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Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 39 ciente e seu sofrimento, nem escolher o tipo de estratégia terapêutica mais apropriado. A favor dessa visão pró-diagnóstico, está a afirmação de Aristóteles (1973), logo nas primeiras páginas do livro alpha de sua Metafísica: A arte aparece quando, de um complexo de noções experimentadas, se exprime um único juízo universal dos casos se- melhantes. Com efeito, ter a noção de que a Cálias, atingido de tal doença, tal remédio deu alívio, e a Sócrates também, e, da mesma maneira, a outros tomados singularmente, é da experiência; mas julgar que tenha aliviado a todos os se- melhantes, determinados segundo uma única espécie, atingidos de tal doença, como os fleumáticos, os biliosos ou os incomodados por febre ardente, isso é da arte. [...] E isso porque a experiência é conhecimento dos singulares, e a arte, dos universais. Entretanto, é bom lembrar que o pró- prio Aristóteles defende que somente o in- dividual é real; o que se tem é acesso dire- to apenas aos objetos concretos e particu- lares. O universal, afirmava o filósofo, não existe na natureza, apenas no espírito hu- mano, que capta e constitui as “idéias” a Discute-se muito sobre o valor e os limites do diagnóstico psiquiátrico. Pode-se iden- tificar, inclusive, duas posições extremas. A primeira afirma que o diagnóstico em psi- quiatria não tem valor algum, pois cada pessoa é uma realidade única e inclassi- ficável. O diagnóstico psiquiátrico apenas serviria para rotular as pessoas diferentes, excêntricas, permitindo e legitimando o poder médico, o controle social sobre o in- divíduo desadaptado ou questionador. Essa crítica é particularmente válida nos regi- mes políticos totalitários, quando se utili- zou o diagnóstico psiquiátrico para punir e excluir pessoas dissidentes ou opositoras ao regime. A segunda, em defesa do diag- nóstico psiquiátrico, sustenta que o valor e o lugar do diagnóstico em psiquiatria são absolutamente semelhantes ao valor e ao lugar do diagnóstico nas outras especiali- dades médicas. O diagnóstico, nessa visão, é o elemento principal e mais importante da prática psiquiátrica. A posição deste autor é a de que, ape- sar de ser absolutamente imprescindível considerar os aspectos pessoais, singulares de cada indivíduo, sem um diagnóstico psicopatológico aprofundado não se pode nem compreender adequadamente o pa- 5 Princípios gerais do diagnóstico psicopatológico Paulo Dalgalarrondo40 partir do processo de abstração e generali- zação. Assim Aristóteles prossegue: Portanto, quem possua a noção sem a experiência, e conheça o universal igno- rando o particular nele contido, enganar- se-á muitas vezes no tratamento, porque o objeto da cura é, de preferência, o sin- gular. No entanto, nós julgamos que há mais saber e conhecimento na arte do que na experiência, e consideramos os homens de arte mais sábios que os empíricos, visto a sabedoria acompanhar em todos, de preferência, o saber. Isso porque uns conhecem a causa, e os ou- tros não. Assim, há, no processo diagnósti- co, uma relação dia- lética permanente entre o particular, individual (aquele paciente específico, aquela pessoa em especial), e o geral, universal (categoria diagnóstica à qual essa pessoa pertence). Portanto, não se deve esquecer: os diag- nósticos são idéias (constructos), funda- mentais para o trabalho científico, para o conhecimento do mundo, mas não objetos reais e concretos. Tanto na natureza como na esfera humana, podem-se distinguir três grupos de fenômenos em relação à possibilidade de classificação: 1. Aspectos e fenômenos encontra- dos em todos os seres humanos. Tais fenômenos fazem parte de uma categoria ampla demais para a classificação, sendo pouco útil o seu estudo taxonômico. De modo geral, em todos os indivíduos a pri- vação das horas de sono causa so- nolência, e a restrição alimentar, fome; ou seja, são fenômenos tri- viais que não despertam grande interesse à psicopatologia. 2. Aspectos e fenômenos encontra- dos em algumas pessoas, mas não em todas. Estes são os fenômenos de maior interesse para a classificação diag- nóstica em psicopatologia. Aqui, situam-se a maioria dos sinais, sin- tomas e transtornos mentais. 3. Aspectos e fenômenos encontra- dos em apenas um ser humano em particular. Tais fenômenos, embora de inte- resse para a compreensão do ser humano, são restritos demais, e de difícil classificação e agrupamen- to, tendo maior interesse os seus aspectos antropológicos, existen- ciais e estéticos que propriamente taxonômicos. De modo geral, pode-se afirmar que o diagnóstico só é útil e váli- do se for visto como algo mais que simplesmente rotular o paciente. Esse tipo de utilização do diagnós- tico psiquiátrico seria uma forma precária, questionável e não pro- priamente científica. Funcionaria apenas como estímulo a precon- ceitos que devem ser combatidos. A legitimidade do diagnóstico psi- quiátrico sustenta-se na perspecti- va de aprofundar o conhecimento, tanto do indivíduo em particular como das entidades nosológicas utilizadas. Isso permite o avanço da ciência, a antevisão de um prognóstico e o estabelecimento de ações terapêuticas e preventi- vas mais eficazes. Além disso, o diagnóstico possibilita a comuni- cação mais precisa entre profissio- nais e pesquisadores. Sem o diag- nóstico, haveria apenas a descri- ção de aspectos unicamente indi- viduais, que, embora de interesse humano, são ainda insuficientes para o desenvolvimento científico Há, no processo diag- nóstico, uma relação dialética permanente entre o particular, in- dividual, e o geral, universal. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 41 da psicopatologia (revisões sobre a questão do diagnóstico em psico- patologia em Leme Lopes, 1980; Pichot, 1994; Abdo, 1996). Do ponto de vista clínico e específico da psicopatologia, embora o processo diag- nóstico em psiquiatria siga os princípios gerais das ciências médicas, há certamen- te alguns aspectos particulares que devem ser aqui apresentados: 1. O diagnóstico de um transtorno psiquiátrico é quase sempre ba- seado preponderantemente nos dados clínicos. Dosagens labo- ratoriais, exames de neuroimagem estrutural (tomografia, ressonân- cia magnética, etc.) e funcional (SPECT, PET, mapeamento por EEG, etc.), testes psicológicos ou neuropsicológicos auxiliam de for- ma muito importante, principal- mente para o diagnóstico diferen- cial entre um transtorno psiquiá- trico primário (esquizofrenia, depressão primária, etc.) e uma doença neurológica (encefalites, tumores, doenças vasculares, etc.) ou sistêmica. É importante ressal- tar, entretanto, que os exames complementares (semiotécnica ar- mada) não substituem o essencial do diagnóstico psicopatológico: uma história bem-colhida e um exame psíquico minucioso, ambos interpretados com habilidade. 2. O diagnóstico psicopatológico, com exceção dos quadros psico- orgânicos (delirium, demências, síndromes focais, etc.), não é, de modo geral, baseado em possí- veis mecanismos etiológicos su- postos pelo entrevistador. Baseia- se principalmente no perfil de si- nais e sintomas apresentados pelo paciente na história da doença e no momento da entrevista. Por exem- plo, ao ouvir do paciente ou fami- liar uma história de vida repleta de sofrimentos, fatos emocionalmente dolorosos ocorridos pouco antes do eclodir dos sintomas, a tendência natural é estabelecer o diagnósti- co de um transtorno psicogênico, como “psicose psicogênica”, “his- teria”, “depressão reativa”, etc. Mas isso pode ser um equívoco. A maio- ria dos quadros psiquiátricos, sejam eles de etiologia “psicogênica”, “endogenética” ou mesmo “orgâ- nica”, surge após eventos estres- santes da vida. Além disso, é fre- qüente que o próprio eclodir dos sintomas psicopatológicos contri- bua para o desencadeamento de eventos da vida (como perdado cônjuge, separações, perda de em- prego, brigas familiares, etc.). Mui- tas vezes o raciocínio diagnóstico baseado em pressupostos etiológi- cos mais confunde que esclarece. Deve-se, portanto, manter duas li- nhas paralelas de raciocínio clí- nico; uma linha diagnóstica, ba- seada fundamentalmente na cuida- dosa descrição evolutiva e atual dos sintomas que de fato o pacien- te apresenta, e uma linha etioló- gica, que busca, na totalidade de dados biológicos, psicológicos e so- ciais, uma formulação hipotética plausível sobre os possíveis fatores etiológicos envolvidos no caso. 3. De modo geral, não existem sinais ou sintomas psicopatológicos to- talmente específicos de determi- nado transtorno mental. Além dis- so, não há sintomas patognomô- nicos em psiquiatria, como afirma Emil Kraepelin [1913] (1996): Infelizmente não existe, no domínio dos distúrbios psíquicos, um único Paulo Dalgalarrondo42 sintoma mórbido que seja total- mente característico de uma enfer- midade [...] devemos evitar atribuir importância característica a um úni- co fenômeno mórbido. [...] O que quase nunca é produzido totalmente de forma idêntica pelos diferentes transtornos mentais é o quadro to- tal, incluindo o desenvolvimento dos sintomas, o curso e o desenlace final da doença. Portanto, o diagnóstico psicopato- lógico repousa sobre a totalidade dos dados clínicos, momentâneos (exame psíquico) e evolutivos (anamnese, história dos sintomas e evolução do transtorno). É essa totalidade clínica que, detectada, avaliada e interpretada com conhe- cimento (teórico e científico) e ha- bilidade (clínica e intuitiva), con- duz ao diagnóstico psicopatológico. 4. O diagnóstico psicopatológico é, em inúmeros casos, apenas possí- vel com a observação do curso da doença. Dessa forma, o padrão evolutivo de determinado quadro clínico obriga o psicopatólogo a repensar e refazer continuamente o seu diagnóstico. Uma das funções do diagnóstico em medicina é pre- ver e prognosticar a evolução e o desfecho da doença (o diagnóstico deve indicar o prognóstico). Porém, às vezes, isso se inverte no contex- to da psiquiatria. Não é incomum que o prognóstico, a evolução do caso, obrigue o clínico a reformular o seu diagnóstico inicial. 5. Como salientou o psiquiatra bra- sileiro José Leme Lopes, em 1954, o diagnóstico psiquiátrico deve ser sempre pluridimensional. Várias dimensões clínicas e psicos- sociais devem ser incluídas para uma formulação diagnóstica com- pleta: identifica-se um transtorno psiquiátrico como a esquizofrenia, a depressão, a histeria, a depen- dência ao álcool, etc., diagnosti- cam-se condições ou doenças físi- cas associadas (hipertensão, cirro- se hepática, cardiopatias, etc.) e avaliam-se a personalidade e o ní- vel intelectual desse doente, a sua rede de apoio social, além de fa- tores ambientais protetores ou desencadeantes. O sistema norte- americano DSM, desde o início dos anos 1980, tem enfatizado a importância da formulação diag- nóstica em vários eixos. Também é sumamente importante o esfor- ço para a formulação dinâmica do caso (conflitos conscientes e inconscientes implicados no caso específico, mecanismos de defe- sa, ganho secundário, aspectos transferenciais, etc.) e a formu- lação diagnóstica cultural (sím- bolos e linguagem cultural espe- cífica para aquele paciente, repre- sentações sociais, valores, rituais, religiosidade, etc.). 6. Confiabilidade e validade do diagnóstico em psiquiatria. A confiabilidade (reliability) de um procedimento diagnóstico (técnica de entrevista padronizada, escala, teste, diferentes entrevistadores, etc.) diz respeito à capacidade des- se procedimento produzir, em re- lação a um mesmo indivíduo ou para pacientes de um mesmo gru- po diagnóstico, em circunstâncias diversas, o mesmo diagnóstico. Ao mudar diferentes aspectos do pro- cesso de avaliação (avaliador ou momento de avaliação), o resulta- do final permanece o mesmo. As- sim, quando a avaliação é feita por examinadores distintos (interrater reliability) ou em diferentes mo- mentos (test-retest reliability), ob- Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 43 tém-se o mesmo diagnóstico. Tem- se um indicador de reprodutibi- lidade do diagnóstico. A validade (validity) diz respeito à capacida- de de um procedimento diagnósti- co conseguir captar, identificar ou medir aquilo que realmente se pro- põe a reconhecer. Para saber se um novo procedimento diagnóstico é válido, é preciso compará-lo com outro procedimento diagnóstico prévio (“padrão ouro”), que seja bem-aceito e reconhecido como mais acurado, capaz de identificar Quadro 5.1 O diagnóstico pluridimensional em saúde mental (com base no sistema multiaxial do DSM-IV, acrescentando-se a dimensão psicodinâmica e cultural) Exemplos de formulação diagnóstica Eixo 1. Diagnóstico do Transtorno Mental Esquizofrenia paranóide, episódio depressivo grave, dependência ao álcool, anorexia nervosa, etc. Eixo 2. Diagnóstico de Personalidade e do Nível Intelectual Personalidade histriônica, personalidade borderline, etc., retardo mental leve, retardo mental grave, etc. Eixo 3. Diagnóstico de Distúrbios Somáticos Associados Diabete, hipertensão arterial, cirrose hepática, infecção urinária, etc. Eixo 4. Problemas Psicossociais e Eventos da Vida Desencadeantes ou Associados Morte de uma pessoa próxima, separação, falta de apoio social, viver sozinho, desemprego, pobreza extrema, detenção, exposição a desastres, etc. Eixo 5. Avaliação Global do Nível de Funcionamento Psicossocial Bom funcionamento familiar e ocupacional, incapacidade de realizar a própria higiene, não sabe lidar com dinheiro, dependência de familiares ou serviços sociais nas atividades sociais ou na vida diária, etc. Formulação Psicodinâmica do Caso Que conflitos afetivos são mais importantes neste paciente? Conflitos relativos à sexualidade? Dinâmica afetiva da família? Conflitos relativos à identidade psicossocial? Que tipo de transferência o paciente estabelece com os profissionais de saúde? Que sentimentos contratransferenciais desperta nos profissionais que o tratam? Que mecanismos de defesa utiliza preponderantemente? Qual o padrão relacional do paciente? Qual a estrutura psicopatológica, do ponto de vista psicanalítico (estrutura neurótica, obsessiva, histérica, fóbica, etc.; estrutura psicótica; estrutura “perversa”, “autista”, etc.)? Formulação Cultural do Caso Como é o meio sociocultural atual do paciente (bairro de periferia, favela, morador de rua, de uma instituição, etc.)? Como o paciente e seu meio cultural concebem e representam o problema? Quais as suas teorias etiológicas e de cura? Como é a identidade étnica e cultural do paciente? Qual e como é sua religiosidade? Como o paciente e seu meio cultural encaram o diagnóstico e o tratamento psiquiátrico “oficial”? O paciente é migrante de área rural? Como isso interfere no diagnóstico e na terapêutica? Qual a “linguagem das emoções” que utiliza? Qual o impacto das mudanças socioculturais pelas quais o paciente passou em seu transtorno mental? Paulo Dalgalarrondo44 O ideal de um proce- dimento diagnóstico é que ele seja con- fiável, válido, com alta sensibilidade e especificidade. Questões de revisão • Discuta o valor, os limites e as críticas em relação ao diagnóstico em psicopatologia. • Esclareça por que o diagnóstico em psicopatologia é baseado preponderantemente nos dados clínicos e não em possíveis mecanismos causais supostos pelo entrevistador. • Por que o diagnóstico psicopatológico é, em muitos casos, apenas possível com a observação do curso da doença? satisfatoriamente o objeto pesqui- sado (de certo modo, mais próxi- mo da “verdade”). A sensibilidade de um novo pro- cedimento diagnóstico está rela- cionada à capacidade desse pro- cedimento de detectar casos ver- dadeiros incluídos na categoria diagnóstica. Já a especificidade do procedimento refere-se à capa- cidade de identificarverdadeiros “não-casos” em relação à catego- ria diagnóstica que se pesquisa. Um procedimento com alta sensi- bilidade identifica quase todos os casos, mas pode falhar reconhe- cendo erroneamente um não-caso (falso-positivo) como caso. Outro procedimento com alta especi- ficidade pode ter a qualidade de apenas reconhecer casos verdadei- ros, mas pode falhar, deixando de reconhecê-los, considerando-os como não-casos. Obviamente, o ideal de um procedi- mento diagnóstico é que ele seja confiá- vel (reprodutível), válido (o mais pró- ximo possível da “verdade” diagnóstica), com alta sensibili- dade e especificidade.