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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP Igor Álvares Enkim Trabalhando com famílias: sentidos da formação para um grupo de multiplicadores MESTRADO EM EDUCAÇÃO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO SÃO PAULO 2013 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP Igor Álvares Enkim Trabalhando com famílias: sentidos da formação para um grupo de multiplicadores MESTRADO EM EDUCAÇÃO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO SÃO PAULO 2013 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP Igor Álvares Enkim Trabalhando com famílias: sentidos da formação para um grupo de multiplicadores MESTRADO EM EDUCAÇÃO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Educação: Psicologia da Educação sob a orientação da Prof.ª Dra. Heloisa Szymanski. SÃO PAULO 2013 Banca Examinadora __________________________________________ __________________________________________ __________________________________________ Dedico esta pesquisa ao inspirador grupo de educadores da Vila Horizonte. Que continuem sua incessante jornada rumo ao Ser-mais. AGRADECIMENTOS Agradeço absolutamente todos que participaram do processo desta pesquisa. Ao apoio incondicional e paciência de minha família. Ao amor e carinho de Vanessa Coutinho, sempre disposta a colaborar, esforçando- se em tornar esta experiência mais leve. À minha orientadora, Prof.ª Dra. Heloísa Szymanski, por sua preciosa presença, inspiração, dedicação e cuidados. À Renata Capeli, por suas valorosas trocas de ideias e luz em momentos de escuridão. Aos professores João Eduardo Coin de Carvalho, e Marília Josefina Marino por suas extremamente bem vindas participações, generosidade, importantes observações e críticas. Aos amigos do grupo de pesquisa, acolhedores e sempre dispostos à reflexão, tornando a participação no ECOFAM um prazer. Aos CAPES por conceder uma bolsa integral, financiando esta pesquisa. Um agradecimento especial à toda equipe de educadores da Vila Horizonte, por permitir minha pequena participação no admirável grupo de destemidos e calorosos homens e mulheres, no qual me senti acolhido desde o início, por compartilhar sua linda história, me surpreendendo a cada encontro com sua capacidade de ampliar horizontes. RESUMO Objetivou-se nesta pesquisa compreender o sentido de uma formação de multiplicadores para um grupo de educadores de uma comunidade de baixa renda da cidade de São Paulo. Os participantes viviam e trabalhavam na comunidade, tendo o curso, para o trabalho com famílias, sido construído com sua participação. Trata-se de uma investigação qualitativa, de orientação fenomenológica, tendo como referências a Analítica do Sentido proposta por Dulce Critelli, e os preceitos dialógicos de Paulo Freire. Aproximou-se do fenômeno através da entrevista reflexiva, conforme proposta por Heloísa Szymanski, de modo que os participantes compõem parte ativa na constituição do conhecimento. Foram realizadas sete entrevistas individuais e uma devolutiva coletiva. Foram criadas quatro constelações a partir dos resultados: envolvimento com a formação, cuidando da comunidade, vivenciando a formação e sendo multiplicador. Os discursos dos participantes contemplam múltiplos sentidos para o curso que se metamorfosearam ao longo dos dois anos de formação. Estes sentidos compreendiam desde o aprimoramento profissional, cuidar melhor de crianças, passando por eliminar os problemas do outro, gerar qualidade de vida, até o ouvir o outro e promover autonomia. Os sentidos se transformaram, conforme os participantes permitiram-se estar com o outro conforme este se apresentava, sensibilizando-se para novas possibilidades de educar. O modo dialógico passou a orienta-los, não mais fazendo para o outro, mas com ele, visando co-construir sua autonomia. Palavras-chave: Formação de Multiplicadores, Fenomenologia e Educação, Diálogo ABSTRACT The objective of this research was to comprehend the meanings of a multiplier’s course for a group of educators of a low income community in São Paulo. The participants lived and worked in the community. The course aimed for working with families and was developed with their participation. This is a qualitative investigation, oriented by Meaning Analysis purposed by Dulce Critelli and the dialogical precepts of Paulo Freire. The phenomenon was approached through the reflexive interview, as it is purposed by Heloísa Szymanski. In this conception, the participants represent an active role in the constitution of knowledge. Seven individual interviews were performed as well a collective devolution of the results. Four constellations were created: involvement with the course, caring about the community, experiencing the course and being a multiplier. The speeches of the participants contemplate multiple meanings that were shaped along the two year course. Those meanings spanned since professional improvement and better caring of children, through wipe the other’s problems, boost life quality, until listening the other and promote their autonomy. As the participants allowed themselves to be in the other’s presence as they were presented, the course’s meanings were transformed and new educational possibilities came to light, through the affection that took place. The dialogical mode came to guide them, no more doing for the other, but with him, aiming to construct their autonomy together. Key-words: Multiplier’s course, Phenomenology and Education, Dialogue Sumário 1. APRESENTAÇÃO .............................................................................................. 1 2. INTRODUÇÃO ................................................................................................... 4 2.1. Olhando para o fenômeno ........................................................................... 4 2.2. Compreendendo o Sentido .......................................................................... 7 2.3. O ser-com-os-outros e a Educação ............................................................. 9 2.4. O cuidado para com famílias populares - um breve histórico .................... 13 3. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA ............................................................................. 16 3.1. Contextualização ........................................................................................ 16 3.2. O cotidiano do Agente Comunitário de Saúde no trabalho com famílias ... 17 4. APRESENTAÇÃO DO CONTEXTO DA PESQUISA ....................................... 22 4.1. Histórico da Vila Horizonte ......................................................................... 22 4.2. O Projeto de Formação de Multiplicadores ................................................ 25 4.2.1. Os pressupostos da Formação de Multiplicadores .............................. 25 4.3. Descrição da Formação de Multiplicadores ............................................... 26 4.3.1. Síntese do 1º semestre (julho-novembro/2011) ................................... 27 4.3.2. Síntese do 2º semestre (fevereiro - junho/2012) .................................. 29 4.3.3. Síntese do 3º semestre (agosto - novembro/2012) .............................. 32 4.3.4. Síntese do 4º semestre (fevereiro - junho/2013) ..................................34 5. MÉTODO .......................................................................................................... 38 5.1. Procedimentos para coleta de dados ......................................................... 39 5.1.1. Situação de Pesquisa .......................................................................... 39 5.2. A entrevista reflexiva .................................................................................. 40 5.2.1. Procedimentos Éticos .......................................................................... 42 5.3. Participantes .............................................................................................. 43 5.3.1. Tabela de participantes ........................................................................ 43 5.3.2. Descrição dos participantes ................................................................. 44 5.4. Sínteses das entrevistas ............................................................................ 45 5.4.1. Flávia ................................................................................................... 45 5.4.2. Paulo .................................................................................................... 48 5.4.3. Mariana ................................................................................................ 52 5.4.4. Valéria .................................................................................................. 55 5.4.5. Laura .................................................................................................... 57 5.4.6. Pedro ................................................................................................... 60 5.4.7. Anita ..................................................................................................... 63 5.4.8. Síntese da Entrevista Devolutiva em grupo ......................................... 66 6. PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE .................................................................... 71 6.1. Constelações ............................................................................................. 72 6.1.1. Envolvimento com a formação ............................................................. 72 6.1.2. Cuidando da comunidade .................................................................... 74 6.1.3. Vivenciando a formação ...................................................................... 77 6.1.4. Sendo multiplicador ............................................................................. 80 6.2. Síntese geral das constelações ................................................................. 83 7. DISCUSSÃO .................................................................................................... 85 8. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 95 9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................. 97 10. ANEXOS ...................................................................................................... 101 10.1 Modelo do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido .................... 101 1 1. APRESENTAÇÃO Meu interesse pelo tema da educação surgiu durante a experiência do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) e Estágios Supervisionados, ao longo dos dois últimos anos da graduação em Psicologia, na Universidade Paulista - UNIP, quando tive minha primeira experiência de pesquisa, a qual foi realizada em uma escola pública da periferia de São Paulo e em uma sociedade beneficente que oferece cursos profissionalizantes para jovens de baixa renda, também localizada em uma região periférica na cidade. Estas duas experiências levaram ao desenvolvimento de trabalhos científicos, relatados no TCC e em artigos apresentados em congressos. Um fato que direcionou meu interesse pela educação foi o relacionamento entre instituições e seus alunos. Havia uma grande ênfase na obrigatoriedade do estudo, sem o qual, jamais seriam “alguém na vida”. Seus pais e mestres lhes apresentavam o futuro através de frases prontas e eles as assumiam, repetindo os mesmos jargões (COUTINHO, ENKIM e MARTINS, 2010) e discursos semelhantes eram proferidos por jovens de diferentes instituições. Sobre estas, não foi percebido por mim, sinal de que se esforçavam por problematizar a educação ou a vida dos alunos em si. Frequentar uma escola, um curso, foi apresentado por alunos e instituições como a via de acesso a uma situação econômica favorável, garantindo seus sonhos de vida. De acordo com o relato dos jovens, a necessidade de estudar e possuir um diploma ou certificado era natural, não caberia nem ser questionado. Porém, quando indagados sobre o sentido, ou, o “para quê” de estudar, os alunos, prestes a iniciar o último ano do ensino médio, disseram que seus estudos nas múltiplas disciplinas que cursavam serviriam para ajudá-los a reconhecer os números e as letras dos letreiros de ônibus quando fossem procurar outros cursos ou se deslocarem para entrevistas de emprego mais tarde em suas vidas, situação que me causou espanto. Estranhei o fato dos jovens com diferentes histórias de vida, vivendo e estudando em locais distintos, terem sonhos e projetos tão uniformes. O poder de compra foi amplamente mencionado como objetivo para se dedicarem com “toda garra” aos estudos, mas relataram não gostar de nenhuma disciplina da grade escolar, nem mesmo aquelas as quais eles próprios escolheram. Nos cursos profissionalizantes, também soube pelos educandos quais disciplinas eram as 2 mais odiadas. O desejo dos pais foi apresentado na maior parte das ocasiões como o principal motivo de estarem realizando suas rotinas estudantis. Contextualizamos os jovens em uma sociedade de consumo, sendo convocados o tempo todo a ter mais, a comprar. Porém, algo mais surgia para além desses projetos massificados. Conforme a pesquisa se aprofundou e os alunos foram indagados quanto ao que lhes era realmente significativo na vida, diziam frases como: “gostaria de ajudar minha família”. Os jovens tinham consciência das dificuldades sócioeconômicas em que viviam, e queriam uma saída para si e seus familiares. Mas entre o que viviam e o futuro, havia uma ponte mágica. Tinham de se dedicar com afinco à escola, mas dali gostavam apenas das amizades. A saída da vulnerabilidade era enriquecer para poder comprar, quando o que mais lhes importava naquele momento, era sua família e suas dificuldades. Não parecia haver ligação. Aqueles projetos de vida não soavam como idealizados por eles. Nem mesmo seus sonhos pareciam lhes ser próprios. O futuro tinha sido apontado para eles e não construído com eles. Este destino era tomado pelos jovens, não como possibilidade, mas como certeza, bastando que o cumprissem com o método oferecido como única possibilidade: estudar muito. Todo o caminho já estava pronto diante deles, tornando seu processo educativo um ato mecânico, nada mais que obrigatório e repetitivo. Compreendi que tanto as instituições de ensino que frequentavam quanto suas famílias possuíam uma ótica de educação instrumental, sendo insuficientes em oferecer aos jovens a oportunidade de refletirem sobre suas existências e o mundo que os cerca, no qual o único horizonte era o da conformação à ordem. De certa forma esta experiência dos jovens remete à minha própria. Frequentei escolas que tinham a mesma ótica, “doar” um sonho, dar um caminho, nas quais não encontrei outra possibilidade, a não ser seguir o que me era dito como certo. Seja bem-sucedido profissionalmente, diziam-me, seja competitivo, destaque-se, enriqueça. Entretanto a certeza dos outros não se encontrava comigo, parecia não me dizer respeito. Passei por três experiências de graduação, Publicidade e Propaganda, Biologia e Psicologia, procurando por algo que me fizesse sentido. Creioter encontrado esse algo na Psicologia. 3 Durante minha experiência na graduação de Psicologia, entrei em contato com o pensamento de Paulo Freire, a Fenomenologia e a Psicologia Sócio- Histórica. Estas abordagens psicológicas compreendem o mundo de forma crítica, problematizando-o. Uma das críticas que compartilham é a de que o mundo é construído pelos homens e, portanto, não há caminho ou modo certo de se viver. Comecei a me perguntar como a educação poderia favorecer a construção de um projeto próprio, para o qual seu sentido pudesse ser transformado por quem o idealiza, distanciando-se do cumprimento de ideais. Sobre esta impregnação do “modo certo” de se viver, Heidegger (1981) apresenta a diluição do ser no mundo do “a gente”, o mundo massificado e padronizado onde nos desresponsabilizamos de um cuidado próprio, cuidando de ser do modo que “todo mundo faz”. Freire (1987), com uma compreensão política, fala sobre a contraditoriedade opressor - oprimido, na qual se adota o modo de ser uniformizado por aqueles que detêm o poder. A imprescindibilidade do diálogo é outro aspecto compartilhado por estas abordagens e foi essa possibilidade existencial que me interessou como forma de atuação. Por meio do diálogo os homens se encontram entre si e também a si mesmos. Ser e mundo se problematizam, tornam-se acessíveis e podem ser colocados em movimento, transformando o viver. Fui sensibilizado por aquele encontro com os jovens, indo buscar o Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: Psicologia da Educação, da Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP), interessado em pesquisar junto a populações de baixa renda e em situação de exclusão, como pode o sentido ser construído em um processo educativo. Oportunamente, minha chegada ao Programa coincidiu com o início do Projeto de Formação de Multiplicadores para o trabalho com famílias, desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa em Práticas Educativas e Atenção Psicoeducacional na Família – ECOFAM, Escola e Comunidade, que seria oferecido a um grupo de educadores de duas instituições da Vila Horizonte1. Idealizado dialogicamente entre o ECOFAM e os educadores, a partir das demandas identificadas na Vila Horizonte, apresentava-se ali uma situação educacional diferente daquelas com as quais me deparei anteriormente, 1 O nome original da comunidade foi substituído em razão da garantia de sigilo dos participantes da pesquisa. 4 pois parecia haver um sentido próprio aos educadores em sua escolha de realizar a formação. Perguntava-me com o que sonhavam aqueles educadores para si e para sua comunidade. Propus-me, então, nesta pesquisa, compreender o sentido da formação para os participantes do curso. Na introdução será apresentada uma breve abordagem do pensamento que embasa a Fenomenologia Existencial, relacionando-a em seguida com a Educação e depois especificamente com o cuidado para com famílias de baixa renda. Será realizada uma descrição da comunidade, bem como a síntese dos dois anos da formação. A partir do capítulo V, Método, relatarei propriamente como esta pesquisa foi realizada. 2. INTRODUÇÃO 2.1. Olhando para o fenômeno O modo de pensar fenomenológico foi elaborado no fim do século XIX, sendo concebido inicialmente por Edmund Husserl, como uma resposta ao positivismo. O filósofo colocou em questão o pensamento científico de sua época, em particular as ciências humanas e o psicologismo, criticando o tratamento reducionista dado ao psiquismo humano, adotado das ciências naturais. A ciência no final do século XIX deslumbrava-se consigo mesma e acreditava-se capaz de fornecer todas as respostas para as questões humanas. Contam Martins e Bicudo (1989), que o modelo científico positivista que propunha conhecer para controlar, cada vez mais alienava o homem daquilo que realmente lhe dizia respeito: ele mesmo. Dessa forma, Critelli (1996, p. 23) afirma que: A fenomenologia nao pode ser compreendida por nós como uma “escola filosófica” entre outras, mas como um pensamento provocado pelo descompasso da civilização, pelo seu esgotamento, pelo esvaziamento, pela nadificação do sentido em que ser nela se fazia possível e solicitante. Para elaborar sua fenomenologia, Husserl apropriara-se dos questionamentos de seu próprio mestre, Franz Brentano, que se punha a pensar o psiquismo humano como sempre relativo a algo, nomeando este fenômeno de intencionalidade. Brentano afirmava que consciência é sempre consciência de algo. Dessa forma, Dartigues (1992, p. 20) explana: 5 Consciência e objeto não são, com efeito, duas entidades separadas na natureza que se trataria, em seguida, de pôr em relação, mas consciência e objeto se definem respectivamente a partir desta correlação que lhes é, de alguma maneira, co-original. De acordo com esta compreensão, não seria possível olhar para o mundo ao modo das ciências naturais, sem que se olhasse para o homem que o enxerga. Não seria possível tratar o mundo como mero objeto de estudo, sem relacioná-lo ao homem. A fenomenologia pretendida por Husserl, deveria se tornar uma filosofia com rigor científico, mas voltando-se às coisas do mundo e ao homem, conforme expõe Dartigues (1992, p.13): “Não convém que a impulsão filosófica surja das filosofias, mas das coisas e dos problemas.”. Husserl apontava a necessidade de uma revisão do método de acesso à verdade nas ciências, através do que chamou de “retorno às coisas mesmas”. Este retorno seria a busca pelo sentido, pela essência de determinado objeto de estudo, conforme apresentam Martins e Bicudo (2006, p. 21): Esse olhar se constitui na epoché, que significa suspensão de qualquer julgamento, ou seja, significa dar um passo atrás e colocar em suspensão as formas familiares e comuns de olhar as coisas, que impedem que sejam vistas diretamente, em seus modos de aparecer. Martins e Bicudo (1989) definem etimologicamente o termo Fenômeno como uma palavra advinda do grego ”phainomenon” e deriva do verbo ”phainestai”, uma forma reduzida que provém de “phaino”, que significa trazer à luz do dia. Fenômeno, neste referencial, é concebido como aquilo que se mostra a si mesmo. Um fenômeno, ainda segundo os autores difere de um fato, pois parte da compreensão que a realidade conhecida é uma realidade percebida, ou experienciada, porém, enquanto uma perspectiva e não como verdade absoluta. A ciência positivista, segundo este questionamento, seria apenas um ponto de vista, uma vez que é dependente de uma consciência indissociável do mundo que percebe. O pressuposto da neutralidade científica estaria em xeque e, portanto, também sua pretensão a uma verdade única e universal, pois a ciência é feita pelo homem que existe em um contexto, com objetivos específicos e não existe por si. Dessa forma, Critelli (1996, p. 52) afirma que: “Tudo que aparece para o homem aparece-lhe através de sua condição de ser-no-mundo.” Para a fenomenologia, não há busca pela “Verdade”, mas visa-se a verdade provisória 6 de um fenômeno, que só é observável dentro de um contexto de relações, e também só concebida enquanto uma das perspectivas possíveis. Se mundo e consciência não podem existir por si mesmos, não haveria ser sem um mundo que o embasasse e nem mundo sem que houvesse um ser que o observasse de acordo com sua perspectiva. Martins (2006, p. 16) afirma que: Apresenta-se a Fenomenologia como uma postura mantida por aquele que interroga. O inquiridor fenomenólogo dirige-se para o fenômeno da experiência, para o dado, e procura vê-lo da forma que ele se mostra na própria experiência em que é percebido. Isso quer dizer que há um mundo ao redor do fenomenal, em que surge e que se doa ao pesquisador que intenciona o fenômeno. Tendo sido aluno de Husserl, Martin Heidegger, se pôs a pensar a questão do ser seguindo a óticade retorno às coisas mesmas. Surge o pensamento fenomenológico existencial, a partir de Heidegger, no qual o ser é compreendido a partir daquilo que ele mostra, como afirma Spanoudis (1981, p. 11): Para Heidegger, ser é a maneira como algo se torna presente, manifesto, entendido, percebido, compreendido e finalmente conhecido para o ser humano, (...) para o “ser-aí” ou Dasein”. Nada que aparece, surge isolado do mundo, mas sim pertencente a uma trama de relações que o precedem e sustentam (CRITELLI, 1996). No entanto, há uma diferença fundamental, em relação ao ser do Homem e o ser das coisas. Tudo que se revela, simplesmente está-no-mundo, sejam objetos ou outros seres, porém, não o homem. O homem é o único realmente existente, ou seja, não apenas é, não apenas vive, mas reflete sobre seu viver, sendo que viver não é, no referencial fenomenológico, sinônimo de existir (MARTINS e BICUDO, 2006). O termo existência neste referencial, difere também do conceito de “realidade”, segundo Spanoudis (1981, p. 11) “existência vem do verbo ek-sistere; ek- sistência é algo que emerge, se manifesta, se desvela”. Existir neste sentido é existir para fora, para a abertura. O homem é ó único ser que consegue apresentar-se a si mesmo, indagando e percebendo como está existindo, vislumbrando seu ser e, dessa forma, confere rumos, dando sentido àquilo que se desvelou, a própria existência. 7 2.2. Compreendendo o Sentido Indagando o sentido da formação para o grupo de multiplicadores, deve-se delinear em primeiro lugar o fenômeno que se quer compreender. Sentido em uma orientação fenomenológica, é definido como sinônimo de orientação, direcionamento, conforme expõe Critelli (1996, p. 131): Ele é mais um rumo que apela, uma solicitação que se faz ouvir, um apelo obstinado que se insinua e persegue. Um fundo silencioso que abre a possibilidade de realização de nosso ser. Ou, em outras palavras, uma destinação em que se abre a possibilidade de se cuidar de ser (...). O objetivo é compreender o direcionamento que a formação tomou para este grupo, como foi sentida e vivenciada e o que os convocava a, espontaneamente, aprimorar seu conhecimento para trabalhar com famílias. Critelli (1996) afirma que o sentido de ser se expressa por meio dos modos de cuidar do homem, isto é, pela da maneira como o homem cuida e vai dando conta de sua existência. O Homem, como compreende a fenomenologia, é o único ser que interroga o sentido de sua existência, porque percebe que esta é transitória. O cuidado é constituinte do homem porque este também está lançado à facticidade, o que para Critelli (1996, p. 49): “o homem está entregue a ser, não pode se recusar a ser. Mesmo a negação radical de ter que ser cuidando de ser, como o suicídio, é uma forma ou modo do homem estar respondendo ao ser que lhe é entregue.”. O mundo aqui referido é o mundo vivido, com tudo que cerca o homem, objetos, história, ideias, pessoas e assim por diante (bem como as possibilidades que este mundo acarreta). Heidegger coloca o homem em relação ao mundo, dessa forma, refere-se ao termo ser-aí, ou Dasein (O-Ser, pre-sença), estabelecendo a inseparabilidade entre sujeito e objeto, ressaltando esta condição como constituinte da maneira de existir do homem, conforme apontam Pompéia e Sapienza (2011, p.10): Com isto o ser do homem passa a ser expresso por meio da noção de ser-aí, exatamente porque o homem só conquista o seu ser a partir do aí, do mundo que é o dele. Dizer isso, por outro lado, é o mesmo que afirmar as possibilidades específicas do ser- aí como possibilidades específicas de seu mundo. 8 O homem está-aí, lançado em um mundo que não o acolhe, incerto e fluídico, e é nesta abertura que o homem vai cuidando de sua existência, habitando este mundo e relacionando-se com ele. Existir é experienciar a provisoriedade do estar-no-mundo, sempre na forma de cuidado, cuidando do existir. Sob a ótica do ser-aí enquanto fenômeno, o ser do homem não se mostra estático, mas sempre em um vir-a-ser, a partir das solicitações do cuidar de seu modo de ser. Portanto, o ser do homem é, sendo-no-mundo, e esta é a condição de seu existir. Spanoudis (1981) aponta que no pensamento da fenomenologia existencial se estabelece diferenças entre as características fundantes da condição humana, as condições ontológicas, e as maneiras como o ser se mostra, o que lhe é ôntico. Compreensão, disposição afetiva e linguagem, são características ontológicas que possibilitam ao homem que se apresente de determinada maneira e a partir delas, pode-se também compreendê-lo. Dessa forma, ek- sistindo no mundo, o homem é disposição, abertura e vai se articulando conforme é afetado pelo curso das coisas que o cercam e compreendendo, projeta-se em suas possibilidades. Porque o homem é-com-o-mundo, ser-aí é estar em abertura. O homem em seu inescapável ter-que-ser, é a todo momento afetado pelo mundo que se apresenta. De acordo com Critelli (1996), é o estado de ânimo que evidencia o modo como somos tocados pelas coisas e outros que estão no mundo. As emoções conferem consistência ao mundo que o ser-aí observa, remetendo o homem a si mesmo e este se posiciona conforme sua compreensão de seu afetamento. A compreensibilidade do homem não pode ser separada de sua afetividade ou hierarquizada, pois ambas acontecem em simultaneidade, sendo então uma compreensão emocionada, que acontece em dada tonalidade afetiva, conforme explicita Critelli (1996, p. 93): “A presença do homem no-mundo é sempre emocionada. Mesmo a indiferença é um modo pelo qual algo nos toca.”. Dessa forma, na compreensão emocionada, o homem, cuidando, vai projetando suas possibilidades de ser e dando sentido à existência. Cuidando do existir, os homens vão fazendo escolhas quanto ao que cuidar, como cuidar e como cuidar do cuidar. Ainda segundo Critelli (1996), as escolhas quanto ao que cuidar e como cuidar remetem às possibilidades 9 oferecidas na cultura em que o ser-aí se insere, porém o modo de cuidar do cuidar relaciona-se mais diretamente ao sentido de ser. A seu modo o ser-aí será afetado e compreenderá seu ter-que-ser, dessa forma em seu estado de ânimo, composto pela disposição afetiva e compreensão, expressará o sentido que ser tem/faz para si. Afirma a autora: (...) em especial, das escolhas relativas aos modos de cuidar dos modos de cuidar, a Analítica do Sentido deve prestar atenção aos estados de ânimo – a base fundamental de nossas escolhas, que indicam como se “vai indo” no mundo (em relação às coisas do mundo a si mesmo, aos outros), que nos abrem para o que tendemos, para o que nos voltamos nos modos da versão e da aversão. (CRITELLI, 1996, p. 133) Embora o foco desta pesquisa seja o sentido da formação, entende-se que este é um sentido-com, dado que o ser-no-mundo o compartilha com semelhantes, portanto, é necessária imersão na compreensão dos modos de relação dos homens uns com os outros, pois este é o âmbito em que a educação se dá. 2.3. O ser-com-os-outros e a Educação Para compreender a educação em uma perspectiva fenomenológica existencial, é necessário levar em consideração outro constituinte ontológico do homem: a coexistência. Para a fenomenologia, ser-aí é ser em um mundo com os outros. Como constituinte do homem, esta condição também não pode ser hierarquizada, mas é de igual importância às outras mencionadas. O ser do homem, apresentado desta maneira, nunca é individual, mas é uma co-produção uma vez que não é possível tornar-se humano em condição de isolamento (MARTINS e BICUDO, 2006). Desde o nascimento, o homem sempre está em relação aos outros. Contudo, esta condição de coexistência pode ser experienciada pelo ser-aí de diferentes modos. Na co-produção da vida, o eu pode diluir-se no modo de ser dos outros, perdendo-se a si mesmo, como afirma Critelli (1996, p.64) “osoutros com quem o eu convive podem atuar tanto sobre quem o eu será, que o eu mesmo pode ser obra dos outros e não de si mesmo.”. Uma outra possibilidade é que o ser-aí pode continuar escolhendo e co-criando o sentido de sua existência. Absorvido no modo de ser dos outros, o ser-aí viverá de modo inautêntico ou 10 impróprio, abstendo-se de seu vir-a-ser, ele vai existindo, cuidando de si de maneira uniforme, nos modos de ser da massificação. A este modo deficiente de existência, Heidegger (1981, p. 51) nomeia de “a gente”, conforme explana: “o ‘a gente’ está em toda parte (...), mas de um tal modo que, sempre que o ser-aí o pressiona a uma decisão, ele escapa”. O “a gente” não é uma entidade, um ser coletivo, mas uma forma generalizada de compreender o mundo, baseia-se em uma compreensão massificada sobre como se vive por aí. No entanto, a impropriedade do ser não deve ser tomada como algo a ser eliminado da existência, pois também é uma condição ontológica (CRITELLI, 1996). O eu nunca será plenamente impróprio, mas também jamais será unicamente singular e a possibilidade do ser-aí encontrar-se consigo mesmo está em viver seu ser-com-os outros. Na medida em que o ser-aí retorna para si mesmo, pode se ver e se direcionar ao que lhe convoca, autenticamente estará trilhando sua existência. O estado básico do homem estar no mundo, é cuidando e assim como o homem está no mundo preocupado com seu ser, esta condição também o possibilita a preocupar-se com o ser de outros (MARTINS e BICUDO, 2006). Segundo Heidegger (1981, p. 35): “(...) os outros são encontrados emergindo do mundo no qual o ser-aí habita referindo-se a ele através do cuidar.”. O cuidado do ser-aí com seus semelhantes é chamado de solicitude, pois estes também são outros, são afetivos e conforme compreende seu ser, o homem relaciona-se com os outros, sendo afetado e afetando. Conforme diz Heidegger (1981, p. 41), no que diz respeito ao envolvimento com os outros, a solicitude pode expressar-se de duas diferentes maneiras: A solicitude com relação à seus modos, tem dois extremos possíveis. Pode-se por assim dizer, tomar “conta” do outro ou colocar-se em sua posição de cuidar: pode-se “saltar sobre o outro”. Este modo de solicitude é o que assume o encargo que é do outro de cuidar de si mesmo. A solicitude, no modo de saltar sobre o outro é desapropriar este de seu lugar, é uma forma de dominação. O cuidador trata o outro não como ser-aí, mas, relaciona-se com ele como se relacionaria com um objeto qualquer. O outro não é levado em conta em sua existência, em seu poder-ser, mas como coisa acabada e à disposição. No modo oposto, no entanto, o ser-aí se antecipa ao outro, não o 11 protegendo, mas possibilitando que este se volte a si mesmo de forma que o outro possa assumir suas possibilidades existenciais. Ter consideração e paciência para com o outro são modos-de-ser solícitos e é por essa possibilidade de ser com o outro que se pode coloca-lo em contato consigo mesmo. Spanoudis (1981), afirma que a consideração está relacionada com a experiência vivida, ou seja, ter um olhar para o passado e ter paciência com o outro, significa vislumbrar possibilidades futuras. Heidegger (1981) aponta que este é um modo autêntico de cuidar e, neste ponto, pode-se vislumbrar a educação como uma possibilidade de apropriar o outro de si mesmo, libertando-o. Critelli (1981, p. 62) afirma que: Logo que tomado como um tema a ser considerado, o “fenômeno educação” traz-nos à vista a evidência de ser ele o lugar onde, com primazia, nos defrontamos com a relação homem-homem. O que por primeiro enxergamos na educação é “o homem-sendo- com-os-outros-homens” de uma maneira particular. A educação é um modo de cuidado do homem para com os outros homens e pode se dar de diferentes formas. Freire (1987) discute a educação se aproximando da abordagem fenomenológica, propõe que educar seja o ato dos homens facilitarem sua condição de liberdade. O homem é compreendido pelo autor enquanto inacabado, isto é, o poder-ser é a condição do homem no mundo. O diálogo seria o encontro pelo qual os homens se disporiam em solicitude uns aos outros, buscando em conjunto por “ser-mais”: Por isto, o diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em que se solidariza o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes (FREIRE, 1987, p. 45) O diálogo é um ato de criação mutua e por isso, para Freire (1987), não pode prescindir da horizontalidade entre os homens, mas depende do amor à humanidade, do compromisso, da humildade e da fé na vocação do homem em ser-mais. A troca suscitada pelo diálogo transforma o mundo, pois quando cada homem pronuncia e expressa seu mundo a outro, este mundo lhes retorna problematizado, demandando um novo pronunciar: “Não é no silêncio que os 12 homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão.” (FREIRE, 1987, p. 44). Concebendo o homem como essencialmente livre e sendo-no-mundo-com- os-outros, a educação se torna um processo no qual a finalidade não é a operacionalização de uma técnica, mas retornar o homem a si mesmo, em suas relações com o mundo, com os outros e seu papel transformador neste mundo. A Educação nesta perspectiva, deve possibilitar o homem a (re)conhecer sua liberdade, assumindo-se como ser social e histórico, pensante, comunicante, criador e realizador (PAULY, 2010). No extremo oposto da educação dialógica está a educação bancária. Freire (1987), assim a nomeia intencionando expressar a hierarquia da relação na qual se dá. Nesta concepção, quem educa deposita suas verdades sobre quem aprende, ou seja, um detém todo o saber, conhece “a verdade”, o modo “correto” de fazer, e o outro que é apenas um recipiente vazio, será preenchido pelo primeiro. Nesta verticalidade entre professor e aluno, em que a educação é uma via de mão única, não há diálogo e, portanto, o aluno não é visto em sua humanidade, uma vez que não cria com o outro, mas cabe-lhe, adaptar-se à cultura/saber do outro. O educador pronuncia sua palavra, seu mundo, mas, ao educando, cabe, calar-se. De acordo com Freire (1987), esta situação expressa a contradição opressor-oprimido. O silenciamento do oprimido pressupõe um acabamento dos homens, no qual o opressor é o modelo acabado, para o qual o oprimido deve destinar-se. Este é um modo de cuidar inautêntico, deficiente (Heidegger, 1981), pois o opressor salta sobre o oprimido, desapropriando-o da possibilidade de cuidar de si mesmo. No entanto, cabe ressaltar que, nesta situação, a inautenticidade do cuidar cabe a ambos. Oprimido e opressor estão-sendo inautênticos, pois, como afirma Freire (1987), a ausência de diálogo implica que as possibilidades do vir-a- ser estão fechadas e é apenas na solicitude do diálogo que os homens se humanizam, infinidavelmente. Freire (1983) denuncia um ideal colonizador nas práticas educativas ofertadas às classes populares. O autor associa a educação bancária à doação, messianismo, mecanicismo, invasão cultural, manipulação. Segundo ele, esta forma de educar favorece as classes sociais dominantes enquanto oprime as 13 mais pobres. Para o opressor, só há um modo de pensar, um saber, um modo de fazer, um modo de ser, um projeto de mundo, que, enquanto ele já o detém, o oprimido deve adaptar-se. A educação tem o potencial de promover o encontro do outro consigo mesmo, ou diluí-lo no mundo do “a gente”. Ou mais que isso, oprimi-lo de tal forma que não se proponha mais estar na abertura de seu ser-aí e conformando- se em ser um ser-pronto à despeito da vulnerabilidade, injustiça, desigualdade e sofrimento que vivencia. Se o sentido da educação é o cuidadocom o outro, pode se perguntar, de que forma se vem cuidando do outro, educando-o, mais especificamente, questiona-se como tem sido cuidadas as famílias de baixa renda, pessoas as quais os multiplicadores visam em sua atuação. A seguir, um breve histórico do cuidado de famílias no Brasil. 2.4. O cuidado para com famílias populares - um breve histórico No século XIX, a burguesia se consolidou no poder e seus ideais passam a se difundir pelo tecido social. O ideal de homem burguês era tido como modelo universal, um homem livre, autônomo, asséptico e moralmente perfeito que buscava a ascensão econômica e social, valorizando a individualidade, a propriedade privada, a igual capacidade de competir e a rígida divisão de papéis entre os sexos. A suposição de igual liberdade para todos camuflava os conflitos de classe já existentes. O desenvolvimento da Psicologia e da Pedagogia enquanto ciências se deu neste momento de consolidação da burguesia como classe dominante, seguindo o modelo das ciências naturais, reduziam o homem ao componente psíquico, procurando corrigi-lo e discipliná-lo, de forma a possibilitar a harmonização do indivíduo à sociedade (LIBÂNEO, 1984). As construções teóricas da época se fundamentavam nos ideais burgueses, promovendo seus interesses e as preocupações das ciências humanas voltam-se sobre as funções da família, da mulher e do homem, no esforço de normatizar seu modo de vida. Estas ciências contribuíram, em larga escala, para a patologização da família, ao defender veemente apenas uma possibilidade de ser, o ideal de família burguesa (REIS, 1984). 14 A vida da família passa a ser alvo do controle de especialistas por meio da tutela higienista, domesticando a realidade vivida de modo que atingissem um pacote de ideais. O homem é isolado de sua natureza social e visto a partir de uma essência inata, universal, sem nenhuma influência da cultura e da história, devendo ser cultivado corretamente (LIBÂNEO, 1984) a fim de se garantir “o resultado perfeito”. Por esta ótica, sem nenhuma influência de seu meio social, o indivíduo “livre” e seu agrupamento familiar são responsabilizados pelos desvios de conduta e passam a ser considerados ameaças à ordem. O modo de produção capitalista instantaneamente gera contradições que o prejudicam e cria estratégias para controlá-las. Na luta de classes, a família operária, não conseguindo preencher estes ideais, torna-se foco de constante regulação por parte do aparato intervencionista do Estado e culpabilizada pelo próprio “fracasso” (TEIXEIRA, 2010). A ideia de liberdade individual e essencialismo do homem direcionam profundamente os cuidados que são oferecidos às famílias de baixa renda. Às classes populares são atribuídas características que, assumidas como naturais, perpetuam sua opressão: patológicos, ignorantes, selvagens. Afirma Arroyo (2009) que essas visões dos setores populares marcam as políticas, programas e campanhas para o povo, na educação, saúde, cultura, promoção social. Vistas como incapazes, as famílias pobres são historicamente marginalizadas e esta estigmatização reforça a própria ideologia capitalista que as criou, porém, dificilmente o modelo de acumulação de capital é questionado. De acordo com o autor, a educação e saúde ainda operariam na visão de que o pobre é atrasado, subdesenvolvido, imoral, incivilizado e assim por diante. Quanto à Assistência Social, Teixeira (2010) afirma que a instalação de uma política de proteção social no Brasil também se deu nesta lógica de discriminação e doutrinação. Atualmente a estrutura familiar burguesa ainda permanece como ideal a ser atingido por grande parte da população, sem ser questionado, até mesmo entre psicólogos e educadores, pois é tido como natural, conforme afirma Szymanski (2004a, p. 7): A forte pressão em direção ao modelo nuclear, com sua estrutura e organização patriarcal mantida na perspectiva essencialista, tem o sentido de integrar a família em um arranjo social que atende a interesses mais amplos da sociedade e da cultura. Qualquer 15 mudança nessa instituição de base – que tem a missão de ser a primeira agência socializadora a transmitir cultura para as gerações mais jovens – acaba por atingir as demais instituições e ameaçar uma ordem social interessada em manter o status quo. Há um descompasso entre a realidade das famílias brasileiras e o ideal de família burguesa (SZYMANSKI, 2004b) e apesar de hoje serem discutidas novas configurações familiares, estas sempre existiram (TEIXEIRA, 2010). O modelo de família burguesa é o modelo do opressor e quando é perseguido, desapropria as famílias de seu poder-ser, estas voltam seus esforços a cumprir com um ideal único, ignorando qualquer outra possibilidade de viver, como aponta Szymanski (2004b, p. 9): Os efeitos da discriminação social tiveram como resultado práticas educativas defensivas, no sentido de desenvolver um processo identitário na negatividade ou medo de serem alvo de discriminação, o que levou os pais a adotarem práticas violentas para evitar que os filhos se tornassem “marginais”. Após transformações políticas e econômicas, a partir da constituição de 1988, começa um avanço no campo da proteção social no Brasil. O Estado de Bem-Estar Social teve como parâmetros a descentralização e a expansão da atuação estatal, com vistas à universalização (FRANZESE e ABRUCIO, 2009). Esta mudança, que ocorre tardiamente no Brasil (TEIXEIRA, 2010, SPOSATI, 2011 e DE CARVALHO, 2011), dá origem ao Sistema Único de Saúde e mais tarde ao Sistema Único de Assistência Social. Iniciava-se um novo paradigma de gestão participativa recebendo a família, centralidade nas políticas públicas de proteção social, sendo considerada a base fundadora da sociedade (TEIXEIRA, 2010). Por um lado, dada sua importância nesta concepção, a família deve ser objeto de cuidado do Estado, mas por outro, é “convidada a participar” desta proteção, recebendo assim “novos” encargos. A responsabilização da família no paradigma atual pode ter o sentido de fortalecer a busca por sua autonomia em seu cuidar de si, pode também ter o sentido de favorecer a organização social para transformar as condições opressivas em que vivem. Porém, como veremos no capítulo 3, Revisão Bibliográfica, este “repasse”, tem oferecido um sentido deficiente às famílias que, além de representar uma desresponsabilização do Estado (RIBEIRO, 2009) no que diz respeito à garantia de suas necessidades e direitos, está longe de 16 apresentá-las a si mesmas, mobilizando-as para o autocuidado, emancipação e transformação social. 3. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA 3.1. Contextualização Este trabalho tinha a pretensão inicial de realizar um levantamento bibliográfico sobre trabalhos que investigassem a formação de multiplicadores para o trabalho com famílias. Mecanismos de busca eletrônicos foram explorados por longos períodos, utilizando-se das palavras-chave “multiplicadores” e “trabalho com famílias” ou “multiplicadores” e “famílias” ou ainda “multiplicadores” e “comunidade”, no entanto, houve dificuldade em encontrar tais pesquisas, que quando escassamente eram encontradas, tratavam de formações com populações específicas, como crianças, ou enfermeiros, para atividades igualmente especializadas, como por exemplo, o cuidado dentário ou a formação para o tratamento da hanseníase, além do fato de que a concentração destes trabalhos se dava, basicamente, na área de enfermagem. Era pretendido encontrar pesquisas que tivessem como tema não apenas uma experiência de formação, mas que esta se focalizasse na atenção às famílias de baixa renda. Não era possível utilizar pesquisas sobre graduação de profissionais, pois a equipe de multiplicadores trabalha e mora no mesmo bairro, ou bairros vizinhos, tendo uma relação muito próxima com a população. Para embasar este trabalho,também havia sido previamente planejado que seriam analisados artigos que versassem sobre a experiência de educandos que participaram de uma formação para o trabalho com famílias. Foi realizada uma nova pesquisa empregando-se as palavras chave “formação”, "trabalhar com familias" e o conteúdo encontrado era, em sua maioria, sobre a formação de Agentes Comunitários de Saúde (ACS). Além disso, também tentou-se encontrar trabalhos na área da assistência social, buscando por “Agente de Proteção Social” e “formação”, “Orientador Socioeducativo” e “formação” ou ainda apenas os termos isolados que designassem o cargo do profissional de nível técnico do SUAS. Nesta tentativa, não foram encontrados trabalhos com foco em atendimento de famílias nas ferramentas do Google Acadêmico e Scielo. 17 A escolha por compreender a prática e formação dos ACS se deu em razão de características similares entre as atribuições específicas da prática dos ACS e as ações do grupo de multiplicadores, tais como trabalhar com famílias em base geográfica definida, orientar as famílias quanto à utilização dos serviços de saúde disponíveis, atenção à demanda espontânea, desenvolver atividades de promoção da saúde, por meio de ações educativas individuais e coletivas na comunidade, estar em contato permanente com as famílias, desenvolvendo ações educativas, visando à promoção da saúde (BRASIL, 2011). Além disso, os ACS devem passar por uma formação para o trabalho com famílias e é preconizado que compartilhem seu saber. O cuidado com o outro fundamenta seu trabalho e tanto os ACS quanto os multiplicadores trabalham na comunidade onde vivem. 3.2. O cotidiano do Agente Comunitário de Saúde no trabalho com famílias Os agentes comunitários fazem parte da Estratégia de Saúde da Família e recebem uma capacitação para se inserir neste modelo de atenção. Ao ACS é conferida a responsabilidade de criar um elo entre a população à qual atende com a rede de saúde circundante, facilitando a co-responsabilidade das famílias nos cuidados com sua saúde, como encontrado na Cartilha “Entendendo o SUS”: O ACS mora na comunidade em que atua e é um personagem- chave do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (Pacs), vinculado à Unidade de Saúde da Família (USF). Ele liga a equipe à comunidade, destacando-se pela comunicação com as pessoas e pela liderança natural. É um elo cultural do SUS com a população e seu contato permanente com as famílias facilita o trabalho de vigilância e promoção da saúde. (BRASIL, 2006, p. 18) Com base na leitura de diversas pesquisas que exploram, por meio de entrevistas com ACS, a formação e os aspectos do cotidiano de trabalho, observa-se uma discrepância entre os desafios do dia a dia e a formação para o trabalho. As prerrogativas governamentais delegam grande quota de responsabilidade sobre os ACS, atribuindo-lhes, a função de agentes de transformação social, porém, a capacitação oferecida, não os prepara para cumprir tais funções, pois não fornece conhecimentos e competências necessárias para trabalhar em conjunto com a população atendida (SCHIMIDEL, 18 2009). Nunes et al. (2002) observam que ao mesmo tempo em que ao ACS é designada a responsabilidade de facilitar a autonomia da população perante aos cuidados com a saúde, sua própria autonomia de trabalho é restringida pela equipe à qual responde, sendo incumbido de orientar a população para a adoção de hábitos e comportamentos saudáveis, segundo as prescrições médicas. No entanto, Malfitano e Lopes (2009) e Pupin e Cardoso (2008) afirmam que as demandas que chegam ao ACS não se restringem às ações de saúde, mas que estes profissionais são tomados por seus vizinhos como uma ponte para a solução de demandas de ações sociais básicas, por estarem ligados ao serviço público. De acordo com Pupin e Cardoso (2008), a prática dos ACS baseia-se, predominantemente, no saber biomédico, caracterizada por uma concepção assistencialista, na qual se utilizam de estratégias educativas verticais, transmitindo técnicas em saúde para assimilação da população, ou oferecendo respostas às dúvidas dos atendidos. O viés biomédico do trabalho, segundo Nunes et al. (2002), suscita resistência e rejeição das famílias às práticas do ACS, revelando a dificuldade de diálogo entre o saber médico, os profissionais e a cultura da população. Nunes et al. (2002) relatam que parte dos ACS entrevistados em sua pesquisa sentia-se inconformada com a “desobediência” da população, que insistia em não seguir as recomendações médicas. Observa-se que o cuidado oferecido às famílias não parte das necessidades que apresentam, mas sim de um ideal acerca do que precisam. Martins; Veríssimo e Oliveira (2008, p. 113), afirmam: Embora o PSF tenha sido proposto como uma nova metodologia assistencial, as atividades educativas ainda são predominantemente impositivas, chegando às vezes ao autoritarismo, restringindo-se as possibilidades de conversa com exposição e confrontação de valores, como tradicionalmente ocorre na assistência biomédica. Nascimento e Correa (2008) afirmam que, além da capacitação técnica, é a capacidade criativa dos ACS, pela iniciativa própria e pelo improviso, que formam a base para execução de seu trabalho. Nunes et al (2002), Marzari; Junges; Selli (2011), Nascimento e Correa (2008) e Ferraz e Aerts (2005) compreendem que o treinamento dos ACS deve capacitá-los para ir além da perspectiva biomédica, 19 possibilitando uma melhor interação com as famílias, reconhecendo e legitimando suas necessidades, conforme se apresentam, de maneira contextualizada, por meio de uma abordagem que priorize a reflexão. Os autores também apontam que é de grande importância capacitar os profissionais para o reconhecimento de características peculiares à comunidade, tais como fatores culturais e religiosos, ou temas ligados à sexualidade, facilitando assim uma melhor articulação e o diálogo entre os saberes técnicos e populares. Apesar da ênfase no saber médico com que realizam seu trabalho, a vulnerabilidade da população não passa despercebida e os ACS assumem, grande quota de responsabilidade perante a população (MARZARI; JUNGES; SELLI, 2011), o que de um lado representaria a eficácia desta abordagem, mas por outro, também revela a insuficiência de sua formação quanto à possibilidade de refletirem sobre o próprio trabalho, não lhes permitindo reorientar sua prática, o que pode lhes proporcionar grande quota de sofrimento. Martines e Chaves (2007), Pupin e Cardoso (2008) e Jardim e Lancman (2009) apresentam experiências de idealização e angústia dos ACS na realização de seu trabalho, quando assumem a missão de transformação da comunidade como exclusivamente sua e ao mesmo tempo, vivenciam a frustração da impossibilidade de concretização desta tarefa. Os ACS observados por Pupin e Cardoso (2008) sentiam-se em uma posição de destaque e autoridade na comunidade, confirmadas a eles por incessantes solicitações dos moradores e seus discursos sobre os ACS, tais como “anjo da guarda” e “salvador da pátria”. Os ACS compreendiam a dependência da comunidade com relação ao seu trabalho como algo positivo, pois confirmaria a apreciação da população por sua atuação. A população atendida por estes profissionais foi apresentada como descomprometida e passiva, o que significava aos ACS sua “imprescindibilidade”. Segundo Jardim e Lancman (2009) a prática com base no modelo centralizador e assistencialista, pode diluir fronteiras profissionais e pessoais entre os ACS e a população que atendem. Observaram que os ACS passaram a ser procurados para resolverem os problemas dos moradores fora do horário de trabalho e em qualquer lugar, como por exemplo, o mercado e até mesmo em suas casas, recebendo inclusive, ameaças da população diante de falhas do sistema de saúde: 20 A gente não devia morar nacomunidade. Tranco meu filho, me tranco com medo. (...) O povo da favela quer matar o ACS porque o paciente morreu esperando a consulta. Imaginou isso, tenho filho que estuda na mesma escola que os filhos deles! (JARDIM e LANCMAN, 2009, p. 129) Pupin e Cardoso (2008), Jardim e Lancman (2009) compreendem que tal situação pode ser de difícil manejo e desconstrução, uma vez que a comunidade se acostumaria com o “heroísmo” dos ACS. Destaca-se na leitura destas pesquisas o lugar confuso em que, muitas vezes, o ACS está. Quanto a formação dos ACS, é possível perceber que esta caracteriza-se pelo modelo bancário exposto por Freire (1987) que verticaliza as relações entre formadores, equipe médica, agente comunitário e as famílias atendidas. A ausência da perspectiva dialógica terá reflexo direto sobre sua atuação, criando conflitos com os valores e princípios com as famílias a que atendem. A pressuposta liderança atribuída aos ACS, não é de forma alguma natural, mas sim, “eleita” pelas pessoas que veem no agente uma possibilidade de melhorar sua condição de vida e este, por sua vez, aceita este status, encarnando o papel de herói da comunidade, mas não conseguindo colocar-se como facilitador da autonomia da população. A comunicação com as pessoas se mostrou problemática para os ACS. A formação conteudista inviabiliza que os ACS problematizem sua realidade e desconsidera as premissas de transformação social sob as quais atuam, Duarte, Silva e Cardoso (2007), afirmam não terem observado nos discursos dos ACS entrevistados em sua pesquisa, atitudes que visassem à transformação de fatores determinantes da saúde, como por exemplo, emprego e saneamento, apesar destes serem apontados como fonte de preocupação dos ACS para com a comunidade. O modelo de trabalho dos ACS os responsabiliza para cuidar das famílias, mas esta responsabilidade não é compartilhada, sendo centralizada nas mãos do ACS. Segundo Heidegger (1981), este é um dos modos deficientes de cuidado, pois substitui o outro em suas possibilidades de cuidar de si. Parte-se de uma perspectiva opressora, da adaptação ao modelo “certo” desconsiderando as singularidades de cada família, visando a uniformidade e padronização. A técnica chega pronta para agentes e famílias, impossibilitando a autonomia comunitária 21 diante da própria demanda. Freitas e Mesquita (2011), afirmam que o cuidado de famílias não pode orientar-se por generalizações quanto a um modelo de família, mas de acordo com as particularidades que lhes são plurais. Observamos um alto investimento pessoal no trabalho do ACS com a comunidade, no entanto, a formação conteudista e orientação assistencialista impedem a organização social, além de colocá-los, literalmente, em conflito com as populações atendidas. Os sentidos de sua atuação não podem ser transformados, pois pautam-se em um modelo dado e pronto. Sua práxis é inviabilizada e apesar de perceberem a vulnerabilidade da população, não possuem suporte para lidar com esta demanda. Na perspectiva da educação popular, fortemente influenciada por Paulo Freire, observa-se outro modo de cuidar e outro sentido para as práticas voltadas às famílias. A educação popular pressupõe a conscientização sobre a realidade vivida pelos educandos, partindo-se dela para o saber sistematizado, elevando este a novos níveis de compreensão por meio da criticidade e retornando-se à realidade para transformá-la, dialeticamente, em um movimento contínuo (OLIVEIRA, 2009). O modo dialógico de educação, tendo seu compromisso com as classes populares, requer das formações baseadas na técnica, uma reformulação de conceitos e reorientação de práticas, possibilitando o diálogo entre o saber formal, e o saber popular (RIBEIRO, 2009). Se está-com-o-outro na revelação dos sentidos de seu cuidar, possibilitando que este se pronuncie, se aproprie e se direcione para o que lhe convoca cuidar, do modo que lhe for conveniente. Dessa forma, pode ser considerado autêntico, na definição de Heidegger (1981), pois apresenta o outro a si, tornando-o parte na construção do conhecimento. Antes de chegarmos aos sentidos da formação para os multiplicadores, faz-se imprescindível incluir o contexto da Vila Horizonte nesta pesquisa. Seguiremos, no próximo capítulo, para a exploração de um recorte de sua história, bem como da formação de multiplicadores. 22 4. APRESENTAÇÃO DO CONTEXTO DA PESQUISA 4.1. Histórico da Vila Horizonte A Comunidade Vila Horizonte começou a surgir em 1987, a partir da ocupação de um terreno particular, por pessoas que, em maioria, haviam sido despejadas de outras regiões da cidade de São Paulo (WALCKOFF, 2009). O matagal que existia no local, aos poucos foi tomando forma para abrigar os novos moradores, que, literalmente, começaram a comunidade do zero, pois ali não havia condição básica alguma de moradia. Vinte e cinco anos depois é um bairro que conta com Associação de Moradores, instituições educacionais, saneamento, eletricidade, ruas asfaltadas e linhas de ônibus. Tudo que existe hoje no local foi conquistado com muito esforço conjunto dos moradores, enfrentando toda sorte de obstáculos, desde dificuldades econômicas, a ausência de apoio governamental e conflitos com criminosos, como relata Pedro, um líder comunitário, em entrevista a Ferraz (2011, p. 23): Eles matavam o pessoal na beira desses córregos aí. Eu ficava impressionado, a violência e a água, a energia também, porque era tudo clandestino. Mas o que me impressionava muito era a violência, como que [isso pode ocorrer] tão perto da cidade, há 20 km da Praça da Sé. Eu falava assim, não é possível. Depois a prefeitura colocou uma pipa [...] o pessoal não pagava e a prefeitura cortou e foi ligado de modo clandestino [...] A história da Vila Horizonte revela condições de vida de extrema vulnerabilidade, mas também lutas, superação, coragem e cooperação dos moradores, demonstrando sua alta capacidade de resiliência, necessária para consolidar esta comunidade, como aponta o relato de uma das moradoras entrevistadas por Walckoff (2009, p. 3): (...) achar um meio de água boa, foi até pra Sabesp, fizeram testes tudo, a gente podia beber dessa água, cozinhar dessa água, (...) Porque eu saí de terreno em terreno arrecadando tijolo, um pouco de cimento, um pouquinho de areia e consegui fazer uma caixa pra poder a água ficar ali e a gente pegar com balde, aí pusemos madeira em cima e com a caneca a gente enchia os balde né? (...) E eu ficava de prontidão em cima da pedra, com um facão (para proteger a água) e todo mundo me chamava de “a mulher do facão”. A violência era algo muito comum na Vila Horizonte e não faltam histórias espantosas a este respeito. Havia disputas entre grileiros, gangues e os 23 moradores tinham muito medo, tiroteios ocorriam a qualquer hora do dia ou noite, como relata o já mencionado líder comunitário, Pedro,“Era um grupo atirando no outro e eu estava no meio. Corri para dentro de um barraco de madeira e deitei no chão. Os grupos se confrontavam abertamente” (FERRAZ, 2011, p. 24). Havia toque de recolher para os moradores. Para os jovens poderem estudar à noite, tinham de ser escoltados por moradores corajosos. Há muitos exemplos dessa bravura ao longo dessa história, em que “pessoas comuns” arriscaram sua vida para proteger aquilo que estavam construindo. Até mesmo formar comissões e lideranças para continuar esta luta pela cidadania era difícil. Após a saída de um dos padres, alguns membros dessas comissões tiveram suas casas queimadas por criminosos. Pedro fez a escolha de estabelecer residência na Vila Horizonte, para honrar seu compromisso com os moradores e abandonou o seminário para se tornar padre, continuando a mobilizar a organização dos moradores. Após a luta pela água, precisavam garantir a distribuição de energia elétrica, e aí encontraramum grande obstáculo. A Eletropaulo não os supriria caso a irregularidade das moradias não fosse sanada, e para tanto, precisariam comprar 62.000 metros quadrados de terreno, correspondente à área que as famílias ocupavam. De acordo com Xavier (2009, p. 12), a partir do enfrentamento destas dificuldades a união e organização entre os moradores se fortalecia: Dessa forma, no ano de 1991, criou-se uma associação de moradores de bairro, como estratégia para busca de melhorias para uma ocupação irregular que, pouco a pouco, tornava-se uma grande comunidade. O angariamento da renda entre os moradores para a compra e regularização das terras por eles habitadas seria impossível sem perseverança e colaboração coletiva e esta empreitada se consolidou no ano 2000, quando as terras foram quitadas e deram origem ao Conjunto Residencial Vila Horizonte, possibilitando-os também a ter sua energia elétrica regularizada. A criação de um CEI (Centro de Educação Infantil) se iniciou em 1992, representando outra luta comunitária para cuidar de necessidades emergenciais. Nesta época, não havia instituições que pudessem cuidar das crianças enquanto as mães trabalhavam e duas crianças morreram em um incêndio, presas em casa. Articulados com instituições religiosas e não governamentais da Itália, os 24 moradores em sistema de mutirão, construíram e fundaram o que na época chamavam de creche. Após inaugurada, novamente foi preciso muito esforço para mantê-la em funcionamento, pois naquele momento, além da falta de recursos financeiros, água e luz eram clandestinas. A creche chegou a ser fechada um ano após a abertura e sob o risco de perderem o espaço construído, alguns moradores que antes ali trabalharam, ocuparam-na novamente, e, através de parcerias e um convênio com a Prefeitura, conseguiram estruturá-la para atender melhor as crianças (WALCKOFF, 2009; FERRAZ, 2011). Em 1993, iniciou-se o envolvimento de Heloísa Szymanski com as lideranças da Vila Horizonte, para realizar grupos de discussão com os moradores sobre o tema “família”. Em 1994, novamente, a pesquisadora foi chamada para colaborar com o desenvolvimento do Projeto Pedagógico do CEI, a fim de adequarem-se às solicitações da prefeitura. Muitos trabalhos acadêmicos foram desenvolvidos na comunidade desde então, em parceria com moradores e instituições do bairro, até configurar-se o grupo de pesquisa ECOFAM. Heloísa (apud WALCKOFF, 2009, p. 13), explica a origem do ECOFAM: Então, o Ecofam teve desde o início esse duplo interesse que era de lócus de pesquisa, formação de pesquisadores e prestação de serviço. É uma atividade de extensão pura da universidade, porque as pessoas sabem que tudo que a gente faz lá tem um respaldo de pesquisa, mas eles esquecem isso e nos veem como pessoas parceiras nos projetos delas. O grupo de pesquisa atuava com os educadores da creche e com as famílias da comunidade, acompanhava as demandas apresentadas por estes, pautando-se em seguir o movimento que indicavam, de acordo com seus princípios dialógicos. Grupos reflexivos eram realizados com famílias da comunidade e os temas eram definidos conforme as necessidades expressas pelos participantes. Walckoff (2009), afirma que o abuso sexual, a forma de educar os filhos e a possibilidade de educar sem o uso de violência, eram desde o início, os temas mais recorrentes nestas solicitações. A partir do ano de 2007, o grupo de educadores já fazia solicitações por novos horários para realização dos encontros reflexivos. Ocorria uma oscilação no número de participantes dos grupos e solicitações de mudança de horário eram feitas por eles. Porém, na época, não era possível ao ECOFAM estender 25 sua participação na comunidade. Ao mesmo tempo, as lideranças comunitárias, em uma tentativa de manter o “espírito” da comunidade2, estimulavam a busca dos educadores por maior mobilização coletiva (TERAHATA, 2008). No final do ano de 2010, foi sugerido pelo Grupo ECOFAM que se realizasse uma formação para os educadores que desejavam trabalhar com famílias. A proposta foi ao encontro da necessidade percebida pelos educadores e assim começou a ser pensado o Projeto de Formação de Multiplicadores para o trabalho com famílias. Detalharemos a seguir o PFM, em seus objetivos, bem como os principais pressupostos metodológicos que sustentam suas práticas. 4.2. O Projeto de Formação de Multiplicadores 4.2.1. Os pressupostos da Formação de Multiplicadores O Projeto de Formação de Multiplicadores (PFM3) se insere no projeto principal do Grupo de Pesquisa ECOFAM: O Projeto Articulação e Diálogo, e teve seu início em julho de 2011. Este projeto tem como objetivos gerais: compreender o processo construtivo de propostas articuladas entre dois ou mais contextos educativos formais e informais (famílias) que envolvam a adoção de práticas dialógicas por parte de educadores e famílias ao longo de um projeto de intervenção participativa, bem como pesquisar possibilidades, obstáculos e caminhos apontados para a articulação entre instituições educativas, com vistas a contribuir com políticas públicas em Educação. Pautando-se na perspectiva fenomenológica existencial e na prática dialógica de Paulo Freire, o ECOFAM elaborou e desenvolveu um Projeto de Formação de Multiplicadores em conjunto com os participantes, assim como propõe Freire (1987, p. 48): “A educação autêntica, repitamos, não se faz de “A” para “B” ou de “A” sobre “B”, mas de “A” com “B”, mediatizados pelo mundo.”. Outros objetivos do projeto Articulação e Diálogo são a compreensão do processo de articulação entre PUC/ECOFAM e Associação de Moradores da Vila Horizonte na realização do PFM e a investigação sobre como as práticas de 2 Website do Instituto Vila Horizonte. 3 Projeto de Formação de Multiplicadores será mencionado pela sigla PFM daqui em diante. 26 encontros reflexivos, entrevistas reflexivas e o projeto de formação em si, são compreendidos pelos participantes. A intervenção educativa se estendeu ao longo de dois anos, oferecendo aprimoramento teórico e profissional para o trabalho com famílias, apreensão da perspectiva dialógica no desenvolvimento do trabalho com as famílias e na educação das crianças, facilitando o intercâmbio com os recursos, conhecimento formal e oportunidades culturais com a PUC/SP. O caráter de multiplicação que se encontra no título do projeto diz respeito ao compartilhamento da prática dialógica. Diferentemente de defender a transmissão de uma técnica, o curso foi concebido para a conscientização de uma práxis. Este termo é empregado em sua definição por Freire (1987, p. 11): A palavra é entendida, aqui, como palavra e ação; não é o termo que assinala arbitrariamente um pensamento que, por sua vez, discorre separado da existência. É significação produzida pela “práxis”, palavra cuja discursividade flui da historicidade – palavra viva e dinâmica, não categoria inerte, exâmine. Palavra que diz e transforma o mundo. Freire (1987) se refere à imprescindibilidade da ação humana estar dialeticamente alinhada com a reflexão e vice versa, em um incessante movimento de criação modificando-se mutuamente, rumo à interminável humanização. Este é o caminho que o PFM se propõe a trilhar. O mundo da vida, não é propriedade exclusiva de alguém, mas colaborativamente construído pelas pessoas, no diálogo dos homens uns com os outros. É esta postura de abertura, horizontalidade, reflexão e ação que se almejava construir com o Projeto de Formação de Multiplicadores. Será apresentada a seguir uma descrição dos quatro semestres do curso, destacando os pontos mais significativos dos dois anos de curso do PFM. 4.3. Descrição da Formação de Multiplicadores A formação ocorreu ao longo de 24 meses, sendo iniciada em julho de 2011 e encerrada em junhode 2013. Foram realizados 41 encontros com os multiplicadores, destes, 21 ocorreram na Vila Horizonte e 20 na PUC/SP (Campus Monte Alegre), tendo sido destinados 9 encontros para o planejamento do curso 27 com os educadores, 8 aulas teórico-práticas, 24 encontros interventivos para o planejamento, realização e compreensão dos grupos com pais e mães da comunidade realizados pelo ECOFAM. 4.3.1. Síntese do 1º semestre (julho-novembro/2011) Foram realizados dez encontros com os multiplicadores ao longo do semestre, com duração média de 2,5 horas cada. O semestre de curso contou com 1 encontro teórico, 6 práticos e 3 de planejamento do curso. Nos dois grupos introdutórios do curso, o objetivo foi pensar, em conjunto com os educadores, a formação de multiplicadores. Houve presença de um grande número de educadores da Vila Horizonte, que relataram como expectativas iniciais para a formação um meio de adquirir uma base teórica para realizar os encontros com os pais. A formação era concebida como um curso conteudista que os ajudaria a transmitir conhecimento aos pais dos alunos. O número de crianças atendidas pelas instituições educacionais da Vila Horizonte era, aproximadamente, 200. A necessidade de formação foi enfatizada pelo ECOFAM a partir da percepção que os grupos reflexivos com pais favoreciam a troca de saberes e abriam a possibilidade de se colocar no lugar do outro. O grupo de educadores afirmou que havia uma grande demanda da comunidade, para a qual deveriam responder, pois segundo eles: “as famílias querem saber como lidar com suas dificuldades, precisam de apoio, trazem muitas perguntas” (Relatório Planejamento do curso, 27/07/11). As lideranças comunitárias presentes afirmaram que as famílias acreditavam no trabalho com as instituições e que a relação entre educandos e educadores era muito boa. Eles afirmaram que buscavam através do bom relacionamento com as crianças, melhorar a relação com as famílias. No encontro seguinte, lideranças da comunidade relatam que os educadores haviam sido divididos em três turmas para atender às necessidades da comunidade no que diz respeito a datas e horários dos grupos reflexivos com as famílias: quinta-feira à noite, sábado à tarde e domingo. A proposta dos educadores era se aproximar do maior número de famílias, ampliando seu 28 trabalho, procurando cobrir os horários possíveis à estas, delineando um esforço de aproximação intenso. Indagaram ao ECOFAM como deveriam se preparar, pois o próximo grupo reflexivo já havia sido marcado e seu tema definido, o qual realizariam por conta própria. Os educadores mostraram-se preocupados com o baixo número de pais que frequentava os grupos reflexivos, relatando que as famílias não viam sentido nos grupos da maneira que estes aconteciam. De acordo com um líder comunitário, um pai lhe disse que: “os encontros servem para desabafar e mais nada”. Formularam como hipótese para a baixa frequência dos pais nos grupos, a ausência de respostas para as dúvidas das famílias quanto a educação de seus filhos. Havia uma crítica à prática dialógica por parte dos educadores, que desejavam que a formação pudesse munir de conteúdos para transmitir aos pais e assim, aumentar a atratividade dos grupos para a maior quantidade de famílias possível. O grupo de educadores também havia decidido que não mais separaria homens e mulheres nos grupos de pais e que seria feita uma pesquisa com as famílias para verificar os melhores dias para reunião, de modo a garantir a presença do maior número de famílias. A questão dos educadores que marcou o encontrou foi: como atrair e fazer com que os pais frequentem os grupos. Também foi apresentada pelos educadores a possibilidade de realização de visitas domiciliares, como forma de conhecer e classificar os perfis de famílias da região. O ECOFAM retomou com os educadores o sentido original da formação e sua fundamentação dialógica, assim como a necessidade ética de realizar uma formação para trabalhar com pessoas. Após este encontro de planejamento da formação, que contou com a presença de nove interessados na formação, houve uma divisão do grupo e o número de interessados em realizá-la reduziu, pelo menos, à metade. Compreendeu-se, então, que as expectativas para o curso não se concretizaram, dada a diferença de paradigmas entre o modo dialógico e o conteudista. Do dia 05/09/2011 ao dia 03/10/2011, foram realizados seis encontros referentes ao planejamento, realização e análise dos grupos com pais (3 para pais e 3 para mães). Nestes encontros que faziam parte da formação, os educadores participaram pela primeira vez como multiplicadores. Apresentaram 29 dados e fatos sobre as demandas das famílias e do bairro. Colaboraram com o planejamento das atividades do grupo reflexivo e se dispuseram a preparar os materiais que seriam utilizados. Os educadores participaram dos grupos de pais e mães, de acordo com seu respectivo gênero, colaborando com sua própria experiência de vida, dentro da temática. Os multiplicadores também participaram dos encontros de análise dos grupos reflexivos em conjunto com o ECOFAM, colaborando com sua compreensão sobre os acontecimentos. Foi salientada a importância do sigilo e respeito ao outro. Cabe destacar que no grupo de mães foi mencionado como solução para um problema específico, um plantão para dúvidas educacionais, maior proximidade entre pais e educadores e a intermediação institucional entre escolas. 4.3.2. Síntese do 2º semestre (fevereiro - junho/2012) Foram realizados dez encontros com os multiplicadores ao longo do semestre, com duração média de 2,5 horas cada. O semestre de curso contou com 2 encontros teóricos, 6 práticos e 2 de planejamento. No início do semestre, novamente, foi apresentada a preocupação do grupo com relação à frequência das famílias nos grupos reflexivos e seu envolvimento na educação dos filhos. Indagavam: “Como o convite para participar dos encontros chega melhor às famílias?” “Como se comunicar melhor com as famílias?” “Por que os pais participam mais de um encontro do que dos outros?”. A quantidade de pessoas que frequentava os grupos era preocupante para os multiplicadores quando comparada ao número de pais que era atendido pelos serviços oferecidos pelas instituições comunitárias. O grupo levantou hipóteses a este respeito, compreendendo que pais teriam a expectativa de falar especificamente dos seus filhos nesses encontros, e que, ao virem que se tratava de um tema mais amplo, acabavam não voltando, e também, quanto a um possível desgaste da relação entre pais, educadores e coordenação. Colocou-se em discussão o modo de abordar os pais e a consideração pelos temas de interesse das famílias, de forma que os participantes conseguissem se enxergar e enxergar seus filhos. 30 Os educadores demonstraram interesse em organizar estatisticamente dados já recolhidos para descrever as famílias participantes de seus projetos. O apoio às famílias também foi compreendido na formação, como o conhecimento dos serviços de saúde, educação e serviço social da região, podendo contar também com parcerias existentes no bairro, como profissionais da área da saúde e educação para possíveis encaminhamentos. Em um momento posterior, os multiplicadores realizaram a pesquisa de recursos para encaminhamento das demandas familiares, criando uma página no serviço de mapas do Google, contendo informações quanto a localização de instituições de saúde, de ensino, além de psicólogos, fonoaudiólogos, dentistas etc. Foi apontada pelo ECOFAM, a necessidade de que os multiplicadores deveriam ter disponibilidade para conhecer as coisas a sua volta, as políticas públicas, o CRAS etc. Ao longo do semestre, os multiplicadores ressaltaram como significativa a compreensão da teoria através de exemplos práticos, afirmando se utilizar
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