, paladar, tato, olfato). A expressão “grito áspero” é um exemplo claro de sinestesia. Onomatopeia Consiste na utilização de palavras que tentem imitar os sons não humanos. Trata-se de uma figura bastante interessante, por tornar a língua mais viva, mais real. Palavras como “miar”, “miau”, “tic-tac” etc. São exemplos de onomatopeias. Aliteração A aliteração ocorre quando se utiliza da repetição de sons consonantais para se dar ritmo a um enunciado. Trata-se de uma figura bastante comum em poemas, como ocorre a seguir: Procissão de pelúcia Aonde é que vai o praça Que passa De peliça, Com pressa, Na praça? Ia pôr uma compressa Depressa No rei da Prússia? Mas o praça Não sabe o preço Para ir da praça À Prússia. (MEIRELES, 2002, p. 79) Note que no poema a repetição dos fonemas /p/ e /s/ conferem a ele um ritmo de movimentação. Assonância A assonância também se refere à repetição de sons ao longo de um texto literário, porém essa repetição se dá por meio da repetição de sons vocálicos, como no exemplo: A onda A onda anda Aonde anda A onda? A onda ainda Ainda onda Ainda anda Aonde? Aonde? A onda anda (BANDEIRA, 1963, s.p.) A repetição dos sons nasais, representados por /on/ e /in/ conferem a assonância do poema. Perífrase ou anatomásiaA perífrase se caracteriza por dar “apelido” às coisas ou pessoas, para expressar, com ênfase, alguma qualidade desses. Quando se chama o Rio de Janeiro de “Cidade Maravilhosa” ou Castro Alves de “Poeta dos Escravos”, temos exemplos de perífrases. As figuras de pensamento As figuras de pensamento são aquelas figuras de linguagem que alteram o campo semântico e o sentido das expressões, conforme veremos a seguir. Ironia A ironia consiste em se realizar uma construção que, por meio da linguagem, diga o contrário do que se pensa. Diz-se, por meio da ironia, o oposto do que se quer dizer, correndo-se às vezes, o risco de ser mal interpretado pelo interlocutor. Quando se diz que uma criança mal comportada é um anjo, por exemplo, está-se utilizando da ironia como recurso de linguagem. Antítese É o nome dado à figura de linguagem que consiste na utilização de palavras de significados antônimos, como amor e ódio, por exemplo. Às vezes, porém, os termos podem se opor pela forma como são escritos. Mas, sempre se identifica duas palavras, explícitas, assumindo a posição de antônimas. Paradoxo É a denominação que se dá ao resultado de imagens de sentido opostas, colocadas lado a lado dentro de um texto. A conjunção das imagens possibilita essa construção. É o caso de dizermos, por exemplo, que embora alguém estivesse doente, saiu para trabalhar. A ideia embutida nesse enunciado é a de que quem está doente está impossibilitado de realizar tarefas de trabalho. Eufemismo O eufemismo é uma figura que consiste na atenuação de uma mensagem que pode chocar o destinatário. Essa figura consiste na busca de termos mais brandos, que tornem o enunciado menos bruto para quem o recebe. É o caso de se usar, por exemplo, a expressão “virar estrelinha” para se explicar a morte de alguém. Hipérbole A hipérbole é um recurso linguístico caracterizado pelo exagero ao longo do discurso textual. Desejar “milhões de beijos” para alguém é um exemplo dessa figura de pensamento. Personificação ou prosopopeia Figura que ocorre quando se atribui características e qualidades humanas a seres não humanos ou a objetos. Quando dizemos, por exemplo, que “o amor chegou”, estamos atribuindo a um ser não humano uma ação característica de seres vivos. Gradação Figura de pensamento que ocorre quando se organiza as ideias de modo ascendente (gradação crescente) ou descendente (gradação decrescente), como no exemplo retirado do poema “Mãos de finada, aquelas mãos de neve”, de Alphonsus de Guimaraens: [...] Sinto-as agora, ao luar, descendo juntas, Grandes, magoadas, pálidas, tacteantes, Cerrando os olhos das visões defuntas... (GUIMARAENS, 2014) A gradação, no exemplo dado, ocorre por meio da intensificação dada aos adjetivos. Apóstrofe Figura de pensamento caracterizada pela utilização de vocativos. Trata-se de uma interpelação (de pessoas, objetos ou sentimentos), com a finalidade de enfatizar alguma ideia ou expressão. Quando se diz, por exemplo, “Ó, céus! Ó vida! Ó Deus!” se tem um exemplo de apóstrofe. Você pode ampliar seus estudos, assistindo aos seguintes vídeos: Figuras de Linguagem - Pablo Jamilk e Figuras de Pensamento – Brasil Escola. 2020. Resumindo: Você deve ter aprendido que o que confere a literariedade de um texto é o arranjo especial com que se organiza as palavras, formando novos sentidos, desvios e construções inusitadas, que criam diferentes reações do leitor. São as chamadas figuras de linguagem e de pensamento. As figuras de linguagem possuem sentido mais “preso” ao texto, relacionadas, principalmente, ao plano morfológico do texto sendo facilmente identificadas por meio do vocabulário utilizado. As figuras de pensamento requerem um pouco mais de atenção, pois se dão mais no plano semântico do texto, organizando-se por meio da relação de ideias. Conhecendo as figuras de sintaxe As figuras de sintaxe Também chamadas de figuras de construção, as figuras de sintaxe são recursos estilísticos que subvertem os aspectos lógicos da língua. Alguns dos seus recursos mais frequentes são os desvios ortográficos, semânticos e sintáticos. Porém, não se deve pensar nesses desvios como algo ocasional, mas como algo realizado por pura intencionalidade do escritor. A seguir, veremos as figuras de sintaxe da nossa língua. Elipse A elipse é caracterizada pela omissão de algum termo anteriormente enunciado, ou sugerido no contexto da escrita. Caracteriza-se por uma revelação “posterior” do objeto da fala. Quando dizemos algo do tipo “São festeiros, mas são gente boa esses meus amigos”, temos um exemplo de elipse do termo “meus amigos”, no período “são festeiros”. Fica subentendido, na leitura do trecho, de quem se trata, não havendo a necessidade de repetição. Zeugma Trata-se de uma figura sintática semelhante à elipse, porém, a omissão de um termo se dá após ele já ter sido enunciado. Utilizando-se do exemplo anterior, podemos dizer que teríamos zeugma caso o enunciado estivesse escrito da seguinte forma: “Meus amigos são festeiros, mas são gente boa”. Assíndeto O assíndeto se caracteriza pela omissão de conjunções coordenativas ao longo de um enunciado. Se alguém disser “quero que você estude, trabalhe, tenha família, seja gente de bem”, temos a omissão da conjunção coordenativa explicativa “que”. Polissíndeto Ao contrário do assíndeto, o polissíndeto é caracterizado pela repetição enfática das conjunções coordenativas ao longo do enunciado: “Quero que você trabalhe, que estude, que tenha família, que seja gente de bem”. Pleonasmo literário O pleonasmo literário é caracterizado pela repetição constante de uma ideia ao longo do texto, com o objetivo de enfatizá-la. Observe: Poema só para Jaime Ovalle Quando hoje acordei, ainda fazia escuro (Embora a manhã já estivesse avançada). Chovia. Chovia uma triste chuva de resignação Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite. Então me levantei, Bebi o café e me preparei, Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando... - Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei. (BANDEIRA, 1967). Nesse belíssimo poema de Manuel Bandeira (o qual vale apena ser todo lido), o trecho em destaque configura um exemplo de pleonasmo literário. Silepse É uma forma de concordância ideológica, nem sempre diretamente expressa no texto, mas que pode ser subentendida, podendo ocorrer dos seguintes modos: Silepse de gênero Ocorre a silepse de gênero (masculino e feminino) quando a concordância se faz com a ideia que a palavra comporta, e não com seu gênero. Quando dizemos “a grande Porto Alegre é muito populosa”, temos um exemplo de silepse de gênero, pois, embora Porto Alegre seja uma palavra masculina, concorda-se em gênero com a ideia de cidade. Silepse de número A silepse de número (singular e plural) acontece quando o verbo da oração não concorda gramaticalmente com o sujeito, mas com a ideia nele contida, como quando se diz: “Família, vão viajar?” Observe que “família” está na segunda pessoa do singular, porém o verbo, flexionado na terceira pessoa do plural. Silepse de pessoa A silepse de pessoa (primeira, segunda, terceira) ocorre quando o verbo não concorda com o sujeito da oração, mas com a pessoa inscrita no sujeito. É um exemplo de silepse de pessoa a seguinte frase: “Todos os professores temos o dever de zelarmos pela educação”. Nesse caso, o enunciador, embora esteja falando de uma terceira pessoa, inclui-se nela, flexionando o verbo para se incluir. Hipérbato O hipérbato é caracterizado pela troca da ordem direta dos termos de uma oração, em “ouviram todos os importantes conselhos?” (Todos ouviram os conselhos importantes?). Anáfora A anáfora é uma figura de linguagem que consiste na repetição de palavras ou de expressões, com o intuito de enfatizar uma ideia ou dar um determinado caráter àquilo que se quer transmitir. O poema “Ladainha”, de Cassiano Ricardo, ilustra bem essa noção: Ladainha Por se tratar de uma ilha deram-lhe o nome De ilha de Vera Cruz. Ilha cheia de graça Ilha cheia de pássaros Ilha cheia de luz. [...]Depois mudaram-lhe o nome Pra terra de Santa Cruz. Terra cheia de graça Terra cheia de pássaros Terra cheia de luz. A grande Terra girassol onde havia guerreiros de tanga e onças ruivas [deitadas à sombra das árvores mosqueadas de sol. [...] Deram-lhe o nome de Brasil. Brasil cheio de graça Brasil cheio de pássaros Brasil cheio de luz. (RICARDO, 2015, s. p.) A ladainha, como gênero textual, faz parte do contexto religioso, sendo marcada pelas repetições. Da mesma forma, o poema de Cassiano Ricardo repete ideias sobre os nomes e sobre as belezas do Brasil. Talvez por essa repetição constante, o poeta tenha dado esse título ao texto. Os pontos fora da curva: vícios de linguagem Opostos às figuras de linguagem, os vícios de linguagem são palavras e construções que vão de encontro às normas gramaticais, que mais representam descuido ou desconhecimento das regras por parte do autor do que propriamente um elemento literário. A seguir, apresentaremos a classificação desses vícios. Pleonasmo vicioso ou redundância O pleonasmo vicioso é marcado por expressões linguísticas com sentido redundante, muito utilizadas na fala, mas que devem ser evitadas na escrita, tais como “subir para cima” e “brisa matinal da manhã”. Barbarismo O barbarismo se caracteriza pela utilização de uma palavra de forma errônea, podendo ser classificado das seguintes formas: Barbarismo de pronúncia É aquele que ocorre quando se grafa ou se pronuncia uma palavra em desacordo com a norma culta, como no caso de “pesquiza” ao invés de “pesquisa”, na escrita, ou na pronúncia de “rúbrica” ao invés de “rubrica”. Barbarismo de morfologia O barbarismo de morfologia ocorre quando da utilização de um enunciado cuja construção morfológica é contrária à norma culta, como por exemplo, “sou o mais maior desta sala”. Barbarismo semântico Ocorre quando se utiliza uma palavra atribuindo-lhe um sentido não permitido pela norma, como em “a cessão solene começará às 21 horas”, ao invés de “sessão”. Esses vícios de linguagem são comuns de serem utilizados, principalmente, com palavras de pronúncias semelhantes. Estrangeirismo Ocorre quando se utiliza um estrangeirismo para uma palavra já aportuguesada, como em “vou para a night”, ao invés de “vou para a festa à noite”. Solecismo Desvio da norma culta em relação à construção sintática dos enunciados, como em “fazem dois anos que não tiro férias”, ao invés de “faz dois anos que não tiro férias”. Solecismo de concordância Ocorre quando o problema sintático está na concordância verbal ou nominal: “haviam muitas pessoas ali”, ao invés de “havia muitas pessoas ali”. Solecismo de regência Esse tipo de solecismo é mais comum, por passar despercebido, muitas vezes, durante a escrita. Ocorre quando se utiliza erroneamente uma regência verbal ou nominal no enunciado: “assisti o filme ontem”, ao invés de “assisti ao filme ontem”. Solecismo de colocação Ocorre quando a construção apresenta erros de colocação pronominal, em relação à norma culta, como em “dancei tanto que não aguentei-me em pé”, ao invés de “dancei tanto que não me aguentei em pé”. Ambiguidade ou anfibiologia Marcada pela construção de enunciados de duplo sentido, como “o guarda deteve o suspeito em sua casa” (na casa de quem?). Cacófato ou cacofonia Ocorre quando na construção do enunciado, o mau uso das palavras produz sons e termos que não estavam previstos nos enunciados, graças à junção de palavras, como em “a boca dela tem um batom lindo!” Arcaísmo Consiste na utilização de palavras que já caíram em desuso na língua, com o objetivo de ornamentá-la, mas cuja colocação não faz sentido no momento histórico atual, como em “vossa mercê precisa de ajuda?”, ao invés de “você precisa de ajuda?” Eco Consiste na repetição de palavras terminadas pelo mesmo som, como em “a decisão da eleição causou indignação.” Neologismo Ainda que com o desenvolvimento da informação e ampliação de conhecimentos haja a necessidade de criação de novos conceitos, o neologismo é marcado quando se cria palavras novas sem que sejam necessárias, como em “essa situação é impossibilitável” ao invés de “essa situação é impossível/ inviável”. Aprofunde e amplie seus estudos através dos vídeos: Figuras de sintaxe ou de construção. s/d. e #FICAaDICA DO NEWTÃO. Vícios de linguagem. s/d. Resumindo: Você deve ter aprendido que as figuras de sintaxe são desvios da norma culta, com o objetivo de criação de determinados efeitos de sentido no texto literário. Ao contrário das figuras de linguagem, de pensamento e de sintaxe, os vícios de linguagem são desvios que vão contra a norma culta, produzindo efeitos de sentido esdrúxulos. Identificando a constituição de linguagem poética Intertextualidade e metalinguagem Conforme já abordado nas outras unidades, a intertextualidade se manifesta pelo diálogo entre textos, intencional, que faz com que um texto mais recente amplie ou “responda” a outro texto, ampliando, desconstruindo e pluralizando suas ideias. A metalinguagem se manifesta quando, por meio da linguagem, se procura descrever a própria linguagem. O texto literário apresenta essa característica quando procura conceituar determinados temas, ainda que de forma conotativa. Poesia e poema A poesia é um conjunto de características e técnicas de elaboração artística; o poema é uma das manifestações concretas da poesia. A noção de poesia está ligada ao grego poiésis, que era sinônimo de processo criativo, e depois, passou a nomear o processo criativo da poesia. Também, segundo Platão, poiésis designava os processos para se alcançar a imortalidade. Na atualidade, os significados de poiésis não se modificaram muito, haja vista que por meio da poesia, os homens se tornam imortais, uma vez que suas criações artísticas falam por eles. O poema é uma manifestação concreta da poesia, assim como a dança, a música, o cinema, a literatura, o romance, etc. Aquilo que atinge a perfeição artística possui poesia; o poema cuja perfeição ultrapassa os limites do cotidiano e do nãoartístico é um poema (seja ele haicai, soneto, ode, balada etc.) carregado de poesia. Língua e arte literária A língua de um povo dito civilizado é constituída por várias modalidades, que podem existir juntas, com suas peculiaridades, sem necessariamente, romperem com sua unidade linguística. A língua denominada geral é aquela oficializada por um país, vivificada pelo uso comum e aceita socialmente. Está acima das regionalidades, sempre existentes. No contexto brasileiro, é a língua portuguesa, vista em seu conjunto. A língua geral tende a conviver com as tonalidades regionais, na fonética e no vocabulário, resultando dali os falares regionais, que atingem fortemente a expressão cultural e literária em algumas áreas geográficas do país. Quando essas características são muito acentuadas, temos o que se chama de dialeto. O linguajar regional, com seus modismos e peculiaridades, é comumente retratado por escritores regionalistas em suas obras literárias. A língua popular é a fala espontânea do dia a dia de um povo. Quase sempre, destoa da norma gramatical e é rica em plebeísmos (palavras vulgares e gírias). Nessa modalidade da língua está inserida a fala familiar ou coloquial, sem a preocupação com a correção gramatical, dependendo do nível de escolaridade de seus falantes. A língua culta é utilizada pelas pessoas instruídas das diferentes profissões e níveis sociais. É pautada pelos preceitos vigentes da gramática normativa e se caracteriza pelo cuidado com a forma e o léxico. Seu vocabulário é mais prestigiado, servindo de ferramenta para as ciências e para o ensino nas escolas. Em língua culta se elaboram as obras científicas, as obras didáticas, textos midiáticos, documentos oficiais etc. A mais artificial dessas linguagens ocupa o âmbito artístico, sendo conhecida como linguagem literária. Uma língua pode ser tanto falada como escrita, conforme são utilizados os signos vocais e os sinais gráficos. A língua falada é viva e atual; a língua escrita é a representação ou a imagemda língua escrita. A fala é mais comunicativa e insinuante, pois as palavras pressupõem sonoridade e inflexões, ritmos e gesticulação, dentre outros fatores. A comunicação oral ou escrita acontece em diferentes níveis de expressão. Dependendo das circunstâncias do ato comunicativo, o indivíduo utiliza um tipo de linguagem adequado à situação. O grau de instrução do usuário de língua portuguesa, seu meio sociocultural, sua profissão, entre outros fatores, atua fortemente na variação do idioma. Elementos da obra literária Podemos dividir os elementos fundamentais da obra literária em conteúdo e forma. ● Conteúdo ou fundo: São ideias, conceitos, apelos, sentimentos e imagens imateriais que as palavras transmitem da mente do escritor para os leitores; ● Forma: É a expressão linguística, a linguagem falada ou escrita, veículo de ideias e de sentimentos. ● A forma como uma obra literária pode se apresentar se manifesta sob dois aspectos diferentes: a prosa e o verso. ● Prosa é a linguagem objetiva, usual, direta, veículo comum de pensamento. Mesmo que seja vazada em prosa, uma obra literária pode estar quase que predominantemente permeada de pensamentos poéticos; ● A poesia é a linguagem subjetiva, carregada de emoção e sentimento, com ritmo, melodia constante, beleza e tão indefinível quando o mundo interior do poeta, objetivando a um efeito estético. ● Distribuída em linhas descontínuas ou versos, que podem ser metrificados ou livres, a linguagem poética, sob o aspecto melódico ou mesmo auditivo, se caracteriza pelo ritmo bem mais acentuado do que na linguagem em prosa, e pela eventual utilização de rimas. Considera-se, também, que a obra literária é somente o escrito que se diferencia dos demais pela beleza da forma e pela excelência de conteúdo. Será tanto mais apreciada quanto maior seu poder de sugerir, de tocar nossa sensibilidade, de empolgar o nosso espírito. As obras literárias de alcance universal tem, comumente, mais valor que as de caráter estritamente nacional ou regional. Estilo Denominamos por estilo a maneira como cada um exprime seus pensamentos, sentimentos e emoções por meio da linguagem. Cada escritor possui seu estilo próprio e pessoal, ou seja, sua expressão reveste uma forma característica, pela qual são manifestos seus impulsos emotivos, sua sensibilidade, a feição peculiar de seu espírito. Em outras palavras, o estilo é o espelho em que se reflete a alma do escritor, a tela em que é projetada a personalidade do artista. Além dessas características individuais que diferenciam os autores uns dos outros, o estilo mostra também os traços psicológicos e culturais da raça e as tendências dominantes das diversas escolas e correntes literárias que fizeram época através dos tempos. Por isso, dizemos que há um estilo clássico, um estilo barroco, um estilo romântico, etc. É pelo seu estilo primoroso e brilhante que os grandes artistas da palavra conseguem criar obras de grande beleza. No estilo cumpre diferenciar o aspecto material ou linguístico e o aspecto mental, psíquico, subjetivo, os traços que exprimem sua dimensão psicológica, suas tendências, seu modo de ver e de julgar a vida e o mundo em que vive. Da fusão de todos esses elementos, é que surge o estilo. Versificação A versificação é a técnica ou a arte de se fazer versos. Em linhas gerais, o verso é uma linha poética, com número determinado de sílabas e agradável movimento de ritmo. ● Metro: Metro é a medida ou extensão da linha poética. Em língua portuguesa, os poetas têm utilizado doze tipos de versos, que vão de uma a doze sílabas, sendo raros os versos que ultrapassam esse número silábico. Conforme o número de sílabas, os versos são classificados da seguinte forma: Tabela 1: Classificação dos versos quanto ao número de sílabas (FALTAM DUAS IMAGENS AQUI) Fonte: Elaborado pelo autor As sílabas métricas, isto é, as sílabas dos versos coincidem com as sílabas gramaticais, porém sua contagem se faz auditivamente, e se subordina aos seguintes princípios: a. Sempre que duas ou mais vogais se encontram no fim de uma palavra e no começo de outra, e podem ser ditas numa só emissão de voz, unem-se numa mesma sílaba métrica; Tabela 2: Exemplo ( FALTA UMA IMAGEM AQUI) b. Ditongos crescentes valem, quase sempre, uma única sílaba métrica; Tabela 3: Exemplo ( FALTA UMA IMAGEM AQUI) c. Não se conta(m) a(s) sílaba(s) que se segue(m) ao último acento tônico do verso; Tabela 4: Exemplo ( FALTA UMA IMAGEM AQUI) Essa última regra só se atinge versos graves (que terminam por palavras paroxítonas) e esdrúxulos (que terminam por palavras proparoxítonas). Nos versos agudos (que terminam por palavras oxítonas) contam-se todas as sílabas. Ritmo O ritmo é o resultado da singular sucessão de sílabas átonas ou fracas e de sílabas tônicas ou fortes. É o elemento melódico do verso, tão importante à poesia como o é para a música. Junto com a rima e as imagens poéticas, transmite a versos um misterioso poder de emoção e de encantamento. Os acentos tônicos ou as sílabas tônicas devem se repetir com intervalos semelhantes, de modo que o verso se torne melodioso. Não se distribuem as sílabas tônicas arbitrariamente, mas devem, segundo o tipo de verso, recair em determinadas sílabas. Simetria e assimetria Podemos definir a simetria como uma espécie de regularidade métrica e rítmica dos versos, enquanto a assimetria é caracterizada por maior liberdade em relação às regularidades dos versos. Encadeamento Quando a pausa final do verso não coincide com a pausa respiratória, ou quando o verso não finaliza juntamente com um segmento sintático, temos aquilo que chamamos de encadeamento ou transbordamento, mais conhecido pela palavra francesa enjambement. Em geral, procura-se não realizar pausa no fim dos versos, porém, pode-se fazer uma breve pausa, mas conservando-se a voz suspensa. Rima A rima é considerada a identidade ou a semelhança de som do fim (ou do meio dos versos. Mesmo que seja um elemento secundário e até mesmo dispensável, a rima é aproveitada pelos poetas para comunicar aos versos maior harmonização. É um recurso musical que agrada aos ouvidos. Foneticamente, as rimas podem ser: ● Perfeitas: sereno e moreno, nele e leve etc; ● Imperfeitas: Deus e céus, estrela e vela etc; ● Toantes: são rimas idênticas somente na vogal tônica, como casa e vale, lírio e livro etc. Segundo a posição do acento tônico das palavras, as rimas podem ser: ● Agudas ou masculinas: feroz e atroz, amor e clamor etc; ● Graves ou femininas: festa e manifesta, flores e cores etc; ● Esdrúxulas: mágico e trágico, lírico e onírico etc. Conforme o valor, são as rimas classificadas em: ● Pobres: são as rimas consideradas vulgares e as formadas com palavras de mesma morfologia, como coração e oração, amor e temor etc; ● Ricas: rimas formadas com palavras de classes gramaticais diferentes, como prece e adormece, penas e apenas etc; ● Raras: são as rimas que são obtidas com palavras de muito poucas rimas possíveis, como cisne e tisne, bosque e enrosque etc; ● Preciosas: são rimas artificiais, como vê-la e estrela, trantuilo e ouvilo etc. Versos regulares São os versos que obedecem às regras clássicas, que determinam a posição das sílabas acentuadas em cada tipo de verso. Suas rimas aparecem de modo regular, sendo marcadas pela semelhança fônica no final de cada verso. Versos brancos São versos que obedecem a certa métrica, porém, sem a presença de rimas. Versos livres Não obedecem a regras nem quanto ao metro, nem quanto à posição silábica. Também não apresentam regularidade de rimas. Versos polimétricos São versos que apresentam certa regularidade, mas tamanhos diferentes, com sílabas fortes localizadas em posições indicadas pelas métricas tradicionais. Estrofe A estrofe, também chamada de estância, é um grupo de versos de um poema Elas podem ser formadas por versos de medida igual ou diferentes. Conforme o número de versos, são denominadas das seguintes maneiras: Tabela 5: Nomenclatura das estrofes ( FALTA UMA IMAGEM AQUI)Fonte: Elaborado pelo autor Você deve ter aprendido que a intertextualidade é um elemento que faz parte dos textos, uma vez que cada texto literário pode ampliar, tensionar, reformular conceitos de textos anteriores. A metalinguagem de um texto literário se manifesta quando, por meio da linguagem literária, se busca conceituar determinados elementos. O texto poético, em especial aquele pertencente ao gênero lírico, apresenta uma constituição bastante rica, marcada por ornamentos e por jogos de linguagem possíveis, a fim de atingir determinadas perfeições artísticas. UNIDADE 4 Explorando a teoria da narrativa 1: Discurso e enredo Definição para narrativa A narrativa pode ser entendida por todo discurso que nos apresenta uma história originária como se fosse real, atravessada por uma pluralidade de personagens, cujas trajetórias de vida se entrelaçam num tempo e num espaço determinados. Desta forma, o conceito de narrativa não está restrito apenas ao romance, ao conto e a novela, mas também ao poema épico e a outras formas de literatura. Muitas são as narrativas que existem. Há, primeiramente, uma grande variedade de gêneros, distribuídos em substâncias diferentes, como se toda matéria fosse potente para que o homem sobre elas escrevesse narrativas. A narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem, fixa ou móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas essas substâncias; marca presença no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopeia, na história, na tragédia, no drama, na comédia, na pantomina, na pintura, no vitral, no cinema, nas histórias em quadrinhos, no fait divers, na conversação. Também, é sob essas formas quase infinitas que a narrativa se faz presente em todos os tempos, lugares, sociedades... internacional, transhistórica, transcultural, etc. Apesar da universalidade e da grande variedade da narrativa, é possível e importante encontrar elementos constitutivos, os sistemas de regras que constituem a narratividade, para melhor compreender os elementos invariáveis, específicos de cada tipo narrativo, separando-os dos elementos variáveis, específicos de cada tipo particular. O plano do discurso Um problema importante que se apresenta a quem se propõe a estudar uma obra ficcional é perceber quem narra e o que se passa num romance ou conto, pois o narrador não é o autor. No contexto da narrativa, o narrador nunca é o autor, mas um papel por ele criado: é uma personagem ficcional no qual o autor se metamorfoseia. O narrador é um ser ficcional e autônomo, independente do ser real do autor que o criou. As ideias, sentimentos, a cosmovisão do narrador de um texto literário não se relaciona direta e necessariamente com o ponto de vista do autor. Esse pode ocultar sua axiologia atrás do narrador e de outros personagens, como também pode optar por não compartilhar as opiniões de nenhuma personagem. Gustave Flaubert, autor de Madame Bovary, defendeu-se das acusações judiciais de ter incentivado o adultério, mostrando que as ações e as ideias da protagonista do romance, a personagem Emma, não podiam ser confundidas com o posicionamento ideológico do próprio autor. De toda forma, não cabe ao analista da obra julgar os critérios e os valores do escritor somente com base em elementos intratextuais, pois, quem narra não é quem escreve, e quem escreve, não é quem é. O autor é pertencente ao mundo da realidade histórica; o narrador, a um universo de imaginação: entre esses dois mundos pode até haver analogia, mas nunca identidade. Essa confusão vem do fato de que o sujeito da enunciação, que é um sujeito lógico, é considerado como um sujeito ontológico. A literariedade de um romance é estabelecida pelo único motivo de que o eu do narrador não é o eu do escritor. Até mesmo nos casos-limite do uso da vida particular para fins artísticos, num poema ou em um romance escrito em primeira pessoa e com o uso de dados biográficos da pessoa do autor, quem nos dirige a palavra só pode ser uma entidade da ficção. Exemplificamos com a obra “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, enquanto o narrador do romance é o personagem Bentinho. O primeiro, o autor, pertence ao mundo real, exerceu a profissão de escritor de contos e romances; o segundo – o narrador -, é uma personagem inventada pela fantasia de Machado, para nos contar a história de seu relacionamento com Capitu. O que se passa no romance deve ser percebido a partir do olhar de Bentinho, o narrador da fábula, e não pela perspectiva do autor, que é um ser externo à própria obra. E qualquer produção de arte (um romance, um filme, um quadro, uma escultura), a partir do momento em que fora criada, adquire sua autonomia, podendo ser analisada e apreciada independentemente de se conhecer o autor. Além do narrador, existe outra entidade a ele ligada: o narratário ou destinatário. A tríade emissor – mensagem – receptor deve ser verificada externa e internamente ao texto literário, ou seja, no plano da realidade e no plano da fantasia. No mundo da existência física, o emissor é o autor que destina sua obra a um leitor imaginado. No texto artístico, o emissor é um personagem (o narrador) que comunica a outro personagem (receptor) fatos, acontecimentos, ideias e sentimentos (mensagem). Numa narrativa, é importantíssima a percepção de quando uma personagem está atuando como ser que participa dos fatos ou quando está exercendo somente a função de narrador. O processo enunciativo dentro do texto literário, na maior parte das narrativas está camuflado, pois o narrador raras vezes se mostra como tal, identificando-se numa personagem. A função desse narrador é revelada por índices específicos e procedimentos acessórios. O que muitos estudiosos denominam como “aparelho formal da enunciação” é formado por todos os elementos que estabelecem uma relação de amostra entre o emissor, o discurso e seu destinatário. Os linguistas chamam esses elementos de indicadores da instância do discurso, shifters ou dêiticos. A seguir, veremos os principais componentes desse aparelho formal de enunciação. ● Pronomes de primeira e segunda pessoas: a relação eu-tu é fundamental no processo enunciativo, pois estabelece o contato entre o locutor e o ouvinte, entre narrador e destinatário. A enunciação é caracterizada pela relação discursiva entre dois termos que possuem a mesma estrutura dialógica. Ao emissor deve, obrigatoriamente, corresponder um receptor, seja ele presente ou oculto, real ou imaginário, coletivo ou individual. Até o monólogo não deixa de ser um diálogo interiorizado entre um eu, central na enunciação, que funciona ora como locutor, ora como ouvinte; ● Os demonstrativos (adjetivos e advérbios) são formas que, além de apontar objetos e lugares, ostentam a instância da enunciação pela proximidade imaginária com o receptor; ● Os adjetivos qualificativos expressam juízo de valor ético ou estético, revelando os predicados semânticos atribuídos a personagens ou a eventos pelo narrador; ● A categoria do presente verbal e adverbial é uma noção materializada pelo ato de enunciação. O presente formal nada mais é que tornar explícito o presente referente à enunciação, que se renova a cada produção de discurso; ● Algumas formas modais de verbos e de advérbios pertencem ao plano enunciatário por sugerirem atitudes particulares de quem fala. Os narradores De modo geral, o narrador é aquele que conta a história. Sua presença, assim como a das personagens, é fundamental para o desenvolvimento do texto narrativo. A seguir, veremos as formas como o narrador do texto literário se apresenta. Narrador pressuposto A essa categoria pertencem as narrativas que não referenciam explicitamente o narrador e o destinatário: ● Narrador onisciente neutro: Caracteriza-se quando o foco narrativo parece contar-se a si mesmo, supostamente abrindo mão da figura do narrador. Este tipo de narrador é onipresente, e o narrador, em sua visão, se coloca por detrás e cima dos personagens, sabendo – inclusive – mais do que eles pelo motivo deque sabe tudo. As narrativas ocorrem de um modo neutro, impessoal, sem que o narrador tome partido ou defenda algum ponto de vista; ● Narrador onisciente intruso: Semelhante ao narrador onisciente neutro, essa forma de narrador se caracteriza por volta e meia interromper a narração dos fatos ou mesmo a descrição dos personagens para tecer considerações e para emitir julgamentos de valor; ● Narrador onisciente seletivo: Este foco narrativo se dá quando o narrador, mesmo sendo ele o sujeito do discurso, apresenta um ponto de vista plural, não somente seu, mas de um ou de vários personagens, não a posteriori, mas diretamente, no momento presente, pela mente do personagem. Sua diferença estilística está na forma do discurso indireto: neste caso, é utilizado o chamado discurso indireto livre, por meio do qual o narrador interpreta com palavras suas ideias e pensamentos de personagens; ● Narrador-câmera: Esse narrador conta os fatos com uma visão de fora, como se fosse – de fato – um cameraman que, se colocando atrás da câmera cinematográfica, só mostra o que essa câmera é capaz de captar. Ele não pode falar do passado, não está em vários lugares ao mesmo tempo, não pode penetrar na consciência do personagem; apenas exerce o papel de observador imparcial, que analisa realisticamente a conduta e o meio como materialmente observáveis. Narrador-personagem Nesta categoria, estão os narradores que são manifestadas diretamente por um ente ficcional que, dentro do texto literário, assume o papel de narrador: ● Narrador-protagonista: O narrador se identifica como o eu do personagem principal que vive os fatos. Trata-se de um ator que acumula o papel de sujeito da enunciação e de sujeito do enunciado. Ele nos conta a história por ele vivida, a história de parte de sua existência. É por meio de seus olhos e de seus sentimentos que são apresentados os elementos que constituem a narrativa: os fatos, os outros personagens, os temas e os motivos, o espaço e o tempo. Em algumas narrativas, o personagem central faz uma sondagem na profundidade de sua consciência, remisturando sentimentos e sensações do presente com lembranças passadas; ● Narrador-personagem secundário: Esse tipo de narrador não é o protagonista, mas outro personagem que, mesmo participando dos acontecimentos, não pode ser confundido com o protagonista ou com os demais personagens da história, mas é por meio desse narrador que os conhecemos; ● Narrador-testemunha: Possui uma focalização centrada sobre um personagem que está centrado no texto só para narrar os acontecimentos, sem se confundir nem com o protagonista, nem com os outros personagens; ● Narração dramática: É uma técnica usurpada do gênero dramático, do teatro, no qual não há um narrador específico, mas todas as personagens, por meio do diálogo, funcionam como narradores e como destinatários da mensagem. O enredo De modo geral, podemos dizer que o enredo é a história propriamente dita, de seu início ao seu fim. Ele faz parte do gênero narrativo porque é a noção de enredo que possibilita a percepção do movimento da narrativa. Outros tipos discursivos, como a descrição, não possuem o enredo em sua estrutura; ficam como se estagnadas no tempo e no espaço. A seguir, veremos as principais características que constituem o enredo das tramas narrativas. Situação inicial A situação inicial pode ser definida como aquela que tem a função de apresentar ao leitor, por meio do narrador, a história que será contada. É por meio da situação inicial, que conhecemos, de forma breve ou aprofundada, o protagonista, o tempo, o lugar em que se passa a história e sua situação de vida, no momento em que o foco narrativo se coloca sobre ele. Dito de outro modo, é quando o contexto narrativo é apresentado. Nó A partir da apresentação da situação inicial, algo ocorre que modifica seu estado de início, trazendo uma forma de desequilíbrio para o ambiente narrativo e para o protagonista: o nó. O nó do enredo pode ser entendido como o conflito que colocará os personagens em ação ao longo da trama. Clímax Com a movimentação das personagens ao longo da história, na busca pela resolução do conflito, surge um ponto máximo, crucial para a constituição de um novo equilíbrio: o clímax. É esse o elemento da narrativa que se caracteriza pelo momento mais tenso do enredo, quando, todo o nó e revelado, e a possibilidade de resolução do conflito, independentemente da forma que ocorrer, está próxima. O clímax, de modo geral, é o prenúncio do fim da história. Desfecho Após toda a tensão do clímax, finalmente o enredo se encaminha para o final, quando os personagens, de alguma forma, resolverão seus conflitos. A narrativa nunca volta exatamente para a situação inicial no desfecho, mas mostra como o protagonista superou (ou não) aquele conflito, ou os desdobramentos do nó, com uma nova situação inicial. A estrutura do enredo, também chamada de estrutura fabular, é importantíssima no desenvolvimento e na consolidação de uma narrativa, pois sem ela, a ação não pode ocorrer, prejudicando a literariedade, a discursividade e as próprias características do gênero narrativo. Para saber mais sobre o assunto, continue seus estudos assistindo aos seguintes vídeos: CINEPLOT. 2018. O que é narrativa? e BRASIL ESCOLA. 2018. Tipos de narrador ou tipos de foco discursivo. e VEVSVALADARES. 2015. Passeando pela teoria literária #3: Resumindo: Você deve ter aprendido que narrativa é ação, não há texto narrativo sem que ocorram ações desenvolvidas pelos personagens num tempo e num espaço. O plano do discurso pode ocorrer de dentro do texto, por um narrador que participa dos fatos, ou de fora do texto, por um narrador que apenas os observa. O narrador é aquele que conta a história. É um ser ficcional, que não deve ser confundido com o autor. O enredo consiste na movimentação da trama narrativa, sendo marcado por situação inicial, nó, clímax e desfecho. Preparado(a) para a próxima competência? Vamos lá! Explorando a teoria da narrativa 2: personagem, tempo e espaço O estudo da personagem Em geral, da leitura de um romance fica a impressão de uma série de fatos que se organizam em enredo, e de personagens que vivenciam tais fatos. É uma impressão praticamente indissolúvel: quando pensamos no enredo, pensamos, simultaneamente, nos personagens; quando pensamos nos personagens, pensamos na vida em que vivem, nas dificuldades em que se envolvem, no seu destino, traçado de acordo com uma duração temporal, referido a determinadas condições de ambiente. O enredo existe através dos personagens; os personagens vivem do enredo. Tanto enredo como personagens exprimem, ligados, os intuitos do romance, a visão de mundo que ele apresenta, os significados e valores que constrói. Percebemos que há uma profunda ligação entre a estrutura narrativa (ou estrutura fabular) e seus componentes atoriais. Os personagens constituem os suportes vivos da ação e a movimentação das ideias que povoam uma narrativa. Se fosse didática e praticamente possível, a análise dos personagens deveria acompanhar o estudo do enredo, pois sua caracterização ilumina o sentido da história e vice-versa. Sua estrutura Podemos dizer que toda narrativa é composta por elementos variáveis e elementos invariáveis. Os elementos invariáveis se constituem pelo nome dos personagens, sexo, idade, atributos etc., pelo conjunto de suas qualidades externas e suas características psicológicas. Os elementos invariáveis são os sujeitos das funções da narrativa. D’Onofrio (2007), ao estudar a formação do personagem, afirma que há uma espécie de modelo actancial, no qual há uma divisão entre ator e actante. O ator seria o que se chama de personagem, aquele que pode ser identificado como sujeito numa narrativa. Os atores são elementos variáveis, em número ilimitado, que povoam as obras literárias e se encontram na estrutura de manifestação. Os actantes seriam uma classe de atores que exercem funções idênticas, estando relacionados a conceitos abstratos, categorias metalinguísticas, quesó podem ser percebidos numa estrutura narrativa mais aprofundada, no nível sintático, e não lexemático. Dito de outro modo, os actantes são as relações gramaticais ou funcionais que existem entre os atores de uma narrativa. A estrutura actancial, por sua vez, parte do pressuposto de que a principal relação sintática do discurso é aquela que opõe sujeito e objeto. Semanticamente, pode-se dizer que o sujeito de uma ação é quem sente falta de algo e inicia o processo de transformação para possuir o objeto desejado, e o objeto pode ser entendido como a coisa encontrada, como o valor de que sente falta. Junto aos actantes principais, há também os actantes secundários, que participam das ações de forma circunstancial. O sujeito, em sua caminhada pela posse de um objeto-valor, geralmente precisa da ajuda de outro actante. O objeto, por conseguinte, também pode ser o centro de um eixo sintático- semântico, dando vida a outra dupla actancial: destinador e destinatário. Isso ocorre quando numa narrativa ocorre que um ator que funciona como mandante ou destinador do objeto e outro ator, a quem esse objeto-valor se destina, o destinatário. Em relação ao estudo dos atores, seu estudo é mais potente no nível da estrutura de manifestação, tendo presentes narrativasocorrências. Entendemos por ator o personagem que, numa dada narrativa, exerce uma ou mais funções actanciais. Ele pode ser figurativo (seres divinos, animais, humanos, objetos) ou noológico (conceito: amor, virtude, ódio etc.). Conforme as funções actanciais que exerce, o ator é investido de um papel temático, ou seja, tem uma missão a ser executada. O ator pode ser qualificado desde o começo da narrativa para sua função ou pode receber as qualificações de que precisa gradativamente. No primeiro caso, tem-se um tipo de personagem conhecido como “de costume” ou “plano”, mascado de início para sempre com determinados traços. No segundo caso, a narrativa apresenta o personagem, de início, como um assemantema ou zero semântico, desqualificado: é o personagem de natureza ou esférico, que será modelado aos poucos. Para que a performance do ator ocorra, ele deve previamente atingir a competência específica. Essa competência, por sua vez, pode ser vista por três modalidades: querer o sujeito, antes de mais nada, deve realmente conseguir aquilo que deseja e demonstrar a vontade de conseguir o objeto-valor); o saber (ele deve saber onde está o objeto desejado e o que deve fazer para alcança-lo); o poder (o sujeito deve possuir os meios adequados para que possa conseguir se apossar do objeto-valor. Sua evolução Olhar de forma diacrônica para a tipologia do personagem nos mostra como ele adquiriu diferentes configurações e representações ideológicas ao longo da história da ficção literária. Um longo caminho, por exemplo, separa o herói clássico do personagem anônimo do século XX. Percebe-se rupturas em relação aos heróis clássico e romântico, surgido a partir do século XVIII, desde suas qualidades, seus valores, seus modos de ver o mundo, etc. Ao mesmo tempo, na atualidade, a teoria do novo romance decreta a morte do herói romanesco e, ao mesmo tempo, destrói a estrutura fabular. Porém, essa tendência é considerada mais intelectualizada nas ideias vanguardistas. A literatura de massa, escrita, filmada ou televisionada, pelo contrário, ainda se interessa pela produção do herói tradicional, ainda que o vista com uma roupagem mais moderna. Uma parte cada vez mais considerável de romances e filmes policiais e de ficção científica apresenta o herói não com a espada, revólver ou socos, mas com microscópios, sofisticados aparelhos de balística, incríveis astronaves. Os personagens O personagem é um ser ficcional responsável pelo desempenho do enredo; dito de outro modo, é quem faz a ação acontecer. Por mais real que pareça, o personagem é sempre uma invenção, mesmo quando se percebe que determinados personagens são baseados em sujeitos reais ou em elementos da personalidade de determinados indivíduos. O personagem é um ser pertencente à história e que, portanto, só existe como tal se participa do enredo, se age ou se fala. Se um determinado ser é mencionado na história por outros personagens, mas nada faz direta ou indiretamente, não interfere de nenhuma forma no enredo, não devendo ser considerado um personagem. Animais, seres humanos ou coisas, personagens se definem pelo enredo, pelo que fazem e dizem, e pelo julgamento o narrador ou os outros personagens fazem dele. Classificação dos personagens Quanto ao papel que desempenham no enredo, os personagens podem ser classificados da seguinte forma: ● Protagonista: é o personagem principal do enredo. Pode ser: ○ Herói: quando o protagonista possui características consideradas superiores às de seu grupo; ○ Anti-herói: quando o protagonista apresenta características iguais ou inferiores às de seu grupo, mas, por algum motivo, está na posição de herói, mesmo que sem competência para tanto. ● No Brasil, ou melhor, na literatura brasileira, são mais frequentes os anti-heróis, geralmente vítimas das adversidades e desigualdades, ou de seus próprios defeitos de caráter. ● Antagonista: é o personagem que se coloca em oposição ao protagonista, seja por sua ação que o atrapalha, seja por suas características diametralmente opostas às do protagonista. Em outras palavras, seria o vilão da história; ● Personagens secundários: são os personagens menos importantes na história, isto é, que possuem uma participação menor ou menos frequente no enredo. Podem desempenhar papéis de ajudantes do protagonista ou do antagonista, ou se assemelhar a figurantes. Quanto à caracterização que desempenham no enredo, os personagens podem se classificar como: ● Personagens planos: são aqueles personagens que se caracterizam por um número pequeno de atributos, que são facilmente identificados pelo leitor. De modo geral, os personagens planos são pouco complexos. Desse tipo de personagens, podemos descrever dois mais conhecidos: ○ Tipo: é um personagem reconhecido, geralmente, por características típicas, que não variam. Essas características podem ser morais, sociais, econômicas, ou de qualquer outra ordem; ○ Caricatura: é uma forma de personagem que pode ser reconhecida por características consideradas fixas e ridículas. Em geral, mais presente nas histórias de humor; ● Personagens redondos: são personagens bem mais complexos do que os planos, pois apresentam uma variedade mais ampla de características que, por sua vez, podem ser: ○ Físicas: corpo, voz, gestos, roupas; ○ Psicológicas: referem-se à personalidade e aos estados de espírito; ○ Sociais: indicam classe social, profissão, atividades sociais; ○ Ideológicas: referem-se ao modo de pensar do personagem, sua filosofia de vida, suas opções políticas, sua religião etc.;/li> ○ Morais: referem-se a julgamento, isto é, em dizer se o personagem é bom ou mal, se é honesto ou desonesto, se é moral ou imoral, de acordo com determinados pontos de vista. Um mesmo personagem redondo pode ser julgado de diferentes modos por personagens, narrador, leitor; por tanto, poderá apresentar características morais distintas, relacionadas ao ponto de vista adotado. Também, ao se analisar um personagem redondo, deve-se considerar o fato de que ele pode mudar no decorrer da história, e que uma qualificação inicial pode não dar conta de caracterizá-lo. O tempo Outro elemento importante que constitui o enredo, o tempo é que permite vermos a movimentação dos personagens. Importante que, dentro da literatura, estamos nos referindo a um tempo que chamamos de fictício, ou seja, interno ao texto, entranhado no enredo. Podemos dimensioná-lo a partir de algumas constatações, como veremos a seguir. Época em que se passa e duração da história Constitui o pano de fundo para o enredo. A época da história nem sempre está de acordo com o tempo real em que foi publicada ou escrita a obra. Há muitas histórias que se passam em um certo período de tempo, já outras possuem um enredo que se estendeao longo de muitos anos. Os contos, em geral, apresentam uma temporalidade curta em relação aos romances, nos quais o decorrer do tempo é mais explorado. Para se identificar o tempo-época ou a duração, precisa-se realizar um levantamento dos índices de tempo, pois essas referências representam marcações de tempo. Tempo cronológico É o nome que damos ao tempo que transcorre na ordem natural dos fatos no enredo, isto é, do começo para o fim. Está ligado ao enredo linear (que não altera a ordem em que os fatos ocorreram), e chama-se cronológico porque é mensurável em horas, dias, anos, séculos. Para que se compreenda melhor essa forma de tempo, podemos imaginar uma história que começa narrando a infância do personagem e depois os demais fatos de sua vida na ordem em que eles ocorreram. Tempo psicológico É o nome que damos ao tempo que transcorre numa ordem determinada pelo desejo e/ ou pela imaginação do narrador ou dos personagens, ou seja, a ordem natural do tempo é alterada, formando um enredo não-linear (no qual os acontecimentos estão fora da ordem natural). Uma das técnicas mais conhecidas e usadas a serviço do tempo psicológico é o flashback, que consiste na ação de voltar no tempo. O espaço O espaço é, por definição, o lugar onde se passa a ação da narrativa. Caso a ação seja concentrada, isto é, se houver poucos fatos na história, ou se o enredo for psicológico, haverá menos variedade de espaços. Se, por outro lado, a narrativa for recheada de acontecimentos, maior será a diversificação de espaços. O espaço tem como funções principais situar as ações dos personagens, estabelecendo com eles uma interação, quer influenciando suas atitudes, pensamentos ou emoções, que sofrendo eventuais transformações provocadas pelos personagens. Como ocorre com os personagens, o espaço pode ser caracterizado de forma mais detalhada em trechos descritivos, ou as referências de espaço podem estar diluídas na narração. De qualquer modo, é possível identificar-lhe as características, por exemplo, espaço fechado ou aberto, espaço urbano ou rural, e assim por diante. O termo “espaço”, de modo geral, apenas dá conta do lugar físico em que a narrativa ocorre. Para designar o lugar psicológico, social, econômico etc., usa-se a noção de “ambiente.” O ambiente É o espaço carregado de características abstratas (socioeconômicas, morais e psicológicas) em que vivem os personagens. Nesse sentido, o ambiente é um conceito próximo do tempo e do espaço, pois junta esses dois elementos, acrescentando um clima. Clima é o conjunto de determinantes que cercam os personagens, que podem ser resumidos às condições socioeconômicas, morais, religiosas e psicológicas. Funções do ambiente Dentre as principais funções que o ambiente possui na obra literária, podemos citar: 1. Situar os personagens no tempo, espaço, grupo social, e nas condições em que vivem; 2. Projetar os conflitos vividos pelos personagens; 3. Conflituar com os personagens. Em algumas narrativas, o ambiente se opõe aos personagens, estabelecendo com eles um conflito; 4. Fornecer índices para o andamento do enredo. Resumindo: Você deve ter aprendido que o personagem é aquele que movimenta o enredo da narrativa. Ele pode estar diretamente relacionado ao enredo, ou participar dele como figurante. Sem os personagens, que são os atores da ficção narrativa, ela não acontece. O tempo é quando a narrativa ocorreu, que geralmente pode ter marcas cronológicas ou ainda psicológicas. Pode ou não ser linear. O espaço é onde a narrativa ocorreu, no que se refere ao espaço físico. Espaços não físicos, onde há conflitos de elementos abstratos, são denominados como ambientes. Além disso, a importância de todos os elementos que abordamos nesse capítulo é que eles servem para estruturar a história literária pois, sem eles, o enredo não existirá. Deste modo, é importante que, na análise de obras literárias, o estudante busque compreender esses elementos primeiramente, suas formas de apresentação e suas configurações, a fim de que sua interpretação dos fatos não seja vaga, nula ou mesmo equivocada. Vimos nesse capítulo, também, que os elementos que constituem o enredo literário não estão disponibilizados de forma elencada dentro do texto, mas é a na progressão da leitura que conseguimos percebê-los. Conhecendo as formas narrativas No momento em que definimos a narrativa, já acenamos à grande variedade de formas, cujos elementos estruturais não pertencem apenas à arte literária, mas também ao cinema, ao teatro, à pintura, à rádio, à televisão. Alguns autores dividem os textos narrativos em formas simples e formas cultas. As formas simples seriam as criações coletivas, representando a cultura popular, tais como: mito, lenda, conto popular, saga, adivinhação, causo, anedota, provérbio. As formas ditas cultas seriam as criações individuais da arte: poesia épica, novela, romance, conto erudito, crônica. Muitas vezes, se dá a passagem de uma forma simples para uma forma culta, quando o autor opta por utilizar elementos da cultura popular no texto. Ao se atualizar numa obra literária, a forma simples perde sua mobilidade e se fixa de forma definitiva, adquirindo o caráter da unicidade. Às vezes, são usados indiferentemente os termos mito, conto popular, gesta ou saga para denominar a mesma história de ficção. Mito O mito vem do grego mythos, que corresponde à fábula latina. Foi usado por Aristóteles como elemento estrutural da teoria narrativa, a fim de indicar um conjunto de ações. Porém, em sua concepção geral, mito é uma história ficcional sobre divindades, criada pelos homens para explicar a origem das coisas ou justificar padrões de comportamento. O que há em comum entre os dois usos do termo “mito” é que se trata de uma história fantástica, inventada ou por um poeta ou pelo povo. No segundo caso, estamos diante de uma forma simples de narrativa, uma vez que o mito brota espontaneamente do seio de um povo ainda num estágio primitivo. Algumas de suas características: ● Trata-se de uma história fantástico-religiosa; ● Adquire o status de crença-verdade; ● Segue um pensamento lógico peculiar. Lenda A lenda se originou do termo latino “legenda”, forma gerúndio do verbo legere (ler), que na Idade Média, se tornou um substantivo. O nome feminino “legenda”, de onde se origina a palavra “lenda”, significa, etimologicamente, “o que se deve ler”. Tal substantivo passou a denominar o relato da vida dos santos e dos mártires da Igreja Católica. O etimológico do nome “lenda” já sugere a disposição mental: aquilo que deve ser imitado. As hagiografias (biografias dos santos), por exemplo, deviam ser lidas para que se conhecesse e imitasse as virtudes dos heróis religiosos. Essa é uma diferença importante entre mito e lenda: a história mítica, ligada a entes sobrenaturais, tem como atitude mental a crença; diferentemente, o relato lendário tem como heróis seres humanos cujo grande valor cívico do espiritual estimula a imitação. Outra diferença está no fato de que a lenda se origina de um fato histórico, mesmo que sua verdade, com o passar do tempo, seja transfigurada pela imaginação popular. Aliás, como se depreende do sentido do adjetivo “lendário”, há quase uma disposição entre história e lenda: chama-se lenda o fato historicamente não comprovado. Conto popular ou maravilhoso É uma forma universal de transmissão da cultura de um povo, ainda na fase da oralidade. O conto popular ou maravilhoso documenta usos, costumes, modos, formulares jurídicas, folclore, etc. Mostra as inclinações do ser humano para o maravilhoso, visto como natural, para a bondade, a justiça, a verdade, a beleza física e espiritual, o amor sentimentalmente vivido. Expressão da psicologia coletiva, dispõe da moral natural: as coisas se passam como nós gostaríamos que se passassem, sempre com o triunfo do bem sobre o mal. O julgamento moral da massa popular é absoluto porque é sentimental, em contraste com o mundo da realidade, que é trágico porque o que deveria ser quase sempre não é. Rompendo comas barreiras do real, o conto popular desafia a própria morte: o jovem casal, após superar diversos obstáculos, será feliz para sempre: se não morreu na história ficcional, é de deduzir que ainda vive no desejo dos ouvintes ou dos leitores. Sob a denominação de conto popular, de fada ou da carochinha, agrupam-se inúmeros textos, com narrativas as mais variadas possíveis. A seguir, apresentamos alguns temas comuns nos contos populares ou maravilhosos: ● Encantamentos: histórias de fadas, da carochinha e de magia, com predominância do elemento sobrenatural; ● Exemplos: micronarrativas com intenção moralizante; ● Contos edificantes; ● Fábulas: animais que falam; ● Contos religiosos: com a intervenção divina; ● Narrativas etiológicas: sobre a origem de objetos ou de costumes; ● Adivinhações; ● Contos acumulativos: casos de intertextualidade, de contos de nunca acabar, de trava língua; ● Facécias: anedotas e patranhas; ● Natureza denunciante: um ato criminoso é revelado por um elemento natural; ● Demônio logrado: a vitória do bem sobre o mal; ● Ciclo da morte. Literatura infanto-juvenil A literatura destinada à leitura infantil e adolescente ultimamente tem despertado muito interesse, uma vez que se percebeu seu importante papel para o desenvolvimento da personalidade humana. Desde a primeira infância, ainda antes da alfabetização, a criança deve ser colocada em contato com livros que contam historinhas ilustradas para despertar sua imaginação, visualizando seres do mundo animal e vegetal e relacionando realidade e fantasia. Conto erudito ou literário Duas características importantes diferenciam o conto literário denominado erudito ou culto, do conto popular: é produzido por um autor historicamente conhecido; e refere-se a um episódio da vida real, não verdadeiro por ser um produto da ficção, mas verossímil, ou seja, o fato narrado não aconteceu no mundo físico, mas poderia acontecer. Mesmo que seja possível apontar exceções de contos fantásticos, como recurso ao sobrenatural, escritos por autores famosos, a regra do conto erudito é ater-se ao real, sem abrir mão da verossimilhança, pois a atitude mental que dele se depreende não é idealizar, mas contestar valores. O conto erudito se diferencia do romance e da novela por ser uma narrativa curta. Ele possui todas as características do romance, mas em dose menor. O foco narrativo geralmente é centrado no narrador onisciente ou em um personagem. A fábula é reduzida apenas a um episódio de vida. Os personagens são pouquíssimos (em torno de três), constituindo o famoso triângulo amoroso. O espaço é reduzido a um ou dois ambientes. O tempo também é bastante limitado. As descrições e reflexões, quando existem, são muito rápidas. A diminuição dos elementos estruturais confere ao conto uma grande densidade dramática. Enquanto no romance o conteúdo textual se encontra diluído na multiplicidade de ações, personagens, espaços, tempos, descrições, reflexões, no conto há um enxugamento do sentido, que se revela ao leitor mais rapidamente. O contista tem uma ideia fundamental a expressar. Inventa, então, uma pequena história vivida por alguns personagens cujo desfecho leva o leitor a deduzir a parcela de sentido do mundo que a narrativa apresenta. Quanto à tipologia do conto, ela não é muito diferente da classificação do romance, pois, a depender do tamanho, falamos de romance ou de conto policial, de romance ou conto de terror etc. Entendido, entretanto, que a diferença entre o conto e o romance não é somente quantitativa: sua brevidade ou extensão importam. Ainda, pode-se dizer que o conto é um romance condensado e o romance um conto diluído. Epopeia Do grego epos, epopeia significa narração e designava também um tipo específico de verso, o hexâmetro, composto de seis pés, usado para poemas longos que exaltavam os feitos heróicos das divindades ou de homens importantes. Essa forma métrica passou a designar um tipo de poesia, a épica, também chamada de epopeia. Aristóteles diferenciou o epos, a palavra narrada, da lírica, que era a palavra cantada, e do drama, que era a palavra apresentada. O gênero épico, mais adiante, tornou-se quase sinônimo de gênero narrativo, em prosa ou em verso. A poesia épica é a primeira forma culta da civilização ocidental. As narrações míticas e lendárias, que a imaginação popular foi constituindo baseada em um acontecimento histórico, após a fase da transmissão oral, quando o povo chega a dominar o alfabeto e a ter uma língua ou dialetos escritos, são elaboradas por um poema que lhes dá uma veste literária e as consagra eternamente. Sua parente, a saga, é uma lenda pagã em torno de uma árvore genealógica, de relações de sangue. Essas são as formas da poesia épica primitiva, aquela que surge espontaneamente do seio de um povo na fase arcaica de sua formação cultural, sendo que nem sequer podemos saber o nome do autor que deu sua forma artística aos cantos heróicos provenientes da oralidade. Diferente é a epopeia chamada “reflexa”, criada por um poeta historicamente conhecido. Em relação à sua estrutura, o poema épico é composto de uma parte importante, que abrange a proposição (antecipação do assunto que será tratado), a invocação (pedido de ajuda a uma divindade) e, às vezes, a dedicatória (a um homem ilustre), e da parte maior (chamada de narração). Geralmente, esta não segue a ordem cronológica na apresentação dos fatos, mas começa a trama com a narração de um episódio importante e, a partir daí, mediante o recurso técnico da retrospecção, um personagem nos conta o que aconteceu antes disso. O foco narrativo está centrado sobre um narrador onisciente, mas volta e meia surgem outros focos, evidenciados pelas falas dos personagens, ou pela intervenção do eu poético. O estilo pode ser considerado solene, a linguagem rebuscada e a composição das estrofes, rímica e métrica, segue cânones rígidos apropriados a esse gênero. Além disso, há um recurso bastante utilizado: independentemente de o texto ter origem pagã ou cristã, as divindades participam ativamente das ações humanas, privilegiando-se a força do destino que dirige os acontecimentos e as condutas dos heróis. Em relação ao sentido, a epopeia é o canto da totalidade de vida de um povo em determinado estágio civilizatório. Essa narração, além de verter sobre um fato bélico grandioso, historicamente ocorrido, mas idealizado pela imaginação coletiva criadora de mitos e lendas, está diretamente relacionada com o surgimento ou o progresso de uma nacionalidade. A totalidade implica a transcendência: esse herói épico, ser híbrido – semideus ou homem cujo valor supera ao de todos os outros – representa o elo entre o humano e o divino, o sonho da humanidade de superar sua natureza contingente e de aproximarse do absoluto. A trajetória do herói na epopeia é longa e acidentada porque o interesse do poeta vai além da narração das aventuras e comportamentos, em descrever ambientes e costumes, organizações sociais, crenças religiosas, e todos os traços possíveis de serem descritos sobre uma civilização. Daí o conceito de épico ir além dos limites de uma forma narrativa em versos, aplicando-se também a outras manifestações culturais consideradas grandiosas: teatro épico, romance épico, cinema épico, etc. Romance A palavra romance deriva de uma expressão latina, romanice loqui, que significa “falar romântico”, ou seja, falar num dos vários dialetos europeus que se formaram do latim romano, em oposição ao latine loqui, que era a língua culta durante a Idade Média. E porque nesses dialetos populares se contavam histórias de amor e de aventuras cavalheirescas, transmitidas pela oralidade, a palavra romance passou a indicar uma longa narrativa sentimental, forma cultural que viveu à margem da literatura oficial durante o Classicismo. Também no mundo grego-romano aconteceu o mesmo fenômeno: em paralelo aos gêneros literários considerados “clássicos”, havia outras formas literárias que circulavam entre a grande massa do povo analfabeto. Uma delas era a ficção em prosa, que tinhaduas vertentes. A narrativa “idealizante” era constituída por longas histórias de amor e aventura, centradas sobre um casal de namorados que, após superar diversos problemas com o auxílio divino, chegava a realizar seu sonho amoroso. Havia, também, outra vertente narrativa, “satirizante”, que foi difundida mais no mundo latino: de cunho fortemente realístico, mostrava quadros da vida cotidiana nos quais estavam as mazelas das várias classes sociais. Como se pode ver, quer na narrativa sentimental, quer na narrativa satírica, ainda que sem o nome de romance, esse tem suas origens bastante remotas. Ocorre que esse tipo de ficção viveu por longo tempo sendo ofuscado pelos gêneros literários clássicos e não recebeu a devida apreciação, sendo estudado mais profundamente somente a partir do início do século XVIII, assumindo – então – o papel da epopeia e ganhando o estatuto de gênero literário. O romance, considerado o filho bastardo da epopeia, passou, então, a ser uma forma literária que melhor exprimia os anseios da nascente burguesia, produto das revoluções industriais e comerciais que derrubaram o absolutismo político e cultural. A literatura não estava mais destinada a um pequeno círculo culto, mas a classe média, ávida por encontrar consignados em forma de arte suas questões existenciais. O protagonista do romance, diferente do herói da epopeia, é um ser humano comum, de natureza puramente humana: um médico, uma prostituta, um operário, uma jovem apaixonada. A temática é variada como é a vida. Sua tipologia é bastante extensa, das quais há o romance picaresco, de aventura, de capa e espada, histórico, psicológico, gótico ou de terror, realista, de formação, naturalista, existencialista, de realismo crítico, de realismo fantástico, psicanalítico, de experimentalismo formal, do absurdo humano, etc. Há outras formas de classificação, feitas não em função do tema, as levando em conta a presença de um dos elementos constitutivos do gênero narrativo. Assim, fala-se em romance de ação quando predomina o nível fabular; em romance de personagem quando se dá preferência para a caracterização do protagonista e de outros personagens; em romance de espaço a narrativa centrada na descrição de um ambiente, e há ainda, o romance urbano, campesino, regionalista. O romance de fluxo de consciência destaca a problemática do tempo psicológico e do foco narrativo. Novela Do italiano novella (notícia nova), a novela literária passou a indicar um incidente chocante que dá a impressão de um evento realmente acontecido. As primeiras formas literárias que ganharam esse nome estão relacionadas com a instituição medieval da cavalaria. Aos poucos, deixaram o domínio da poesia épica e passaram a se tornar prosificadas, adentrando o campo das novelas de cavalaria. No século XIV, surge a novela toscana, designando-a com esse nome coletâneas de narrativas curtas, anedóticas, geralmente de cunho satírico. A novela, gênero literário que tem suas características estruturais e semânticas bem peculiares, não está centrada sobre uma única história ficcional. Seu enredo é formado por uma pluralidade de histórias encaixadas numa microfábula. Trata-se de uma narrativa de estrutura aberta, sendo possível que sempre se acrescente mais um episódio, fazendo intervir mais de um personagem e deslocando a ação num outro espaço e tempo. Diferente do romance, que é uma narrativa de estrutura fechada, apresentando uma história com começo, meio e fim bem definidos, ao redor de um protagonista, sendo que os demais personagens existem apenas em função da caracterização do ator principal. Além disso, enquanto o romance está voltado mais para o real, a novela se refugia no mundo da fantasia, sem ter em conta o princípio da verossimilhança. Em seu universo, as coisas acontecem em conformidade com a psicologia do inconsciente coletivo: a beleza triunfa sobre a feiura, o amor sobre o ódio, a verdade sobre a mentira, enfim, o bem sobre o mal. Trata-se da idealização da vida nos moldes da literatura de massa. Sua forma, quer na literatura, quer na televisão, aparece dividida em capítulos, e seus atores recebem papéis mais ou menos importantes. Crônica Do grego krónos, significa “tempo”, sendo o registro de acontecimentos num tempo e num espaço determinados. A crônica literária é produzida por poetas e ficcionistas que, embora possam se apoiar em fatos conhecidos, transformam a realidade do dia a dia pela força criadora da fantasia. Daí decorre que suas crônicas são ou poemas em prosa ou pequenos contos, dependendo do pendor do autor para o gênero lírico ou narrativo. Geralmente, a crônica pode ser considerada como a mais curta forma de narrativa literária já consagrada. Autobiografia Advindo dos termos autos (próprio), bios (vida) e gráphein (escrever), autobiografia designa o autor que narra sua própria vida. Porém, se o autor se limitasse apenas a registrar os dados de sua existência, sem o concurso da imaginação transformadora, não teríamos uma obra de arte. Uma autobiografia, portanto, só pertence à literatura, num sentido estrito, quando o autor extravasa o seu eu, fazendo uso da linguagem poética, revestindo os fatos de sua vida com ideias, sentimentos, emoções. Resumindo: Você deve ter aprendido que as narrativas podem ser múltiplas. Seus critérios de classificação se encontram na função literária, na forma, na estrutura e no conteúdo. Assim como ocorre com os gêneros textuais do nosso dia a dia, as narrativas literárias surgem para um determinado fim comunicativo, mesmo que artístico. O mito, o conto maravilhoso e a lenda, por exemplo, são considerados narrativas primordiais, que surgiram antes mesmo da escrita, com o objetivo de transmitir uma informação ou de explicar a realidade. A epopeia surgiu na Antiguidade Clássica, quando o homem já dominava a cultura escrita, a fim de transmitir o legado de um povo. Os romances, novelas e contos surgiram com o advento do Romantismo, no século XIX, como uma forma de expressão da classe que ascendia ao poder e que tinha gosto por esses formatos estéticos: a burguesia. Crônica e autobiografia são gêneros mais recentes, surgidos especialmente no século XX. Por fim, a literatura infanto-juvenil, que iniciou (com autores brasileiros) em nosso país na virada do século XIX para o XX, marca um público específico, sendo – em nossa compreensão atual – indispensável para a formação dos leitores desde as primeiras fases da vida. Analisando textos narrativos Ao término deste capítulo você será capaz de entender como se analisa um texto narrativo, e sua importância para o estudo da Literatura Comparada. Conhecer a natureza dos gêneros literários, e como eles constituem os gêneros textuais considerados como pertencentes à linguagem literária será fundamental para o exercício de sua profissão. E então? Motivado para desenvolver esta competência? Então vamos lá. Avante! Formas narrativas minúsculas No capítulo anterior, analisamos as formas narrativas literárias mais conhecidas, e também com formas mais abrangentes. Apresentaremos, a seguir, algumas formas literárias menores, mais sintéticas e também de importante valor literário. Anedota Trata-se de um pequeno relato de um acontecimento curioso ou engraçado. Como o provérbio, a anedota, fora da tradição oral, está inserida em textos literários. Apólogo Historinha que se passa entre objetos inanimados, apresentando uma moral explícita ou implícita. Fábula A fábula, como gênero literário, se difere do conceito de fábula como elemento estrutural de um texto, correspondente ao mito grego, como já apresentado anteriormente. Consiste numa história ficcional, cujos personagens são animais. Provérbio Trata-se de um saber popular expresso por meio de uma narrativa mínima. Teorias literárias As teorias literárias consistem nas bases teóricas que sustentam os principais campos de estudos da literatura. A seguir, nas próximas páginas, veremos as teorias que já se consolidaram na ciência. A teoria do efeito Iser (1978), através de sua “teoria do efeitoestético”, apresenta uma grade conceitual importante para a literatura, trazendo uma ruptura das noções originalmente pensadas, desde os tempos clássicos, para a literatura. Isso se dá por meio de um afastamento da relação realidade-ficção, sujeito-objeto, que nortearam as metodologias analíticas ao longo do século XX, e redireciona para a fenomenologia da leitura, procurando compreender a relação do leitor com a leitura, abrindo mão de um modelo literário formal. A teoria do efeito estético se volta para o exame das percepções do leitor em contato com a obra, o que resultou na construção de três paradigmas que sustentam a teoria: o polo artístico (estrutura verbal da literatura), o polo estético (correlato ao leitor na construção da significação) e as ocorrências de trânsito entre os dois polos. Sua concepção literária reside na dependência da caracterização dessas três instâncias, consideradas simultâneas e integradas. Porém, nessa relação, surge uma especificidade da estrutura do discurso ficcional, cujos requisitos permitem denominá-la como “estética do performativo”. A literatura é uma estrutura comunicativa, pois conduz o leitor a vivenciar uma experiência estética, para a partir daí, estabelecer conexões que lhe permitam pensar sobre sua inserção social. Para que haja essa possibilidade, a literatura não pode estar carregada de fins didáticos, fugindo aos contextos do mundo real. Também, por meio da teoria do efeito, é descartada a noção da relação entre “imagem” e significado, tão presente nas teorias tradicionais. Sendo imagética a natureza do significado, somente quando o leitor entra em contato com o texto há o surgimento de condições para uma experiência estética. Paralelo a isso, prevalece a noção de que o efeito de significado em forma de imagem não pode permanecer indefinitivamente como tal. Por ser uma ordem de significação, o efeito se transmuta discursivamente em uma significação, cuja natureza pertence à ordem cognitiva. A prosa literária seria o espaço onde se promove uma reorganização performática dos códigos e dos sistemas sociais, de maneira que o leitor, provocado pela experiência estética, busque respostas para o contexto social onde atua. Somente por meio de uma performance da literatura na alusão do sistema social o leitor pode realizar uma experimentação. Na interação com a obra, o leitor mantém certos dados de informação, formulando projeções para o que acontece no decorrer da leitura. Isso pressupõe operações da mente de ordem mais complexa do que aqueles resultantes da interação com um objeto visual, apenas. Ainda, convém mencionar que, por meio da teoria do efeito, entende-se que a realidade literária abala a realidade pragmática, pois o texto literário não tem a função de se equilibrar ao real. Não há um quadro vertical equilibrando as normas, como se a literatura fosse construída acima do mundo real, ou a partir dele. A obra literária incorpora os sistemas de significação do mundo, mas os “reorganiza horizontalmente”, desprovendo-os da validade que possuíam no contexto referencial. A teoria da expressão A chamada teoria da expressão é resulta da forma como os artistas, escritores, poetas, pintores etc. utilizam a obra de arte: como forma de expressar suas experiências individuais. Ao invés de mostrarem a natureza apenas, procuram, por meio de suas obras, exprimir os sentimentos de seu universo interior. Há diferentes nuances da teoria da arte como expressão, sendo que uma das mais importantes seria aquela formulada pelo romancista russo Leão Tolstói (1828 – 1910), segundo o qual não existe arte se não houver expressão de sentimentos, ou se esse sentimento não contagiar alguma pessoa. Dessa forma, é defendida a ideia de que a arte é uma forma de expressão e de comunicação de sentimentos e não de outra coisa qualquer. Dizia Tolstói que “X é arte se, e só se, é expressão de sentimentos”. A respeito da expressão, o autor defendia sobre ela sete aspectos: 1. O artista precisa sentir emoção; 2. O público precisa sentir emoção; 3. As emoções do artista e do público têm que ser as mesmas; 4. Deve haver autenticidade da parte do artista; 5. O artista deve possuir a intenção de provocar emoções; 6. Os sentimentos expressos devem ser individualizados; 7. A expressão consiste no ato de clarificar sentimentos. 8. As vantagens dessa teoria estão em explicar o conteúdo da arte, explicar a ligação emocional que podemos ter com a arte e ser bastante abrangente. A teoria da recepção A teoria da recepção, ou estética da recepção, propõe que seja reformulada a historiografia literária, rompendo com a exclusividade da produção e representação da estética tradicional, pois considera a literatura como produção, recepção e comunicação, numa relação dinâmica entre autor, obra e leitor. A teoria da recepção aponta para a investigação literária e discursiva por meio de uma mudança paradigmática, remetendo o ato de leitura a um horizonte duplo: o implicado pela obra e o projetado pelo leitor de determinada sociedade. Além disso, a estética da recepção se volta para as condições sócio-históricas das diversas interpretações textuais. Nessa perspectiva, o discurso literário se constituiria através de seu processo receptivo, como pluralidade de estruturas de sentido historicamente mediadas. A estética da recepção auxiliou o desenvolvimento da teoria do efeito, de Wolfgang Iser. Elementos da obra literária: Uma retomada Na unidade anterior, já estudamos os elementos da obra literária; porém, iremos retomá-los aqui, uma vez que o assunto também é importante quando falamos em análise de obras literárias. Podemos dividir os elementos fundamentais da obra literária em conteúdo e forma. ● Conteúdo ou fundo: São ideias, conceitos, apelos, sentimentos e imagens imateriais que as palavras transmitem da mente do escritor para os leitores; ● Forma: É a expressão linguística, a linguagem falada ou escrita, veículo de ideias e de sentimentos. ● A forma como uma obra literária pode se apresentar se manifesta sob dois aspectos diferentes: a prosa e o verso. ● Prosa é a linguagem objetiva, usual, direta, veículo comum de pensamento. Mesmo que seja vazada em prosa, uma obra literária pode estar quase que predominantemente permeada de pensamentos poéticos; ● A poesia é a linguagem subjetiva, carregada de emoção e sentimento, com ritmo, melodia constante, beleza e tão indefinível quando o mundo interior do poeta, objetivando a um efeito estético. Distribuída em linhas descontínuas ou versos, que podem ser metrificados ou livres, a linguagem poética, sob o aspecto melódico ou mesmo auditivo, se caracteriza pelo ritmo bem mais acentuado do que na linguagem em prosa, e pela eventual utilização de rimas. Considera-se, também, que a obra literária é somente o escrito que se diferencia dos demais pela beleza da forma e pela excelência de conteúdo. Será tanto mais apreciada quanto maior seu poder de sugerir, de tocar nossa sensibilidade, de empolgar o nosso espírito. As obras literárias de alcance universal têm, comumente, mais valor que as de caráter estritamente nacional ou regional. Exemplo de análise de um texto narrativo Após você ter estudado todos os elementos importantes e fundamentais para o conhecimento da Teoria Literária e, especialmente, da Literatura Comparada, passaremos agora à reflexão sobre a análise literária de textos reais, para que seu conhecimento e sua experiência literária sejam aprofundadas. A Cartomante, de Machado de Assis Plano da enunciação: O conto é narrado em terceira pessoa, com uma visão “por detrás”: o narrador parece saber mais do que os personagens, pois tem uma visão geral dos acontecimentos, uma compreensão reflexiva dos sentimentos mais íntimos que movem os atores. Esse narrador não está participando dos acontecimentos, mas está presente na narrativa apenas com a função de narrador, usando a primeira pessoa, referindo-se ao ato de contar a história: cuido que [...] e digo mal [...] vamos a ela [...] vimos que [...]. O narrador desse contoé um personagem apenas para contar a história, que está presente apenas para narrar, alguém que sabe tudo a respeito de todos. A narração em terceira pessoa, porém, é interrompida constantemente pela reprodução das falas dos personagens por meio de discurso direto, em que temos a citação exata das palavras por eles proferidas, caso em que o narrador respeita todas as marcas subjetivas desses personagens. Alguns discursos, no entanto, fogem dessa regra, marcando o estilo do autor: Tal foi a opinião de Rita que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: - a virtude é preguiçosa e ávara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo. No excerto apresentado, não temos um discurso direto, pois o narrador expressa os pensamentos da personagem com suas palavras. Também, não se trata de um discurso indireto, pois encontramos no texto os dois-pontos e o travessão. Resta, somente, qualificar esse discurso como discurso indireto livre. De modo geral, o texto apresenta o que chamamos de plurifocalização: ao discurso em terceira pessoa, o narrador dá um tom de objetividade; os discursos diretos em primeira pessoa referem-se aos próprios personagens, que manifestam suas personalidades; e o discurso indireto livre, torna o narrador uma espécie de diretor da cena, em que se mantém distanciado dos personagens e apenas organiza suas falas. Plano do enunciado: A história está toda centrada em um fato banal: um triângulo amoroso constituído por Vilela (marido), Rita (esposa) e Camilo (amigo de vilela e amante de Rita). Quando vilela descobre o caso, mata os dois. É interessante perceber que a narrativa não é linear, não havendo coincidência entre o início da trama (história artisticamente apresentada) e o início da fábula (a história na ordem cronológica dos acontecimentos): o relato dos fatos começa pelo meio, quando Rita e Camilo já têm um caso há tempo, estando preocupados com a possibilidade de sua relação ser descoberta por Vilela. Por meio de um olhar retrospectivo (flashback), o narrador informa ao leitor sobre a amizade de infância e o surgimento do amor entre Camilo e Rita. A seguir, apresentaremos um panorama do enredo: ● Situação inicial: Camilo e Rita se amam e vivem num estado de felicidade. Mas, sendo sua relação amorosa um adultério, essa situação de equilíbrio apresenta, virtualmente, um motivo de conflito: a possibilidade da descoberta e também do castigo. Daí os protagonistas tomarem os cuidados necessários para evitar a revelação do dano feito a Vilela e à sociedade: encontros secretos na casa de uma comprovinciana de Rita, que funciona como alcoviteira. ● Atualização do conflito: Uma carta anônima acusa Camilo de sua relação, chamando-o de imoral. Em face da revelação de que o caso amoroso é de conhecimento de outros, Rita e Camilo são tomados pelo medo da vingança de Vilela, caso este venha a descobrir a traição. Mais medidas de precaução são tomadas: Camilo deixa de visitar a residência de Rita e Vilela. ● Paroxismo do conflito: Camilo recebe um bilhete de Vilela: Vem já, já, à nossa casa: preciso falar-te sem demora. Camilo desconhece o motivo dessa chamada do amigo, e o sentimento de culpa o faz acreditar na descoberta da traição e na iminência de uma tragédia. É possuído por um estado psíquico anormal, pois, pela imaginação, sente a presença de Vilela dizendo-lhe, ao ouvido, as palavras ameaçadoras e vê o amigo lavar a honra com o sangue dos traidores. ● Pedido de socorro: A caminho da casa de Vilela, um acidente de trânsito faz com que o veículo de Camilo pare quase na porta da casa de uma cartomante já consultada por Rita. Camilo, mesmo incrédulo, acossado pelo medo, é induzido a ter uma consulta, na esperança de que a adivinha o liberte da situação de dúvida em que se encontra. Com efeito, a cartomante o deixa aliviado com suas palavras, afirmando que Vilela não sabe de nada. ● Tragédia final: Camilo, passando a acreditar piamente nas palavras da cartomante, vai à casa de Vilela com espírito sereno, certo de que o bilhete não se refere ao caso amoroso. A expressão vá, regazzo innamorato, que é apenas uma fórmula de despedida da cartomante, é relacionada de forma inconsciente com as palavras do bilhete de Vilela. A dúvida de Camilo entre ir e não ir se acaba. Mas a verdade é outra: Vilela o espera para mata-lo, como já matara a esposa, momentos antes. Personagens: O conto é um drama de quatro personagens, dos quais dois investem o eixo actancial do “querer” e dois do “poder” Rita e Camilo são mutuamente sujeitos e objeto do desejo, pois se procuram reciprocamente. Rita, mais velha e mais experiente, é mais ativa que Camilo. É ela que se apaixona primeiro, e se aproxima de Camilo. De caráter decidido, sabe o que procura, e quando está em dúvida sobre o amor de Camilo, recorre à cartomante, para sair desse estado. Camilo é fraco de caráter, mais jovem do que todos, e não resiste à sedução de Rita, vencendo facilmente ao problema de consciência da traição. Mais tarde, porém, o medo da descoberta da traição e da vingança de Vilela o faz perder esse equilíbrio, a ponto de vencer suas próprias crenças e procurar a cartomante para tirar essa dúvida. Vilela representa os valores sociais, a vingança, a reparação do dano feito à instituição do casamento. Esposo e amigo dedicado, perante a descoberta da traição muda seu comportamento habitual e torna impiedosa sua vingança. Sua frieza é estarrecedora e sua imparcialidade espelha a insensibilidade da norma social, que não tem em conta os anseios individuais. A cartomante, personagem-título, é a figura central da narrativa. A ela o autor confere maior riqueza de pormenores qualificativos, quer no nível do ser, quer no do fazer, descrevendo o ambiente físico em que vive em consonância com seu caráter e ações. Dela, sabemos apenas a função na história, como se a cartomante fosse um ser generalizado. Se interessou pela história de Machado de Assis? Leia A Cartomante Resumindo: Você deve ter aprendido que os textos narrativos e em prosa não são apenas extensos; há textos curtos e de origem popular, como a anedota e o provérbio. Há diversas teorias pelas quais um texto narrativo, seja ele literário ou cinematográfico – um texto artístico - pode ser analisado. A teoria do efeito observa, em linhas gerais, a construção dos sentidos que o texto e o leitor realizam no momento da interação. A teoria da expressão considera a obra de arte uma expressividade da emoção do artista, e sem o diálogo dessas emoções, não é possível realizar uma interpretação. A teoria da recepção busca analisar as condições em que o texto foi produzido e os elementos que contribuíram para sua interpretação ser como é, num dado momento. A análise de um texto narrativo pressupõe elementos internos e externos ao texto, como estrutura, enredo, personagens, traços de autoria etc.