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A ARTE DE EDUCAR: IMAGENS CECILIANAS SOBRE INFÂNCIA E EDUCAÇÃO PARA A DIVERSIDADE FERREIRA, Rosangela Veiga Júlio– UFJF rosangelaveigaferreira@yahoo.com.br ROCHA, Marlos Bessa Mendes da – UFJF marlosbessa@superig.com.br Eixo temático: 2. Intelectuais e pensamento educacional Categoria: Comunicação O texto se baseia na análise das contribuições da educadora Cecília Meireles no que se refere às discussões sobre infância e educação para a diversidade. Tais análises se centraram em alguns indícios deixados por Cecília Meireles em suas produções escritas, no período de junho de 1930 a janeiro de 1933, publicados no Diário de Notícias do Rio de Janeiro, então Distrito Federal, na página dedicada a Educação. Nesse acervo encontra-se cerca de 700 artigos, que estão arquivados na Biblioteca Nacional. 1 Em linhas gerais, pode-se dizer que no primeiro ano, a partir de junho de 1930, Cecília Meireles teve como objetivo marcar as posições ideológicas com as quais conduziria o trabalho. Os ideais da Escola Nova foram ressaltados em quase todos os assuntos. 2 Nesse ano percebemos, ainda, que o foco central dos textos foi a criança – tema principal do texto que ora desenvolvemos. No segundo ano, com a vitória da Revolução de 1930, as discussões ganharam uma vertente altamente política. Estas discussões alcançaram seu ápice com o lançamento do Manifesto dos Pioneiros, em 1932. O combate às idéias do então Ministro, Francisco Campos, principalmente no que tange a obrigatoriedade do ensino religioso permearam vários de seus comentários. Por ter consciência do campo de possibilidades no qual estava mergulhada, o discurso de Cecília Meireles apresentava temas variados que passam por discussões de infância, família, escola, política entre outros. Seu estilo combativo, comprometido e corajoso remete a um momento de lutas a favor de uma educação pública de qualidade e que atendesse a uma maioria da população. Movida por uma esperança 1 O corpus discursivo desta pesquisa foi estruturado a partir das crônicas escritas por Cecília Meireles. Esse acervo encontra-se arquivado na Biblioteca Nacional e parte dele foi publicado em 2001, por Leodegário Filho. Para melhor orientar o leitor ao fazer referência às crônicas, optamos por citar MEIRELES, Cecília, o título da crônica e a data da sua publicação. 2 Movimento que teve início na década de 1920 e que se consubstanciou nos anos de 1930 defendia, dentre outros ideais, o publicismo, a laicidade e a co-educação. 2 obstinada de que, através de sua atuação como jornalista, conseguiria atingir um número maior de pessoas, dizia-se embebida no gosto por essa aventura. Sentimento este que era, provavelmente, estimulado pelo poder de intervenção pública que as crônicas lhe permitiam. Isto porque, além da possibilidade de atingir o pensamento daqueles que dirigiam o país ou de definir uma identidade nacional, poderia interferir nos rumos políticos que a educação tomou. Noutras palavras, havia uma forte sensação da possibilidade de salvar o país pela via da educação. Em seus próprios termos nos diz que: “E será mesmo preciso salvá-lo? Ou nós estamos gastando a nossa vida por precipitação, sonhando uma coisa que virá a seu tempo, independente de nosso esforço, como alguém que tentasse fazer nascer o dia à meia-noite, por impaciência, por loucura, por uma paixão irrefreável de mais luz?” (MEIRELES, Cecília, 10 de outubro de 1933, apud LAMEGO, 1996, p. 234). Assim, tomando por base as crônicas jornalísticas, vislumbramos a possibilidade da emersão da verve educadora de Cecília Meireles, em especial no que concerne à nova visão sobre infância e educação para a diversidade, fundamentada a partir dos ideais da Escola Nova. A probabilidade de tentar compreender algumas dessas contribuições conduziu a estrutura desse estudo para a discussão do lugar ocupado pela criança nos debates educacionais de 1930. Ao fixar os limites desse texto, buscamos trabalhar com o tempo dos reflexos e refrações das idéias de Cecília Meireles. A concepção de infância e educação na diversidade O aroma de sensibilidades e compromissos cecilianos se constitui através da experiência reflexiva que coloca em ação um ideal: o de olhar para a infância do seu lugar de criança. Tal colocação refere-se a chama que traz o temor e a esperança de uma infância fugaz. Uma chama que luta por uma visão de criança como território de “linguagem”, em contraponto ao sentido etmológico do termo. 3 O que nos leva a pensar na concepção de infância defendida por Cecília Meireles é, certamente, o resultado do imbricamento de suas facetas de poeta, intelectual, educadora, jornalista... Seu olhar multifacetado nos permite compreender não “Isto ou Aquilo”, mas sim “Isto e Aquilo”. 4 3 O termo “infância em latim é in-fans, que significa sem linguagem. No interior da tradição metafísica ocidental, não ter linguagem significa não ter pensamento, não ter conhecimento, não ter racionalidade. Nesse sentido a criança é focalizada como um ser menor, alguém a ser adestrado, a ser moralizado, a ser educado. Alguém que na concepção de Santo Agostinho, é pecaminoso, que provém do pecado – pecado da união dos pais – e que em si mesmo deve ser considerado pecaminoso pelos seus desejos libidinosos, pois para Santo Agostinho, a racionalidade, como dom divino, não pertence à criança...” (GALZERANI, 2002, p. 57) 4Metáfora inspirada no poema Ou Isto ou Aquilo (MEIRELES, Cecília, 2002, s/p), 3 A pergunta que fica é a de qual ponto pode-se focar melhor as colocações de Cecília? Qual pode ser o interesse atual em compreender o lugar da criança, ocupado nos debates educacionais da década de 1930? Em 1930, Cecília vivenciou um cenário marcado por grandes aventuras sociais, políticas e culturais: a Revolução comandada por Getúlio Vargas. Nesta época, o país vivia politicamente um período de grande indecisão entre uma eleição altamente fraudulenta e a perspectiva de uma revolução, que tinha a pretensão de modernizar o país. Entretanto, o país estava dominado pelas oligarquias rurais e o desafio que se instaurava era o de passar de uma economia basicamente agrária para urbana. O contexto abrigava diferentes realidades sociais: de um lado havia um grande número de trabalhadores analfabetos, convivendo com uma classe média urbana crescente; de outro, uma elite aristocrática de origem rural. Nesse espaço se constituía um público que desejava reformas estruturais na sociedade, fato que levou à implementação de uma indústria cultural, através da ampliação da imprensa escrita. Nesse contexto de afirmação de uma modernidade civilizatória, apostar na capacidade individual dos sujeitos, independente das condições sociais de sua origem, fazia sentido. Dentre os intelectuais que atuaram neste período, destacamos o discurso da jornalista Cecília Meireles5. Cecília envolveu-se ativamente nos movimentos culturais de seu tempo. A poeta era partidária da Escola Nova e defendia, assim como Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira, uma educação pública, universal, obrigatória e laica6. Pode-se dizer que o lugar ocupado por Cecília Meireles no Movimento pela Escola Nova, especialmente durante os três anos que se seguiram à revolução de 1930 foi privilegiado, na medida em que lhe permitiu uma visão bastante alargada do panorama, muitas vezes conflitante, que se desenrolou nos meios intelectuais e políticos da década. A educadora destacava-se, no meio intelectual, por ser detentora de um saber especializado - a pedagogia-, sustentado pela Psicologia e pela Literatura. Foi nomeada, em 1935, professora de Literatura Luso-Brasileira e de Técnica e Crítica Literária, no Instituto de Educação do Rio de Janeiro, tendo ainda organizado a Primeira Biblioteca Infantil do país. Cecília Meireles, que deixou obras imortalizadas pelo texto escrito em poemas, possui uma faceta menos conhecida: a de 5 Em razão do significado que se atribui ao texto escrito, considerando o contexto de sua produção, optamos por atuar com base na visão de linguagem proposta pelo filósofo Ricoeur, que diz que o discurso não pode deixar de se referir a alguma coisa. Esse hermeneuta vê a instância do diálogo com objetividade: “só o discurso tem, não apenas o mundo, mas o outro, um interlocutor a quem se dirige”. (1989, p. 186). Dessa forma, a efetividade do discurso poderá atribuir um caráter profícuo à dimensão histórica da relação entre texto e mundo. 6 Cecília Meireles foi uma das 26 intelectuais do “Manifesto dos Pioneiros”, em 1932. Além deste envolvimento, teve a oportunidade de defender seus ideais ao atuar como jornalista no período de 1930 e 1933. 4 educadora, interessada pelas questões relativas à criança. A autora, ao que tudo indica, antes de fazer qualquer aliança com um movimento literário, firmou um compromisso político com os ideais da democracia, num ambiente fortemente marcado pela presença masculina. Os intelectuais, que assumem posição hegemônica desde o final da República Velha, no lugar dos antigos literatos, são aqueles portadores de conhecimentos especializados – os cientistas, médicos, psicólogos, jornalistas e educadores, preocupados com as questões sociais, que conhecem a “realidade” brasileira devendo para isso atuar no sentido de uma intervenção racional na construção de um projeto nacional, cuja condição lhes competiria. (PÈCAUT, 1990) Ao reconhecer e divulgar as contribuições da higiene, no sentido de aperfeiçoar e fazer a sociedade progredir, o especialista vai construindo argumentações que legitimam os discursos sobre a padronização através de testes de quociente intelectual. Trata-se de uma visão empirista de Ciência na qual é preciso medir e precisar ações. Assim como outros intelectuais da época, Cecília Meireles percebia que algo escapava a essa visão positivista: a infância.7 Nas palavras da educadora, a criança não pode(ia) ser aproveitada para tema de exploração, por parte dos que a enxergaram apenas como um assunto bom para explorar, - uma vez que está na moda... Essa obra de defesa enérgica, severa, clarividente -, tem de ser executada com firmeza e inflexibilidade por todos que sabem respeitar um ideal humano. Por todos que sabem o que significa o encanto deste século pela criança. Por todos que conhecem de que a qualidade são as vidas que se propuseram servi-la. (MEIRELES, Cecília, A criança. 4 de fevereiro de 1931) Cecília dizia que era preciso olhar com cuidado para as especificidades que constituem o universo infantil. Imbuídos desse olhar, ao estruturar a análise do corpus discursivo, percebemos que nos debates jornalísticos Cecília reiterava, sempre que possível, a importância de se respeitar o universo infantil, que a seu ver era ignorado pelos adultos. Nessas crônicas trazia à tona fatos do cotidiano vivenciados na família, na rua, na escola. Fazia comentários para que as dúvidas e especificidades da infância fossem ouvidas em toda a sua incompletude: 7 Anísio Teixeira apesar de não desconsiderar totalmente os testes de aferição, apresentou uma concepção própria de aplicação dos mesmos. Nas palavras de Nunes (2000), para Anísio “a diferença não poderia ser tratada a golpes de lógica e doutrina ou debaixo da ilusão de planos integrais e completos. Assumiu a intervenção sobre a diferença com a estratégia de uma ação diferenciada que, perseguindo o objetivo do melhor rendimento escolar possível, obedecesse às condições reais e à verificação que o levou a rever o ímpeto entusiástico (mas tumultuário e profundamente conservador) da crença na efetividade desses instrumentos avaliadores.” (p. 256) 5 A alma infantil, como aliás a alma humana, não se revela jamais completa e subitamente como uma janela que se abre deixando ver todo um cenário. Suas comunicações com o exterior – e até consigo mesma – se fazem veladamente, aos poucos, mediante detalhes de tão grande reserva que freqüentes vezes passam de todo despercebidos. (MEIRELES, Cecília, Os indícios da alma infantil. 18 de dezembro de 1930) Ao pensar na possibilidade germinativa das crônicas cecilianas, algumas questões se colocam para que possamos compreender a concepção de infância proposta neste estudo. A primeira se relaciona à perspectiva histórica a partir da qual pode ser pensada. Em linhas gerais, pode-se dizer que Ariès (1997) demonstrou a idéia de que a infância não tem muito mais que dois séculos de existência. Antes, casava-se logo que se atingia a puberdade, trabalhava-se logo que a robustez física permitia o exercício da produção nos campos, ou a aprendizagem nas oficinas, ia-se para a guerra assim que se pudesse desempenhar qualquer função militar, vivia-se no mundo dos adultos assim que se sobrevivesse às doenças e moléstias que dizimavam uma em cada duas crianças. Dessa forma, podemos perceber que, durante muito tempo, a infância foi considerada um elemento permanente da natureza humana. Seus estudos marcaram uma ruptura no que se refere à idéia de infância: ela é considerada uma construção histórica que se impõe no mundo ocidental, a partir do século XIV. Essa vertente histórica da idéia de infância nos remete a um segundo aspecto, o de que não existe uma única concepção de infância, com um desenvolvimento linear, progressivo. Essas concepções se apresentam de várias maneiras e estão diretamente relacionadas às classes sociais, bem como de acordo com o tempo e o espaço em que foram geradas. Os intelectuais da Educação Nova, que pensaram a construção da modernidade no Brasil – modernidade que pressupõe uma ruptura com o passado – buscaram romper com uma determinada concepção de infância, entendida como imperfeição do ser humano (adulto-pequeno), sem variações sociais. Trocaram essa concepção por uma outra, sustentáculo do projeto educacional e, conseqüentemente, de uma nova sociedade. A dimensão da construção de uma concepção de infância pelos intelectuais nos leva a mais uma questão: os formuladores de uma concepção de infância são, em sua maioria, os adultos. Dessa forma, pensar a infância pode ser buscar algumas evidências articuladas à família e, também, no mundo moderno, à escola. O projeto de construção do Brasil moderno, pela via da educação, elaborado por intelectuais, 6 tem seu foco central na criança, na medida em que será ela o homem do futuro, protagonista de uma nova sociedade. A escola moderna se constitui a partir de uma concepção de infância que não é a do adulto-pequeno. Sua base filosófica é o pensamento de Jean Jacques Rousseau, para quem a infância é uma etapa do desenvolvimento do homem, e, portanto, própria da natureza humana. Como uma etapa diversa da do adulto, segundo Rousseau, apresenta características, tais como: a falta de razão. A infância é a trajetória da ausência da razão até à razão adulta, bem como a capacidade de aprender. Esta concepção de infância como território de potencialidades está presente na obra Emílio, escrita em 1732, que reflete sobre a possibilidade do afastamento da criança do convívio social. Rousseau discute a possibilidade de a educação respeitar os ritmos de aprendizagem, para que seus potenciais possam aflorar. De acordo com os estudos de Galzerani (2002, p. 58): Esta concepção romântica de Rousseau tem também intensas ressonâncias na atualidade. Podemos flagrá-laem espaços educacionais da sociedade. Podemos localizá-la em nosso apego simbólico em relação à idéia de que a criança é espontânea, é feliz, é boa. Tais concepções persistentes contemporaneamente podem ser lidas como tentativas de assegurarmos a nós mesmos que, a despeito do caos que prepondera em nosso mundo adulto, podemos ser felizes. Isto porque desejamos acreditar que a criança é feliz, que outrora - num movimento de idealização do passado – nós já fomos felizes. E assim projetamos, nessa seqüência imagética romântica, nosso ideal de felicidade para o futuro, o qual é concebido de maneira desarticulada do próprio tempo presente, de nossas atuações neste presente. Cecília, a nosso ver, pode se aproximar de Rousseau à medida que percebe que a sociedade capitalista desumaniza o homem e a criança. No entanto, percebe uma pureza em padrões diferentes dos estabelecidos pela concepção de isolamento proposta por Rousseau. O significado do termo pureza, originário do latim puritate, é por alguns entendido como qualidade de puro; inocência; ingenuidade; estado de pureza e genuinidade. No entanto, a nosso ver, a pureza da infância a que Cecília Meireles se referia, pelo que se depreende de algumas de suas crônicas, tem a possibilidade de ser lida não como a criança idealizada como ser ingênuo, mas como um ser que se difere do adulto. Este já se enquadrou num mundo social, podendo perder a capacidade de criá-lo, recriá-lo ou ressignificá-lo. Para a educadora, a criança pode ser vista como alguém que deve ser respeitado como um outro em sua alteridade, no que é capaz de produzir como cultura. É a existência de um ser no mundo. A 7 educadora defendia a idéia de uma infância que pensa e, portanto, precisa ser ouvida e orientada com coerência e confiança, defendendo que: Quando nos aproximamos do mundo infantil, o primeiro cuidado que devemos ter é o de agir de tal modo, que entre nós e as crianças se estabeleça uma ponte de absoluta confiança, por onde possamos ir até elas, e elas, por sua vez, sejam capazes de vir até nós. (MEIRELES, Cecília, Nós e as crianças. 24 de outubro de 1930) Noutras palavras, a educadora via a criança não como um ser que pode ser moldado, mas como uma riqueza a preservar (MAGALDI, 2002). A jornalista Cecília Meireles enfatizava os perigos que uma visão de imposição de imagens projetadas poderia causar. A respeito das possíveis conseqüências desse excesso de tirania dos adultos nos dizia já nos primeiros meses de seu trabalho à frente da Página de Educação: E sobre essa vida que se concentra em si mesma, preparando-se para desabrochar, cai subitamente um dia a brusca autoridade dos homens já desencantados. Abrem à força os tontos olhos adormecidos em que fluíam as coisas desincorporadas, [...] reduzem a dimensão de todas as imagens queridas; arrancam a todas elas o perfume encantado que as imortalizava... (MEIRELES, Cecília, A imaginação deslumbrada. 14 de junho de 1930) Podemos dizer que o pensamento de Cecília se afasta de Rousseau, a partir da visão da criança como um ser que se encontra totalmente integrado na condição de humanidade. Para Cecília, a criança não pode ser vista como um adulto em miniatura, mas tampouco como um ser incompleto, pois, apesar da pouca idade, constrói seu próprio mundo e se vê como um ser nesse mundo. Como tal, é capaz de alternar cenas de pureza e ingenuidade, sem deixar de ter momentos de agressividade, resistência, humor, autonomia. Via a criança nas relações que estabelecia com o outro, ou seja, na relação com crianças e adultos em diferentes tempos e lugares sociais. Possibilita, dessa forma, uma visão de infância não linear, não etapista, não determinista, que num jogo enigmático oscila entre passado e presente de forma singular. Cecília esteve envolvida com a luta por uma infância feliz. Podemos afirmar que suas palavras não deixam dúvidas quanto a esta questão. Para a educadora, proporcionar condições para uma infância feliz podia significar amplo desenvolvimento ao país. Para atingir tal objetivo, Cecília não poupou esforços. De acordo com os estudos de Magaldi (2001), sobre a verve educadora e jornalística de Cecília, a autora assim se refere: “O estabelecimento de uma infância feliz, base do desenvolvimento harmonioso do indivíduo e, por extensão, de um ‘Brasil melhor’, foi sem dúvida, um 8 dos principais focos das mensagens educativas transmitidas através de seus textos jornalísticos.” (p.136) A possibilidade de a criança ser vista como uma massa a modelar que, na maioria das vezes, recebe uma chuva enorme de informações dos adultos, é percebida com tristeza por Cecília. A educadora apontava, como um dos principais fatores responsáveis pelo desrespeito à infância, a “incapacidade (dos adultos) de descer ao mundo infantil, de se transfigurar para entender a criança, de se recordar do seu passado pequenino, de tornar a sentir como outrora para saber como funciona a alma das crianças...” (MEIRELES, Cecília, O mundo dos adultos. 18 de setembro de 1930). A preocupação da educadora com a possível irreversibilidade das ações dos adultos nas crianças justificava o cuidado com a criança nas crônicas. Cecília achava que, se a infância fosse devastada, seria difícil fazer florir felicidade. As ações dos “adultos da escola” também não escapavam ao olhar atento da educadora. Suas colocações caminhavam desde a preocupação com o espaço físico, que precisava ser estruturado de forma a atender as especificidades da Escola Nova, até o papel dos diferentes atores na constituição desse novo espaço educacional. Dizia não ser supérfluo, naquele momento único da história do mundo, em que tudo se voltava para “a criança como para uma esperança imortal, e tudo a deseja servir, convenientemente, - que a arquitetura pedagógica, quer na parte propriamente de ambiente, quer na de utilização, esteja perfeitamente orientada nas suas intenções.” (MEIRELES, Cecília, Prédios escolares. 9 de dezembro de 1930) A poeta, jornalista e educadora tinha consciência de que seria de suma importância que se criassem frentes de atuação para que os professores pudessem ser informados sobre especificidades do pensamento da Escola Nova e, com isso, ampliassem sua formação. Uma dessas frentes se sustentou a partir da divulgação de conferências proferidas por educadores imbuídos do espírito da Escola Nova.8 Sabia que era muito 8 Cecília acreditava que os trabalhos realizados pelos educadores em diferentes instâncias deveriam ser divulgados ao maior número possível de professores. Preocupada com a pouca freqüência aos momentos que considerava como “fecunda sementeira de idéias”, Cecília levantou hipóteses sobre as possíveis ausências das normalistas, dizendo que por desinteresse não poderia ser, uma vez que se noticiam ações do professorado que apontam para o fato de que estão conscientes do movimento de mudança; também defendia a idéia de que a falta de tempo não seria desculpa para a presença pouco expressiva, sendo que se tratava de conferências proferidas num curto espaço de tempo. Envolvida por essas conjecturas, acaba se perguntando por que, então, as professoras não estavam presentes nas conferências. Responde dizendo que se esses momentos fossem enfadonhos ou não tratassem de questões cotidianas ela poderia até compreender. Como, a seu ver, não era questão de desinteresse, nem de tempo, nem de praticidade “seria interessante averiguar os motivos dessa ausência de disposição do nosso magistério para assistir a conferências, o que escandaliza sobremodo os estrangeiros, que nos visitam.” (MEIRELES, Cecília, Conferências pedagógicas. 14 de agosto de 1930). Para a jornalista talvez teria sido conveniente a aplicação de um inquérito, objetivando coletar sugestões de temas, ou seja, algo deveria ser feitopara 9 difícil ser professor naqueles tempos e que poucos estavam realmente envolvidos com os novos ideais educacionais. Em seus artigos opinativos não poupou comentários à escola e utilizou-se de uma extensa rede de referências teóricas para sustentar seus argumentos. 9 Sobre essa questão, Magaldi (2001) apresenta a seguinte colocação: Embora à escola fosse conferida uma responsabilidade fundamental na transformação das novas idéias em práticas educacionais, o diagnóstico da educadora era o de que a instituição não estaria, de maneira geral, preparada para sua missão. Preocupada com a assimilação, pelos professores, do pensamento renovado, indicava que aqueles que em seu tempo já se mostravam afinados com a nova orientação constituíam uma pequena minoria. (p. 136) A ação do espaço escolar em busca de uma insenção da perspectiva de amoldamento, foi discutida por Cecília ao afirmar que os educadores precisavam sentir a infância procurando captar as singularidades que abrigavam essa fase da vida. Tal movimento de compreensão deveria abrigar, na opinião da educadora, uma pureza de intenções que proíbe dizer: vai por este caminho! – tanto sabe que entre os que vêm e os que vão, pela terra, há sempre abismos tão grandes que todo o nosso amor não teria poder para os encher ou fechar. Os educadores quiseram ficar sendo, apenas, donos de uma infinita esperança. [...] A esperança de que a infância, nutrida unicamente de ideais desinteressados , não receber o veneno de nenhum egoísmo, o vício de nenhum preconceito, o mal de nenhum sistema, chegou a sua floração isenta de quaisquer algemas para se realizar de acordo com aquele destino que os cativeiros não prejudicaram. (MEIRELES, Cecília, A esperança dos educadores. 19 de outubro de 1930) (Grifo nosso) O educador, defendia Cecília, precisava ser um explorador de novos mundos espirituais. Cumpria-lhe possibilitar um espaço para a manifestação dos diferentes pensamentos na escola, despertando o gosto pelo novo, essa alegria das que tal quadro se modificasse. Mais uma vez a estratégia é a de mexer não só com quem deveria estar presente às palestras – no caso os profissionais da educação – como também com os responsáveis pela organização dos eventos. 9 Estiveram presentes em seus Comentários intelectuais de diversas nacionalidades, como: John Dewey, Kilpatric, Edouard Claparéde, Pierre Bovet, Adolphe Ferriére, Flaubert, Durkheim, Montaigne, Rousseau; Ovide Decroly, Maria Montessori, Pestalozzi, Fröebel, Freinet, Herbart, George Kerschensteiner; Jean Piaget, Eduardo Spranger, Oswald Spengler, Artus Perrelet, Ellen Key, Gabriela Mistral, Constâncio C. Vigil, Pierre Benoit, Mahatma Gandhi, Rabrindanath Tagore entre outros. Mme Artus Perrelet e Claparéde estabeleceram uma relação mais próxima com a cronista. “Claparéde esteve no Rio de janeiro em 1930, sob os auspícios da ABE e foi entrevistado pela cronista. Perrelet foi contratada pelo governo mineiro para ministrar conferências e cursos. Esteve no Rio em 1931 e naquela ocasião também foi entrevistada por Cecília. Helena Antipoff e outros nomes do cenário internacional acabaram por contribuir com o projeto da Página de Educação do matutino carioca. 10 descobertas, esse entusiasmo criador pela vida, essa satisfação de ser criatura, e esse bem de todos os dias se aperfeiçoar. Cecília citou Nietzsche ao dizer que o filósofo escreveu uma frase que exprime com clareza esse movimento de busca contínua que poderia sustentar as ações dos educadores. Trata-se de uma contínua passagem e transformação de ideais que vão mudando a face do mundo. Diz ele que o que achamos mau numa época são os restos desatualizados do que noutra foi considerado bom. Essa frase, ao mesmo tempo, envolve uma alta lição de tolerância pelos ideais já mortos e uma advertência pelos ideais que também morrerão. Falando nos resíduos de antigos apogeus, Nietzsche passa-nos diante dos olhos a fragilidade e a transitoriedade de cada grande inquietude, como nos antigos festins egípcios se usava fazer passar diante dos convivas um cadáver- para lembrar na hora florida o instante definitivo da morte. O educador precisa ter bem nítido esse conceito de duração das coisas e das idéias. E precisa adaptar-se a ele. Tanto melhor educador será quanto maior e mais fácil capacidade de adaptação demonstrar. O passado alimenta-nos de sugestões. Mas essas sugestões, atravessando o tempo se modificam. [...] Sua substância é a eternidade absoluta em que o poder criador palpita sustentando mundos e preparando mundos, com a largueza e a serenidade de uma energia que não se extingue e que sabe ser sempre a mesma, dentro de formas inesperadas e imprevisíveis. (MEIRELES, Cecília, A passagem dos ideais. 31 de janeiro de 1931) É disso que precisamos, segundo Cecília, de um educador que saiba ouvir seu aluno sendo uma criatura humana adaptada à ordem silenciosa da vida em marcha e que veja “com alegria desaparecer o vestígio da sua submissão no futuro que se construiu com alguma coisa do seu contente esforço.” (MEIRELES, Cecília, A atuação do professor moderno. 17 de janeiro de 1931), preenchendo com o ensino a sua função instrutiva, a sua finalidade preliminar, a escola tem a preencher com a educação a sua função educacional, a sua finalidade integral. Não é o bastante só instruir o homem, isto é, enriquecer a sua memória, para criar o homem integral; é preciso educá-lo, isto é, criar nele, por meio de métodos de orientação pedagógica, as novas disposições espirituais e corporais harmonizadas, os ritmos vitais propulsores de nosso ser, os hábitos do pensamento e da ação, que, todos contribuem para o alto ideal da educação humana. Cecília percebia que tanto nas famílias mais abastadas, como nas mais simples, a criança não era ouvida. Havia uma incompreensão dos problemas da infância. Preocupada com essa questão fazia inúmeras críticas: “um dos casos em que a riqueza tem efeitos mais perniciosos: acarreta a anulação da personalidade infantil, verdadeiramente sufocada pelo excesso de motivos que a ambientam, tolhendo-lhe a liberdade criadora.” (MEIRELES, Cecília, O interesse pela criança. 21 de dezembro de 1930). Já quanto às famílias menos privilegiadas financeiramente, a 11 educadora chamava atenção para a falta de cuidado. Em duas crônicas, escritas em tempos diferentes, destaca a “ausência de cultura, de higiene” (MEIRELES, Cecília, Círculos de pais e professores. 06 de novembro de 1931) que, a seu ver, favorecia a constituição de lares “mais miseráveis e mais infelizes” (MEIRELES, Cecília, O interesse pela criança. 21 de dezembro de 1930). Ambientes estes que influenciariam diretamente na formação emocional das crianças. Sobre essa preocupação de Cecília, trazemos as reflexões de Magaldi (2001, p. 139): A partir dessa constatação, a educadora sublinhava que famílias de qualquer condição social deveriam ser educadas de modo a sanarem os problemas mencionados, procurando ela mesma contribuir nesse processo. No caso das famílias dos segmentos dominantes, que integravam majoritariamente uma elite letrada, a educadora procurava atingi-las diretamente através de sua coluna. Já no caso das famílias de classes populares, sujeitas, com freqüência ao “mal da incultura”, Cecília indicava que o acesso das mesmas – através das mães, em especial - a informações sobre a melhor forma de educar seus filhos deveria se dar de outra forma. Não sendo possível um contato direto dessas famílias com suas palavras, a educadora contava com a intermediação de importantes parceiros em sua empreitada de educação da sociedade: os leitores e leitoras da Página de Educação. A luta de Cecília Meireles por um lugar para a criança nos debates educacionaisde 1930 possibilita, dessa forma, um repensar acerca da necessidade de se superar a visão da criança como um ser passível de homogeneização. Para tal, talvez, precisássemos vê-la como criança de um lugar constituído pela e na linguagem. Sobre essa questão Lopes (2005), nos diz que toda criança é criança de um lugar. Noutras palavras, há relevante ligação entre a produção da infância e a produção do lugar. De forma biunívoca, para cada criança do lugar existe também um lugar de criança: Um lugar social determinado pelo mundo adulto e que configura os limites da vivência da infância nesse lugar. Cada grupo social elabora dimensões culturais que tornam possível a emersão de uma subjetividade infantil relativa ao lugar. Cada ser é atravessado por essas dimensões, que lhe definem um lugar e uma condição social no espaço e no tempo. Por outro lado, toda criança é criança em algum lugar. Cada grupo social não só, mas também, designa a existência de locais no espaço físico que materializam a condição infantil. Nessa materialização, alguns fatores levam adultos, muitas vezes, a estabelecerem lugares de dominação/imposição sobre a infância. Na concepção de Cecília Meireles: O mal não está na infância. A criança é sempre uma vítima inocente. Também não está, propriamente, no adulto, que é uma resultante de vários fatores. Está nestes fatores. É só uma organização social que compreende com clareza que a educação 12 poderá transformar semelhante estado de coisas. (MEIRELES, Cecília, Desigualdades. 28 de dezembro de 1930) A educadora discutia a possibilidade de uma educação aberta ao nascimento, permitindo um repensar constante dos saberes que temos sobre a infância10. Dessa forma, uma criança pode ser vista como algo absolutamente novo que dissolve a solidez de nosso mundo e que suspende a certeza que nós temos de nós mesmos. Cecília diz “Eu gosto de ouvir as crianças conversando, porque elas são absolutamente como os poetas. Não conhecem obstáculos à sua imaginação.” (MEIRELES, Cecília, Como as crianças pensam. 24 de março de 1931). Cecília acreditava na doçura e leveza da “Pequena flor” que vê o vôo de borboletas, que ouve o canto suave de pássaros e que sente a vida do sol... Acreditava também na força produtiva do pensamento destes pequenos, que precisam ser orientados por mãos firmes, que não neguem suas especificidades. O caráter idiossincrático de seus versos e de suas crônicas talvez aponte para uma concepção de infância como singularidade que precisa ser respeitada. Dessa forma, projetar imagens num outro distante de nós pode significar que a realidade escape por entre nossos dedos. Olhar para uma criança, com certo estranhamento e distanciamento, possibilita uma visão de mundo marcada por um determinismo, centrado no olhar do adulto. De acordo com a educadora, a criança não representa uma marionete que pode ser movimentada de acordo com os desejos dos adultos. Trata-se de uma “criatura humana, com todas as forças e fraquezas, todas as possibilidades de evolução e involução inerentes à condição humana. Por isso mesmo, são condenáveis todas as atitudes que a rebaixem, ou que lhe estorvem o seu normal desenvolvimento.” (MEIRELES, Cecília, Ouvindo as crianças. 21 de novembro de 1930) Um olhar apenas passageiro... Ao pensar no olhar sensível de Cecília, ao movimento impulsionado pela infância na década de 1930, refletimos que, talvez, ela estivesse vendo que as crianças precisavam ocupar um lugar especial no cenário familiar e educacional, ser orientadas com coerência e sinceridade. Defende-se, aqui, a idéia de que a educadora, através do espaço jornalístico lutou por um lugar para a criança nos discursos educacionais da década de 1930. As crônicas de Cecília Meireles, analisadas neste trabalho, continuam abertas a novas interpretações. A necessidade de colocá-las como um olhar passageiro 10 Conforme estudos de Larrosa (1999). 13 decorre, de certa maneira, da coerência da própria poeta, que buscava uma educação aberta ao novo. Seu sonho de uma infância respeitada nas suas singularidades aponta para uma concepção de criança como território de potencialidades criadoras, percebendo-a, ainda, como um ser eivado de conflitos – um ser com/no mundo. Para a educadora, por mais que se penetrasse pela intuição no mundo inusitado da infância, dificilmente se conseguiria ser outra vez senhor do seu domínio. A infância é vista por Cecília como um enigma, uma forma própria de vida, com características inconfundíveis e singulares. Desse modo, ao mesmo tempo em que afasta qualquer tentativa de invasão do seu território, determina precisamente que atitude deve assumir os que desejam comunicar-se com ela: a de educar com arte na arte de educar. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARIÈS, Philippe. História Social da Infância e da Família . Rio de janeiro: Zahar Editora (Trad. Brasileira de L’Enfant et la Vie Familiale dans I’Ancien Regime, 1960), 1997. GALZERANI, Maria Carolina Bovério. Imagens Entrecruzadas de Infância e de Produção de Conhecimento Histórico em Walter Benjamin. In: FARIA, Ana Lúcia Goulart de; DEMARTINI, Zeila de Brito Fabri; PRADO, Patrícia Dias (Orgs). Por uma cultura da infância : metodologias de pesquisa com crianças. 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Rio de Janeiro: 7 Letras, 2002, p.60 - 80. MEIRELES, Cecília. Comentários. In: Página de Educação, Diário de Notícias, Rio de Janeiro, jun./1930 a jan./1933. ______. Ou isto ou aquilo . 6 ed. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002. 14 NUNES, Clarice. Anísio Teixeira : a poesia da ação. Bragança Paulista: SP: EDUSF, 2000. PÉCAUT, Daniel. Intelectuais e a política no Brasil : entre o povo e a nação. São Paulo: Ática, 1990. RICOEUR, Paul. Do texto à ação. Ensaios de hermenêutica II. Porto (Portugal): Rés-Editora, 1989.
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