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Autor: Prof. Gabriel Lohner Gróf Colaboradores: Prof. Vinícius Albuquerque Profa. Sonia de Deus Rodrigues Bercito Historiografia Geral Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Professor conteudista: Gabriel Lohner Gróf Gabriel Lohner Gróf, natural de São Paulo, é bacharel, licenciado e mestre em História Social pela Universidade de São Paulo – USP. Sua área de especialidade é a História Antiga da Mesopotâmia, com ênfase na invenção da escrita e organização administrativa e burocrática das sociedades do antigo Oriente Médio. Além das pesquisas acadêmicas realizadas na área citada, tem grande preocupação em estabelecer vínculos entre os conhecimentos acadêmicos e o grande público. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) G874h Gróf, Gabriel Lohner. Historiografia geral. / Gabriel Lohner Gróf. – São Paulo: Editora Sol, 2016. 160 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XXII, n. 2-035/16, ISSN 1517-9230. 1. Historiografia. 2. Método historiográfico. 3. História social. I. Título. CDU 93/99 XIX Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Aline Ricciardi Giovanna Oliveira Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Sumário Historiografia Geral APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................7 Unidade I 1 ASPECTOS FUNDAMENTAIS DA CIÊNCIA ............................................................................................... 14 1.1 O método científico ............................................................................................................................. 20 1.2 Ciências nomotéticas e ciências ideográficas ........................................................................... 21 1.3 Explicar ou compreender? ................................................................................................................ 25 1.4 Conceitos ................................................................................................................................................. 43 2 HISTÓRIA E OUTRAS CIÊNCIAS SOCIAIS ................................................................................................ 45 3 HISTÓRIA E MEMÓRIA ................................................................................................................................... 63 3.1 Objetos da memória ............................................................................................................................ 65 3.2 O documento histórico ...................................................................................................................... 74 4 MÉTODO HISTORIOGRÁFICO ....................................................................................................................... 81 4.1 Definição de método historiográfico ........................................................................................... 83 4.2 Historicismo ............................................................................................................................................ 86 4.3 História dos métodos da História .................................................................................................. 91 Unidade II 5 HISTÓRIA ECONÔMICA ................................................................................................................................. 96 5.1 Relações entre Economia e História ............................................................................................. 96 5.2 Antecedentes: materialismo histórico e Annales ..................................................................101 5.2.1 Materialismo histórico ........................................................................................................................104 5.2.2 Exposição dialética ...............................................................................................................................107 5.2.3 Marxismos ................................................................................................................................................109 5.3 Escola dos Annales .............................................................................................................................111 5.3.1 A problematização da História .........................................................................................................111 5.3.2 Níveis de temporalidade propostos por Braudel ...................................................................... 113 5.3.3 O debate sobre o desenvolvimento dos ciclos do capitalismo: Wallerstein e Arrighi ....................................................................................................................................... 114 6 HISTÓRIA SOCIAL ...........................................................................................................................................123 6.1 História das Mentalidades ..............................................................................................................128 6.2 A crítica pós-moderna à História Social e Econômica ........................................................130 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade III 7 HISTÓRIA CULTURAL ....................................................................................................................................142 8 CONCLUSÃO ....................................................................................................................................................147 7 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 APRESENTAÇÃO Este livro-texto destina-se aos alunos da disciplina Historiografia Geral. Nele serão discutidos aspectos importantes relacionados ao desenvolvimento da História enquanto ciência, das relações entre História e memória, o método historiográfico e as características fundamentais da História Econômica e Social e a Nova História. Em vez de apresentar uma mera história da Historiografia, é importante que o aluno conheçaas discussões geradas em torno do status do conhecimento histórico e historiográfico. A finalidade desse texto, portanto, é oferecer subsídios mínimos ao aluno para que ele seja introduzido às questões mencionadas. Ao final da disciplina, o discente deverá estar apto a reconhecer as distintas propostas historiográficas e distinguir um texto historiográfico de outros gêneros textuais que lidam com o resgate do passado. INTRODUÇÃO História: a fascinante ciência que estuda o passado. Eis aí uma frase muito comum, usada por muitos para se referir ao resgate do passado pelos historiadores, um mestre da arte da narrativa de eventos importantes e da vida de grandes personagens. Por mais que essa definição seja familiar a você, é hora de repensá-la sob muitos aspectos, inclusive com a questão fundamental: a História é uma ciência? Se sim, de que tipo? E mais: será que a História é somente o estudo do passado? O que significa reviver o que já passou? Vestígios arqueológicos demonstram que, há muito tempo, o ser humano revisita o passado com propósitos específicos. Entre os assírios, por exemplo, o poder real era justificado tanto pela sua linhagem como pelos seus feitos e, para isso, o passado era sempre invocado. Da mesma forma, os egípcios buscavam traçar as origens de seu império e os faraós, assim como seus vizinhos mesopotâmicos, buscavam traçar as origens de sua dinastia recuando até mesmo milênios no tempo. A Ilíada e a Odisseia, por mais que sejam reconhecidas como obras literárias, não deixam de fazer referências ao passado e eram amplamente usadas na formação do povo grego: todos conheciam os feitos de Aquiles, Odisseu, Agamenon e outros envolvidos na guerra contra Troia. “E como eles conseguiam saber o que tinha acontecido tanto tempo antes deles?” Eles, assim como nós, consultavam documentos ou faziam escavações arqueológicas? Alguns documentos recentes sugerem que os egípcios, por exemplo, realizavam algumas escavações, mas se o propósito era “arqueológico” ainda resta a dúvida. Os povos da Mesopotâmia tinham enormes arquivos de tabletes cuneiformes, mas os documentos não eram usados pelo seu valor histórico e sim administrativo: depois de certo tempo, eram descartados, o que temos disponível para estudo são documentos que perderam seu valor e foram excluídos. A Ilíada e a Odisseia, inicialmente, eram recitadas e o aedo – quem recitava essas poesias – as memorizava e passava adiante por gerações até que foram finalmente escritas no período clássico. Se esses povos revisitavam o passado, mas não o faziam por meio da consulta de documentos, como eles poderiam saber a verdade? A resposta é: que verdade? Será que essas sociedades tinham a necessidade que muitos de nós ainda temos de buscar uma verdade integral na História? Podemos responder aqui, grosso modo, que não. 8 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 No caso dos assírios, há uma velha memória estabelecida em torno deles de que eram um povo militarizado, cruel, responsável por devastar muitos reinos do Oriente Médio e submetê-los a pesadas tributações e deportações. Quem os desobedecesse era severamente punido. E como sabemos disso? Por meio de documentos como anais reais, listas dinásticas e os baixos-relevos nas paredes dos palácios assírios. Para um rei assírio, era absolutamente importante justificar seu poder recorrendo a uma “propaganda” de seus feitos, assim como consolidá-lo se vinculando a uma dinastia de reis poderosos. Mas o que garante que certos reis de fato realizaram tantas conquistas e que eram descendentes de grandes reis do passado? Nada: o que importava, nesse caso, era construir um discurso bem convincente e apresentá-lo à corte e aos seus inimigos políticos, sempre à espreita para tomar o poder. “Então eles mentiam?”, você pode perguntar. A resposta é difícil, pois mentir parece uma atitude deliberada como em “vou mentir”, “vou deliberadamente enganar pessoas”. Não era possível mentir totalmente, pois se alguém dissesse que conquistou o Egito e um viajante assírio fosse passar uma temporada em Tebas e ver que por lá ainda reinava o faraó, ele pensaria: “bom, meu governante é um mentiroso ou louco”. Além do mais, não é possível crer que os documentos que temos disponíveis sejam totalmente neutros. Por isso não é uma questão de verdade ou mentira, mas de construção. Contar a verdade total do passado foi um lema dos historiadores e que tinha sentido em seu tempo, frente à difusão de romances históricos que exaltavam as nacionalidades no século XIX, mas não se importavam tanto com a verossimilhança. A busca pela verdade é ainda mais antiga e remonta aos gregos. Xenofonte, um historiógrafo grego, procurou escrever sobre fatos históricos a partir de relatos de terceiros: Xenofonte (séc. V-IV a. C.) escreveu história ao narrar a vida do rei persa Ciro quase sem referências a evidências? A Ciropedia (A educação de Ciro) não teria sido apenas um texto literário ou biográfico, cujo autor teria tomado um personagem “real” como tema a ser narrado? Xenofonte se propõe a entender como Ciro conseguiu, com sua arte de governar, colocar sob seu domínio uma variedade de povos distantes de seu reino persa, deixando uma lição aos seus leitores de que tal tarefa era possível. Produz uma narrativa em que procura demonstrar elementos que justificariam as conquistas do rei persa: sua origem, sua educação, seu caráter, suas batalhas e outros acontecimentos de sua vida. Uma das poucas marcas explícitas que contribui para associarmos sua obra ao gênero historiográfico se resume a um rápido comentário que incorpora ao prefácio: “Narraremos o que dele ouvimos, e o que pudemos alcançar por investigação própria” (LIMA; CORDÃO, 2010, p. 2). Heródoto, autor da monumental obra História (que também pode ser vista como uma grande descrição etnográfica com passagens que narram o passado) procurou preservar a memória de feitos que ele considerava relevantes, mas de uma forma distinta da dos outros gêneros literários que, vez ou outra, revisitavam o passado. Ele se recusava a seguir o método de Xenofonte, segundo ele, um mero reprodutor de relatos pouco confiáveis. Heródoto considerava importante uma postura ativa diante dos vestígios disponíveis, fossem eles escritos ou orais: Heródoto procurou preservar do esquecimento os feitos que se passaram. Porém, não foram as Musas, as nove divindades filhas de Zeus e Mnémosine, 9 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 personificação da memória, quem lhe informaram o que dizer; ele próprio, Heródoto de Halicarnassos, foi quem promoveu suas investigações cujos resultados foram transformados em escrita. Promove todo um jogo comparativo entre as informações orais de diversos povos a que teve acesso, demonstrando uma preocupação em dizer a verdade, embora a considere inalcançável por conta da existência de uma vasta quantidade de opiniões sobre os atos humanos (LIMA; CORDÃO, 2010, p. 3). De fato, ele se comporta nesse caso como um historiador contemporâneo que deixou há tempos de deixar o documento “falar” por si próprio. Como afirmam Lima e Cordão Heródoto se preocupa em esclarecer que as versões das testemunhas dos feitos sobre os quais historia precisam da confirmação de seu “olho” para serem consideradas mais verossímeis. De um lado, se preocupa apenas em expor o que colheu de suas testemunhas: “Quanto a mim, meu objetivo ao longo de toda a obra é registrar tudo que me foi dito tal como ouvi de cada informante”. De outro, desconfia do que ouve: “em verdade, minha obrigação é expor o que se diz, mas não sou obrigado a acreditar em tudo (essa expressão deve aplicar-se a toda a minha obra)”, comentários que evidenciam sua intenção em construir umamemória dos feitos humanos respaldada numa prática investigativa que lhe poderia conferir um estatuto de verdade (LIMA; CORDÃO, 2010, p. 4). Heródoto, portanto, é um marco para a História e para a Historiografia. Em primeiro lugar, ele recusa os relatos orais sem antes julgá-los através de um criterioso método comparativo, evidenciando – até mesmo através de um termo forte, o de “obrigação” – uma postura completamente ativa frente aos vestígios que mobilizava. Em segundo lugar, ao retirar os grandes acontecimentos do contexto mítico, divino, reconhecia a essência dos acontecimentos que ocorrem em um mundo puramente humano, material: a mudança (LIMA; CORDÃO, 2010, p. 5). Eis aí aspectos fundamentais da História. François Hartog afirma que a raiz da palavra “história” diz muito sobre essa atividade. Assim, quando Heródoto concebe sua atividade como História, ele leva em consideração o exercício do saber mediante comprovação, já que História significa ver. Para si, Heródoto confere o estatuto de quem sabe por que “viu” e não por ter sido inspirado pelas Musas. Assina seu nome no prólogo das Histórias, tomando para si um lugar de saber que passará a ser construído a partir do “método” da investigação: “Daí em diante, para ‘ver’ é preciso arriscar-se (ir ver) e aprender a ver (recolher testemunhos, reunir as diferentes versões, relatá-las, classificá-las em função do que se sabe por outras fontes e também em função do grau de verossimilhança)” (HARTOG, 2001, p. 51). A partir daí, observa-se no discurso que passará a prevalecer entre os historiadores um esforço por se distanciar do estatuto da produção dos poetas. Esforço que pretendia demarcar um 10 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 território próprio, autônomo, peculiar: o território do historiador (LIMA; CORDÃO, 2010, p. 5). Por isso, convencionou-se chamar Heródoto de “o pai da História”. Ele lança as bases sobre as quais se fundamenta o conhecimento histórico produzido sob uma perspectiva metodologicamente constituída, cientificamente elaborada. De fato, o historiador é um sujeito ativo de conhecimento, realiza a crítica das fontes e, por mais que não possa estabelecer a observação empírica do seu objeto (que já não existe mais), a mobilização do vestígio documental promove certa delimitação do texto histórico, que não pode ser aberrativo em relação à fonte trabalhada: se uma fonte material demonstra que em um enterramento de certa civilização apresenta-se uma espada, seria absurdo dizer que essa civilização desconhecia o uso de armas diante de tal evidência. O texto histórico a que fazemos referência é a própria Historiografia, ou a escrita da História. A definição de Historiografia é um tanto complicada porque, ao longo do tempo, estaríamos lidando com textos de natureza absolutamente distinta (até mesmo oposta!) chamando-os de Historiografia. Textos atuais que são mais bem categorizados como crônicas jornalísticas históricas seriam considerados Historiografia se fossem escritos em épocas diferentes. Deliberadamente, simplificando a questão: Historiografia será considerada um gênero textual relacionado à atividade do historiador, metodologicamente orientado e cientificamente constituído (à parte a discussão se História é ou não é ciência). O corte fundamental aqui será o século XIX, quando a História se constituía como ciência, e a Historiografia surgida nessa época colocava-se em nítida oposição a romances históricos, escritos sem embasamento documental e, portanto, sem o espírito científico. A ideia era “contar o que realmente se passou”. Mas, ao longo do tempo, a Historiografia irá passar por profundas transformações. São elas que você verá ao longo desse livro-texto, cuja finalidade é apresentar sinteticamente as problemáticas e questões que envolvem o estatuto científico da História, assim como sua transformação ao longo do tempo. Veremos como ela se associa a outras Ciências Humanas e modifica seus objetos, como concepções distintas de tempo (cíclico ou linear) se desenrolam no discurso historiográfico, a ideia de História como a ciência do presente, as relações entre memória e História, a perda da hegemonia da escrita como fonte documental por excelência etc. São discussões que você, futuro professor de História, talvez não imaginasse que existissem, mas cujo conhecimento é da maior importância para sua formação profissional. 11 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL Unidade I O que é História? Talvez você tenha pensado que se trate do passado, daquilo que ficou para trás, obsoleto. Ou ainda de algo memorável, como costuma dizer a expressão: “ficou na história”. Muitos dirão, quase como uma declaração de amor ao avesso pelas Ciências Exatas: “não gosto de História”. Ou, então, você ouvirá de alguém quando disser que está cursando licenciatura em História: “que interessante! Adoro História!”. Não é difícil encontrar aqueles que julgam a História como uma total perda de tempo ou que seja estudada por pessoas fascinadas pelo passado. Enfim, qualquer que seja a postura frente à História, é praticamente impossível ficar-lhe indiferente. A pergunta feita antes – sobre o que é História –, aparentemente simples de ser respondida, esconde uma complexidade de sentidos que são revelados conforme nosso conhecimento sobre o assunto torna-se mais profundo. “Certo, mas o que é História, afinal?” Você deve estar pensando, impacientemente: eis a questão! Não há uma resposta bem clara e definida. Embora o historiador Edward Carr tenha escrito um livreto muito importante chamado justamente Que é História?, o conteúdo do livro é uma análise realizada sob uma perspectiva acadêmica de matriz anglo-saxã, diferente da tradicional História de matriz francesa ensinada nas nossas escolas e na maior parte das universidades brasileiras. Não é tão confuso quanto parece, mas você precisa ficar atento a alguns detalhes importantes. Vamos nos aprofundar um pouco mais, refletindo sobre o significado de algumas expressões muito corriqueiras que envolvem a História. O que significa dizer que se gosta ou não de História? Podemos pensar que, provavelmente, a pessoa está estabelecendo uma relação positiva ou negativa com duas coisas: em primeiro lugar com o passado em si e sua identificação com os eventos trabalhados; em segundo lugar, pela memória que se tenha das aulas de História, documentários, museus etc. Não é raro encontrarmos um graduando de História que escolheu a carreira por ter tido um grande professor dessa matéria. Os chamados “amantes” da História frequentemente consomem os “mistérios do Egito”, as “batalhas medievais” ou “a face oculta de Hitler” sob uma perspectiva de exotismo muito semelhante ao fascínio surgido em uma viagem a uma cultura bem diferente da própria. De fato, há uma espécie de fascínio ao constatarmos a diversidade da experiência humana através dos séculos ou, como diria o historiador francês Marc Bloch, na aventura “do homem na função tempo” (BLOCH, 1949). Pois bem, aquela pergunta inicial está ficando um pouco mais complexa, mas não menos interessante. Parece absurdo gostar ou não de História porque nós já estamos nela. A mudança é inevitável e nós somos afetados por ela. A natureza do tempo é amplamente discutida, inclusive em recentes teorias da Física que consideram que o tempo e a quarta dimensão e que tem partículas que serão descobertas e descritas mais cedo ou mais tarde. Agora, gostar ou não de História talvez seja algo possível, no entanto esse juízo de valor deve ser questionado e, digo a você, é bem inadequado não gostar de História por confundi-la com uma celebração ao obsoleto e ao ultrapassado, assim como um museu sem uma 12Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I curadoria competente que transforma um prédio em um depósito de coisas velhas, cuja visita seria um programa totalmente (e compreensivelmente) insosso. Da mesma forma, o “gosto” pela História ao estilo “o mistério das pirâmides” pode parecer interessante, e é perfeitamente válido, mas é muito pouco para revelar o dinamismo e a importância da História ao longo dos séculos. Tal importância nos conduz inevitavelmente a uma afirmação que pode soar um pouco estranha, mas bem reveladora do papel que a Historiografia representa no conjunto da produção intelectual de uma sociedade num dado momento: a História não é necessariamente um estudo do passado; é mais um estudo do presente, precisamente de como as pessoas do presente se relacionam com o passado na construção de suas identidades coletiva e individual. Caso você ainda não tenha compreendido como a História pode ser um estudo do presente, então pense nas expressões populares “ficou na história”, ou “este é um acontecimento histórico”, e ainda na expressão “gol de placa”. Cada uma delas pressupõe que determinados eventos são dignos de serem lembrados, enquanto outros serão normalmente esquecidos. Nesse caso em especial, trata-se de fatos que se destacam em meio a uma profusão de acontecimentos banais e, em meio a uma partida de futebol absolutamente sem graça, um jogador parte para o ataque e marca um belíssimo gol, sendo premiado literalmente com uma placa para que sua façanha seja lembrada por anos a fio enquanto a placa não perecer no tempo. Sendo assim, há uma seleção que não é nem um pouco natural dos eventos a serem lembrados e que é realizada por agentes históricos que sabem muito bem o que querem e que têm projetos políticos muito bem definidos. Assim o trabalho do historiador consiste em identificar essas seleções ao longo do tempo, esclarecendo as intenções dessas escolhas e evidenciando o arcabouço ideológico dominante que serviu de sustentação para o trabalho de seleção dos chamados “fatos” históricos e exclusão daquilo que foi considerado supérfluo. Mas não é só isso: o historiador, como um agente histórico e produtor de ideias, também age no seu tempo através de sua produção, geralmente crítica. A palavra “crítica”, embora tenha uma conotação negativa, vem do grego krisis, que significa “ruptura” e, nesse caso, seria como romper com visões preestabelecidas e consensuais e entender os fundamentos de um discurso, retirando-o do altar da sacrossantidade do absoluto e inserindo-o na contingência do histórico, das intenções políticas, do jogo de poder que atravessa os séculos. Essas afirmações podem parecer um tanto desconcertantes, ainda mais para quem a História deveria ser uma celebração dos heróis da pátria e de seus grandes feitos. Talvez você esteja se perguntando: “quer dizer que o que chamamos de fato histórico é algo parcial? Mas a História não seria contar exatamente o que aconteceu no passado?”. A resposta é: não mais. “Contar o que realmente se passou” chegou a ser o lema dos historiadores do século XIX, principalmente alemães, e hoje temos plena consciência de que o que chamamos de verdade pode ser uma construção mental que pode mudar ao longo do tempo. Esse lema fez sentido na época em que foi criado, como veremos mais adiante no texto. Voltemos um instante para a questão das seleções de eventos: mesmo que a exclusão de vestígios materiais – incluindo documentos de arquivo – possa ter acontecido naturalmente devido a vários fatores (incêndios, materiais perecíveis etc.), a seleção e a reunião dos materiais disponíveis ficam a cargo do historiador (ou do cronista) e de todas as suas influências culturais e políticas. Na prática, é impossível que a Historiografia seja totalmente neutra. 13 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL Então do que adianta estudar História se todos os supostos fatos nada mais são do que um conjunto pré-selecionado de dados, totalmente parciais? Se você ainda estiver, como nossos heroicos historiadores do século XIX, buscando a verdade incontestável dos fatos que aconteceram no passado, a resposta certamente seria: “nada”. No entanto, é muito mais interessante admitir a parcialidade do discurso histórico como um elemento intrínseco de análise e, é claro, não confundir Historiografia com qualquer outro texto que tenha como pretexto algum acontecimento no passado, inclusive um livro de ficção: a Historiografia é um texto de análise que tem um método específico, embasado em uma teoria de análise. Um exemplo prático dessa afirmação seria o famoso livro 1808 (GOMES, 2007), por mais interessante que possa ser, ele não pode ser considerado Historiografia no sentido mais estrito do termo. Trata-se mais de uma crônica jornalística sobre eventos consagrados na história do Brasil. E uma obra historiográfica sobre o papel de Simon Bolívar nas independências sul-americanas seria totalmente distinta do livro General em seu Labirinto (MARQUEZ, 1989), que é um romance histórico. É verdade que a diferença entre romance e Historiografia pode parecer um tanto difusa se a última não mais se comprometer com a verdade integral do passado. De fato, isso gerou uma série de importantes discussões nos anos 1960 e 1970, que veremos mais adiante. Apenas para adiantá-las e aguçar sua curiosidade: a História quase desapareceu há mais ou menos 40 anos, quando seu estatuto científico foi seriamente ameaçado. Tanto Gomes (2007) como Garcia Marquez (1989), cada qual partindo de lugares distintos, contribuíram para a formação de algo mais amplo, diferente da História enquanto uma área de conhecimento: trata-se da memória, tanto individual como coletiva. O conceito de memória é muito particular e se refere a uma abordagem não crítica do passado, em que ele surge como um referencial de ideias importantes para a constituição das identidades. Grosso modo, enquanto a história apresenta uma abordagem crítica e metódica também do passado, a memória tende a estabelecer vínculos diretos e afetivos com o passado. A memória retira seu conteúdo de um sem-fim de “matérias-primas”, tais como livros que veiculam uma determinada visão sobre um assunto histórico, monumentos, memórias pessoais sobre um dado evento etc. Nesse ponto, é importante frisar o papel que o ensino escolar de História tem na formação da memória nacional. Mas os historiadores contribuem com a memória? O papel da Historiografia nesse sentido é indireto e bem limitado, e isso ocorre por fatores diversos. O fato é que escrever sobre o passado não é monopólio dos historiadores e sua produção tem uma atuação muito tímida na sociedade em comparação, por exemplo, com a de jornalistas que versam sobre o passado nacional como os conhecidos Laurentino Gomes e Eduardo Bueno. Se assumirmos esse ponto de vista integralmente, nossa profissão não teria sentido, não é mesmo? Por isso é muito importante que os historiadores consolidem sua posição dentro da produção social da memória não apenas por uma questão meramente de ofício, mas por serem produtores de memória diferentes dos outros, com habilidades distintivas e métodos apropriados que os tornam capazes – a despeito de uma série de críticas recebidas nos últimos 40 anos – de produzir um conhecimento sólido e o mais próximo possível do imparcial, ou seja, pensar a História como uma ciência dentro do quadro mais amplo das memórias. 14 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I 1 ASPECTOS FUNDAMENTAIS DA CIÊNCIA A partir daqui, é muito importante estabelecer alguns princípios que nos permitam considerar a História uma ciência,certamente uma ciência especial em relação às demais ciências, sejam elas as da natureza ou as sociais. Ainda mais porque a cientificidade da História foi posta em xeque com indiscutível propriedade e pertinência pelos chamados filósofos pós-estruturalistas, muito populares nos meios acadêmicos nas décadas de 1960 e 1970. Se você já ouviu falar de Michel Foucault, saiba que ele foi responsável por demolir a maior parte dos alicerces sobre os quais a História se havia fundado desde sua criação como ciência no século XIX, estabelecendo novas diretrizes para os estudos históricos (embora não gostasse muito da Historiografia). Desde então, houve esforços em reafirmar a continuidade da existência da História, reforçando seu caráter científico, desde que compreendida como uma ciência distinta das demais. Mas, afinal, que ciência é essa? Permitamo-nos voltar um pouco no tempo (afinal, somos historiadores, não é?) para tratar do contexto e das condições de surgimento desse tipo de conhecimento que chamamos de “científico”. É verdade que os fundamentos da ciência puderam ser traçados na Antiguidade, mas podemos estabelecer que a Revolução Científica foi uma decorrência direta de uma mudança na mentalidade europeia a partir do século XIII, quando surge a corrente filosófica denominada Humanismo. Nesse momento, a Europa passava por grandes transformações advindas da crise geral do feudalismo e do desenvolvimento do comércio, vislumbrando o surgimento de uma nova classe social – a burguesia – responsável por resgatar elementos da cultura clássica e usa- la como um referencial para interpretar o mundo. A partir daí, o monopólio cultural da Igreja é ameaçado e os humanistas reivindicam um conhecimento de natureza investigativa, opondo-se ao esquema simplista do dogma religioso. No século XVI, as consequências diretas desse modo de pensar, ou como se dizia na época, “ler o mundo tal como um livro aberto a ser lido”, levaram a uma definitiva alteração dos paradigmas do conhecimento. Um filósofo da maior importância nesse processo foi René Descartes. Você certamente já ouviu falar dele, ou de alguma expressão que remeta a ele como, por exemplo, “plano cartesiano”. Afinal, por que ele pode ser considerado um dos maiores filósofos da humanidade? O que ele produziu de tão relevante? Descartes viveu a maior parte de sua vida na Holanda, onde encontrou um ambiente propício para suas investigações, afastado da grande pressão exercida pela Igreja Católica. Em razão de seu ofício, o filósofo viajou por lugares distintos, entrando em contato com culturas diversas, e as diferenças culturais entre os povos o marcaram profundamente. Em vez de formular um pensamento que admitisse que as verdades são relativas, culturalmente constituídas – tal como afirmara Protágoras, na Antiguidade – Descartes estava certo de que as distinções culturais percebidas pelos sentidos tratavam-se de enganos, e que era possível estabelecer uma verdade única a despeito das aparentes distinções. 15 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL Figura 1 – René Descartes (1596 – 1650) Após certo tempo de trabalho, Descartes conseguiu um período de alguns anos no qual se retirou para dedicar-se exclusivamente ao trabalho filosófico. René Descartes viveu em uma época de grande efervescência cultural e um dos produtos do pensamento humanista foi o surgimento de um grupo de filósofos que seguia a linha do ceticismo, ou seja, duvidava de absolutamente tudo. O filósofo se inseria parcialmente nessa corrente, mas diferia substancialmente de seus pares na medida em que recusava a ideia de que era impossível chegar a um conhecimento verdadeiro, o que era afirmado pelos céticos. Assim como seus congêneres, Descartes partia da dúvida total, mas a finalidade da dúvida era eliminar qualquer incerteza diante de um objeto de conhecimento. Portanto, o método da dúvida hiperbólica não tinha a finalidade de manter o conhecimento em suspenso: ao contrário, a ideia era levar a um conhecimento absolutamente seguro após todas as dúvidas serem eliminadas. De fato, a primeira certeza a ser comprovada era a da nossa própria existência. Descartes considerava que concluir que existimos mediante uma avaliação superficial realizada pelos sentidos seria insuficiente e imaginava que poderíamos ser enganados por um gênio maligno que nos faz sonhar sobre nossa própria existência. Nossos sentidos nos capacitam apenas para perceber a res extensa – a matéria – e tal percepção é incompleta e grosseira. Um conhecimento verdadeiro deve ser seguro e, nesse caso, apenas com o pensamento é possível chegar a uma conclusão que ultrapasse os sentidos. Para Descartes, a res cogitans – grosso modo definida como a razão – transcende os sentidos e é capaz de produzir um conhecimento afinado às ideias inatas, imutáveis, que transcendem o sujeito e são universais por excelência. A res cogitans não é da mesma natureza da res extensa, não sendo a primeira dependente da segunda. Nesse caso, o mero ato de pensar sobre a própria existência é prova irrefutável de que estamos aqui e que o conhecimento que produzimos é válido – daí o famoso “penso, logo existo”. A dúvida, nesse caso, era algo da natureza do indubitável. Uma vez provada a nossa existência, – e também a de Deus, de onde emanariam todas as ideias perfeitas e a bondade suprema – Descartes busca uma linguagem adequada aos conhecimentos inatos. E diria o filósofo que, mesmo que estivéssemos sonhando, dois mais dois sempre serão quatro e o quadrado sempre terá quatro lados. Você já deve ter adivinhado qual a linguagem escolhida por 16 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I Descartes para representar ideias inatas: a Matemática que, segundo ele, seria uma linguagem simples e ao mesmo tempo rigorosa. Com Descartes, portanto, a Matemática passa a ser utilizada como uma expressão de juízos inatos, o que mais tarde serviria de postulado fundamental das ciências da natureza, ou (usando uma terminologia atual) Ciências Exatas. O plano cartesiano, por exemplo, é a representação gráfica de funções matemáticas e é usado em diversas ciências. O método cartesiano é uma investigação que procura dirimir toda e qualquer dúvida sobre um determinado objeto de estudo. Escrito no consagrado Discurso sobre o Método, de 1637, ele tem quatro operações que sintetizariam a indução e a dedução: a dúvida, na qual deve-se aceitar apenas aquilo que é de fato indubitável; a análise do objeto em tantas partes quanto forem possíveis; a síntese ou a elaboração de generalizações e a enumeração das conclusões para que a verdade sobre o assunto em questão seja garantida. Segundo ele, esse método seria como demolir uma velha casa para que, em seu lugar, fosse construído um edifício seguro. Outro filósofo da maior importância e que viveu na mesma época de Descartes foi Francis Bacon, que se dedicou aos fundamentos do método científico estabelecendo as bases do empiricismo. Suas contribuições no campo da ciência e da filosofia são tão importantes que Bacon é considerado por muitos o verdadeiro pai da ciência moderna. Sua vasta obra abrange distintas áreas do conhecimento, com especial destaque à Filosofia e ao Direito, e antecedeu em vários séculos os postulados atuais de importantes teorias cognitivas e correntes filosóficas dedicadas à investigação da linguagem. Um dos aspectos mais relevantes da obra de Bacon é a análise e desmontagem do que ele denominava “ídolos”, ou seja, distorções presentes na percepção humana e que inevitavelmente conduziriam ao engano. Quatro tipos de ídolos são identificados: ídolos tribais, referentes às generalizações grosseiras da mente humana; ídolos da caverna, que representamos enganos advindos da percepção particular da realidade; ídolos do fórum, relativos ao descompasso entre as palavras e a realidade que elas descrevem; e ídolos teatrais, baseados em falsos julgamentos advindos de cânones literários considerados referenciais em um dado momento histórico. A partir do conhecimento dessas possibilidades de engano, seria necessário encontrar um método seguro para o conhecimento, e daí resultou a formulação de um método baseado na indução já que, segundo ele, a lógica dedutiva aristotélica seria insuficiente, já que não leva em conta uma observação empírica dos fenômenos. Daí a possibilidade de discorrer com aparente propriedade sobre um assunto apenas com a habilidade discursiva, nesse caso, a do retórico. O método indutivo, portanto, partiria da observação de casos particulares e que a experiência direta de um fenômeno – seja ele reproduzido em laboratório, seja uma amostra representativa de um determinado fenômeno social – poderia, sob certas condições, produzir uma generalização na forma de uma teoria. Observação A Revolução Científica foi um movimento decorrente do surgimento do Renascimento Cultural que, por sua vez, foi fruto de grandes transformações ocorridas na Baixa Idade Média. Embora a ideia de revolução pressuponha um rompimento radical com o conhecimento medieval, há diversas continuidades que precisam ser observadas. 17 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL Figura 2 – Francis Bacon pode ser considerado o pai da ciência moderna por ter desenvolvido o método das tábuas, que estipulava relações reais de causa e efeito dos objetos analisados No entanto, devemos considerar que há diferenças fundamentais entre o pensamento de Descartes (que é ligeiramente posterior) e de Bacon, sobretudo com relação ao método empregado para chegar ao conhecimento. Descartes desenvolveu o método dedutivo a partir da observação de generalizações indubitáveis, método que emulou o silogismo aristotélico e é utilizado com mais frequência na Filosofia e na própria Matemática. Bacon, por sua vez, se afasta da dedução aristotélica, e a indução torna-se o método de conhecimento por excelência. Interessante notar que a indução, a observação do particular para propor uma generalização, funciona de maneira peculiar. Muitos lógicos se debruçam sobre a questão da validade do conhecimento indutivo, já que novas experiências podem colocar em xeque afirmações universais advindas da indução. Nesse caso, levando em conta os fundamentos de seu método, há algo de provisório na ciência, mesmo que ela se ocupe de conhecimentos racionais, universais, verdadeiros. Nesse ponto, é possível fazer uma aproximação com o filósofo empiricista David Hume, que discute justamente a questão da regularidade como um pressuposto fundamental do conhecimento científico e do peso de certas variáveis para a validade científica. Hume afirma que um evento que escapa à regularidade gera naturalmente especulações acerca da causa e do efeito relacionados com um determinado objeto. Assim, poderia haver uma rede causal que antecedesse um determinado fenômeno, mas que ainda não estaria revelada, e aí é que residiria o sentido do trabalho do historiador: a investigação. Deve haver uma interpretação que se localiza entre o sujeito que produz conhecimento e a forma com que o objeto se impõe para ser interpretado – que, em sua visão, tem um peso determinante. Com certeza, um dos maiores nomes da Filosofia Moderna é David Hume. Nascido em 1711, de uma família nobre da Escócia, entre os 12 e 14 anos, estudou Literatura e Filosofia na Universidade de Edimburgo, apaixonando-se por essas duas áreas. Preparou-se para trabalhar em profissão [relacionada ao] Direito e até se arriscou como negociante, mas, segundo suas próprias palavras, sentia “uma aversão insuperável a tudo o que não fossem as buscas da Filosofia e do conhecimento em geral”. Mais do que apenas um filósofo, Hume fez muita fama como historiador e ensaísta. Em vida, sua obra que mais fez sucesso – e lhe rendeu uma segurança financeira considerável – foi uma série de livros intitulada “A História da Inglaterra” (1754-62). No entanto, a sua primeira obra foi um dos livros mais importantes da História da 18 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I Filosofia, chamado Tratado da Natureza Humana (1739-40). Entre os anos de 1734 e 1737, cansado de tentar a vida como negociante (tentativa que só durou três meses, diga-se de passagem), resolveu viver de sua herança e foi para o interior da França, tentando a vida no campo por pensar que seria economicamente mais viável. Ele foi residir em La Flèche (sim, cidade onde Descartes estudou no colégio jesuíta). Usando a biblioteca desse colégio, David Hume compôs seu longo tratado. Apenas como uma nota – para dar inveja a qualquer jovem – Hume começou a escrever seu tratado com 23 anos! Sim, com 23 anos ele começou a escrever uma das maiores obras da História da Filosofia, sendo publicada em três livros entre os anos de 1739 e 1740, quando Hume tinha por volta de 28 anos. A ideia de Hume com seu tratado era introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos filosóficos. Isso se caracterizará como uma forte renúncia à metafísica. Contudo, a aceitação do Tratado da Natureza Humana foi péssima. O próprio David Hume, se referindo a essa obra, disse que “jamais uma empreitada literária foi tão desafortunada quanto o meu Tratado”, ele ”já saiu natimorto da impressora”. Parte dos filósofos da época que liam a obra não a compreendiam direito, parte a recusava, e uma parte muito pequena a aceitava. Para solucionar esse problema, Hume publica em 1748 a obra intitulada Investigações sobre o Entendimento Humano, que basicamente era um resumo revisto de seu Tratado. Essa obra, sem sombra de dúvidas, é fantástica! Com uma clareza e objetividade sem igual, Hume apresenta em um livro curto toda sua teoria filosófica. Completamente argumentativo e com riqueza literária, a exposição que Hume faz se tornou um paradigma de escrita clara para todos os filósofos que vieram após ele, até mesmo para os filósofos que não concordavam com sua teoria. Até o final de sua vida, David Hume tem uma coleção de livros e ensaios publicados. No entanto, para apresentar sua teoria, basta nos centrarmos nas Investigações sobre o Entendimento Humano. Hume, tal como Descartes, estava preocupado em entender os fundamentos do conhecimento humano. Todavia, Hume chega a conclusões bem contrárias às de Descartes. Enquanto Descartes se enquadra como um racionalista, Hume foi um empirista. Mas, primeiro, antes de explicarmos isso, vejamos sua teoria. Como funciona nosso processo de entendimento? Essa primeira pergunta nos servirá de condutora para o início dos pensamentos de Hume. De acordo com os termos usados por Hume, nós entendemos o mundo através de duas vias: ideias e impressões. Impressões As impressões seriam nossas percepções mais vívidas e fortes, por exemplo, nossas sensações. Quando eu vejo o notebook na minha frente, eu tenho a impressão em minha mente desse computador. Essa impressão é vívida, pois eu estou em contato direto com aquilo que me cria essa impressão. Eu tenho uma experiência com o objeto da minha impressão. As impressões podem ser caracterizadas como sensações, que são frutos da experiência que tenho dos meus sentidos com objetos externos; ou reflexões, que são frutos da experiência que tenho dos meus sentimentos, ou seja, são objetos internos a nós. 19 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL Ideias As ideias, por sua vez, sãoos objetos que estão em nossa mente sem que tenhamos naquele momento um contato direto com as impressões dela. As ideias seriam impressões menos vívidas, mais tênues. Por exemplo, quando eu penso na bicicleta que eu tinha quando criança, ainda que eu feche os olhos e quase sinta o vento em meus cabelos ao pedalar aquela bicicleta, essa impressão que eu tenho é menos vívida que a do meu notebook, que está agora na minha frente. Os objetos da minha memória (como a bicicleta) não são objetos presentes nas minhas impressões (como o notebook), esses objetos da nossa mente seriam as ideias. Podemos distinguir dois tipos de ideias: as simples e as complexas. As ideias simples são aquelas que são cópias diretas de impressões que tivemos. A da bicicleta, por exemplo, é uma ideia simples, pois eu tive uma impressão com essa bicicleta no passado, mas hoje eu só tenho a ideia dessa bicicleta, que é a memória dela. Fonte: Gracher (2015). Com Isaac Newton, a ciência moderna irá se consolidar. Se Francis Bacon havia estabelecido princípios para chegar a um conhecimento seguro por meio da indução – mesmo que até hoje filósofos, especialmente os lógicos, não tenham chegado a um consenso sobre de que maneira a indução funciona – e René Descartes havia descrito uma forma de chegar a um conhecimento seguro, unindo indução e dedução – com especial atenção ao segundo método –; Newton, através da observação dos fenômenos naturais, concluirá que tais fenômenos podem ser previstos, ou seja, funcionam regularmente. Daí a racionalidade da Física: os fenômenos podem ser previstos, pois funcionam da mesma maneira sempre. Esse será um postulado fundamental da ciência atual: a previsibilidade dos fenômenos que podem ser reproduzidos em laboratório. Figura 3 – Sir Isaac Newton (1642 – 1727) 20 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I As ideias de Immanuel Kant contribuíram diretamente para uma reavaliação das ideias científicas. Para o filósofo alemão, os postulados científicos eram verdadeiros, mas ele buscou os fundamentos da razão e da validade das ideias científicas. Essa é uma concepção muito importante: a ciência, tal como a concebemos, já estava consolidada, mas a investigação, nesse caso, se concentrava em descobrir por que ela funcionava. Portanto, lançou mão do que denominava crítica: uma análise reflexiva dos fundamentos do conhecimento. E instituiu que a razão humana não era absolutamente completa ou ainda ilimitada, o que nos leva a pensar sobre o que é realmente possível conhecer. Para Kant, haveria dois tipos de conhecimento: os conhecimentos a priori e os conhecimentos a posteriori. Conhecimentos a priori se referem a postulados fundamentais que existem por si só e independem da razão. Noções abstratas como tempo, espaço, moral, virtude etc. são, por definição, conceitos que existem por si e que podem ser apenas parcialmente conhecidos pela razão. Sua existência se manifesta no indivíduo a partir de uma intuição que surge diante de fenômenos naturais ou concepções morais. Essa intuição levaria o ser humano a conhecer mais profundamente aquilo que intuiu e, assim, produziria uma série de conhecimentos através da experimentação científica. Portanto, os conhecimentos a posteriori são produzidos pela indução, ao mesmo tempo em que são validados mediante uma análise racional. Assim, o avanço científico pode ser relacionado a uma progressiva iluminação dos conceitos a priori que, no entanto, não podem ser completamente conhecidos pela razão, que apenas os vislumbra. Desse modo, Kant estabelece um fundamento epistemológico importantíssimo: não se trata mais de conhecer as coisas “em si”, mas “como eu conheço as coisas”. A partir daí, a completa objetividade da ciência pôde ser colocada em xeque, e tal afirmação produziu reações distintas: em um primeiro momento, a possibilidade da interferência do sujeito na pesquisa levou a uma série de procedimentos que buscavam evitar tal situação e, posteriormente, verificou-se que era impossível abstrair completamente o sujeito de conhecimento. Kant, portanto, é fundamental para entender os desenvolvimentos teóricos da ciência e, consequentemente, da História entendida como uma ciência. 1.1 O método científico Agora que discutimos rapidamente as ideias de filósofos importantes para a consolidação da ciência, vamos discorrer um pouco sobre o método científico. Vimos que a ciência moderna é uma forma de conhecimento fundamentada na indução de fenômenos e explicação mediante a lógica dedutiva. De fato, por ser um conhecimento investigativo, parte da observação direta de fenômenos logicamente organizados pela razão. Tal método busca uma racionalidade nos fenômenos naturais, expressa por meio de fórmulas, ou seja, o discurso de verdade na ciência se vincula à ideia de que os fenômenos tendem a acontecer sempre. Em qualquer lugar do universo, haverá a atração gravitacional, a luz viajará a 300.000 km/s e dois corpos não podem ocupar um mesmo lugar ao mesmo tempo. É verdade que boa parte desses postulados hoje é bastante discutível, mas deixemos por ora tais questões de lado. Voltaremos a elas em outro momento. De qualquer forma, é importante que nós pensemos sobre o método científico a partir do que vimos anteriormente sobre as ideias que discutimos de Bacon a Kant. O método científico deve sua constituição em grande parte ao método cartesiano, cujo momento principal é o da análise, a saber, a decomposição do objeto em tantas partes quanto forem possíveis. Pensemos em uma análise física do movimento, o objeto em 21 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL questão é o deslocamento de um automóvel. Para medir a variação tudo deve ser levado em consideração: a força aplicada (através das explosões do motor de combustão), o peso do carro, a gravidade, força normal etc. Tudo isso é colocado em uma fórmula e as contas são realizadas. Obviamente, a grande dificuldade é transformar a realidade em uma linguagem matemática em que há operações complexas, mas a existência de uma fórmula pressupõe certa regularidade na relação entre deslocamento e força aplicada. O mais importante é que tais fenômenos possam ser reproduzidos em laboratório. Justamente a partir dessa reprodução – partindo, portanto, de uma observação particular, e essa é a principal característica de uma indução: pode ser elaborada uma teoria que sirva em qualquer espaço e tempo. Se você disser que esse método pode ser pouco seguro para estabelecer verdades universais já que parte de uma observação particular, você não estará de todo errado. De fato, como afirmava David Hume, no século XVII, há certa provisoriedade no discurso da ciência. Após a realização da análise, o cientista procede (como afirmava Descartes) à verificação de sua hipótese. Se comprovada correta, o estudioso precisa expressar sua “descoberta” através de uma linguagem clara e compreensível – ou seja, lógica – para que possa comunicar o público de tal forma que todos possam compreender independentemente de sua cultura ou formação pessoal. Daí se depreende que os conhecimentos científicos são universais e que não estão sujeitos a uma análise parcial, cultural, apaixonada. Ou, pelo menos, tal é o discurso científico. No século XIX, o método científico se consolidou pelo consenso da comunidade acadêmica como a única forma possível de se chegar a um conhecimento verdadeiro, encaixando-se perfeitamente na proposta da modernidade que era a de emancipar o ser humano. Os postulados fundamentais da ciência e os conhecimentos baseados na previsibilidade dos fenômenos pela existência de leis naturais identificadas mediante um conhecimento empírico opuseram, com mais força, a fé e a ciência.O positivismo foi uma decorrência dessa mentalidade, uma corrente filosófica que afirmava que a humanidade estava em constante evolução, cujas etapas seriam percebidas através dos avanços técnicos e científicos. Segundo Augusto Comte, o conhecimento total das leis da natureza por meio da ciência fariam os “padres serem substituídos por cientistas” e levaria o ser humano a uma sábia resignação. Evolução, e não revolução. Progressivamente, as áreas de saber vão se especializando cada vez mais, aprofundando a lógica cartesiana da análise. O método aplicado nas ciências da natureza logo permeou todas as áreas do saber, inclusive para a compreensão das sociedades. Mas seria possível estabelecer leis gerais para prever as tendências sociais? O método das ciências da natureza seria aplicável para explicar a sociedade? Haverá uma oposição de fato entre os tipos distintos de ciência? Explicar ou compreender? Há uma sutil diferença entre esses termos, que vamos pensar agora. 1.2 Ciências nomotéticas e ciências ideográficas Tradicionalmente, podemos encontrar uma oposição fundamental entre dois tipos de ciência: as nomotéticas e as ideográficas. A primeira se ocuparia do estabelecimento de leis gerais e fenômenos previsíveis. São as ciências da natureza, tanto puras como aplicadas, e seus discursos de verdade se constituem a partir da possibilidade de reconstruir fenômenos reproduzíveis em laboratório. Segundo Jean Piaget: 22 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I São disciplinas que procuram estabelecer leis no sentido, por vezes, de relações quantitativas relativamente constantes e exprimíveis sob a forma de funções matemáticas, mas, igualmente, no sentido de fatos gerais ou de relações ordinais, de análises estruturais etc., traduzíveis por meio da linguagem corrente ou de uma linguagem mais ou menos formalizada (PIAGET, 1976, p. 30). A racionalidade advém justamente da repetição e da observação empírica de um fenômeno analisado. Já a segunda teria uma estrutura lógica que prescinde do estabelecimento de generalizações, ou seja, se ocuparia do particular, os fundamentos do discurso de verdade advêm da possibilidade de compreensão. No entanto, uma consideração mais profunda dessa oposição evita que caiamos no simplismo de considerarmos que a História não faz uso de enunciados universais e que as Ciências da Natureza (ou Exatas) dispensam qualquer enunciado particular: Nenhuma conclusão acerca do caráter real de coisas e processos específicos pode ser derivada apenas de enunciados gerais, pois as teorias e a leis têm de complementar-se com condições iniciais (isto é, com enunciados singulares ou particulares) para que essas conjecturas gerais sirvam para explicar ou predizer qualquer ocorrência particular. A conhecida e por vezes útil distinção entre ciências naturais e aplicadas também não diminui a importância desse ponto ao afirmar que as ciências puras (como a Eletrodinâmica ou a Genética) se preocupam apenas com estabelecer enunciados gerais, e que só as ciências aplicadas (como a Engenharia Eletrônica ou a Agronomia) precisam ocupar-se com casos particulares, pois até mesmo as ciências naturais puras só podem afirmar que os seus enunciados têm fundamento empírico com base em provas fatuais concretas e, portanto, só servindo-se de enunciados singulares (NAGEL, 1976, p. 25). Apesar de conhecida, essa oposição precisa ser revista, justamente porque lida com algo fundamental dentro da ciência: o embasamento ou a força do discurso de “verdade”. No senso comum (em que reinam as opiniões e lugares comuns!), quando afirmamos que a ciência é a única capaz de produzir conhecimentos verdadeiros em detrimento de outras maneiras de conhecer, como o mito ou a arte literária, é porque parte-se do princípio que ela estabelece leis gerais a partir da experimentação. No entanto, não devemos confiar cegamente no mito da ciência, nem tanto em relação ao que ela pode explicar de fato, mas em relação à maneira como os conhecimentos são construídos. Além disso, muitos enunciados comumente reconhecidos como leis da Ciência “pura” possuem uma generalidade que é pelo menos geograficamente limitada: por exemplo, a conhecida lei de que um corpo em queda livre, ao nível do mar, em latitudes compreendidas entre 38º a 39º da superfície da Terra, sofre uma aceleração de 980 centímetros por segundo. Se forem excluídas dos tratados teóricos leis deste tipo, que são especificações de leis que não possuem tais restrições, essa exclusão é, quando muito, pura questão de conveniência e não de princípio (NAGEL, 1976, p. 27). 23 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL A ideia de que as ciências nomotéticas, dessa forma, retiram de postulados gerais a força de verdade de seu discurso e que isso as colocam à frente das Ciências Humanas não passa de uma falácia. De fato, as ciências naturais não são total ou exclusivamente nomotéticas. Mesmo assim, as Ciências Sociais não podem prescindir de enunciados considerados gerais. É necessário que você perceba que estamos tentando relativizar uma antiga discussão que por muito tempo opôs desnecessariamente as ciências nomotéticas e ideográficas. Em relação à História, é necessário evitar o risco de cairmos em uma profusão de histórias particulares em excesso. Por mais que o historiador ocupe-se do não repetido e do único, ainda assim, a pesquisa historiográfica deve utilizar conceitos gerais tais como “estruturas”, “sociedades” ou conceitos mais tradicionalistas, como volkgeist etc. Bem como o uso de conceitos, os cientistas sempre buscam as relações encontradas entre os fenômenos estudados, como relações de causa e efeito. Aqueles das ciências nomotéticas expressam relações geralmente a partir de fórmulas que se valem da Matemática como linguagem: as forças que geram uma aceleração e o resultado da aceleração média, por exemplo. Nas ciências ideográficas, essa relação é construída mediante o estabelecimento do que os cientistas chamam de variáveis, um fenômeno descrito que pode ter uma causa – uma variável dependente –; ou ser a causa em si – a variável independente. A História se vale da descrição de certos fenômenos e estabelece relações causais entre eles. O desafio, no caso, é estabelecer tais relações de modo que descrevam adequadamente o objeto estudado, e aí reside um dos maiores problemas para os historiadores: como estabelecer que uma ou outra causa seja determinante para o resultado do fenômeno estudado? O estabelecimento dessas relações não pode ficar apenas no nível intuitivo e deve partir de uma adequada metodologia de estudos. E, embora se trate de um evento particular, é possível imaginar que as relações de causa e efeito entre dois eventos possam encontrar algum paralelo em outro momento histórico e em um espaço distinto. Não se trata de estabelecer leis, mas de encontrar certo padrão de acontecimentos. Você deve estar imaginando então que se as Ciências Sociais e as da Natureza possuem tantas semelhanças, a ideia de que são totalmente opostas é um absurdo sem fundamento. Na verdade, há algumas diferenças importantes sim, sobretudo no que se refere ao resultado dos estudos empreendidos em cada uma dessas ciências. Claro que, dentro das Ciências Sociais, há diferenças importantes, sobre as quais discorreremos a respeito mais tarde. Mas, nesse caso, é importante frisar que a grande diferença entre as Ciências Naturais e a História está na conclusão: enquanto as primeiras buscam construir enunciados gerais, os historiadores não se propõem a formular leis: A diferença entre História e Ciência Teórica é, pois, bastante análoga entre Geologia e Física ou entre Diagnose Médica e Fisiologia.Um geólogo procura determinar, por exemplo, a ordem sucessiva das formações geológicas e o faz, em parte, aplicando várias leis físicas aos seus materiais de estudo, mas não compete ao geólogo, qua geólogo, estabelecer as leis da Mecânica ou da desintegração radioativa utilizadas nas suas pesquisas (NAGEL, 1976, p. 29). Devemos ter em mente que o historiador enriquece suas pesquisas com uma abordagem ampla, interdisciplinar, enfocando, por exemplo, motivações psicológicas mais amplas que impilam a um dado fenômeno. No entanto, não cabe a ele realizar a pesquisa psicológica, aproveitando-se de determinados 24 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I enunciados gerais para enriquecer sua pesquisa. Desse modo, é razoável supor que, mais do que concorrente, os tipos de ciência em questão produzem resultados que podem se complementar para a construção de um conhecimento cada vez mais próximo de uma interpretação adequada dos fenômenos da realidade. Mesmo em relação à História, não significa afirmar em absoluto que ela não possa encontrar em algum momento algum tipo de lei da mudança temporal, ainda se levarmos em conta que durante um bom tempo as repetições – ou ciclo de preços – estiveram na pauta dos historiadores franceses do início do século XX justamente para conferir à História um caráter científico nomotético. De fato, nada impede que as Ciências Sociais assumam tal característica. A Psicologia e a Sociologia são bons exemplos que, embora tratem de casos particulares, nem por isso deixam de realizar análises comparativas e estruturais. Jean Piaget estabeleceu quatro tipos de ciências para a humanidade: as nomotéticas, as históricas, as jurídicas e as filosóficas. Para ele, a especificidade das Ciências Históricas em relação às demais, sobretudo as ciências nomotéticas, está na própria diacronia como elemento fundamental, levando em conta que as próprias ciências nomotéticas se valem de tal princípio. Dito de outra maneira: a História é a própria historicidade – diacronia vem do grego “dois tempos”, no caso passado e presente, na Física, por exemplo, tal diacronia é absolutamente necessária na Dinâmica, Astrofísica etc. Desse modo, a História seria a absoluta contingência, levando em conta a dualidade de tempos como marca fundamental da experiência humana e da própria natureza. Portanto, não é exagero admitir, como já sugerimos: Por estreita que seja a ligação das ciências nomotéticas e ciências históricas, pois cada um desses grupos tem constantemente necessidade do outro, as suas orientações são distintas ainda que complementares, mesmo quando se trata de conteúdos comuns: à abstração necessária das primeiras corresponde à restituição do concreto nas segundas, e essa é uma função tão primordial no conhecimento do homem como a outra, mas uma função distinta do estabelecimento das leis (PIAGET, 1976, p. 34). Um exemplo mais claro disso, ainda segundo Piaget, é o que ocorre na História das Ciências. Segundo ele: A História das Ciências constitui um exemplo e, dentro dela, a História da Matemática ocupa um lugar excepcional pelos caracteres internos da estruturação progressiva que descreve: assim, atinge necessariamente os problemas centrais da psicologia da inteligência, da sociogênese dos conhecimentos e da epistemologia científica (PIAGET, 1976, p. 34). Fica claro que a velha divisão entre Humanas e Exatas, baseada na ideia de que a Matemática e as Ciências da Natureza produzem conhecimentos construídos a partir de leis, enquanto as Ciências Humanas, ideográficas por excelência, se baseiam em conhecimentos singulares que, aos olhos de muitos físicos e químicos, não são conhecimentos confiáveis. Nada mais falso. A partir dos autores aqui abordados, vemos que a relação entre nomotéticas e ideográficas é mais de complementaridade do que de oposição. Você ainda deve estar pensando: “certo, mas ainda creio que existam diferenças fundamentais”. Você não está equivocado, mas para pensar em mais diferenças, precisamos agora passar 25 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL dos conteúdos em si para a maneira como nos aproximamos deles. Em outras palavras, nós explicamos ou compreendemos a História, o significado não é o mesmo. 1.3 Explicar ou compreender? Partimos agora para outra possibilidade: a de pensarmos a especificidade do discurso histórico e de sua abordagem. Em outras palavras, estudaremos o método usado pelo historiador que, ao estudar um dado assunto, organiza seus argumentos. Nesse caso, eles são organizados de modo que possamos explicar ou compreender. O historiador da antiguidade Paul Veyne escreveu um importante livro chamado Como se Escreve a História e nele discorreu exatamente sobre esse problema, fundamental para compreender a natureza do trabalho historiográfico e sua validade como atividade particular e plena de credibilidade de resgate do passado histórico: Uma vez que essa é a quinta-essência da explicação histórica, é preciso convir que ela não merece tantos elogios e que se distingue muito pouco do gênero de explicação que se pratica na vida quotidiana ou em qualquer romance em que se narra esta vida; ela é somente a clareza que emana de uma narração suficientemente documentada; ela se oferece por completo ao historiador na narração e não é uma operação distinta desta, não mais do que é para um romancista. Tudo o que se narra é compreensível, visto que se pode narrá-lo. Podemos reservar comodamente no mundo do vivido, das causas e dos fins, a palavra compreensão, utilizada por Dilthey; essa compreensão é como a prosa de M. Jourdain, nós fazemos isto desde que abrimos os olhos para o mundo e para nossos semelhantes; para praticá-la e ser um verdadeiro historiador, ou quase, basta ser um homem, isto é, deixar-se levar. Dilthey teria desejado ver as Ciências Humanas recorrerem, elas também, à compreensão: mas, sabiamente, estas (ou pelo menos as que, como a teoria econômica pura, não são ciências somente em palavras) recusaram: supunha que, sendo ciências, isto é, sistemas hipotético-dedutivos, queriam explicar exatamente como o fazem as Ciências Físicas. A História não se explica, no sentido de que ela não pode deduzir e prever (só um sistema hipotético-dedutivo pode fazê-lo); essas explicações não são a volta a um princípio que tornaria o acontecimento inteligível, elas são o sentido que o historiador dá à narração. Aparentemente, a explicação parece, às vezes, tirada do mundo das abstrações: a Revolução Francesa explica-se pela subida de uma burguesia capitalista (não vamos examinar se essa burguesia não era antes um grupo de comerciantes e de magistrados); isso significa, simplesmente, que a Revolução Francesa é a subida de uma burguesia, que a narração da revolução mostra como essa classe ou seus representantes tomaram as rédeas do Estado: a explicação da revolução é o resumo desta e nada mais. Quando solicitamos uma explicação para a Revolução Francesa, não desejamos uma teoria da revolução em geral, da qual se deduziria 1789, nem um esclarecimento do conceito de revolução, mas uma análise dos antecedentes responsáveis pela explosão desse conflito; a explicação não é 26 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I outra coisa senão a narração desses antecedentes, que mostra tudo o que a provocou e pode ser ao mesmo tempo chamado de causas: as causas são os diversos episódios da trama (VEYNE, 1982, p. 83). A questão está colocada: o resgate do passado pela Historiografia seria totalmente crível em virtude do caráter científico da História? E, levando em conta suascaracterísticas fundamentais, nós podemos considerar História como ciência? Vamos analisar a questão: no século XIX, a ciência passou por uma reestruturação para tomar a forma como a conhecemos hoje. Cada vez mais, as distintas áreas foram se aprofundando, no entanto, mantendo em comum um determinado tipo de organização de conteúdo. Essa seria uma tendência verificada já no Renascimento, quando os grandes esquemas explicativos medievais – de caráter integral – foram sendo progressivamente abandonados. Por exemplo, já não fazia mais sentido encontrar uma causa primeira para tudo e as diversas ciências tornaram-se sistemas quase fechados. Não foi diferente com as Ciências Humanas, nascidas já em um ambiente de forte segmentação. As Ciências Sociais, à parte o sucesso que as filosofias da História pudessem ter alcançado no século XIX graças, sobretudo, ao trabalho de Hegel, realizam recortes específicos na realidade, ou seja, os pesquisadores elegem um tempo, um espaço e um dado fenômeno, buscando relações entre essas partes, bem como relações de causa e efeito em torno do fenômeno estudado. No caso da História, seu estatuto científico é reforçado quando ela abandona o campo da especulação filosófica, tal como visto na obra de Hegel e sua descrição do despertar do espírito universal por meio dos acontecimentos históricos. Figura 4 – Hegel 27 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL Observação Hegel criou uma filosofia da História de cunho dialético idealista, criticada anos mais tarde por Marx. Em sua metafísica, reside uma razão para os acontecimentos históricos, vinculados ao progressivo autorreconhecimento do Espírito. A História dos não hegelianos, portanto, é a história científica, que se afasta da especulação metafísica e religiosa de Hegel. Essa crítica de fato sugere uma unidade de método entre as Ciências da Natureza e as Ciências Sociais, afinal o método científico é um só, apesar das diferenças de objeto, era esse o argumento. No entanto, é necessário lembrar que há ainda os que criticam essa unidade de método justamente porque os seres humanos são objetos diferentes dos objetos da natureza, não podem ser tratados como um laboratório e, sendo dotados de razão e vontade, podem escapar à previsibilidade. A questão pode ser colocada ainda da seguinte maneira: se sou um sociólogo ou um historiador, meu objeto é como (ou pode ser como) eu mesmo. Essas questões foram colocadas já no final do século XIX, o século do cientificismo. Aqui nós podemos estabelecer uma diferença importante entre Ciências Sociais e Ciências da Natureza. Embora tenhamos visto que entre as ciências nomotéticas e ideográficas existe de fato uma relação de complementaridade, as ciências ideográficas, em especial as Ciências Sociais como a História, o conhecimento do ser humano sempre parte de uma experiência do sujeito do pesquisador. Ou seja, há um determinado princípio de igualdade entre sujeito e objeto, estabelecendo um contexto de pré-compreensão e compreensão. Assim, as ações humanas podem ser descritas de um ponto de vista externo (tal como as ciências naturais), mas também interno (como finalidade, intenção etc.), algo que os homens do século XIX chamaram de ciências do espírito (geist, “espírito” em alemão). Não confunda com fantasma! A linguagem simbólica, a interpretação, o espírito aventureiro, tudo isso pode ser conhecido a partir do pressuposto de que as pessoas estudadas são como nós, e isso estabelece a possibilidade de compreensão (Geistwissenschaft, a ciência do espírito). O conhecimento da vida interior é possível levando em conta que por sermos todos humanos, nossas paixões, medos e esperanças são os mesmos. Podemos sentir a profunda dor e decepção de Júlio César que, jazendo no chão do senado romano após ser apunhalado, viu dentre seus assassinos muitos de seus antigos aliados. Da mesma forma é possível entender por que Napoleão teria sido derrotado em Waterloo se nós considerarmos verdade a anedota de que ele teria sido acometido por um desarranjo intestinal e, por isso, se equivocado em suas estratégias. Você diria: “é compreensível, afinal deve ter sido muito duro para César saber que foi traído, e que Napoleão tenha perdido a guerra, já que dores intestinais tiram qualquer pessoa do eixo”. Sim, é compreensível, mas vá com calma: tais argumentos não permitem uma explicação correta, mas somente uma explicação. Uma estratégia muito usada é o emprego de analogias do presente para explicar o passado, embora o risco de anacronismo – avaliar o passado com valores do presente – seja alto. Vamos supor que você queira estudar, ao modo do século XIX, o processo de colonização do Mediterrâneo pelos gregos. Você pode estabelecer diversas causas: concentração fundiária, períodos de estiagem, 28 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I guerra civil, ampliação do comércio e, dentro dessas causas, discorrer sobre a necessidade psicológica do descobrimento, da expansão, de eliminar o desconhecido. Pode também discorrer sobre o espírito aventureiro dos colonos de Siracusa. Repare que por mais fora de moda que estejam tais explicações na academia, nada impede de levarmos em consideração o espírito pioneiro dos colonos gregos. De qualquer maneira, devemos refletir profundamente sobre as causas determinantes de tal empreendimento: haveria colonização do Mediterrâneo se as terras na Hélade fossem suficientes para todos? Apenas o espírito aventureiro pode explicar a colonização? O que seria mais importante, nesse caso? O outro lado da moeda também é verdadeiro: dificilmente um bando de covardes se arriscaria em mar aberto, talvez preferindo viver sob a penúria da escravidão do que perder a própria vida. Repare que temos aqui um elemento interessante para pensarmos o “fascínio” da História entre muitas pessoas, assim como sua utilização para fins políticos e o enaltecimento dos heróis: a identificação possível com os homens do passado. Dessa forma, podemos até considerar que as ciências do espírito são mais completas do que as ciências da natureza já que podem se ocupar de aspectos externos e internos, enquanto as ciências da natureza não podem avaliar senão fenômenos externos. Dificilmente um químico compreenderá as motivações de uma molécula de carbono, e um físico, as da aceleração de um veículo se considerar o motorista e seu universo psíquico. Na antiga Ciência do Espírito (a Geistwissenschaft), a ideia central era compreender e, a partir do exemplo descrito anteriormente, fica explícita a diferença entre compreensão e explicação. As ciências da natureza explicam e as ciências do espírito (podemos aqui fazer uma analogia com as Ciências Humanas de forma geral) compreendem, pois o pesquisador tem algo em comum com seu objeto. Esse argumento, muito difundido na Alemanha do século XIX, é a base da hermenêutica, um antigo método de compreensão de textos bíblicos que posteriormente foi utilizado como um método de interpretação histórica. Deixemos de lado, portanto, a diferença entre nomotéticas e ideográficas e a questão da verdade e sua relação com o estabelecimento de leis e pensemos um pouco mais sob a perspectiva que está sendo apresentada agora. A explicação se refere a uma atitude empiricista, descrevendo a observação de fenômenos externos e a compreensão se relaciona com as ciências do homem, pois procura intenções nos fenômenos humanos. Essas intenções não são somente descritas, mas interpretadas pelo sujeito de conhecimento e, dessa forma, poderíamos dizer que com a hermenêutica, as Ciências Humanas resgataram uma dimensão filosófica que tinha se perdido quando as ciências naturais assumiram um aspecto de descrição e relaçõescausais entre fenômenos. O maior expoente da hermenêutica é Wilhelm Dilthey, que procurou reintegrar as Ciências Humanas sob á égide da hermenêutica, sendo o maior expoente dessa abordagem. A hermenêutica de Wilheim Dilthey e a reflexão epistemológica nas Ciências Humanas contemporâneas Este trabalho discute, fundamentalmente, a tentativa de Wilheim Dilthey, em fins do século XIX e início do século XX, dentro da chamada “hermenêutica romântica” alemã, de estabelecer diferenças entre a lógica do conhecimento nas ciências naturais e nas Ciências Humanas. Dilthey buscava os fundamentos filosóficos e epistemológicos de uma forma de conhecimento científico alternativo ao conhecimento “positivista” e “naturalista”. Suas ideias eram bem sintonizadas com as preocupações e discussões teóricas do final do século. Nas palavras de Dilthey: 29 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL As ciências que têm a realidade sócio-histórica como seu objeto de estudo buscam, mais intensamente do que antes, as relações sistemáticas entre elas e com os seus fundamentos. Condições dentro de várias ciências positivas estão operando nessa direção, associadas às forças poderosas originadas a partir dos motins na sociedade, desde a Revolução Francesa. O conhecimento das forças que governam a sociedade, das causas que têm produzido estas revoluções e dos recursos da sociedade para promover o progresso saudável têm se tornado uma preocupação vital de nossa civilização. Consequentemente, relativas às ciências naturais, é crescente a importância das ciências que lidam com a sociedade (DILTHEY, 1989, p. 56). Dilthey, que analisou a causalidade na História criticando a visão positivista e a empiricista, afirmava não ser possível no campo das “ciências do espírito” (Geissenswissenchaften) ou das Ciências Humanas, falar em “leis gerais”, questionava o próprio conceito de “causa”, pois, para ele, esse conceito implicava a ideia de necessidade e inexorabilidade, sendo mais correto pensar em termos de “motivos”, de “desejos” para explicar situações de mudança. Desse modo, pode-se dizer que uma questão subjacente à abordagem antinaturalista de Dilthey é: como a compreensão dos significados pode ser elevada ao mesmo nível de clareza metodológica característico das ciências da natureza? Quais são os métodos que permitem uma leitura objetiva das estruturas simbólicas de qualquer tipo, incluindo ações, práticas sociais, normas e valores? Essa problemática refere-se, portanto, a uma busca de cientificidade para as ciências interpretativas, numa época em que as ciências da natureza avançavam rapidamente. O conceito filosófico central era, sobretudo, o conceito de explicação (Erklärung) e evidenciava-se a distinção, nas Ciências Sociais e na História, entre explicar (Erklären) as ações e as crenças humanas e compreender (Verstehen) seus significados. A partir disso, duas abordagens se diferenciavam quanto ao estudo da ação humana. Uma abordagem “positivista”, que investia na compreensão de significados apenas como uma reconstrução imaginativa das intenções ou propósitos dos atores. O aspecto científico, mais próximo da verdade, no estudo da ação seria a possibilidade de construção de hipóteses explicativas que deveriam ser incorporadas às teorias gerais sobre o comportamento humano e verificadas ou testadas através de métodos seguros de observação empírica. Acreditava-se que o resultado seria a unificação das ciências, numa estrutura única para os diversos campos de pesquisa. Tal estrutura seria a identificação de sequências regulares de comportamento e a possibilidade de formulação de leis universais e de teorias para, através delas, predizer ou explicar a ocorrência dos eventos. De outro lado, na abordagem interpretativa, os teóricos da “Verstehen” e da “Hermenêutica” argumentavam que as Ciências Sociais e a História não poderiam ser adaptadas à lógica das Ciências Naturais porque a compreensão interpretativa tem um papel diferente nas ciências. E, assim, compreender uma dada ação ou credo é um trabalho científico que precede a explicação do porquê da ocorrência da ação. Seria um trabalho de leitura da situação, de análise do contexto ao qual a ação ou crença pertencem, 30 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I compreendendo-as sob a ótica de outras ações e crenças historicamente constituídas. A construção de hipóteses explicativas e seus testes empíricos se tornariam problemas de interpretação dependentes de uma pressuposição específica de como é o evento a ser explicado e, portanto, de como ter acesso ao significado (WARNKE, 1987, p. 7). Os trabalhos de Dilthey foram produzidos entre 1870 e 1910, sendo Introduction to the Human Sciences (1883) o primeiro trabalho sistemático. Essa obra de Dilthey é um exame filosófico das Ciências Humanas, caracterizado em sua dedicatória como uma “crítica da razão histórica”. É considerado, por Makkreel e Rodi (1989, p. 3), o primeiro trabalho em que Dilthey descreve, em detalhes, a importância de distinguir as Ciências Humanas das ciências naturais. Para os referidos autores (1989, p. 4-5), Dilthey foi visto primeiramente como um historiador sensível da cultura, não apenas por suas críticas literárias, mas também por sua valorosa contribuição para a história da filosofia, sobretudo, pela descoberta das primeiras ideias de Hegel. Outros estudos relevantes elaborados por Dilthey são: Ideas Concerning a Descritive and Analytical Psychology e The Formation of the Historical World in the Human Sciences (1910), além de uma série de estudos intermediários. As ideias sequentes estão estruturadas em três pontos principais: o primeiro ponto é o significado dos termos “Verstehen” e “hermenêutica” dentro da perspectiva da chamada “hermenêutica romântica” de Dilthey; o segundo ponto refere-se aos principais conceitos de sua teorização como “experiência interna e externa”, “causalidade”, identificando duas fases na sua compreensão da ação humana, [em que] ele passa de uma etapa marcada pela compreensão psicológica a outra, mais centrada na compreensão hermenêutica. Fonte: Scocuglia, (2002). Saiba mais Para mais informações sobre o assunto, consulte: DILTHEY, W. Introduction to the Human Sciences. Tradução Michael Neville. New Jersey: Princeton University Press, 1989. 1 v. (Selected Works). MAKKREEL, R. A.; RODI, F. Introduction. In: DILTHEY, W. Introduction to the Human Sciences. New Jersey: Princeton University Press, 1989. 1 v. (Selected Works). WARNKE, G. Gadamer: hermeneutics, tradition and reason. California: Stanford University Press, 1987. 31 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL Talvez você tenha se animado a colocar a mão na massa e começar a escrever vários livros de História. Afinal, se é só interpretar, então, é muito fácil, não é tão simples quanto parece e muitos pesquisadores de fato cometem o erro de classificarem suas análises como “hermenêuticas”, até mesmo quando lhes falta um método mais claro de análise. Não que você não tenha condições de fazer uma análise hermenêutica, mas é necessário observar algumas informações. Compreensão se liga a um bom uso da linguagem, sendo um esforço intelectual compreender onde o outro se encontra pelo mero fato de ser o intelecto a ferramenta principal: é uma compreensão lógica. Assim, não se trata tanto do conteúdo em si ou da particularidade de um evento, mas de uma estrutura lógica que é mantida através da própria expressão textual do evento a ser estudado. Enquanto na Sociologia de Emile Durkheim, os fatos sociais são “coisificados”(por distanciamento ou neutralidade), na compreensão hermenêutica, um dado fato social é produto de um entrelaçamento, ou ainda, uma significação entrelaçada, e o hermeneuta tenta justamente interpretar e compreender esses nós. E o que chega até nós como documentos históricos? Muitas coisas, mas levemos em conta por um momento que o grosso dos documentos se constitua de textos. Ou ainda, que na época de Dilthey, o documento escrito se constituía no corpo heurístico por excelência. A decifração das palavras está na base da hermenêutica porque se relaciona com a condição humana. De qualquer modo, é importante levar em conta as especificidades do objeto para não cairmos em um autoritarismo do sujeito de conhecimento, com o perigo de esvaziarmos nosso objeto. É como ir a uma tribo indígena e interpretar sua organização, ritos e mitos a partir de nossas categorias, pura e simplesmente. Claro que deve haver certo relativismo, mas nossa interpretação não estaria de todo errada, sobretudo porque produzimos conhecimento sob certas circunstâncias para os nossos pares. O cuidado com a analogia é justamente o esforço intelectual que devemos empreender para chegar a um conhecimento adequado de nosso objeto. Usando um exemplo pessoal, o autor deste livro-texto realizou um estudo acadêmico, a fim de obter o título de mestre, sobre arquivos na Antiga Mesopotâmia. Grande parte das dificuldades do trabalho foi justamente utilizar os conceitos que temos disponíveis para interpretar fenômenos como a reunião de tabletes em um só lugar, tramitação de tabletes cuneiformes etc. Tudo leva a crer que, no passado sumério, já havia uma burocracia bem estabelecida, com uma hierarquia de pessoal e arquivos bem cuidados e organizados. Fica fácil, portanto, imaginar como grandes cidades como Uruk, ou grandes impérios como o assírio, puderam existir e prosperar. Essa é uma primeira aproximação e não é incorreta de todo, mas seria algo muito primário e não estaríamos sendo honestos com nosso objeto, já que não existe mais e não haverá nenhum sumério que diga “espere um pouco porque não é bem assim”. Assim, é necessário fazer um exame conceitual. Burocracia, arquivo, estrutura, todos esses conceitos funcionam razoavelmente bem para os tempos atuais, até porque foram criados e reformulados segundo a observação de fenômenos recentes. Utilizando um exemplo que parte de uma interpretação clássica sobre o assunto: a burocracia se refere a uma organização do poder legal e racional como diria Max Weber. Tais conceitos não existiam na Mesopotâmia e o poder nem era sustentado por tais princípios. Ou seja, uma mera reunião de documentos e hierarquia de pessoas não pode ser imediatamente reconhecida como burocracia. Há, de fato, um debate que afirma ou não a possibilidade de se pensar a organização do poder na Antiguidade 32 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I como burocracia. Podemos pensar, por sua vez, que a atual burocracia é uma forma dentre tantas de organização do poder – um fenômeno específico, mas não absolutamente incompreensível. Podemos pensar, por exemplo, os critérios de relevância dos antigos para classificar suas informações. De fato, buscamos objetividades mínimas. Dilthey (1989) reconhece em sua obra que, pelo método hermenêutico, podemos ampliar nossas percepções através do reconhecimento da diversidade de experiências humanas. Podemos ainda ampliar nossos conceitos e limitações pessoais a partir do estudo da história dos povos. No caso de livros, os romances históricos partem da possibilidade de compreensão para cativar os leitores, já que sabemos o que o autor sente através das personagens que ele escreve. Por isso podemos ler os clássicos – da Grécia até o século XX – e perceber o quanto eles são atuais, melhor dizendo, atemporais. Assim, é possível reconstruir a experiência humana através de um intelecto disciplinado e por experiência pessoal. Outro aspecto importante, no caso da análise histórica, é levar em conta a necessidade de se registrar o que está sendo abordado, bem como o trajeto desse documento até chegar a nossas mãos. O vestígio condiciona a ação do sujeito histórico em sua preocupação em materializar sua ação ou pensamento, o que poderíamos entender como uma operação hermenêutica. O pensamento de Dilthey foi aprimorado ao longo do tempo – principalmente nas universidades de matriz anglo-saxã – e em tempos mais recentes, temos a obra do historiador R. G. Colingwood, que trata da questão da hermenêutica após a História ter passado por importantes transformações no início do século XX, sobretudo após ter passado pelo pensamento de Benedetto Croce que, grosso modo, criticou duramente Dilthey e sua abordagem interpretativa. Collingwood trata mais especificamente da questão da Historiografia, buscando resgatar a validade da interpretação no discurso histórico após uma série de críticas importantes. Uma delas, de Hempel (1984), acusa a hermenêutica de ser extremamente subjetiva, já que está no nível do sujeito humano e que não pode, portanto, haver cientificidade em tal nível. O que Collingwood sugere, por sua vez, é que tais críticas não estão considerando um aspecto central da hermenêutica: a busca por um sujeito coletivo, e não um sujeito individual (COLLINGWOOD, 1978). A diferença reside justamente na possibilidade de investigarmos um sujeito que, a despeito das diferenças de espaço e tempo, permite ser compreendido levando em conta uma objetividade mínima referente à unidade da humanidade. Collingwood utiliza o termo re-enactement para descrever e compreender o passado e não pode ser confundido como interpretação individual ou pessoal, ou mesmo empatia. Com esse termo, o historiador literalmente “reencena” um momento histórico, indo ao passado com as influências do presente e levando em conta que é impossível se desfazer de tais influências. Assim, o re-enactement é de fato uma operação racional, tanto porque é impossível desvincular-se do próprio momento histórico como é um esforço para realizar uma compreensão objetiva do passado, e não um mero envolvimento afetivo com o objeto (COLLINGWOOD, 1978). Voltando aos exemplos anteriormente dados, se o historiador chora convulsivamente cada vez que lê sobre o desfecho trágico de Júlio César, ele não está agindo como um historiador. Ele pode compreender distanciadamente as motivações de seu assassinato sem precisar lamentar profundamente a morte do ditador de Roma e o quanto ele era “bom”. 33 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL Lembrete Ao se realizar uma pesquisa historiográfica, deve-se buscar o máximo de neutralidade. No entanto, a neutralidade total é impossível, e isso já era admitido pelos próprios cientistas no século XIX. Outro exemplo seria pensar sobre as ideias de Platão. Ao estudar as ideias platônicas, estaríamos guardando suas estruturas mentais, racionais, por uma ferramenta interpretativa. É Platão pensado pelos pesquisadores atuais com os problemas de hoje, mesmo que Platão em sua época tenha respondido questões levantadas em seu contexto. De alguma forma, os escritos de Platão já não pertencem mais a ele, aliás, ele “é” o seu texto e a realidade da obra está nos problemas que suscitam questões para determinado contexto. E essa recuperação do pensamento é o que se chama de re-enactement, nas ideias de Collingwood. É verdade que tal concepção encontra muitas barreiras atualmente em virtude do intenso relativismo, mas devemos ter em mente que agimos assim cotidianamente, pois é uma ferramenta básica de sociabilidade. Compreender, nesse caso, está além das limitações estruturais da palavra que, como qualquer linguagem, está sujeita à uma imperfeiçãooriginal. A palavra é o pensamento, que se organiza em torno dessa linguagem e está sujeita a certas sutilezas de interpretação. Em todo o caso, as possibilidades da interpretação são muito restritas (ainda mais quando há clareza na linguagem), e com isso é possível recriar experiências: desde o aluno quando reelabora as informações recebidas pelo professor, assim como o historiador, que mantém em seu poder as informações advindas de um documento. Se algum dia você se interessar em estudar a cultura babilônica, não se preocupe: por mais que existam dificuldades de tradução e as visões de mundo sejam altamente distintas, ainda é possível “reencenar” o passado mesopotâmico. Paul Veyne, por sua vez, é partidário da ideia de que a História não é uma ciência e nem precisa sê-lo, pois o estabelecimento de causas e de conceitos pelo historiador não parte tanto de uma teoria, mas da observação da realidade vivida. Assim Veyne, de maneira provocativa, afirma que não existe história enquanto uma área de conhecimento, pois “tudo é história”. [...] a verdade não é simplesmente que todas as causas são verdadeiras, que a boa explicação é aquela que tem em conta todas? Justamente não, e aí é que está o sofisma do empirismo: crer que se pode reconstituir o concreto por meio de abstrações científicas adicionadas. O número de causas divisíveis é infinito, pela simples razão de que a compreensão causal sublunar, melhor dizendo, a História, é descrição, e que a quantidade de descrição possível de um mesmo acontecimento é indefinida. Em determinada trama, a causa será a ausência do aviso “estrada escorregadia” naquele lugar; em outra, o fato de que os carros de turismo não têm freios de paraquedas. Das duas coisas, uma: quando se deseja uma explicação causal completa, ou se fala de causas sublunares (não havia sinal, e o motorista ia depressa demais) ou de leis (as forças vivas, o coeficiente 34 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I de aderência dos pneus...). Na primeira hipótese, a explicação completa é um mito comparável ao do geometral de acontecimento que integraria todas as tramas. Na segunda, a explicação completa é um ideal, uma ideia reguladora aliada à de determinismo universal; não se pode colocá-la em prática, e se o pudéssemos, então a explicação deixaria rapidamente de ser maleável. (Um exemplo: não se pode nem mesmo calcular os movimentos da suspensão do automóvel na estrada ondulada; pode-se escrever integrais duplas ou triplas sobre esse assunto, mas ao preço de tais simplificações – a suspensão será imaginada não tendo molas e as rodas completamente achatadas – a teoria não seria utilizável.) O que coloca uma barreira entre a História e a ciência não é a adesão à individualidade, ou a relação de valores ou o fato de que João sem Terra não torne a passar por lá: é o fato de que a doxa, o vivido, o sublunar são uma coisa, de que a ciência é uma outra e de que a História está do lado da doxa (VEYNE, 1982, p. 136). Saindo um pouco do campo da compreensão, falemos um pouco mais a respeito da explicação, o que ela significa e qual as implicações de explicar aquilo que é próprio do ser humano. Afinal, existe essa possibilidade? Não devemos esquecer que devemos, ao compreender, evitar a empatia para chegar a uma compreensão racional. Portanto, afirmar a primazia da explicação sobre a compreensão apelando para a irracionalidade da segunda é algo fora de questão. A noção de explicação surge no mesmo cenário da compreensão, sendo ambas frutos de uma mesma tendência. O fato de a compreensão se ligar mais às humanidades naturalmente impulsionou a História para esse campo. A explicação ocorre no reino das ciências da natureza (também às vezes chamadas de ciências empíricas) e parte de uma pergunta fundamental: por quê? Com tal questão, buscam-se sempre respostas definitivas. Assim, para estabelecer respostas definitivas, o cientista formula leis gerais que possam representar matematicamente um fenômeno que se repete. Um autor que lida justamente com esta questão é Carl Gustav Hempel (1984), tratando em especial da crise do paradigma newtoniano (em vários aspectos), sobretudo em relação ao estabelecimento de leis gerais de funcionamento da Física, bem como das relações mecânicas de causa e efeito. A crise do paradigma newtoniano e a consequente reflexão do que seria o estatuto científico leva a um questionamento do conceito de ciência como uma linha contínua de desenvolvimentos. Mais do que progresso, vemos na ciência um conjunto de rupturas e quebras de paradigmas, sendo difícil imaginar que há uma grande linha de desenvolvimento desde a Antiguidade. De fato, há que se fazer uma analogia aqui ao célebre conceito de Revolução Científica de Thomas Kuhn, que versa sobre uma ruptura e um recomeço. Embora você (e eu também) tenha aprendido na escola que a ciência surgida no Renascimento tenha se voltado contra a Igreja e buscado referenciais clássicos e, por isso, é revolucionária, isso é incorreto na medida em que a Escolástica, com todas as suas limitações, partia de determinadas concepções aristotélicas, assim como das ideias de Platão – através da obra de Santo Agostinho – que também foram usadas para interpretar o mundo na Idade Média. O que aconteceu foi que determinados aspectos das obras desses filósofos foram deixados de lado e outros foram incorporados e aí está a natureza da ruptura: a ideia de Revolução, nesse caso, é ideológica. Na 35 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL prática, a matriz teórica sempre foi a mesma. Aliás, já se sabia, na Idade Média, que a Terra não era plana, mas a teoria da terra achatada era tão pitoresca que hoje temos a ideia de que todos pensavam assim naquele tempo. A concepção predominante era a da Terra esférica. Então as rupturas, que marcam a História da Ciência, são numerosas, mas precisamos encontrar a natureza dessas rupturas. Figura 5 – Gravura do século XVII sugerindo uma continuidade entre Aristóteles, Pitágoras e Galileu Hempel afirma que é importante se questionar sobre o que é explicar cientificamente. O que explica a ciência se explica? Uma questão feita por muitos filósofos da ciência que buscam reavaliar seu poder explicativo através dos métodos convencionais. De qualquer modo, é necessário lembrar que a explicação, normalmente usada no campo das ciências naturais, também foi utilizada nas humanidades justamente para dar-lhes um caráter “científico” na medida em que seria possível encontrar leis gerais da História, por exemplo. Assim, o que se busca, nesse caso, é uma unidade de método, ou seja, tanto a História como as ciências da natureza partem de um mesmo pressuposto: a existência de leis gerais que possam validar o discurso científico. Por lei geral, entenderemos aqui uma afirmação de forma condicional e universal capaz de ser confirmada ou infirmada por meio de adequadas descobertas empíricas. O termo “lei” sugere a ideia de que a afirmação em causa é de fato bem confirmada pelas provas relevantes ao nosso alcance; como esta qualificação é, em muitos casos, irrelevante para o nosso objetivo, usaremos frequentemente o termo “hipótese universal” em vez de “lei geral” e, se necessário, apresentaremos em separado a condição para uma confirmação satisfatória. Considere-se, nesse contexto, que uma hipótese universal exprime uma regularidade do gênero seguinte: em todos os casos em que um evento do tipo C ocorra em determinado lugar e tempo, um outro 36 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I evento. E ocorrerá num lugar e num tempo de modo típico relacionadoscom o lugar e o tempo da ocorrência do primeiro evento (HEMPEL, 1984. p. 422). Repare, portanto, que Hempel está de certa forma tornando a ideia de lei mais flexível, justamente para que possa dar conta dos fenômenos em geral estudados pelas Ciências Humanas. Repare também que ele busca incessantemente adequar a realidade a um método unificado partindo de uma premissa importante: os fenômenos nos aparecem como tais e são organizados como fenômenos da natureza ou sociais apenas por uma convenção teórico-metodológica. Assim, o autor busca igualar as condições de ocorrência de tais fenômenos: Com efeito, o objeto de descrição e explicação em todo e qualquer ramo da ciência empírica é sempre a ocorrência, num dado espaço de tempo e de lugar, de um evento de certo tipo (como por exemplo, uma descida de temperatura de 14º F, um eclipse da lua, a divisão de uma célula, um terremoto, um aumento de emprego ou um assassínio político), ou num dado objeto empírico (como, por exemplo, o radiador de certo automóvel, o sistema planetário, uma determinada personalidade histórica etc.) num tempo determinado (HEMPEL, 1984, p. 423). Ao propor a unidade de método, Hempel (1984) constrói seu argumento em torno da ideia de que, na prática, tais áreas de conhecimento são semelhantes na medida em que as próprias ciências da natureza também lidam com individualidades, algo que já vimos anteriormente. Para estabelecer seu método unificado, ele parte de algumas condições importantes: [...] é possível explicar um evento individual no sentido de levar em conta todas as suas características por meio de hipóteses universais, embora a explicação daquilo que aconteceu num lugar e num tempo determinados possa ir se tornando cada vez mais específica e compreensiva. Nesse aspecto, não existe, porém, qualquer diferença entre a história e as ciências naturais; tanto uma como outra, só em termos de conceitos gerais, podem explicar os respectivos temas, e à história não é mais nem menos possível apreender a individualidade única dos seus objetos de estudo do que à física e à química (HEMPEL, 1984, p. 424). Ao sermos, portanto, confrontados com a possibilidade de estabelecer um método unificado para as ciências da natureza e para as Ciências Sociais, levando em consideração que os fenômenos se apresentam de maneiras semelhantes e que seria absurdo persistir nessa separação (por mais problemática que seja essa discussão), devemos atentar para o problema das causas e consequências. Se essa unidade de método for possível, qual o impacto de um fator ou causa no desenrolar de um processo histórico? Quais são as causas determinantes ou secundárias? Como estabelecer essa hierarquia? As causas são sintomas de uma explicação generalizante e probabilística, o que se relaciona com o peso dado a uma ou a outra causa. E aqui temos uma questão fundamental: você, como professor de História, deve saber que, ao elencar uma série de fatores em aula em torno de um dado tema, espera-se que um 37 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL deles ou um conjunto deles possa levar a uma consequência viável a partir da nossa experiência sobre o assunto. É de se esperar que fome e miséria causem revoluções, mas é muito difícil provar que o naufrágio do Titanic tenha causado o atentado às torres gêmeas em 2001, ou que o trânsito de Júpiter em Sagitário seja responsável pela promoção de seu cunhado. Poderíamos, portanto, pensar que há determinadas leis agindo ocultamente na História? Seria mais apropriado dizer que existem certas generalizações possíveis, pressupostas em nosso discurso e em nossa experiência, que é compartilhada e, portanto, comunicável. Mas, mesmo assim, não há concordância total: alguém pode pensar que revoluções são causadas por uma massa de vagabundos ignorantes e oportunistas que ousam desafiar a ordem estabelecida, que fome e miséria são simples desculpas para causar baderna. Como afirmou Edward Carr: Como qualquer outra pessoa, o historiador acredita que as ações humanas têm causas que, em princípio, podem ser averiguadas. Sem esse pressuposto, a História, como a vida cotidiana, seria impossível. A função especial do historiador é a de investigar essas causas. Talvez isso lhe dê um especial interesse pelo aspecto determinado do comportamento humano: mas ele não rejeita o livre arbítrio – exceto na hipótese insustentável de que as ações voluntárias não têm causa. Nem ele se preocupa com a questão da inevitabilidade. Os historiadores, como as outras pessoas, às vezes, caem numa linguagem retórica e falam de uma ocorrência como “inevitável” quando querem apenas significar que a conjunção de fatores que levaram a esperá-la era irresistivelmente forte. Recentemente, andei procurando a palavra ofensiva na minha própria Historiografia e não posso dar a mim mesmo um atestado de que “nada consta”. Num determinado trecho, escrevi que, após a Revolução de 1917, um confronto entre os bolcheviques e a Igreja ortodoxa era “inevitável”. Sem dúvida, teria sido mais sensato dizer “extremamente provável”. Mas posso ser acusado de achar a correção um pouco pedante? Na prática, os historiadores não afirmam que os acontecimentos sejam inevitáveis antes que eles tenham ocorrido. Frequentemente discutem cursos alternativos que possam ser tomados pelos personagens da História, na suposição de que havia opção, embora prossigam explicando, com razão, por que se preferiu um caminho e não outro. Nada na História é inevitável, exceto no sentido formal de que, para ter acontecido de outra forma, as causas antecedentes deveriam ter sido diferentes. Como historiador, estou perfeitamente preparado para passar sem “inevitável”, “irrevogável”, e mesmo “inelutável”. A vida será mais monótona. Mas deixemos o assunto para os poetas e metafísicos (CARR, 2002, p. 108). Mas é possível prever acontecimentos históricos a partir de tais generalidades? É possível estabelecer uma relação entre as guerras civis na Atenas arcaica e a ascensão da burguesia medieval? Estamos dando um passo muito grande ao falar em previsão e o próprio Hempel, um historiador positivista que propõe um método unificado, é muito cauteloso ao usar essa palavra. Segundo ele: A previsão, na ciência empírica, em deduzir uma afirmação acerca de certo evento no futuro (por exemplo, a posição dos planetas em 38 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I relação ao Sol, numa data futura) de afirmações que descrevam certas condições (passadas e presentes) já conhecidas (por exemplo, as posições e os movimentos dos planetas num momento passado ou presente) a de leis gerais adequadas (por exemplo, as leis da matemática celeste). Assim, a estrutura lógica de uma previsão científica é a mesma que a de uma explicação científica [...]. De um modo especial, não menos do que a explicação, implica sempre a previsão nas ciências empíricas uma referência a hipóteses empíricas universais. A distinção usual entre explicação e previsão reside sobretudo numa diferença pragmática entre as duas. Enquanto, no caso de uma explicação, se sabe que o evento final aconteceu e é necessário procurar suas condições determinantes, no caso de uma previsão a situação inverte-se: aqui, são dadas as condições iniciais e há que determinar o seu “efeito” – que, no caso típico, não teve ainda lugar (HEMPEL, 1984, p. 425). Portanto, a previsão de fenômenos não corresponde em absoluto a uma expectativa generalizante acerca de um determinado assunto. Ao falarmos sobre a transição da República Romana para o Império em sala de aula, estaremos, na realidade, fazendo uma análise posterior: já sabemos o que houve e estaremos tão somente comunicandoaos alunos as causas segundo uma interpretação historiográfica tradicional. É diferente de programar uma viagem a Plutão e encontrá-lo ali como foi previsto antes do lançamento da sonda New Horizons a partir do conhecimento da mecânica celeste. Obviamente há algumas pessoas que buscam fazer previsões políticas, geralmente especulações, baseadas em um passado próximo. Ou ainda, o que teria acontecido se Hitler tivesse ganhado a Segunda Guerra? Tanto as previsões como a fantasia partiriam de algumas concepções possíveis que, de certa forma, se associam com certa previsibilidade da História. Hitler poderia ter vencido a guerra e morrido engasgado com um osso de frango no banquete da vitória. Na prática tanto faz, pois o resultado não é verificável. E quanto aos analistas políticos? Exemplo de aplicação Muito se fala sobre descobertas científicas, em geral, sob o aspecto da descoberta de leis fundamentais da natureza, mas o conceito de descoberta precisa ser analisado. A previsibilidade dos fenômenos é um aspecto fundamental da ciência tal como a concebemos. A ideia de que a natureza funciona por meio de “leis gerais” já foi estabelecida no século XVII. Mas é bom lembrar-se de uma discussão importante: as leis estão ali para serem descobertas ou as leis da natureza na realidade são uma interpretação do próprio cientista, que “inventa” uma lei? 39 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL Figura 6 Observação O conhecimento da mecânica celeste permite ao astrônomo fazer previsões relacionadas às posições planetárias em um dado momento. Já o historiador estabelece causas e consequências dentro de certa previsibilidade, o que não significa prever o futuro. Há, na História, algumas determinações. Não trabalharemos com a hipótese de que exista uma determinação divina, mas sim modelos teóricos que possuem como pressupostos tendências históricas sempre verificáveis, uma suposição de regularidades. A determinação, no caso, se dá a partir da presença de certos elementos que anunciam um dado resultado: fome, miséria e instabilidade social normalmente causam revoltas. Há, portanto, certo determinismo. Mas há ao menos dois tipos de determinismo: o forte e o fraco. No forte, há o conhecimento de absolutamente todas as circunstâncias e as causas que, quando colocadas em conjunto, podem levar a previsões de fenômenos. Um exemplo clássico nesse sentido é a história marxista, que parte da constatação de elementos idênticos ocorridos em toda a História, com desfechos iguais. Respondendo a uma questão colocada anteriormente, a relação entre eupátridas gregos e nobres medievais, do ponto de vista da história marxista, é direta já que ambos se constituem na classe dominante de suas épocas e foram ameaçados pelas classes economicamente ascendentes, os demiurgos gregos e a burguesia medieval. São expoentes da luta de classes. O determinismo não é um problema de História, mas de todo comportamento humano. O ser humano – cujas ações não têm causa e são, portanto, indeterminadas – é uma abstração tão grande quanto o indivíduo fora da 40 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I sociedade de que tratamos numa conferência anterior. A afirmação do professor Popper de que “tudo é possível quando se trata do homem” tem importância ou então é falsa. Normalmente ninguém acredita ou pode acreditar em tal coisa. O axioma de que tudo tem uma causa é uma condição da nossa capacidade de entender o que se passa à nossa volta. A sensação de pesadelo dos romances de Kafka reside no fato de que nada do que acontece tem uma causa aparente ou uma causa que possa ser explicada: isso leva à total desintegração da personalidade humana, o que se baseia no pressuposto de que os acontecimentos têm causas, descobrindo-se que muitas dessas causas constroem na mente humana um padrão do passado e do presente, suficientemente coerente para guiar a ação. A vida cotidiana seria impossível, a menos que se presumisse que o comportamento humano foi determinado por causas que são em princípio verificáveis. Em certa época, algumas pessoas consideraram blasfêmia investigar as causas dos fenômenos naturais, desde que estes eram obviamente governados pela vontade divina. A objeção de Sir Isaiah Berlin à nossa explicação do porquê da ação humana, à base de que estas ações eram governadas pelo arbítrio do homem, pertence à mesma ordem de ideias e talvez indique que as ciências sociais estão hoje no mesmo estágio de desenvolvimento em que estavam as ciências naturais quando esse tipo de argumento foi dirigido contra elas (CARR, 2002, p. 102). O determinismo fraco não apresenta uma certeza absoluta dos eventos que acontecerão, mas tão somente generalidades ou situações hipotéticas. Segundo Edward Carr, a expectativa de certas regularidades se refere à própria condição humana, e o problema do raciocínio estritamente causal em História ocorre quando se afirmam leis e regularidades rígidas (CARR, 2002). O modelo do determinismo fraco é o mais usado pelos analistas políticos e por historiadores que comunicam certas tendências a partir da experiência histórica. Não são videntes, mas tão somente pesquisadores que partem do princípio de que a previsão total é basicamente impossível. Edward Carr (2002) discorre ainda sobre causas acidentais na História, chamando a atenção para o fato de que a recusa ao determinismo literalmente jogou a História anglo-saxã em um mar de situações absolutamente imprevisíveis, e que o curso histórico seria nada mais do que uma mera seleção de acidentes. Segundo ele: Esta é a teoria de que a História é, de modo geral, um capítulo de acidentes, uma série de acontecimentos determinados por coincidência do acaso e atribuíveis somente às causas mais casuais. O resultado da Batalha de Actium não foi devido ao tipo de causas comumente postuladas pelos historiadores, mas à paixão de Marco Antônio por Cleópatra. Quando Bajazet foi impedido de invadir a Europa Central por um ataque de gota, Gibbon observou que “uma indisposição que afete a fibra de um homem pode evitar ou suspender a infelicidade das nações”. Quando o rei Alexandre da Grécia morreu no outono de 1920 devido a uma mordida de um macaco de estimação, esse acidente acarretou uma série de acontecimentos que levaram Sir Winston Churchill a comentar que “duzentas 41 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL e cinquenta mil pessoas morreram dessa mordida de macaco”. Tomemos outra vez o comentário de Trótski sobre a febre que contraiu enquanto caçava patos e que o pôs fora de ação num dos momentos críticos de sua luta com Zinoviev, Kamenev e Stálin no outono de 1923: “pode-se prever uma revolução ou uma guerra, mas é impossível prever as consequências de uma caçada de patos selvagens no outono”. A primeira coisa a ser esclarecida é que esta questão não tem relação alguma com o problema do determinismo. A paixão de Marco Antônio por Cleópatra ou o ataque de gota de Bajazet, ou o calafrio de febre de Trótski foram determinados tão casualmente quanto qualquer outra coisa. É desnecessariamente descortês com a beleza de Cleópatra sugerir que a paixão de Marco Antônio não tinha causa. A conexão entre a beleza feminina e a paixão masculina é das mais regulares sequências de causa e efeito observadas na vida cotidiana. Os chamados acidentes na História representam uma sequência de causa e efeito que interrompe – e, por assim dizer, com ela se choca a sequência que o historiador está primordialmente interessado em investigar. Bury, bem corretamente, fala de uma “colisão de duas correntescausais independentes”. Sir Isaiah Berlin, que abre seu ensaio sobre historical inevitability citando com louvor um artigo de Bernard Berenson sobre “A visão acidental da História” é um dos que confundem, neste sentido, acidente com uma ausência de determinação causal. Mas, afora esta confusão, temos um problema real em nossas mãos. Como se pode descobrir na história uma sequência coerente de causa e efeito e achar qualquer significado na História quando nossa sequência está sujeita a romper-se ou a ser desviada a qualquer momento por alguma outra sequência, que é irrelevante segundo o nosso ponto de vista? (CARR, 2002, p. 110). A questão colocada pelo autor no trecho citado é muito importante. Em primeiro lugar, porque a identificação da causa acidental parte da identificação pelo historiador daquilo que escapa ao previsível dentro de uma expectativa lógica e que acaba por ser decisivo em um dado evento. Aqui retomemos a famosa afirmação de que Napoleão perdeu a batalha de Waterloo devido a uma indisposição estomacal ou, nossa versão para nosso aspirante a Napoleão, D. Pedro I proclamou a Independência devido ao mau humor que sentia por causa de um desarranjo intestinal. De fato, tais situações poderiam ter ocorrido, mas até que ponto foram determinantes? Se assim fosse, estaríamos negando uma série de processos históricos em curso. Esse é um questionamento, mas Carr (2002) vai além: como é possível encontrar qualquer racionalidade na História quando eventos cruciais podem ser desencadeados por situações imprevisíveis? O historiador Carlo Ginzburg (1990) discorre de maneira fundamental sobre a questão das causas e como devem ser trabalhadas. Ginzburg afirma que a construção do conhecimento historiográfico se dá a partir de detalhes, que são desenvolvidos em conjunto até que se tornem uma grande questão, motivada por determinadas causas. Uma vez formulado o problema a partir do qual transcorrerá seu trabalho, o historiador realizará uma verdadeira investigação, como faria um detetive. O autor afirma que o homem, por muito tempo, foi um caçador e, para obter sucesso em sua caçada, ele recolhia pistas e as articulava logicamente: “Decifrar” ou “ler” as pistas dos animais são metáforas. Sentimo-nos tentados a tomá-las ao pé da letra como a condensação verbal de um longo processo 42 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I histórico que levou, num espaço de tempo talvez longuíssimo, à invenção da escrita. A mesma conexão é formulada, sob a forma de mito etiológico, pela tradição chinesa que atribuía a invenção da escrita a um alto funcionário, que observara as pegadas de um pássaro imprimidas nas margens arenosas de um rio. Por outro lado, se se abandona o âmbito dos mitos e hipóteses pelo da história documentada, fica-se impressionado com as inegáveis analogias entre o paradigma venatório que delineamos e o paradigma implícito nos textos divinatórios mesopotâmicos, redigidos a partir do terceiro milênio a. C. em diante. Ambos pressupõem o minucioso reconhecimento de uma realidade talvez ínfima para descobrir pistas de eventos não diretamente experimentáveis pelo observador. De um lado, esterco, pegadas, pelos, plumas; de outro, entranhas de animais, gotas de óleo na água, astros, movimentos involuntários do corpo e assim por diante. É verdade que a segunda série, à diferença da primeira, é praticamente ilimitada, no sentido de que tudo, ou quase tudo, podia tornar-se objeto de adivinhação para os adivinhos mesopotâmicos. Mas a principal divergência aos nossos olhos é outra: o fato de que a adivinhação se voltava para o futuro, e a decifração para o passado (talvez um passado de segundos). Porém a atitude cognoscitiva era, nos dois casos, muito parecida; as operações intelectuais envolvidas – análises, comparações – formalmente idênticas (GINZBURG, 1990, p. 153). Ginzburg (1990) discorre sobre o paradigma indiciário, ou seja, a construção do conhecimento histórico a partir de indícios recolhidos pelo historiador que investiga a relação entre eles. Tais indícios podem ser objetos de pesquisa ou ainda mesmo causas relacionadas a um dado evento. De fato, a investigação de um assassinato, se nos aprofundarmos na metáfora do detetive, utiliza os indícios para estabelecer as causas e condenar o suspeito que, por sua vez, é investigado até que as expectativas geradas em torno dos dados levantados sobre sua vida – uma pessoa violenta, que colecionava armas, que certa vez ameaçou a vítima de morte, o lugar onde estava no momento do crime – sejam coerentes com os indícios recolhidos pela investigação. Causas, portanto, são premissas e, por isso, podem ser encadeadas logicamente. E, da mesma forma, há as causas que são suficientes e outras que são necessárias. Não se trata aqui de estabelecer uma lei rígida, mas tão somente de encontrar eventos que deflagrem outros. Figura 7 – O trabalho do historiador, segundo Ginzburg, assemelha-se ao de detetive, já que ambos chegam às suas conclusões a partir da mobilização de indícios 43 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL Vamos supor que um historiador dedique sua vida a pesquisar o ensino escolar no Brasil durante a época de Getúlio Vargas, um momento de grande reforma no ensino realizada de maneira a adequá-lo ao Estado Novo, surgido em 1937. O pesquisador notaria que, caso ele comparasse livros escolares anteriores, haveria uma mudança importante de conteúdo, sobretudo com relação à identidade nacional e o papel de Vargas como um “herói da nação”. A partir do seu conhecimento da natureza política do Estado surgido em 1937, o pesquisador estaria tentado a fazer uma relação direta entre centralização e autoritarismo com os conteúdos verificados durante o regime varguista. Portanto, a causa da mudança dos conteúdos foi o estabelecimento de um governo centralizador e ideologicamente enviesado, ou seja, seria parte de um projeto de poder mais amplo. Se essa é uma relação causal direta, nós a reconheceríamos como tal, levando em consideração a experiência de que regimes autoritários valem-se da educação em seus projetos de poder, bem como se utilizam de uma ideologia de autoenaltecimento. No entanto, nada impede uma crítica nesse sentido, justamente com o intuito de quebrar determinados paradigmas e expectativas. Eventualmente, outro pesquisador pode descobrir, por exemplo, que o projeto varguista para a educação não era mais doutrinário do que em épocas anteriores. Isso irá depender, em grande medida, das variáveis consideradas em uma determinada pesquisa. 1.4 Conceitos O exemplo anterior resume, de certa forma, a discussão em torno das causalidades, dos determinismos históricos e também retoma a questão da singularidade como uma característica da História. Isso porque é possível identificar projetos educacionais vinculados a regimes autoritários em diversos momentos da História, à parte a possibilidade de que um ou outro líder tenham se inspirado em alguma experiência histórica. No entanto, a História justamente seria um aprofundamento do individual e um estudo possível da transformação. Como encontrar uma solução para essa questão? Primeiro, nos lembrando de que a cientificidade da História não é posta em xeque se a considerarmos como uma ciência ideográfica do individual. Segundo, se retomarmos Edward Carr, que defende um meio termo, devemos levar em conta o seguinte exemplo: Felipe II foi rei da Espanha e, ao nos referirmos a ele dessa maneira, já o retiramos da singularidade (CARR, 2002). Assim, um caminho para estabelecer um meio termo entre o individual e o geral seria estabelecer determinadas tipologias ou conceitos. Portanto, em vez de leis rígidas, o historiadoracaba por utiliza certas tipologias que servem como categorias para compreender certos fenômenos. Dito de outra forma, segundo Paul Veyne (1982) é necessário estudar o particular a partir de conceitos gerais. Obviamente as categorias podem ser criticadas e reavaliadas, mas a prática da categorização é um exercício historiográfico importante e que não deve ser evitada pelo medo do anacronismo. O próprio uso da língua compromete o historiador, assim como o cientista, à generalização. A Guerra do Peloponeso e a Segunda Guerra Mundial foram muito diferentes, e ambas foram únicas. Mas o historiador chama-as de guerras e somente o pedante protestará. Quando Gibbon escreveu sobre a fundação do cristianismo por Constantino e a ascensão do Islamismo como revoluções, ele estava generalizando dois acontecimentos únicos. Os historiadores modernos fazem o mesmo quando escrevem sobre as revoluções inglesa, francesa, russa e chinesa. O historiador não está realmente interessado no singular, mas no que é geral dentro do singular. Nos anos 1920, as discussões entre os historiadores das causas da Guerra 44 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I de 1914 normalmente partiam da suposição de que ela era devida tanto ao desgoverno dos diplomatas, trabalhando em segredo e não controlados pela opinião pública, quanto à infeliz divisão do mundo em estados territoriais soberanos. Nos anos 1930, as discussões continuaram partindo da suposição de que ela se devia às rivalidades entre as potências imperialistas impulsionadas pelas pressões do capitalismo em declínio para a partilha do mundo entre elas. Todas estas discussões envolviam generalização sobre as causas da guerra ou, pelo menos, sobre a guerra nas condições próprias do século XX. O historiador constantemente usa a generalização para testar sua evidência. Se a evidência não é clara sobre se Ricardo matou os príncipes na Torre, o historiador se perguntará – talvez mais inconsciente do que conscientemente – se era um hábito dos dirigentes da época liquidar os rivais em potencial do trono; seu julgamento será certamente influenciado por essa generalização (CARR, 2002, p. 82). Dessa forma, o particular pode ser notado pela semelhança com um conceito geral, embora uma de suas características – a da abrangência – seja diametralmente oposta ao que é considerado no texto historiográfico. De fato, conceitos trabalham com requisitos de inclusão ou exclusão (ou dito de maneira melhor: irrelevância ou relevância). Se estivermos investigando gatos, sem dúvida, nós pensaríamos em um mamífero felino com duas orelhas, pelo, quatro patas e rabo. Mas não podemos negar que existem gatos sem pelo. O que fazer? Não considerar o animal como gato? Podemos pensar que o historiador é aquele que estuda o gato sem pelo, e, justamente, problematiza o conceito geral em questão. Ele testa os conceitos e os desmente, obrigando a um aprimoramento das tipologias. Uma das formas de crítica mais usuais é justamente a acusação de anacronismo. Paul Veyne (1982) afirma a necessidade de se empregar tipos, mais do que leis. Quando confrontado com um fenômeno, o historiador é obrigado a encaixá-lo com uma tipologia plasmada por uma análise. Os conceitos podem também ser criados e isso é fundamental para a compreensão. A História é descrição do individual através dos universais, o que não causa nenhuma dificuldade que dizer que a Guerra do Peloponeso se passou na terra e no mar, não é lutar contra o inexprimível. Continua-se a constatar que os historiadores estão sempre embaraçados ou iludidos com conceitos ou tipos que utilizam; eles os censuram, ora por serem soluções que, válidas para um período, não funcionam para outro, ora por não terem limites nítidos e acarretar com eles associações de ideias que, mergulhadas em um novo meio, os tornam anacrônicos. Como exemplos dessa última dificuldade, citamos “capitalismo” e “burguesia”, que soam falsos quando se aplicam essas noções à Antiguidade (uma personalidade helenística ou romana não tem o ar de um burguês capitalista, mesmo se fosse de um florentino do tempo dos Médicis). Como exemplo do primeiro inconveniente, quase todas as palavras da história das religiões – folclore, piedade, festa, superstição, deus, sacrifício e o próprio termo religião – mudam de valor de uma religião para outra (religio, para Lucrécio, significa “o medo dos deuses” e traduz o 45 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL grego deisidaimonia, que nós mesmos traduzimos por “superstição” na falta de um termo melhor, e essas diferenças na divisão semântica correspondem a diferenças na concepção das coisas). Em geral, essas dificuldades de origem conceitual exasperam os profissionais, bons trabalhadores que não gostam de reclamar de seus instrumentos ruins; sua função não é analisar a ideia de revolução, mas dizer quem fez a de 1789, quando, como e por que; burilar conceitos é, segundo eles, um capricho de principiante. Acontece que os instrumentos conceituais são o ponto dos progressos da Historiografia (possuir conceitos é conceber coisas); conceitos inadequados provocam um mal-estar no historiador e constituem algo de dramático no seu métier: todo profissional, um dia ou outro, acaba conhecendo essa impressão de que uma palavra não se ajusta, soa falso, é confusa, de que os fatos não têm o estilo que se esperaria deles de acordo com o conceito segundo o qual foram organizados; esse mal-estar é um sinal de alarme anunciando a ameaça de um anacronismo, ou algo semelhante, mas algumas vezes passam-se anos antes que uma solução seja encontrada sob as aparências de um novo conceito (VEYNE, 1982, p. 103). Assim, a discussão sobre o que é individual passa pela questão do que é abstrato ou coletivo, ou o unicamente detectado. Não há como ficar meramente no nível intelectual, assumindo uma postura que leva a um inconsciente coletivo. Pela conversa “informal”, a produção científica também apresenta problemas subjetivos e a possibilidade de erros leva a incorrer em uma sucessão de erros. Há o discurso do especialista, em que a segmentação do conhecimento produz um efeito de “verdade” quando aplicado à realidade. 2 HISTÓRIA E OUTRAS CIÊNCIAS SOCIAIS Após uma apreciação geral sobre a História no mundo das ciências, vamos agora considerar a História em conjunto com outras Ciências Sociais, mais especificamente a Sociologia, a Geografia e a Antropologia. A partir daqui, façamos uma apreciação sobre as condições de surgimento daquilo que se convencionou chamar de “Ciências Sociais” e seu correlato “Ciências Humanas”, não sem implicações importantes. A oposição entre “humanas” e “exatas”, como vimos, deve ser descartada se levarmos em conta a simples colocação de que as Exatas lidam com o geral e Humanas, com o particular. No entanto, como fazer para considerar a Sociologia como “Humanas” se ela mesma admite a busca por generalidades? Essas questões já foram discutidas e vamos agora ver como a História lutou para conseguir seu lugar frente às outras Ciências Sociais/Humanas, uma luta que de certa forma continua até hoje e cujos desdobramentos vitais veremos mais adiante. Desde o final do século XVIII, surgiu a divisão entre ciências naturais e ciências morais no contexto do Iluminismo. O método científico encontrava-se consolidado e logo se espraiou para as ciências morais. A grande novidade é que a moral deixa de ser normativa e passa a ser analisada científica e distanciadamente, o que significa que as humanidades se libertam da tutela moral em nome do raciocínio lógico empírico, que passa a analisar (ou ao menos tenta) imparcialmente o conjunto de normas e regras morais. Tal abordagem,por sua vez, encontra 46 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I eco no trabalho do filósofo Baruch Espinoza, que aplicou à exegese bíblica os métodos de interpretação do texto bíblico: assim como o mundo natural, a leitura da Bíblia não deveria partir de verdades estabelecidas anteriormente, mas a partir de uma leitura neutra e cuidadosa do texto. Um aspecto interessante da proposta de Espinoza é que ele chamava a atenção para suspender qualquer julgamento moral acerca das passagens bíblicas levando em consideração a distância histórica entre o leitor (situado no século XVII) e os episódios narrados, ocorridos milênios antes (TODOROV, 1992, p. 8). Observaçâo Ao dizermos “Ciências Sociais” não fazemos referência somente à Sociologia, embora nosso foco seja justamente a relação entre História e Sociologia. Podemos considerar a História como uma Ciência Social, assim como a Geografia, a Antropologia e, de certa forma, a Economia. Figura 8 Lembrete Espinoza aplicou à leitura da Bíblia os métodos então utilizados para compreender a natureza, livrando a exegese do texto sagrado de qualquer ideia preconcebida. 47 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL Espinoza: biografia e pensamentos Baruch Spinoza, ou Espinosa ou Espinoza, (1632-1677) nasceu em Amsterdã, Holanda. John Locke nasceu no mesmo ano. Espinoza era de uma família tradicional judia, de origem portuguesa. Sua família emigrou porque os judeus estavam sendo perseguidos. Seu pai era um comerciante bem-sucedido e abastado. Espinoza gostava de estudar e ficava na sinagoga. Era um dos melhores alunos. Aprendeu a Bíblia Sagrada e o Talmud. Então foi para uma escola particular, onde conheceu o latim. Pôde então ter um estudo mais abrangente. Leu sobre a identificação de Deus com o universo, sobre a associação da matéria com o corpo de Deus. Interessou-se muito pela filosofia moderna, como Bacon, Hobbes e Descartes. Então foi acusado de heresia, por se mostrar irredutível em suas opiniões. Espinoza fez uma análise histórica da Bíblia, colocando-a como fruto de seu tempo. Critica os dogmas rígidos e rituais sem sentido nem poder, bem como o luxo e a ostentação da Igreja. Por suas opiniões, um homem tentou matá-lo com um punhal. Escapou graças à sua agilidade. Ofereceram uma pensão para ele manter fidelidade à sinagoga, Espinoza recusou. Foi então excomungado, em 1656. Amaldiçoaram-no em ritual. Depois disso, viajou pela Holanda. Os judeus não falavam com Espinoza, mas os cristãos, sim. Apesar disso, não se converteu ao cristianismo. Seus familiares quiseram deserdá-lo. Lutou pela herança do pai e ganhou a causa. Mas recusou-se a recebê-la, só queria fazer valer seus direitos. Espinoza era meio frágil, pois seus pais eram tuberculosos. Viveu uma vida modesta, frugal e sem grandes luxos. Sustentava-se com algumas doações e com o dinheiro de polidor e cortador de lentes ópticas. Mantinha uma relação com amigos e admiradores, e discutia suas ideias. Correspondeu-se bastante. Era de altura mediana, pele escura, cabelos escuros e encaracolados e feições agradáveis. Segundo Colerus, se vestia descuidadosamente. Suas principais obras são: Tratado Político, inacabado; Tratado da Correção do Intelecto; Princípios da Filosofia Cartesiana; Pensamentos Metafísicos, que veio de curso particular que deu sobre Descartes, e sua obra-prima: Ética Demonstrada pelo Método Geométrico. Algumas obras suas foram incluídas no índex de livros proibidos. Foi preso sob acusação religiosa e morreu na prisão, aos quarenta e quatro anos. A vida de Espinoza foi marcada pela sua concepção de Deus. No Tratado Teológico-Político, defende uma interpretação da Bíblia diferente da visão dogmática de judeus e cristãos. Diz que a Bíblia está no sentido figurado. Espinoza atacou a falsa noção que se tem de Deus e da espiritualidade. Mais tarde, identificou isso como um erro da mente no Tratado da Correção do Intelecto. Ainda no Tratado Teológico-Político, diz que as massas tendem a associar Deus com fenômenos extraordinários, que não ocorrem comumente na natureza. O ponto principal do pensamento de Espinoza é a comunhão entre Deus e a natureza. Espinoza critica a religião porque ela está alimentada pelo medo e pela superstição. Devemos fazer uma interpretação racional da Bíblia. A diferença entre filosofia e religião é que a primeira busca a verdade, e a segunda precisa da obediência para ser realizada. Espinoza saiu da sociedade. Desde que foi excomungado, viveu à parte. Isso implica buscar vivências incomuns às galerias. Espinoza buscou a espiritualidade racionalista, é profunda sua cultura e é clara sua 48 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I visão de assuntos que estão fora da subjetividade, e envolvem um conhecimento complexo, conhecimento que nos dias de hoje é marcado pela banalização cultural e pela ideologia deturpada pelas derrotas sucessivas. Desse modo, Espinoza, numa época ainda pura nos conceitos, fala de Deus, da alma e da mente. A religião e o Estado devem estar subjugados a eles. Espinoza não acreditava na divindade de Cristo, mas o colocava como o primeiro entre os homens. Espinoza, na mesma época que Locke, defendeu o liberalismo político. Para ele, direitos naturais são as regras do ser. Somos forçados a obedecer às leis naturais, que são divinas e eternas. A ajuda mútua é necessária e útil. Sem ela, os homens não podem viver confortavelmente nem cultivar seus espíritos. O objetivo do Estado não deve ser tirânico (como em Hobbes), mas libertário. O direito natural em Espinoza é compatível com a democracia: é nas grandes massas que a natureza humana melhor se manifesta Nos seus Pensamentos Metafísicos, Espinoza trata dos entes e afecções de um ponto de vista metafísico. Ente é tudo o que existe. As quimeras e os entes que a razão produz através da representação não são entes. As representações estão divididas em categorias como gênero, espécie etc. Essa classificação do real ajuda a memória a reter as representações. Descartes influenciou Espinoza, que desenvolveu alguns assuntos do filósofo francês. Espinoza comenta as noções cartesianas de Deus e suas substâncias: o pensamento e a extensão, que existem separados. Espinoza era monista. Pensamento é uma extensão da substância primordial, Deus. A diferença é que Descartes explora o lado gnosiológico, da fundamentação e origem do conhecimento. Espinoza vai para o lado ético, em busca da verdade e do sentido da vida. O racionalismo de Descartes parte em direção à metafísica, o de Espinoza, que defendia Deus como única substância, parte para a imanência. Espinoza vai ao microscópico, Descartes vai ao macroscópico. Espinoza diz que percebemos o tempo e o espaço (como mais tarde definiu Kant), usando a medida para essas duas extensões. A medida é usada para explicarmos as coisas. Ele explica que a realidade é uma coisa muito mais vasta do que as categorias humanas de entendimento podem conhecer. Isso porque existe a essência. O povo que percebemos confunde o real com a razão, e o filósofo, numa postura investigativa, não pode se deixar enganar. O ente da razão não existe fora da mente. Deus é o único ser em que a essência coincide com a existência. Isso não acontece com os outros seres. É a causa última de tudo, e as coisas estão em Deus. Essa é uma noção panteísta. E Deus é perfeito. Conhece a si e a tudo objetivamente. As coisas só têm essências na medida em são atributos de Deus. Espinoza desenvolverá isso na Ética. A parte divina do ser é a essência. A essência, a potência, a existência e a ideiasó se diferenciam nas coisas criadas. A existência e a essência, nas criaturas humanas diferem uma da outra por causa da razão. Espinoza chama de afecções àquilo que Descartes chama de atributos. Os entes são afecções de Deus. Dependem dele. Espinoza queria que víssemos as coisas sob o ponto de vista da eternidade. Devemos considerar o mundo objetivo em si, fora das noções subjetivas. Eternidade é o atributo sob o qual concebemos a existência de Deus, como diz nos Pensamentos Metafísicos. Eternidade é a junção de essência e existência. O 49 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL tempo pertence à razão, é um molde de pensar a pluralidade também, pois tudo é Deus, e Ele é Uno. Fonte: Duclós (2008). Assim, se constitui uma verdadeira ciência dos costumes que acaba por ser denominada “Ciência Social” entre os franceses. Esta, por sua vez, acaba por seguir o rumo das ciências naturais no princípio de século XIX, buscando para as paixões humanas ou para os acontecimentos morais e sociais uma causa bem estabelecida. A questão das causas aqui começa a ser cotejada com maior precisão, levando em consideração que os filósofos iluministas consideravam o método científico um só e ainda não havia surgido toda a discussão sobre ciências nomotéticas e ideográficas a que nos referimos anteriormente. Todorov resume esse momento evocando alguns princípios fundamentais desse novo pensamento que se delineava: No século XVIII, Helvécio julga necessário reiterar o apelo de Espinosa, e não compreender por que se recusa a inclusão da moral – a ciência dos costumes – nas outras ciências ou fazer uma moral como uma física experimental. Alguns decênios mais tarde, Condorcet volta à carga: por que escaparia o homem ao conhecimento científico tal como este é praticado em todos os outros domínios, interroga-se; em qualquer um dos casos os resultados podem aspirar ao mesmo grau de certeza. Em meados do século XIX, a fórmula continua a ser enunciada no imperativo: trata-se de fazer entrar a história na família das ciências naturais, escreve Gobineau no seu Essai sur l’Inegalité dês Races Humaines. Enquanto isso, o seu contemporâneo Hippolyte Taine formula esta comparação célebre: não importa que os fatos sejam físicos ou morais: todos têm causas. Há as para a ambição, a coragem, a veracidade, como para a digestão, o movimento muscular, o calor animal. O vício e a virtude são produtos como o vitríolo e o açúcar (TODOROV, 1992, p. 9). A partir daqui, há uma clara distinção entre os costumes (ou a ideologia) que exercem influência nas direções tomadas pela pesquisa e a maneira como eles passam a ser estudados, dissecados, como objetos da pesquisa científica. Dessa forma, as Ciências Sociais acabam adquirindo sua indelével vocação: a de produzir, na medida do possível, um conhecimento neutro, imparcial. E isso é uma marca fundamental que distingue o historiador do mero cronista ou do jornalista sensacionalista. Marc Bloch, importante historiador francês, afirmava que o pior inimigo da História não era um déspota tirano, mas a mania de julgar: As Ciências Humanas e Sociais, como vemos, têm necessariamente uma relação com a moral e a política (com as considerações sobre o bem do indivíduo, assim como com o bem da coletividade), à qual escapam as ciências da Natureza, e não há qualquer razão para imaginar que as coisas devam mudar em relação a isso. O entrelaçamento constitutivo das disciplinas humanitárias com as categorias morais e políticas não significa, contudo, que as duas se confundam. Quando Montesquieu baseia a sua 50 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I tipologia dos regimes políticos na oposição entre despotismo e moderação, os termos não são alheios a uma atribuição de valor, mas isso não levanta qualquer objecção de princípio: uma vez que o objeto diz muito diretamente respeito aos interesses humanos, quando vai denegrindo, de acordo com o que lhe convém, os regimes orientais para que estes ilustrem melhor o seu tipo ideal de despotismo, temos a impressão de que infringe as regras da ciência e sentimos necessidade de a corrigir: eis uma má intervenção da ideologia. Também não devemos imaginar que a função dessas ciências é ajudar-nos a transformar os homens no que estes devem ser em vez de nos dar a conhecer como são. A esse título, deixariam de merecer o nome de ciências e transformar-se-iam em puras técnicas de manipulação (TODOROV, 1992, p. 19). Assim, o século XIX – considerado o século da consolidação e aprofundamento das ciências – assistiu à consolidação não apenas dos métodos científicos, agora em contraposição ferrenha à religião, mas à vinculação de todo e qualquer objeto de conhecimento que, para ser considerado verdadeiro, deveria se submeter ao método científico. Só assim seria possível falar em uma verdadeira Ciência Social, ou seja, submeter o universo humano ao método que já se consagrara nas ciências da natureza. Aqui você pode perceber que falamos de um período imediatamente anterior às discussões sobre a unificação do método, já os iluministas percebiam o problema que existia na tentativa de submeter o comportamento humano a leis ou generalizações: O fato de o objeto de conhecimento ser um ser humano tem ainda outro efeito. Tal como tinham notado os grandes humanistas do século XVIII, Montesquieu ou Rousseau, os seres humanos não obedecem às suas leis com a mesma regularidade que todos os outros seres; podem até decidir infringi-las precisamente porque tomaram consciência delas, como fazia o “homem do subterrâneo” face aos psicólogos e aos ideólogos positivistas de seu tempo. Por outras palavras, o ser humano, apesar de submetido a numerosos determinismos – históricos, geográficos, sociais, psíquicos – caracteriza-se também por uma grande liberdade inalienável. Isso não quer dizer que o seu comportamento seja o caos puro ou que escape a qualquer explicação racional, mas que uma teoria que por princípio afasta qualquer consideração sobre essa liberdade está condenada ao fracasso (TODOROV, 1992, p. 18). A questão aqui levantada é muito importante, não havia dúvidas de que apenas o método científico pudesse fornecer bases seguras para um conhecimento verdadeiro, mas é verdade também que esse método pressupõe o estabelecimento de causas que geram consequências em uma relação determinista, bem como a decomposição analítica dos eventos trabalhados. Há certo engessamento nessa maneira consagrada de produzir conhecimento, mesmo que levemos em conta a necessidade de relativizar a utilização de leis nas humanidades e passemos a contar com generalizações, assim como construir um conhecimento cuja linguagem interpretativa da realidade passe pelo enrijecimento daquilo que é inerente ao ser humano: sua liberdade de ação? 51 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL As Ciências Sociais ou as Ciências Humanas constituem-se em um tipo especial de conhecimento e, por sua vez, diferem entre si. A Sociologia é um caso emblemático, seguido pela Antropologia e, de certa forma, pela Geografia e parte da Economia, situando-se em um polo. Do outro lado, está a própria História, que segundo Paul Veyne (aquele autor que já apareceu em nosso texto e que recusa o estatuto científico da História), é uma narrativa e não ciência. Por mais que essa discussão seja aparentemente interminável, o que não podemos deixar de reconhecer é o seguinte: no início do século XX, a escola dos Annales (que veremos com detalhes mais adiante), recusou a História dita científica, ou positivista, por afirmar que se tratavade uma mera coleção de documentos transcritos e que não tinha a capacidade de oferecer explicações para os eventos, já que se restringia a narrar os grandes feitos dos heróis. E quando os Annales propõem uma reformulação do conhecimento histórico, se aproximam muito mais das outras Ciências Sociais – sobretudo Sociologia e Geografia – para realizar tal transformação. Em outras palavras: na França, para a História continuar sendo História, ela teve de deixar de ser... História! Ao menos na concepção tradicional vigente na época. Foi o fim das grandes narrativas e o início da História estrutural, com gráficos, números e grandes tendências cíclicas. A aproximação com a Sociologia e com a Geografia foi fundamental e foi aí que o positivismo deixou de ser a matriz filosófica da História, embora seu espírito cientificista tenha sido, de certa maneira, mantido. Detenhamo-nos um pouco agora nas condições de surgimento da Sociologia para entender sua especificidade em relação à História. O século XIX foi um período de intensas transformações, sobretudo em virtude da Revolução Industrial. Não esqueçamos que já estava em voga a compreensão de que os fenômenos sociais podiam ser analisados cientificamente, e a Sociologia surgiu justamente com tal proposta. Émile Durkheim é considerado o pioneiro do pensamento sociológico. Ele foi grandemente influenciado pelo pensamento biológico e positivista, submetendo o estudo da sociedade ao método das ciências naturais, buscando encontrar regularidades verificadas nos fenômenos sociais. Para ele, o objeto a ser analisado era o fato social, algo passível de ser analisado objetivamente. Leia o excelente texto a seguir, escrito pelos sociólogos André Serretti e Maria Angélica Serretti, que sintetiza as principais ideias de Durkheim. Conceito de fato social na obra de Émile Durkheim e suas implicações nas teorias sociológicas contemporâneas Durkheim (2007), desde a introdução de sua obra em análise, se preocupa com a questão metodológica da Sociologia, aplicada ao estudo sério dos fatos sociais. Ele se implica na criação de um método de observação de tais fatos, adequado às suas particularidades e nuances. Observa que autores como Stuart Mill, Augusto Comte e Herbert Spencer não se preocuparam em estabelecer uma metodologia, para o estudo dos fatos sociais, rigorosamente científica, o que comprometeu os resultados a que chegaram, tendo eles se limitado, por muitas vezes, a fazer meras observações generalizadas acerca da natureza da sociedade. Um método de pesquisa é o procedimento pelo qual se observa cientificamente um objeto. Portanto, no primeiro capítulo do livro comentado, Durkheim (2007, p. 1) se volta a definir o objeto próprio de estudo da Sociologia: os fatos sociais. O autor observa que não é qualquer fato que ocorre no interior da sociedade que recebe a qualificação de fato social, como comer, pensar e dormir, visto que, caso isso ocorresse, a Sociologia 52 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I não possuiria objeto próprio, e estaria invadindo campos de observação da Biologia e da Psicologia. Nesse ponto, é interessante destacar a influência exercida pela obra de Durkheim no pensamento sociológico contemporâneo, especialmente nos autores estruturais funcionalistas, tais quais Merton (1967) e Parsons (1951), e o discípulo deste, Niklas Luhmann (1998), que desenvolveram a Teoria dos Sistemas Sociais. Este autor, antes de estudar o funcionamento dos sistemas sociais, delimita o objeto de suas investigações no funcionamento dos sistemas sociais, diferenciando-os, dos sistemas psicológicos e dos sistemas biológicos, com a preocupação muito parecida à de Durkheim, relativa à delimitação do objeto de estudo da Sociologia. O que Durkheim (2007, p. 2) observa como nota característica dos fatos sociais é justamente a circunstância de tais fatos existirem fora da consciência individual de cada um dos membros da sociedade. Eles já existiam quando nascemos e muito dificilmente poderemos mudá-los pelo nosso próprio esforço, e independem de nossa vontade, exercendo sobre nós força coercitiva. Podemos observar que quando alguém não observa uma regra, institucionalizada ou não pelo sistema do Direito, mas que possua vigência no meio em que vive, a referida pessoa experimenta, ou deveria experimentar, uma sanção correspondente, oriunda de outra pessoa ou de uma instituição, e tal é a força coercitiva dos fatos sociais, que não necessariamente excluem a personalidade individual. Assim se expressa Durkheim: Eis, portanto, uma ordem de fatos que apresentam características muito especiais: consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir, exteriores ao indivíduo, e que são dotadas de um poder de coerção em virtude do qual esses fatos se impõem a ele. Por conseguinte, eles não poderiam se confundir com os fenômenos orgânicos, já que consistem em representações e em ações; nem com fenômenos psíquicos, os quais só têm existência na consciência individual e através dela. Esses fatos constituem portanto uma espécie nova, e é a eles que deve ser dada a qualificação de sociais (DURKHEIM, 2007, p. 2). A prova da propriedade de tal definição pode ser observada na educação infantil, destaca Durkheim (2007, p. 6). Ele observa que a educação de uma criança é sempre voltada à introjeção de valores e costumes de determinada sociedade, consistentes nos modos de o indivíduo se portar, aos quais as crianças não chegariam espontaneamente. Ao passo que as crianças crescem e vão se educando, a coerção relativa a tais fatos sociais vai sendo cada vez menos sentida, porque as referidas práticas passam a se tornar hábitos corriqueiros. Não podemos confundir os fatos sociais, coercitivos, apreendidos pela educação, que representam regras de comportamento próprias de diferentes lugares e momentos da sociedade, com pensamentos e sentimentos coletivos, ainda que se encontrem em todas as consciências individuais, que são elementos próprios dos sistemas psíquicos, e não são sociais, visto que podem perfeitamente existir mesmo no interior do indivíduo, sem jamais serem exteriorizados. O que diferencia os fatos sociais das citadas manifestações é justamente a repercussão individual destas. 53 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL Durkheim (2007. p. 9) observa que certo fenômeno só pode ser coletivo se for comum a todos os membros da sociedade ou, pelo menos, à maior parte deles, em outros termos, um fenômeno somente pode ser social se for geral. “Ele está em cada parte porque está no todo, o que é diferente de estar no todo por estar nas partes.” (DURKHEIM, 2007, p. 9). Mais uma vez, vemos na transmissão das crenças e práticas anteriores ao nascimento do indivíduo, operadas pela educação infantil, o exemplo mais patente de transmissão de fenômenos sociais. Isso é, sobretudo, evidente nas crenças e práticas que nos são transmitidas inteiramente prontas pelas gerações anteriores; recebemo-las e adotamo-las porque, sendo ao mesmo tempo uma obra coletiva e uma obra secular, elas estão investidas de uma particular autoridade que a educação nos ensinou a reconhecer e a respeitar. Ora, cumpre assinalar que a imensa maioria dos fenômenos sociais nos chega dessa forma. Mas, ainda que se deva, em parte, à nossa colaboração direta, o fato social é da mesma natureza. Um sentimento coletivo que irrompe numa assembleia não exprime simplesmente o que havia de comum entre todos os sentimentos individuais. Ele é algo completamente distinto, conforme mostramos (DURKHEIM, 2007, p. 9). Assim, podemos delimitar bem o objeto de estudo da Sociologia. Os fatos sociais, que são maneiras de fazer algo, como se portarou pensar, se localizam no exterior das consciências individuais, ainda que nelas opere alguma repercussão, sendo sempre movidos por energias sociais de origem coletiva, nunca individual. Se todos os indivíduos de determinada sociedade com ele concordam, o fazem no sentido desta força externa que move seus sentimentos na direção dos referidos fatos. Tal capacidade de coerção sobre os indivíduos, aliada à sua difusão do grupo, é a característica marcante dos fatos sociais, que se torna visível quando observamos a imposição de sanção ou de resistência a qualquer tentativa individual de a eles se opor. Assim observa Durkheim: Podemos assim representar-nos, de maneira precisa, o domínio da Sociologia. Ela compreende apenas um grupo determinado de fenômenos. Um fato social se reconhece pelo poder de coerção externa que exerce ou é capaz de exercer sobre os indivíduos; e a presença desse poder se reconhece, por sua vez, seja pela existência de alguma sanção determinada, seja pela resistência que o fato opõe a toda tentativa individual de fazer-lhe violência. Contudo, pode-se defini-lo também pela difusão que apresenta no interior do grupo, contanto que, conforme as observações precedentes, tenha-se o cuidado de acrescentar como segunda e essencial característica que ele existe independentemente das formas individuais que assume ao difundir-se” (DURKHEIM, 2007, p. 9). 54 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I Observamos que os fatos sociais são distintos de simples condutas repetidas pelos membros de determinada sociedade. Um modo de fazer ou ser, representado por um fato social possui maior caráter de perenidade que algumas condutas mais efêmeras que determinadas sociedades praticam. Durkheim (2007, p. 12) indica que, por exemplo, uma regra jurídica é um arranjo não menos permanente que um modelo arquitetônico. Porém, uma regra moral possui bases bem mais rígidas que costumes profissionais ou modismos. Destarte, vemos que a cerimônia de um funeral, por exemplo, é um costume bem mais arraigado do que o costume relativo a utilizar chapéus em dias de sol, ainda que seja a moda atual, a ponto de ser considerado um fato social, em nossa sociedade. Durkheim (2007, p. 13), por fim, define o que seriam fatos sociais, nos seguintes termos: É fato social toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior, (...) que é geral na extensão de uma sociedade dada, e, ao mesmo tempo, possui existência própria, independente de suas manifestações individuais. Assim, podemos pensar em inúmeros exemplos de fatos sociais, desde os modos à mesa até rituais religiosos. Porém, da análise do texto de Durkheim (2007, 1999), podemos vislumbrar uma classe muito marcante de fatos sociais: as regras jurídicas. No estudo sociológico de tais regras, identificamos que um sistema normativo de determinada sociedade se apresenta como um conjunto de maneiras de fazer, fatos sociais, em que a coerção dos indivíduos que delas destoam é tão patente que há a previsão expressa de sanção a quem não as observa, no caso, por exemplo, da prática de crimes, e há um aparato estatal montado com esse desiderato, justamente for fazerem referência a estados fortes da consciência coletiva (DURKHEIM, 1999, p. 51). Podemos ver, no caso do crime, esta marca indelével: De fato, a única característica comum a todos os crimes é que eles consistem – salvo algumas exceções aparentes, que serão examinadas a seguir – em atos universalmente reprovados pelos membros da cada sociedade. Muitos se perguntam hoje se essa reprovação é racional e se não seria mais sensato considerar o crime apenas uma doença ou um erro. Não temos, porém, de entrar nessas discussões; procuramos determinar o que é ou foi, não o que deve ser. Ora, a realidade do fato que acabamos de estabelecer não é contestável; isso significa que o crime melindra sentimentos que se encontram em todas as consciências sadias de um mesmo tipo social (DURKHEIM, 1999. p. 43). Por fim, cabe ressaltar que a definição de fatos sociais nos termos expostos, tratando-os como coisas, externas aos indivíduos, porém, de existência imaterial, nos permite, além de delimitar o objeto de estudo da Sociologia, realizar análises e estudos sociológicos avançados, tais como os estudos realizados pelos citados estudiosos do estrutural funcionalismo e da teoria dos sistemas sociais, ambas teorias que não partem do marco 55 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL teórico relativo ao conceito de ação social (ou socialmente relevante) de Max Weber, e que tratam a sociedade como um sistema, uma superestrutura, que possui pressupostos de funcionamento próprios e intrasistêmicos, e até autopoiéticos (LUHMANN, 1997), o que possibilita um estudo mais aprofundado, objetivizado e científico, devido ao fato de priorizar menos uma maior interseção dos fatos sociais com o funcionamento mental do indivíduo, tal qual a apontada teoria weberiana, e ter mais em vista a ocorrência coletiva dos fenômenos estudados pela Sociologia. Adaptado de: Serretti e Serretti (2011). Saiba mais Para mais informações, consulte: DURKHEIM, É. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007. ___. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1999. LUHMANN, N., Organización y decisión: autopoiesis, acción y entendimiento comunicativo. Barcelona: Anthropos. 1997. ___. Sistemas sociales: lineamientos para una teoría general. Barcelona: Anthropos, 1998. MERTON, R. K. Sociologia: teoria e estrutura. São Paulo: Mestre Jou, 1970. PARSONS, T. The social system. Glencoe: Free Press, 1951. SERRETTI T. M. A., SERRETTI, A. P. O mal-estar e as origens do Direito: bases de uma teoria sociológica a partir de Freud e Luhmann. Anais do I Congresso Nacional de Psicanálise, Direito e Literatura, p. 386-409, 2009. 56 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I Figura 9 – A Sociologia surgiu como uma ciência que buscava compreender a sociedade a partir do método científico, buscando regularidades inteligíveis nos fenômenos sociais Para os primeiros sociólogos, portanto, a concepção de uma Ciência Social passava necessariamente pelo estabelecimento de certas regularidades encontradas nos fenômenos sociais, cujas causas deveriam ser identificadas além do indivíduo. Assim, a Sociologia tomou um imenso cuidado para não se confundir com a Psicologia e com a Biologia. Dito de forma um pouco mais simples: interessa ao sociólogo não as motivações psicológicas de um suicídio, mas o aumento do número de suicídios em perspectiva estatística. O que teria provocado esse aumento? Sem dúvida, causas sociais, ou seja, que pressupõem a sociedade como um sistema, um conjunto com partes interligadas e que transcende a consciência individual. O indivíduo estaria, portanto, impelido a agir segundo forças que são externas a ele. Assim configura-se a noção de estrutura social na qual a liberdade de ação do indivíduo é, de certa forma, limitada. A objetividade da História, por sua vez, não se relaciona ao estabelecimento de fatos sociais, e seu método por excelência é o da crítica documental, o que estudaremos mais adiante. A preocupação da primeira Historiografia científica era a de, justamente, se opor às narrativas históricas fantasiosas e contar o que realmente se passou através de uma postura de total passividade perante o documento que se apresentava. Nesse caso, os rumos dos acontecimentos históricos dependiam em grande medida das ações dos grandes personagens, capazes de realizar feitos consideráveise colocar a História em marcha. Outra distinção seria justamente a partir da questão das regularidades. Vimos que regularidades, generalidades, leis etc. são postulados intrínsecos ao conhecimento científico e que, de certa forma, mesmo a História ocupando-se de eventos particulares, e para isso, usando certas generalizações, o que muda é o tipo de generalização empregada, bem como as singularidades pressupostas. A Sociologia busca não apenas padrões regulares e estatísticos, que podemos até considerar como permanências. Um sociólogo pode muito bem analisar algum aspecto da sociedade romana, até porque não é o mero estudo do passado que define a História. No caso da História, por sua vez, seja enquanto área de estudo seja enquanto processo: 57 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL [...] só há História daquilo que muda. Ora, nem o mecanismo do relâmpago, por exemplo, nem o fato de o homem se alimentar, ter duas pernas e ser sexuado, mudaram desde as origens; por consequência, cabe apenas fazer uma descrição histórica do processo do relâmpago e da divisão em sexos da espécie humana (esta divisão proporcionaria um relato histórico se a humanidade cessasse um dia de ser sexuada). Vemos então por que motivo, quantitativamente, a História dos homens preenche mais volumes que a dos fatos naturais: o homem muda muito mais que a natureza, inanimada ou mesmo viva; ele tem, como sabemos, diferentes culturas; os seus costumes, as suas instituições variam muito no tempo e no espaço. Assim, não resta grande coisa de não histórico a dizer sobre o homem (VEYNE, 1989, p. 10). Segundo Veyne (1989), portanto, a História, por ser mudança, ocupa-se justamente da transformação. Se há ou não um padrão de transformações, ou seja, se as transformações tendem a ocorrer de uma forma específica dadas certas circunstâncias, isso não está em questão. O que o autor afirma é que a História, antes de tudo, ocupa-se das transformações. Mas a História Natural também não se ocuparia de mudanças? Os dinossauros não desapareceram? Já não saímos da era glacial? O que importa, nesse caso, é distinguir o tipo de transformação em questão: [...] o conhecimento histórico não é conhecimento da singularidade dos acontecimentos, mas da sua especificidade, do que eles oferecem de inteligível. O intelecto, como tal, não se interessará por um determinado relâmpago (que caiu, por exemplo, sobre uma árvore que nos era querida): interessa-se, sim, pelo mecanismo do relâmpago. De igual modo, um historiador sério, ou seja, desinteressado, por oposição a um contador de anedotas, a um propagandista ou a um historiador nacionalista, não se interessa pela História da França por ser a da França e por ele ser francês: interessa-se pela História por amor à História; se contar a história de Luís XIV, esta será para ele a história de um representante da espécie real, a história do detentor, único por definição, do papel monárquico na cena histórica; não se interessa por Luís XIV do mesmo modo que Montaigne se sentia ligado a La Boétie [...] A história é impessoal e a singularidade (esta personagem, aquela árvore) só aí figura nessa precisa qualidade: por aquilo que oferece de específico (VEYNE, 1989, p. 11). Assim, o conhecimento histórico é uma forma de conhecimento no qual o aparentemente singular não é estudado pelo fato de ser singular, mas como um representante geral, um agente mais amplo de transformação. Nesse caso, a objetividade é, em grande medida, preservada a partir da observação do que há de coletivo no homem, de coletivo no indivíduo, e como esse indivíduo manifesta em si transformações mais amplas. Você deve estar se perguntando “mas então quer dizer que somos determinados todo o tempo por essas tais forças externas ao indivíduo? Pelo coletivo que há em nós?” Se você estiver pensando nisso, tem razão em se preocupar, é uma dúvida muito pertinente. De outra forma: o homem é um agente de transformação? 58 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I Se os primeiros sociólogos – assim como alguns atuais – preferem dar maior atenção às estruturas sociais, os historiadores, com exceção dos historiadores estruturalistas e marxistas (que também veremos adiante, não fique preocupado com essas denominações, caso não as conheça), sempre se ocuparam com mais detalhes do agente histórico. No entanto, não podemos mais aceitar formulações do tipo: “D. Pedro I proclamou a independência do Brasil”, sem levar em conta todo o processo histórico que se desenrolou desde a chegada da Família Real em 1808. Que ele teve um papel importante, isso é inegável; mas não foi o único e exclusivamente responsável pelo evento. E o que seria de Napoleão sem os seus soldados? É muito comum, no linguajar cotidiano, dizermos: “Napoleão conquistou aqui e ali” ou ainda “Napoleão venceu a batalha de Austerlitz”. Quem efetivamente venceu? Ele ocupou uma posição de liderança, mas obviamente dependia dos soldados. Quem estaria mais apto, enfim, a discorrer sobre a sociedade? O historiador ou o sociólogo? A questão pode ainda ser reformulada a partir de outros termos: sob quais condições a História firmou-se – ou buscou firmar-se – como ciência? De que maneira ela manteve sua especificidade e de que forma ela se aproximou da Sociologia, que parece apresentar um estatuto científico mais bem acabado? Essa busca por um conhecimento seguro associado necessariamente a um status científico orientou as constantes reformulações conceituais pelas quais a História passou ao longo do tempo, passando pela recusa da cientificidade a partir da década de 1970 (Veyne, por exemplo, não vê problema em recusar tal estatuto sem comprometer a credibilidade do conhecimento produzido pelo historiador, desde que seja aplicado um método apropriado). Segundo Mandrou: A partir de Heródoto e Tucídides [...], as sociedades ocidentais preocuparam-se com seu destino em termos de História; a mais antiga das Ciências Humanas, a História, ao longo de um itinerário aparentemente sem fim, revestiu os aspectos mais díspares: do apólogo à narrativa épica, do canto comemorativo à crônica, da dissertação aplicada à sátira parcial. Tantas formas de História refletem pelo menos uma inspiração comum que constitui a justificação profunda destes diversos desígnios: “defino de bom grado a História” escrevia Lucién Febvre, em 1947, a propósito de uma obra de violenta polémica, “como uma necessidade da humanidade, a necessidade de cada grupo humano, em cada momento de sua evolução, procurar e valorizar no passado os fatos, os eventos, as tendências que preparam o tempo presente, que permitem compreendê-lo e ajudam a vivê-lo” (MANDROU, 1989, p. 15). E complementa: [...] a História científica não deixou de procurar a definição que lança no inferno das para-histórias toda uma literatura prolixa, croniqueira e escandalosa (que tem, no entanto, o seu lugar na memorização coletiva). É obviamente neste plano científico que se deve tentar dar conta das mutações epistemológicas essenciais, das renovações verificadas e que abarcam ao mesmo tempo, indistintamente, objeto e métodos. Neste sentido, a História, à semelhança de qualquer outra ciência do homem, não escapou às reformulações suscitadas na primeira metade do século XX pelo pensamento de Marx e na segunda 59 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL pelo de Freud. Nesse movimento secular da Historiografia, os debates então abertos não estão ainda de modo algum encerrados: a historiografia alemã ocupou-se durante muito tempo com discussões teóricas que, de um modogeral, repugnam aos historiadores franceses; as diferentes escolas que se reclamam do marxismo nunca deixam de recordar, nos seus estudos, os postulados fundamentais das suas investigações, correndo embora o risco de os esquecer pelo caminho; em numerosos países, a tradição universitária liberal favoreceu o desenvolvimento de escolas cujo chefe de fila exerceu uma influência notável sobre várias gerações: é o caso de Benedetto Croce na Itália (MANDROU, 1989, p. 15-6.). A superação do paradigma positivista em História levou-a a se aproximar das outras Ciências Sociais como a Geografia e a Sociologia. Assim, a crítica do documento deixa de ser o método histórico por excelência, e a História passa a contemplar outros objetos por influência das áreas afins, assim como assumir alguns métodos de análise da própria Sociologia. Por outro lado, a própria Sociologia, depois da Segunda Guerra, sofreu algumas modificações, especializando-se em áreas cada vez mais detalhadas e acabando por assumir temáticas, sobretudo na década de 1950, ligadas a grandes continuidades temporais. Desde o início do século XX, a Historiografia renovada já havia abandonado em grande medida a narrativa da História política positivista e já partia em busca de permanências através dos ciclos conjunturais, pioneiramente demonstrados por François Simiand em sua história dos preços do trigo antes da Revolução Francesa. Um bom exemplo dessa tendência é a Sociologia Histórica, cujo objetivo é o de analisar as durações mais do que as superações estruturais, de encontrar padrões que possam refletir estruturas intrínsecas a qualquer sociedade. Desde Toynbee e Braudel, passando por Wallerstein e Andre Gunder Frank, os grandes esquemas explicativos dão a tônica metodológica, de orientação pós-marxista. Suas origens estão na explicação de um grande sistema capitalista, de longa duração, mas a metodologia, com o passar dos anos, tornou-se flexível a ponto de abarcar outros objetos, inclusive o surgimento e consolidação do Estado enquanto aspecto integrante de um determinado sistema. Nesse sentido, a ascensão e a queda de determinados sistemas constitui em grande medida uma preocupação metodológica que se relaciona com a definição do próprio objeto. Essas dinâmicas resultam em identificar os processos históricos subjacentes à transformação de estruturas, o que, em última medida, equivale a uma busca pelos reais agentes de transformação. Portanto, um sistema mundial é composto eminentemente pela temática das hegemonias e lideranças, relações de centro e periferia e pela Economia mundial que engloba todos os outros fatores. Ainda há de se resolver outro fator: o da repetição do processo histórico, oposto ao conceito revolucionário. Nesse sentido, a decadência e a queda sintetizam a mudança social, ao mesmo tempo em que a repetição é uma característica histórica. Um importante autor desta tendência é Imannuel Wallerstein, autor da Teoria do sistema-mundo. Segundo Wallerstein (2007), o sistema-mundo tem como elementos constitutivos uma inerente luta de classes, um sistema composto de metrópoles e satélites e apresenta uma considerável amplitude geográfica. Sua estrutura interna tem como características básicas a autonomia, mesmo quando se relaciona com outros sistemas-mundo, a divisão social do trabalho bem estabelecida em termos econômico-geográficos e a pluralidade de sociedades e culturas. 60 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I Em seu modelo, há dois tipos de sistemas-mundo: o império mundial e a economia mundial, a qual não necessita necessariamente de unificação política ou econômica, embora não exclua tais possibilidades. Compõe-se basicamente de um núcleo e uma periferia, uma semiperiferia de mediatização entre núcleo e periferia e uma área externa, que se constituem, na maior parte dos casos, apenas como fornecedores de bens de luxo. No entanto, a superação de conceitos oriundos da teoria do subdesenvolvimento colocou sérios problemas interpretativos. Antes de tudo, o sistema-mundo constituiu-se em uma problemática como unidade básica de análise no que tange às relações entre centro e periferia, que perpassa os estudos sobre os contatos culturais entre indígenas e europeus no desenvolvimento das “economias-mundo” em uma perspectiva próxima à da civilização e barbárie. Ademais, há a sempre presente problemática de sua aplicação a realidades pré-capitalistas, sobretudo com a possibilidade de encarar tal período como um importante momento de acúmulo primitivo, principalmente com Andre Gunder Frank. Ekholm e Friedman teorizam sobre o acúmulo de capital desde os primeiros estados mesopotâmicos, o que teria levado a um processo de diferenciação social e expansão; Pailes e Whitecotton, o mesmo para os Astecas; Chase Dunn, Thomas Hall, por sua vez, partem das bases nas quais o sistema-mundo está fundamentado e das lógicas de transformação do sistema, vinculadas com a mobilização do capital primitivo acumulado. As vozes dissonantes criticam a longa duração de sistemas na medida em que há o alargamento do escopo histórico. Assim, a problemática se mostra relacionada à dimensão histórica do sistema e à adequação de conceitos que se encaixem com a complexificação do desenrolar histórico. A Teoria dos sistemas-mundo implica que as mudanças históricas operem mundialmente. Portanto, nesse caso, procuram-se padrões de mudança para uma teoria globalizante, introduzindo o conceito de alargamento: o enorme tamanho histórico dos sistemas-mundo impede sua apreensão pela Sociologia. Essa visão é marcada pela continuidade, como por exemplo, da acumulação de capital nos dias de hoje cujas origens podem ser traçadas na antiga Mesopotâmia. Wallerstein vai além de Marx, encontrando as origens do capitalismo no século XV. Outros autores vão alargando essa visão, o que o autor chama de “esticamento da História”. A partir dessa problemática – até que ponto é possível definir o tamanho do escopo histórico – coloca-se imediatamente o problema documental, ou seja, que documentos serão utilizados e em que quantidade? Quanto maior o sistema-mundo, maior o número de documentos a serem usados? Haverá condições reais para tal empresa? Nesse caso, valeria a pena nos determos um pouco mais sobre outro ponto de contato entre Sociologia e História: a metodologia de trabalho documental. Os historiadores que desenvolvem trabalhos dentro da tendência anteriormente mencionada devem partir de algumas técnicas já consagradas entre os sociólogos: o estabelecimento de amostras representativas dentro de uma grande abundância de documentos e a utilização de elementos da Linguística para a análise documental. No primeiro caso, há um grande desafio a ser superado: A determinação de uma amostra representativa de toda a sociedade, de uma classe ou grupo, ou de uma unidade social geográfica, cidade, conjunto rural, levanta problemas mais difíceis. A dificuldade consiste aqui em determinar as escolhas em função de elementos considerados 61 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL típicos ou particularmente característicos. A validade do método é cada vez menos contestada, talvez por razões exteriores ao ofício, como a experiência frequentemente repetida desde há alguns anos da extrapolação dos resultados nas eleições presidenciais e nos referendos a partir de uma amostra muito restrita exatamente representativa de um corpo eleitoral de 28 milhões de pessoas. Certamente, a construção da amostra representativa de um grupo, como a nobreza da região de Champagne ou os magistrados de Ruão no século XVIII, não é tarefa fácil; pressupõe operação em dois tempos: o estabelecimento e o ensaio de uma pré-amostra.Também aqui, o historiador, submerso por demasiados inventários por morte, contratos de casamento, doações e legados, por exemplo, não dispõe de melhor recurso do que utilizar este método, de difícil manejo, mas de rendimento seguro (MANDROU, 1989, p. 24). Você deve ter imaginado, quando leu a respeito dos sistemas-mundo alargados, que seria uma tarefa muito difícil para o historiador coletar uma amostra representativa de documentos que lidam com muitos séculos de duração. Há sistemas-mundo em que vários historiadores buscam continuidades entre a época atual e o Egito Antigo! Imagine o trabalho! Obviamente não é necessário coletar absolutamente todos os documentos referentes ao período trabalhado, mas é preciso prestar atenção aos critérios usados para estabelecer uma amostra: até que ponto os dados coletados representam de fato uma tendência geral observada durante o período trabalhado? Outra possibilidade de aproximação metodológica entre historiadores e sociólogos é a utilização da Linguística como uma ferramenta de análise documental. O historiador pode valer-se de documentos como atas, testemunhos, notícias de jornal etc. Nesse ponto, ele deve ter consciência de que tais vestígios foram produzidos por pessoas com interesses específicos, e a Linguística pode ajudá-lo a realizar uma análise documental o mais imparcial possível. A análise temática correntemente praticada pelos especialistas das ciências sociais habituados a confrontar opiniões díspares, a medir frequências, taxas de repetição etc. permite ao historiador ultrapassar o estádio da crítica textual positivista, sem, no entanto, a abandonar. Nesse domínio, a Linguística moderna tem o seu lugar e propõe ao historiador uma semiologia ainda mais requintada, explorando vocabulário e sintaxe (MANDROU, 1989, p. 25). O que o autor sugere é que a crítica documental positivista, cuja finalidade se restringia apenas a conferir se o documento era autêntico ou não, é insuficiente para o historiador, que parte de um problema em vez de apagar-se diante do documento. Sua postura crítica deixa de ser apenas em relação à proveniência documental e passa a levar em consideração a ideologia dos produtores do documento estudado. Assim a Linguística pode oferecer métodos seguros de análise discursiva, ajudando a revelar elementos relacionados a uma visão específica de mundo e/ou ao exercício do poder. No entanto, os historiadores até hoje parecem pouco afeitos ao exercício de análise documental baseado na Linguística. 62 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I Saiba mais Uma boa introdução ao tema da análise documental historiográfica e como ela tem sido reformulada a partir do desenvolvimento de novas mídias e tecnologias de comunicação pode ser encontrada na obra: BELLOTTO, H. L. Arquivos permanentes: tratamento documental. São Paulo: FGV, 2008. Figura 10 Figura 11 O trabalho de levantamento de uma grande massa documental sempre foi muito problemático em virtude do grande volume presente em suporte papel nos arquivos. Com o desenvolvimento de mídias diferentes nos últimos anos, esse trabalho tem sido facilitado, embora as pesquisas atuais sejam mais restritas a pequenos recortes temporais. Enfim, as relações entre História e Sociologia, segundo o que vimos até agora, são pendulares. Em seus primórdios, as duas ciências sociais, embora categorizadas dentro de um mesmo rótulo generalizante, partiam de pressupostos fundamentalmente contraditórios e, aos poucos – principalmente nos meios 63 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL universitários franceses – a História foi abandonando seu caráter positivista e adquirindo cada vez mais, por influência da História marxista, um caráter interdisciplinar, sobretudo relacionando-se com a Sociologia, adotando algumas perspectivas e métodos. No entanto, essa aproximação ainda é, de certa forma, problemática. Se é verdade que a História Social, história dos homens que vivem em sociedade, é doravante a única que vale a pena cultivar, tanto e mais ainda que a história dos indivíduos, como gostam de sublinhar tanto Pierre Vilar como P. Goubert, pode estranhar-se que os contatos metodológicos entre História e Sociologia não sejam mais importantes. Será esse fato, resultado da predileção que as atuais gerações de sociólogos manifestam pelo inquérito direto por questionários, que os historiadores não podem praticar, salvo rara exceção, dado o material que dispõem? Talvez seja simplesmente o efeito do grande número das teorias sociológicas: existem hoje em dia tantas quanto os sociólogos, que são muito mais dependentes do clima social e intelectual, ou até mesmo de certa práxis social, do que os historiadores (MANDROU, 1989, p. 25). Portanto, tais relações conferiram a ambas as áreas diversas contribuições: os sociólogos adotaram com mais habilidade a perspectiva histórica em suas pesquisas, enquanto os historiadores, ao mudarem de foco, adotaram problemas e métodos sociológicos que enriqueceram sobremaneira a Historiografia. A teoria dos sistemas-mundo, embora revisitada diversas vezes, é um exemplo de que a fronteira entre as duas áreas de conhecimento foi se diluindo ao longo do tempo. Saiba mais As relações entre História e Sociologia são muito complexas e caso você se interesse em aprofundar-se no assunto, uma boa introdução ao tema seria o texto: CAETANO, C. G. História como ciência humana. In: MARCELLINO, N. C. (Org.). Introdução às Ciências Sociais. 7. ed. Campinas: Papirus, 1998. 3 HISTÓRIA E MEMÓRIA Até o momento, vimos como a História se insere no quadro mais amplo do conhecimento humano: seu estatuto científico frente às demais ciências e sua posição em relação à Sociologia, que nasceu mais alinhada com os princípios científicos do século XIX. Vimos que a discussão em torno do estatuto científico da História se prende principalmente à questão metodológica e à natureza singular do conhecimento histórico e historiográfico. A partir de agora, veremos como a História – científica ou não – se insere no quadro maior de revisitação do passado, algo que é realizado a todo o momento e que tem importantes implicações para a formação de nossa identidade social. 64 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I Assim, configura-se a problemática envolvendo a memória e a História. Tradicionalmente, esses dois conceitos, exaustivamente trabalhados pelo historiador francês Jacques Le Goff, referem-se respectivamente a formas distintas de resgate do passado: a primeira é uma forma não científica, espontânea, ideologicamente carregada; e a segunda seria a maneira científica, neutra, metodologicamente sustentada e, portanto, um conhecimento pleno de credibilidade. Embora seja essa a distinção corrente, ela é um pouco mais problemática do que possamos supor. Vamos examinar a raiz dessa questão, tanto recorrendo a historiadores como a exemplos do cotidiano. Em praticamente tudo o que fazemos, utilizamos o passado, ou, melhor dizendo, seu vestígio, que chamaremos de “memória”. Já dizia Santo Agostinho, o passado em si não existe mais, e sim o presente do passado, ou seja, a memória. Pode ser uma memória de curto prazo, em que buscamos nos lembrar da senha do banco ou onde deixamos um objeto. Tais informações são armazenadas em nossa memória e voltam à tona quando precisamos delas. Algumas memórias são mais claras, já outras levam um pouco mais de tempo para serem resgatadas integralmente, principalmente quando o tempo do acontecimento está mais distante do presente. Mas a memória não tem apenas uma funçãototalmente prática: a psicanálise afirma o papel fundamental que a memória tem na construção de nossa identidade pessoal e, ao descrever acontecimentos no passado, estamos, ao mesmo tempo, falando de tais eventos do nosso ponto de vista e de como eles foram importantes para nos constituir. Essas memórias, de uma forma geral, são recordações de situações que vivemos sozinhos ou eventos que vivemos em grupo, em sociedade. Além da memória individual, precisamos considerar que a vida em sociedade afeta a formação de uma memória relacionada a essa experiência. Em ambos os casos, a percepção da passagem do tempo é um componente fundamental de nossa memória, como você já deve ter refletido a respeito: “puxa, já estou com tal idade, parece que ontem eu ainda estava na escola”. Trazer essa lembrança é uma maneira de refletir um tipo de percepção da passagem do tempo, principalmente sobre como ele passou rápido. Da mesma forma, você pode dizer: “a situação no País mudou nos últimos anos, antigamente, tudo era diferente”. Ou ainda: “No tempo de Tiradentes, as cidades mineiras eram de tal e tal jeito”. A partir daqui, é preciso considerar que parte da nossa personalidade é formada também pela consciência de pertencimento a um grupo, que pode ser tanto um clube, uma associação de bairro ou uma nação. Aqui falamos da memória coletiva. Durante muito tempo, pensou-se que a memória era proveniente de um pensamento quase puro, independente da matéria, e hoje sabemos que a memória é formada por um processo que envolve um diálogo entre nossas capacidades mentais e a realidade material. Não se aceita mais a ideia de que nosso pensamento é imposto à matéria. De fato, anotarmos um número no papel é um recurso muito utilizado para nos lembrarmos de algo, pois o material reforça a memória. Muitos objetos contribuem para formar nossa memória, como aqueles que guardamos e que nos fazem lembrar momentos significativos. Esses objetos são – até mesmo inconscientemente – selecionados a partir de um critério muito simples: queremos sempre nos lembrar de coisas agradáveis. Dificilmente selecionaremos objetos que nos façam lembrar de situações de sofrimento, a não ser por alguma razão muito particular. De qualquer modo, o que precisa ser destacado é que há uma seleção: você não guarda todos os objetos que passam pela sua vida. Você escolhe um ou outro que você acha que se relaciona com seu passado ou com sua personalidade. 65 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL No âmbito da memória coletiva, aquela que é resultado da nossa experiência em viver em conjunto, também há seleções desses objetos que moldam nosso pensamento e memória. Ao longo dos anos, décadas, séculos e milênios, muitos objetos se perderam no meio do caminho, mas muitos também acabaram chegando até nós e, nesse caso, as seleções operadas no meio do caminho podem ter sido obra da natureza – materiais como madeira, tecidos etc., que perecem no tempo – ou da ação do homem – edifícios destruídos em meio a uma guerra ou de forma intencional, como muitas estátuas gregas destruídas na Idade Média por representarem, segundo os cristãos da época, permanências do paganismo, assim como a destruição das cidades mesopotâmicas por terroristas islâmicos. A presença ou ausência desses objetos são situações opostas, porém complementares, e diretamente responsáveis por formar a memória coletiva e, até certo ponto, individual. O que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os historiadores (LE GOFF, 1997, p. 95). Tais objetos formam, portanto, a matéria-prima da memória. A partir deles é que poderemos estabelecer as diretrizes de como nos aproximar do passado e, por esse motivo, tais objetos exercem uma forma de coerção: ninguém pode afirmar que a esfinge tem rosto humano e corpo de elefante porque ela está lá e basta ver que seu corpo é de um felino. Diante das evidências, não há como se enganar! E se elas não existissem? Eis o tipo de pergunta que não vale a pena perder tempo tentando responder: muitas coisas poderiam ser, mas a esfinge está lá e ponto. E assim vamos montando o quebra-cabeça sobre os egípcios a partir do que restou de sua civilização: esfinge, pirâmides, templos, hieróglifos, textos sagrados, cidades, relatos etc. A questão que se coloca aqui é: como esses vestígios serão trabalhados? Sob qual lógica eles oferecerão uma explicação do passado? O que, de fato, podem revelar? A partir deste momento é que precisamos evocar a tradicional distinção entre memória e História. Podemos reavaliar essa oposição levando em consideração que a História é uma forma de memória, mas se opõe a uma memória estabelecida sem método, apenas suscitando o fascínio, os feitos heroicos, as ideologias etc. O historiador, por pretender produzir um conhecimento neutro, direto, o mais objetivo possível, não pode aceitar placidamente os ditames da memória popular e nem mesmo apagar-se diante de um vestígio documental que, por sua vez, foi produzido com as mais variadas intenções e ideologias. Quando essa distinção é evocada e o trabalho historiográfico se distingue das demais formas de resgate do passado, o monumento torna-se documento. 3.1 Objetos da memória Para compreendermos o que significa tal distinção, retomemos as palavras do célebre medievalista Jacques Le Goff. Para ele, documentos e monumentos podem ser até os mesmos objetos, mas sua categorização dependerá exclusivamente do uso dado a esses “materiais da memória”: 66 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I Esses materiais da memória podem apresentar-se sob duas formas principais: os monumentos, herança do passado, e os documentos, escolha do historiador. A palavra latina monumentum remete para a raiz indo-europeia men, que exprime uma das funções essenciais do espírito (mens), a memória (memini). O verbo monere significa “fazer recordar”, “donde avisar”, “iluminar”, “instruir”. O monumentum é um sinal do passado. Atendendo às suas origens filológicas, o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação, por exemplo, os atos escritos. Quando Cícero fala dos monumenta, os decretos do senado. Mas desde a antiguidade romana, o monumentum tende a especializar-se em dois sentidos: 1) uma obra comemorativa de arquitetura ou de escultura: arco do triunfo, coluna, troféu, pórtico etc. 2) um monumento funerário destinado a perpetuar a recordação de uma pessoa no domínio em que a memória é particularmente valorizada: a morte. O monumento tem como características o ligar-se ao poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas (é um legado à memória coletiva) e o reenviar a testemunhos que só numa parcela mínima são testemunhos escritos (LE GOFF, 1997. p. 95). O monumento, portanto, não é um mero enfeite. Todos sabem que estátuas, por exemplo, são um tributo a pessoas importantes: se alguém é imortalizado em uma escultura, é porque fez algo de significativo. Mas sua constante presença em um dado lugar nos diz algumas coisas a mais. Primeiramente, é necessário observar a localização dessa estátua. O efeito de recordação será muito distinto se ela for colocada em uma praça muito movimentada ou em uma praça abandonada. Seria estranho imaginar, por exemplo, um enorme monumento de tributo à Proclamação da República, o principal de um país, num lugar em que há pouca circulação. Outro dado que é necessário levar em conta é justamente aquilo que parece óbvio: o material usado para a construção desses monumentosé fundamental, sobretudo em termos de luxo ou durabilidade, afinal, o fato de tais objetos estarem ali por muito tempo faz com que a lembrança de episódios considerados importantes seja reiterada de uma forma especial. Uma estratégia visual, por exemplo, é que ele se destaque em meio a uma paisagem comum, seja urbana ou rural. 67 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL Figura 12 – Um monumento tem não apenas a função de prevenir o esquecimento, mas também dá um “formato” à memória de um determinado evento O monumento não precisa ser exclusivamente alguma grande escultura ou um prédio grandioso. Embora, na linguagem comum, o termo seja associado com muita frequência a tais objetos, o monumento pode ser até mesmo um livro, um papiro, um documento de arquivo, um quadro, um troféu ou uma pequena placa colocada em um estádio em homenagem a um belo gol marcado. O que precisa ficar claro é que o monumento é tudo aquilo que tem a função de marcar na memória e prevenir contra o esquecimento natural de um dado evento. Mais do que isso: o monumento, além de cumprir aquilo que é chamado de “função mnemônica” (fazer lembrar), também dá um “formato” à memória em relação a algum evento, criando referências visuais e simbólicas relacionadas a um evento a ser lembrado. Sobre isso, é importante citar alguns exemplos. Vamos falar a respeito de um quadro monumental: O Grito do Ipiranga, de Pedro Américo. Esse quadro é muito famoso e sempre quando pensamos na Independência do Brasil, ele vem à nossa mente, já que ele é reproduzido à exaustão nos livros didáticos brasileiros. Muitas pessoas incautas, que não levam em consideração uma série de coisas, como data de produção, contexto histórico, proposta, fórmulas de pintura da época etc., acham que o quadro é uma reprodução literal do evento. Mas não é bem assim... 68 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I Figura 13 – O Grito do Ipiranga, de Pedro Américo (1886) Pedro Américo nasceu em 1843, na Paraíba. Foi um exímio pintor que estudou nas melhores escolas de arte da Europa. Viveu em um momento culturalmente agitado, em que a nação – mesmo tendo decorrido algumas décadas de seu surgimento – ainda procurava suas referências históricas. Nesse momento, personagens importantes hoje para a História atual não eram tão lembrados, como é o caso de Tiradentes (também imortalizado na obra de Américo), e D. Pedro I, que não gozava de um grande prestígio (como hoje, de certa forma). Nesse ínterim, Pedro Américo recebeu uma encomenda que seria responsável por imortalizar o seu nome: um quadro que pudesse reproduzir o momento exato da Independência do Brasil. Evidentemente, o pintor não estava presente no momento do grito. Ele dispunha de alguns relatos esparsos, algumas figuras que também eram idealizadas, mas se dedicou a reproduzir com certo afinco o terreno onde julgava ter ocorrido o evento, às margens do riacho Ipiranga, em São Paulo. Além desses materiais, Pedro Américo, um academicista, era um verdadeiro mestre em reproduzir as fórmulas consagradas nas maiores escolas de belas-artes da Europa e isto será fundamental para a concepção do quadro. Lembrete A independência do Brasil não foi obra de uma única pessoa. Embora D. Pedro tivesse atuação importante, é necessário lembrar que todo o processo já vinha ocorrendo desde pelo menos 1808, com a chegada da família real no Brasil. E, de todos os personagens envolvidos diretamente no evento, D. Pedro foi auxiliado tanto pela elite agrária como pela elite intelectual. Diante da, literalmente, tarefa monumental que se apresentava, da maneira de retratar a Independência, é verdade que Pedro Américo tinha algumas opções: ele poderia retratar as cortes de Lisboa, quando a delegação de São Paulo levantou-se contra a tentativa de recolonização do Brasil, ou, ainda, um quadro com os Irmãos Andrada, que, sendo próximos ao futuro imperador, escreviam dezenas de artigos a favor 69 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL da separação. Mas nada disso parecia muito heroico. Segundo a visão de Pedro Américo, a Independência foi obra de um herói, de alguém que empunha sua espada e desafia a autoridade daqueles que queriam nos oprimir. E achar o herói não foi tarefa difícil: D. Pedro, o jovem e intempestivo monarca que ao brandir a sua espada marcou a ruptura definitiva dos laços que nos ligavam a Portugal. No entanto, a cena apresenta algumas incorreções segundo relatos a respeito do momento retratado. D. Pedro voltava de Santos no lombo de uma mula, já que cavalos eram usados em ocasiões especiais. Além disso, a comissão contava com poucos membros e ninguém usava trajes de gala. Teria Pedro Américo nos enganado? Não necessariamente. Como ele afirmava: “a realidade deve inspirar o pintor, e não escravizá-lo” (SCHILICHTA, 2009) e seria pouco heroico retratar D. Pedro no lombo de uma mula usando roupas de algodão cru acompanhado por meia dúzia de amigos. Na realidade, há algumas fórmulas nesse quadro que acompanham algumas tendências europeias, visíveis na imagem a seguir: Figura 14 – Napoleão em Friedland, de Ernest Messonier Essa visão clássica remete à maneira como a intelectualidade do século XIX concebia os movimentos da História: através dos grandes feitos dos heróis. Ao colocar D. Pedro em uma posição de destaque na cena, ele praticamente confere ao filho de D. João VI um papel central no evento, quase mitológico, pois a iluminação do quadro parte da sua espada – a Independência pensada como uma ruptura radical e sangrenta, ao modo dos libertadores sul-americanos. D. Pedro, no quadro recebe o efusivo apoio de seus aliados – militares e as elite agrária – ao mesmo tempo em que é observado por um tropeiro atônito que talvez nem imaginasse o que estava acontecendo, ou seja, o povo. Esse tropeiro diz muito a respeito da tradicional visão que temos da participação popular nos grandes eventos que marcam a História do Brasil, uma posição que tem sido revista nos últimos anos. O monumento à Independência também traz essa visão militarizada e “heroicizada” do rompimento dos laços com Portugal. Porém, o monumento foi construído anos mais tarde e sua inauguração fez parte do cerimonial que, em 1922, marcou o centenário da Independência. Nesse momento, há uma série de eventos que fizeram parte da festa e, entre eles, o traslado do corpo de D. Pedro I para o Brasil, 70 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I que estava sepultado em Portugal (não esqueça que ele reinou em Portugal de 1831 a 1834, sob o nome de D. Pedro IV). Os portugueses não o consideram uma figura histórica emblemática e, sabendo de sua importância na memória coletiva brasileira, concordaram em realizar o traslado. O monumento reforça, portanto, o ato heroico militarizado, mas curiosamente não é possível identificar com clareza os personagens envolvidos. Ele foi projetado pelo italiano Ettore Ximenes por ocasião das festividades do centenário da Independência e é outra referência importante para compor a totalidade da memória coletiva acerca desse evento histórico, demonstrando uma clara inter-relação com o quadro de Pedro Américo. Figura 15 – Monumento da Independência Outra referência importante é o Hino da Independência, que foi composto pelo próprio D. Pedro I e, durante muito tempo, foi o Hino Nacional Brasileiro. A sua letra também sugere o rompimento heroico com Portugal e é também um monumento, embora não seja tão conhecido como o atual Hino Nacional.Obviamente, traz uma mensagem positiva exaltando a coragem e a bravura do brasileiro. Aliás, o mote “Independência ou Morte!” era muito popular na época e diversos libertadores sul-americanos usavam essa expressão. Só resta saber quem é o “brasileiro” a que ele se refere. Observe a letra a seguir: Já podeis, da pátria filhos Ver contente a mãe gentil Já raiou a liberdade No horizonte do Brasil Já raiou a liberdade No horizonte do Brasil Brava gente brasileira! Longe vá... Temor servil Ou ficar a pátria livre Ou morrer pelo Brasil 71 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL Ou ficar a pátria livre Ou morrer pelo Brasil Os grilhões que nos forjavam Da perfídia astuto ardil Houve mão mais poderosa Zombou deles o Brasil Brava gente brasileira! Longe vá... Temor servil Ou ficar a pátria livre Ou morrer pelo Brasil Não temais ímpias falanges Que apresentam face hostil Vossos peitos, vossos braços São muralhas do Brasil Brava gente brasileira! Longe vá... Temor servil Ou ficar a pátria livre Ou morrer pelo Brasil Parabéns, ó brasileiro Já com garbo varonil Do universo entre as nações Resplandece a do Brasil Brava gente brasileira! Longe vá... Temor servil Ou ficar a pátria livre Ou morrer pelo Brasil (BRASIL, [s.d.]). Assim, temos diversos marcos de memória que atingem todos os sentidos, todos confluindo para o coração, já que o nacionalismo é antes uma ideologia que atinge os sentimentos mais do que uma teoria racional. Não é à toa que o nacionalismo e o romantismo foram intimamente relacionados durante o século XIX. O caso de Tiradentes também é muito emblemático. Durante o Império, era um personagem pouco conhecido. Isso porque não era muito adequado exaltar um herói nacional que enaltecia valores republicanos em meio ao Império. De fato, apenas com a proclamação da República é que Tiradentes foi alçado ao panteão dos grandes heróis nacionais. Nesse caso, temos também a pincelada de Pedro Américo como responsável por moldar a imagem do mártir, fazendo uma associação muito curiosa. 72 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I Joaquim José da Silva Xavier – o Tiradentes – era um militar (alferes) que nas horas vagas dedicava-se ao exercício da medicina informal. Era um boticão, sendo uma de suas atribuições a de tratar das enfermidades dentárias. Como as técnicas de tratamento de dentes não eram o que exatamente chamamos de avançadas, em geral o paciente terminava com dois ou três dentes a menos após cada “consulta”, o que valeu a Tiradentes esse apelido um tanto irônico. Tiradentes era membro de uma família de classe média que havia enriquecido com a extração aurífera em Ouro Preto (antiga Vila Rica) e, desde sua juventude, havia tomado contato com as ideias iluministas através de livros que circulavam ilegalmente pela Capitania das Minas, não sendo, por esse motivo, um admirador da religião. Xavier ficara particularmente impressionado por um evento que marcara definitivamente o início da Crise do Antigo Sistema Colonial: a Independência das Treze Colônias, mais tarde batizadas de Estados Unidos da América. O clima de opressão fiscal que se abatera sobre Minas Gerais, bem como diversos abusos da Coroa e a inspiração em George Washington, foram fatores decisivos para que o alferes organizasse, com outros membros da classe média mineira, um movimento emancipacionista: a Conjuração Mineira (inadequadamente chamada de Inconfidência). O movimento, que deveria irromper por ocasião da cobrança de um pesado imposto determinado pela Coroa, fracassou por ter sido delatado por alguns de seus membros, que tiveram suas penas aliviadas ou retiradas. Fora os delatores, a maioria dos participantes foi presa ou exilada, com exceção de Tiradentes, que foi cruelmente executado. No geral, isso é o que aprendemos na escola e o que, em breve, você provavelmente ensinará aos seus alunos. Em linhas gerais, isso foi de fato o que aconteceu, mas como fazer para tornar Tiradentes uma figura popular? Repare no quadro de Pedro Américo, incluído na sequência. Observação A criação de heróis nacionais é um processo que está longe de ser neutro. Para o historiador profissional, não interessa saber os fatos reais acerca da vida de um personagem histórico, mas a trajetória de sua rememoração ao longo do tempo e a vinculação de sua imagem a determinados discursos. 73 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL Figura 16 – Tiradentes Esquartejado, de Pedro Américo Há algumas incoerências aí: primeiramente, a associação entre Tiradentes e a cruz é estranha, pois ele, influenciado pelo pensamento antirreligioso, não era um adepto do catolicismo. Em segundo lugar, os enforcados tinham sua barba e cabelos raspados, algo que evidentemente não se vê nesse quadro e que Pedro Américo sabia muito bem. Terá o pintor mentido? Por que ele fez isso? Seria ele um charlatão que nos enganou sobre a nossa Independência? Se você estiver com tais questões em mente, deixe-as de lado: não há e nunca houve uma verdade absoluta dos fatos. O mais interessante é pensar por que Américo usou tais recursos de imagem e veremos que seus quadros dizem mais respeito à época em que foram pintados do que aos personagens retratados. Em primeiro lugar, há uma série de referências simbólicas: o modo como os pedaços do corpo de Tiradentes estão dispostos formam os contornos do território brasileiro. Na época em que foi pintado, a questão da integração nacional era muito importante, associada a uma busca por uma autêntica cultura brasileira, um ideal de nação que devesse ser sentido por todos os habitantes do Brasil. Não esqueçamos que, nos primórdios da nação brasileira, o sentimento de pertencer a uma dada região era muito mais forte do que o pertencimento à nação como um todo. Em segundo lugar: o braço direito estendido inerte é uma referência ao quadro A Morte de Marat, a seguir: 74 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I Figura 17 – A Morte de Marat, de Jacques-Louis David Essa referência faz uma vinculação entre os ideais republicanos de Tiradentes e um personagem da Revolução Francesa reconhecido pela reivindicação de aprofundamento das reformas populares, uma clara tentativa de criar uma aura popular em torno de Tiradentes, mesmo que ele tenha sido mais influenciado pela Independência dos EUA do que pela própria Revolução Francesa. Por fim, a barba longa e os cabelos associados à cruz reforçam a popularização de Tiradentes ao se realizar uma aproximação com a figura de Cristo, que também foi traído e executado, ou seja, o martírio. Tiradentes falhou, mas seu martírio jamais será esquecido e hoje ele merece figurar entre os maiores heróis de nossa História. Essa é a visão do pintor, que atribui a Tiradentes uma série de valores que ele próprio ignorava ou não tinha, inclusive o de libertador do Brasil, já que seu plano era somente tornar Minas Gerais independente. 3.2 O documento histórico Temos, portanto, alguns exemplos do que chamamos de “monumentos”. Mais do que o objeto em si, sua função é mais importante para defini-lo enquanto tal. Mesmo documentos de arquivo usados pelo historiador podem ser concebidos como monumentos quando são utilizados de forma passiva, ao modo dos historiadores que, imbuídos de um espírito patriótico, escreviam suas monumentais histórias nacionais “tal como se passaram”, em franca oposição aos romances literários históricos que proliferavam no século XIX. No entanto, foi no próprio século XIX queo documento triunfou sobre o monumento: o espírito positivista, embebido de cientificismo, procurou estabelecer o documento escrito como fonte principal do conhecimento histórico indo além dos monumentos, tributos à memória social. A imparcialidade passou então a imperar no gabinete dos historiadores-cientistas. 75 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL O termo latino documentum, derivado de docere, “ensinar”, evoluiu para o significado de prova e é amplamente utilizado no vocabulário legislativo. É no século XVII que se difunde, na linguagem jurídica francesa, a expressão titres et documents. E o sentido moderno de testemunho histórico data apenas no início do século XIX. O significado de papel justificativo, especialmente no domínio policial, na língua italiana, por exemplo, demonstra a origem e a evolução do termo. O documento que, para a escola histórica positivista do fim do século XIX e do início do século XX, será o fundamento do fato histórico, ainda que resulte da escolha, de uma decisão do historiador, parece apresentar-se por si mesmo como prova histórica. A sua objetividade parece opor-se à intencionalidade do documento. Além do mais, afirma-se essencialmente como testemunho escrito (LE GOFF, 1997, p. 96). Repare na última parte da citação anterior, principalmente no que diz respeito à escolha do historiador, prova histórica e objetividade do documento em relação ao monumento. Os primeiros historiadores-cientistas partiam do princípio de que a única forma de manter a neutralidade frente ao conhecimento histórico era apagar-se diante das evidências que, nesse caso, assumiriam uma característica de prova. Dito de outra forma, num primeiro momento, a ideia era “deixar o documento falar”, já que seria prova incontestável do passado. A interferência do historiador era indesejável e, por mais que esse seja um método aparentemente inocente, foi graças aos positivistas que pudemos tratar os vestígios do passado como documentos, nesse momento, principalmente escritos. Assim podemos dizer que o documento triunfou sobre o monumento (LE GOFF, 1997, p. 97). A partir do seu triunfo sobre o monumento para a elaboração do conhecimento histórico científico, sua utilização não foi a mesma através dos anos. No início do século XX, historiadores franceses da Universidade Sorbonne criticaram duramente o positivismo e sua postura de passividade diante do documento. Assim, a aproximação da História com outras Ciências Humanas (os detalhes dessa aproximação veremos mais adiante), modificou também o trato com o documento: de uma postura de passividade, o historiador passa a formular um problema e, a partir daí, os documentos são provas da hipótese do historiador. Além disso, houve uma natural ampliação do escopo documental, e o documento escrito foi perdendo sua preponderância. Os fundadores da revista Annales d’Histoire Economique et Sociale (1929), pioneiros de uma História Nova, insistiram sobre a necessidade de ampliar a noção de documento: a História faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando estes existem. Contudo o que a habilidade do historiador lhe permite utilizar para fabricar o seu mel, na falta das flores habituais. Logo, com palavras. Signos. Paisagens e telhas. Com as formas do campo e das ervas daninhas. Com os eclipses da lua e a atrelagem dos cavalos de tiro. Com os exames de pedras feitos pelos geólogos e com as análises de metais feitas pelos químicos. Numa palavra, com tudo o que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem, demonstra a presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem (LE GOFF, 1997, p. 98). 76 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I Algo que o historiador Marc Bloch (1949) reafirma em sua importantíssima obra A Apologia da História. Bloch chama atenção para a importância de o historiador mobilizar tipos distintos de documento para compor ao máximo a totalidade da época estudada e para cotejar os distintos vestígios de modo a aumentar o potencial crítico do trabalho historiográfico. Por exemplo, textos escritos tendem a revelar uma determinada visão de mundo, que pode ser comparada aos restos materiais disponíveis de uma dada sociedade. Se estudássemos o Brasil Colonial apenas através dos decretos reais, diríamos com toda a certeza que não havia comércio interno devido aos rigores do pacto colonial. Porém, não é porque havia a lei que ela era sempre obedecida, e por isso é necessário observar, por exemplo, se em listas de censo da época colonial havia mobilidade em virtude de alguma atividade comercial ilícita. Seria grande ilusão imaginar que a cada problema histórico corresponde um tipo único de documento especializado para esse uso. Que historiador das religiões se contentaria em consultar os tratados de teologia ou as recolhas de hinos? Ele sabe bem que as crenças e as sensibilidades mortas, as imagens pintadas ou esculpidas nas paredes dos santuários, a disposição e o mobiliário das tumbas têm pelo menos tanto para lhe dizer quanto muitos escritos (BLOCH, 1949, p. 59, tradução nossa). Hoje, de fato, o historiador pode mobilizar uma série de documentos diversos: móveis, arquitetura, roupas, cinema, música, esculturas... Tudo o que foi produzido pelo ser humano em sua longa trajetória pela Terra pode ser considerado como documento. Tanto é verdade que a tradicional divisão entre História e Pré-história – a última, antes da invenção da escrita – hoje é bastante criticada, já que a escrita situa-se em um instante em que muitos melhoramentos, como a irrigação e os instrumentos de metal, já se encontravam em curso no Oriente Médio. Mas, cuidado: o historiador não pode usar monumentos como documentos! A partir do momento em que objetos considerados monumentais são selecionados pelo historiador, eles tornam-se documentos. Sua monumentalidade é analisada pelo historiador que, por exemplo, pode se ocupar dos mecanismos de poder associados a objetos monumentais em uma dada sociedade, como no Egito, por exemplo, ou, ainda, como determinada sociedade cria uma memória coletiva em torno desses monumentos. A memória coletiva também pode ser objeto do historiador, que também é um produtor de memória, no entanto, uma memória distinta: seu lugar de memória é a academia, em que é produzido um conhecimento específico em virtude de sua metodologia e espírito crítico. Em sua análise, não deve nem mesmo escapar a trajetória dos documentos utilizados: por que sobraram? Como eles circulavam na sociedade que os gerou? Não obstante o que por vezes parecem pensar os principiantes, os documentos não aparecem, aqui ou ali, pelo efeito de qualquer imperscrutável desígnio dos deuses. A sua presença ou a sua ausência nos fundos dos arquivos, numa biblioteca, num terreno, dependem de causas humanas que não escapam de forma alguma à análise, e aos problemas postos pela sua transmissão, longe de serem apenas exercícios de técnicos, tocam, eles próprios, no mais íntimo da vida do passado, pois o que assim se encontra posto em jogo é nada menos do que a passagem da recordação através das gerações (BLOCH, 1949, p. 29-30). 77 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL Assim, podemos falar na Historiografia como uma produção de memória que leva em consideração as ressalvas mencionadas e que, em geral, produz um conhecimento crítico, de caráter revisionista. Pode-se dizer que a Historiografia, em vez de reproduzir ou detalhar a memória já difundida, tende a problematizar visões que são socialmente aceitas. Evidentemente, trata-se de um trabalho queresulta de uma metodologia apropriada, não se limitando a coletar duas ou três teses sobre o assunto e fazer uma crítica radical em torno de certas visões populares de História. Não que esse tipo de publicação não seja válido, mas não pode ser chamado de Historiografia. Historiografia é, de maneira geral, a escrita da História. Em suas origens, o termo não especifica o modo como é escrita, se uma descrição mais geral da memória ou um estudo metódico, embora hoje seja mais comum o seu emprego como um texto que resulta da análise de documentos históricos articulados em torno do objeto de um pesquisador. Muitos historiadores chegam mesmo a afirmar que a Historiografia é a própria História, já que se constitui na produção intelectual por excelência do método histórico-científico de análise. Se a Historiografia é a escrita da História, a produção acadêmica é um gênero historiográfico específico, embora seja comum confundi-la com o próprio estudo acadêmico. O método histórico se constitui, por sua vez, no conjunto de procedimentos necessários para garantir o máximo de neutralidade (lembre-se de que a neutralidade total é impossível) e veracidade na abordagem das fontes documentais utilizadas em uma determinada pesquisa. Embora tenhamos registro de métodos históricos de análise desde a Grécia, com os famosos historiógrafos tais como Heródoto e Xenofonte, o método científico de análise histórica se desenvolveu no século XIX, com grande ênfase no que se denomina “método crítico”, uma investigação minuciosa de um documento para comprovar sua autenticidade. Vimos que essa análise, pilar da Historiografia positivista, compreendia basicamente quatro fases: a da reunião dos documentos, na qual o historiador frequentava arquivos em busca de sua documentação; crítica externa, quando os documentos são submetidos à avaliação do especialista que busca comprovar sua autenticidade; crítica interna, a validade histórica do documento em questão e o contexto de produção, as influências culturais dos agentes envolvidos etc. Hoje em dia, é comum encontrar nas estantes de História das livrarias uma grande quantidade de livros de História, mas nem todos representam a Historiografia no estrito sentido do termo. Mesmo historiadores podem escrever livros de História que não sejam Historiografia, já que esse gênero literário tem características mais acadêmicas, especializadas, voltadas em geral para um público especializado. Obviamente, teses e dissertações estão à disposição de qualquer pessoa, mas o público geral terá um pouco mais de dificuldade de compreender os jargões e referências do historiador profissional. Por isso dizemos que o historiador produz uma memória específica, cujo lugar é o meio universitário. Mas ele pode também realizar a divulgação de sua pesquisa para leigos, utilizando uma linguagem mais adequada à compreensão geral. Infelizmente, poucos historiadores têm tal preocupação, e o mercado de livros de História tem sido dominado por jornalistas interessados em escrever crônicas históricas com uma escrita mais fluida. Mais do que os historiadores, jornalistas têm um peso mais decisivo na formação da memória coletiva que, por definição, é unitária, e tem certa dificuldade em compreender a ideia de que há distintas visões sobre um determinado assunto. A crítica, nesse caso, toma a forma da iconoclastia, por exemplo: Zumbi dos Palmares é um personagem importante para o movimento negro, mas recentemente descobriu-se que também possuía escravos. 78 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I O que nos interessa mais aqui, o que está mais próximo, levando em consideração que este é um curso de licenciatura, é o nosso papel como agentes formadores de memória. Nós temos à disposição uma série de instrumentos e matérias-primas que são utilizados para preparar o momento máximo de nossa profissão: a aula. Como ela é preparada? Quais as nossas fontes? Ela é mais discursiva ou privilegia o debate? O formato da aula é fundamental para entender como o aluno, ao longo de sua formação, forma sua identidade social a partir das referências adquiridas na escola, sem esquecer que ele terá ao alcance uma série de informações que poderá cotejar com o que é aprendido na escola. Nossos recursos em geral são os livros didáticos, apostilas, sites, Historiografia, conhecimentos obtidos na faculdade e, o que é um pouco mais complicado, informações díspares que, por mais interessantes que sejam, podem ter uma origem pouco confiável, como boatos. Por isso, é fundamental verificar a credibilidade das informações, de qualquer que seja a referência. Na escola, o ensino de História – levando em conta o modelo tradicional – divide-se em duas partes: no Fundamental I, os alunos são apresentados aos símbolos nacionais e aos heróis, bem como ao significado de certos eventos selecionados (Tiradentes, Independência, Proclamação da República, Consciência Negra etc.). A partir do Fundamental II e Ensino Médio, o conteúdo de História torna-se neutro, apresentado geralmente através de um movimento cronológico e separado em História Geral e História do Brasil. Observação Na disciplina História Interdisciplinar, nós estudamos as principais características de cada uma dessas “histórias” escolares. A História do Brasil ainda está presa a um formato positivista em diversos aspectos, enquanto a História Geral apresenta uma característica estrutural-marxista e seu desenvolvimento se manifesta pela história dos meios de produção, começando com o modo de produção asiático e indo até o modo de produção capitalista, tendo, portanto, um viés economicista. Desse modo, há certa dificuldade de interação entre as duas histórias, embora tenham surgido recentemente interessantes propostas para realizar uma História integrada escolar, em que o Brasil não seja um mero reflexo das tendências da economia mundial. A memória, em primeiro lugar como fundamento mesmo da tradição de uma cultura como produto social, liga-se à reprodução da sociedade, organiza e reproduz constâncias e repetições. Confere um sentido de permanência e de unidade no tempo, de identidade a grupos específicos ou à sociedade como um todo. Podemos observar esse caráter unificador da memória, por exemplo (mas não só), nas atividades coletivas que se reproduzem ciclicamente nas festas cívicas ou populares, nos ritos religiosos ou nos rituais políticos, como as eleições. Tradições inventadas, no dizer de E. Hobsbawn, socialmente produzidas, que reproduzem indefinidamente um mesmo ato original, posto fora do tempo, que se manifesta ciclicamente, como os tempos da natureza, 79 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL como que atestando que a sociedade e os grupos dentro dela permanecem os mesmos, que as regras que definem a sua unidade, sua identidade e suas relações recíprocas não mudaram com a ação do tempo. A memória, nessa dimensão, recupera e reproduz o mesmo no tempo. Nega, assim, seu caráter dissolutor e a produção incessante da mudança. Fixa os sentidos e as identidades, permitindo à sociedade, aos grupos e classes em seu interior traçar suas origens, garantir e reconhecer sua permanência e sua identidade a despeito do tempo (GUARINELLO, 1994, p. 188). A divisão entre memória e História, portanto, nos leva a uma situação na qual o resgate do passado operado pela Historiografia seria um resgate crítico, metódico que, em vez de reforçar certos marcos de memória – se não for escrita sob um viés nacionalista –, tenderia a desmontar certos discursos ou, ainda melhor, realizar uma revisão teórica utilizando um determinado evento como estudo de caso. A memória mais geral, por sua vez, tem um caráter mais unívoco,acrítico e, em nosso caso, está pontuada por diversos temas nacionalistas, contribuindo para a formação de uma identidade coletiva que remonta ao pertencimento a uma nacionalidade. Os vínculos entre memória coletiva e história científica podem, na verdade, ser pensados em termos opostos. Podem ser vistos, em primeiro lugar, como uma relação positiva, pois a História produzida por historiadores, por especialistas da História, enriquece as representações possíveis da memória coletiva, fornece símbolos, conceitos, instrumentos rigoroso para que a sociedade pense a si mesma em sua relação com o passado. Mas podem também ser vistos sob um ângulo negativo porque a história científica se volta regularmente contra as representações reproduzidas pela memória “espontânea” da sociedade, destruindo seus suportes, atacando seus princípios, seus pressupostos, seus símbolos (GUARINELLO, 1994, p. 181). Vamos agora adicionar alguns elementos à nossa discussão, criticando um pouco essa tradicional clivagem entre História e memória. Em princípio, a História seria um conhecimento científico que utiliza o passado para verificar certos padrões de mudança ou até mesmo as estratégias da memória que, por sua vez, estaria ligada a projetos de poder e seria uma abordagem enviesada, influenciada subjetivamente. Essa separação, por sua vez, tem origens no próprio estabelecimento do estatuto científico da História no século XIX e tem perdurado de certa forma até hoje. Assim, a História enquanto ciência “carregava em si uma condenação da memória espontânea da sociedade, desautorizada como ideologia, como senso comum, como falsa consciência, cujas verdades seriam verdades impuras, contaminadas pelos interesses dos agentes sociais” (GUARINELLO, 1994, p. 182). De 40 anos para cá, a História passou por uma profunda revisão, principalmente em relação aos seus atributos científicos que seriam pretensamente mais adequados para construir um conhecimento legítimo apoiado na cientificidade. Dito de outra maneira, o próprio estatuto científico da História foi amplamente questionado – o que veremos em breve – e a capacidade de buscar um conhecimento verdadeiro e integral do passado por meio da Historiografia foi também posto em xeque. E isso obviamente nos orienta a redefinir as relações entre História e memória. E redefinir tal oposição. 80 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I Trata-se de uma questão crucial, que é preciso propor-se. Não só porque a aparente aceleração do tempo social trouxe ao debate acadêmico as questões relativas à memória e preservação do passado, mas, sobretudo porque em nosso século abalaram-se profundamente os alicerces sobre os quais se erguia a ideia de uma História objetiva e verdadeira. O próprio estatuto científico da História e sua legitimidade enquanto saber foram repetidamente postos em questão, deixando marcas profundas na disciplina histórica contemporânea. O otimismo positivista do século anterior desmantelou-se progressivamente, com esporádicos renascimentos, sobretudo no mundo anglo-saxão. A pretensão de atingir uma representação pura e verdadeira do passado cedeu lugar à noção de que certa subjetividade, com diz P. Ricoeur, é inerente ao trabalho do historiador. Porque nele também se manifestam os interesses, os conflitos e as visões de mundo de sua época. É em função da vida, como afirmava L. Febvre e como admitimos comumente hoje, que a História investiga a morte, é a partir do presente que interrogamos o passado. Nossa própria época nos propõe os modelos, os conceitos, os problemas com os quais indagamos as fontes que, para dizer ainda com Febvre, são criadas, inventadas, fabricadas pelo historiador, ao propor-lhes suas hipóteses e conjecturas (GUARINELLO, 1994, p. 183). Assim, o historiador também é constantemente desafiado em sua própria atividade, o que o coloca em uma situação embaraçosa. De fato, temos que deixar de lado a ideia de que o resgate do passado é monopólio do historiador. Há muitos agentes formadores de memória, inclusive pessoas que nem mesmo se dedicam a tal profissão: basta ter vivido no passado e contar para as gerações mais jovens suas experiências. Obviamente será uma visão parcial, emocionalmente vinculada a um dado acontecimento, mas o testemunho direto muitas vezes é considerado um critério mais válido do que a própria investigação documental. À parte as dificuldades de se considerar um relato oral como uma prova incontestável do que de fato teria ocorrido, temos de levar em conta que a narração das pessoas idosas, os romances históricos e o próprio trabalho historiográfico podem, segundo teorias chamadas pós-estruturalistas (que veremos mais adiante), ser consideradas formas particulares de ficção. A posição da História como ciência, a possibilidade de uma ciência da História são atacadas pelo que se convencionou chamar de pós-modernismo ou pós-estruturalismo, e que tem em J. Derrida um de seus arautos. Para essa corrente, o conhecimento histórico não seria mais que um mero estilo narrativo e retórico e as obras dos historiadores não seriam nem mais, nem menos, verdadeiras do que as de ficção. Para teóricos como H. White ou F. Ankersmith, o discurso histórico não proporia nem produziria verdades. O passado, dizem, é algo inatingível, caótico e sem sentido. O esforço do historiador se reduz à tarefa de tecer uma trama aleatória, a construir uma narrativa com os elementos encontrados, não apenas nos documentos, mas sobretudo nos textos de outros historiadores. Se tudo é texto, como diz J. Derrida, e se não existe nada fora do texto, então a realidade como tal, externa ao texto, não existe. A pretensão da História em constituir-se como saber é falsa e vã. Nossa disciplina parece correr, assim, o risco de dissolver-se 81 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL no irracional, de perder os vínculos com a necessidade e a verdade. De ver apagadas as marcas de sua distinção e de sua separação com a memória. Para essa visão, com efeito, tudo é igualmente ideologia, opinião, e os laços que nos ligam à realidade são traçados arbitrariamente pelo sujeito, ou antes, pelo texto que tudo inclui e que a tudo domina, segundo uma concepção que Perry Anderson definiu, com precisão, como um subjetivismo absoluto e se sujeito, o subjetivismo do texto (GUARINELLO, 1994, p. 184). Tal crítica é absolutamente devastadora. Ela simplesmente lança ao abismo todo esforço de se construir um conhecimento historiográfico rigoroso. De fato, as correntes mencionadas na citação realizaram um duro ataque à História, mas hoje tais críticas foram incorporadas e são usadas como referências de investigação. Vamos nos aprofundar um pouco mais nelas. Por ora, discutiremos um pouco mais questões relativas ao método histórico. 4 MÉTODO HISTORIOGRÁFICO Voltemos à questão: afinal de contas, o que é exatamente a História? Ela nos remete ao passado, correto? Então, quanto do nosso presente é fruto do que passou? Se há uma relação entre passado e presente, haveria também uma relação com o que está por vir? Como podemos entender a História? Como a estudamos? Como podemos pensar sobre ela? E talvez a pergunta que mais escutamos: para que serve estudar História? Dizem que quando temos dificuldade em pensar sobre alguma coisa, alguma ideia, seja ela qual for, devemos buscar como ela é expressa na língua alemã. Por quê? O alemão é conhecido como a língua dos grandes filósofos, em que, para cada coisa que existe, há um termo específico para designá-la, pelo menos na grande maioria das vezes. Então, vejamos como o idioma alemão define a História. Dentre algumas possibilidades, há uma definição que muito nos interessae sobre a qual iremos nos deter. É o termo Geschichte. Essa palavra compreende a História de duas maneiras muito interessantes, vejamos: • História é o processo de desenvolvimento da realidade no tempo. • História é o estudo desse processo. Vamos nos deter sobre essa afirmação: História é o processo de desenvolvimento da realidade no tempo. O que ela está tentando nos dizer? A primeira questão que devemos ter em mente quando quisermos compreender sobre do que trata o estudo da História é que devemos tomar como princípio que ela estuda como a realidade atravessou o passar do tempo. Quando pensamos na nossa realidade, sabemos que sobre ela existem inúmeras conexões ocorrendo ao mesmo tempo entre a política, a economia, a cultura, o próprio cotidiano, no plano regional, nacional e internacional. Pensemos num tricô no qual costuramos uma mesma peça com diversos novelos. A realidade é um processo que se faz a todo instante, em que o desenho e o formato desse tricô não estão predefinidos. A realidade surge como a costura contínua de diversas dimensões. 82 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I Assim, se olharmos para o trabalho do tempo sobre os novelos de lã, teremos uma ideia de como eles foram combinados e de quais maneiras eles influenciaram as tramas seguintes. Em outras palavras, a realidade é o resultado de inúmeras dimensões que se combinam e de inúmeras formas ao longo do tempo. O arranjo dessa combinação é que forma o passado, o presente e o futuro. Estudamos como essas combinações se deram ao longo do tempo, como as dimensões se reuniram e formaram o desenho de cada período de tempo sobre o qual nos debruçamos. Em História, não estudamos apenas uma linha isolada, não estudamos um fator isoladamente ao longo do tempo, pois, simplesmente, dentro de nossa perspectiva, é impossível pinçar da trama uma linha que está completamente entrelaçada às demais. Não estudamos exclusivamente a política de certo período histórico, mas estudamos como a política de determinada época se combinou com as demais dimensões do período que buscamos pesquisar. Portanto, é importante ter claro que em História não isolamos fatores, mas contextualizamos processos. Não observamos uma única linha exclusivamente, observamos um conjunto de linhas ao longo do tempo. É verdade que podemos dar atenção a algumas partes mais do que a outras, mas não a retiramos do conjunto. O que nos interessa é o todo em movimento e não as partes isoladas do restante. E assim chegamos à segunda afirmação: História é o estudo do processo de desenvolvimento da realidade no tempo. Em História, estudamos os desdobramentos sociais ao longo do tempo. Não buscamos uma imagem congelada, muito pelo contrário, buscamos pelo oposto. Tentamos resgatar a forma pela qual as diversas dimensões interagiam e formavam a realidade de certo período. Tentamos, a todo o tempo, tirar o passado do imobilismo, buscamos reaquecer as articulações do que passou para observá-las em movimento. Estamos à procura do que as moveu; do processo que nos é capaz de fornecer as rupturas e as continuações sobre os tempos que ficaram para trás até o momento em que nos fazemos essas perguntas. Fascinante, não? Figura 18 – A história é o movimento, e os historiadores buscam mudanças inteligíveis Compreender o que é História dentro dessa perspectiva nos tira daquela visão explicativa que nos trancafia num estudo do passado absoluto, distante, remoto, isolado e sem conexão alguma com o nosso presente. Dessa forma, História é o estudo das transformações pelas quais a realidade passa ao longo do tempo. Quando nos debruçamos sobre a História, podemos fazê-lo de duas maneiras principais: a partir 83 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL da perspectiva historiográfica ou da historicista. Vejamos quais as diferenças dessas duas possibilidades. Vejamos o que esses conceitos querem nos dizer. 4.1 Definição de método historiográfico Mas, afinal, o que é método? Por que ele é tão importante para nós? Método é aquilo que garante ao conjunto de pesquisadores, a fidúcia, o profissionalismo, a procedência, em outros termos, método é o que dá garantia de que aquele trabalho não é fruto da imaginação, ou da livre associação de ideias de quem o está apresentando ao público. Quando publicamos os resultados de nossas pesquisas, sempre apresentamos sobre qual método trabalhamos, sobre qual forma buscamos o levantamento das fontes, de que maneira nos portamos diante de certas questões-chaves, quais procedimentos usamos e as categorias que manejamos. O método é a base de toda a ciência, de todo o saber acadêmico. Podendo ser a ciência humana, biológica ou exata. O método garante que qualquer um que se utilize dele em relação às fontes trabalhadas poderá alcançar os mesmos resultados que os apresentados no trabalho exposto. Lembrete O estabelecimento de um método é fundamental para se chegar a um conhecimento seguro acerca de um determinado objeto. René Descartes foi um filósofo cuja maior importância reside justamente em elaborar tal método. Embora seu método pressuponha a abordagem matemática, a ideia de um exercício metodológico é uma contribuição fundamental. Figura 19 – O método historiográfico é o que garante a credibilidade do saber acadêmico frente a outras manifestações da memória 84 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I Essa é a base de todo o conhecimento produzido pelo homem moderno. É a ideia de que o conhecimento está ao alcance da compreensão de qualquer um, pois ele é produzido pelo homem. O inverso da proposta de conhecimento produzido com o auxílio do método está concretizado na proposta do dogma, daquilo que não está ao alcance de nossa compreensão. É um atestado de procedência, sem sombra de dúvidas. Não é à toa que um dos livros que inauguraram a Era Moderna foi o paradigmático Discurso do Método, de René Descartes, como já vimos. Vamos voltar brevemente à questão da racionalidade. A defesa do uso da razão pelos iluministas era um dos seus principais alicerces, se não o principal, pois se opunham veementemente aos referenciais explicativos usados amplamente durante boa parte da Idade Média, especialmente entre os séculos V e XII, baseado no pensamento legado por Santo Agostinho, o qual excluía a razão como princípio de acesso ao divino, em benefício da fé, para explicação dos mais diversos fenômenos, fossem eles astronômicos, físicos, ou até mesmo sociais, ou seja, durante boa parte da Idade Média, o entendimento oferecido sobre as coisas se fez baseado no dogma. Olhando estruturalmente para a História do pensamento, está calçado na origem do processo que desembocou no Iluminismo no fim do século XVIII o movimento originado por Aquino através da reabilitação da razão, pois, diferente de Santo Agostinho, São Tomas de Aquino negava a interpretação que excluía a razão como forma de acesso ao divino. Para ele, a fé não excluiria o uso da razão, ou seja, a escolástica reabilitou a razão ainda na Idade Média. A adoção da razão não se deteve à Igreja e rompeu fronteiras para além daquelas observadas no horizonte do homem medieval, até mesmo do moderno. A era contemporânea inaugura um período em que o uso da razão se estende para todas as mediações possíveis. Você conseguiu perceber que acabamos de fazer um exercício histórico sobre as transformações das ideias ao longo dos anos? Você percebeu que buscamos, através dessa exposição, observar as raízes de uma das principais revoluções do pensamento e que é a base da forma na qual o homem ocidental organiza e entende o mundo emque vive? De fato, o Iluminismo buscou se opor completamente a todo e qualquer resquício dogmático que ocultasse o conhecimento entre os homens, e se resguardou sobre o amparo da razão a fim de garantir o acesso à multiplicação do conhecimento entre os homens. Quais eram as características principais desse importante momento da História Ocidental? Trabalhemos com o antropocentrismo e o racionalismo. Antropocentrismo seria a postura que adota o homem como perspectiva. O homem como a medida de todas as coisas. O racionalismo foi tomado como meio de alcançar o entendimento, o conhecimento. O racionalismo seria então a ferramenta para o alcance do conhecimento da perspectiva dos homens. Ambas as propostas contrapõem-se aos seus opostos: o teocentrismo e o dogmatismo. Perspectivas características do período medieval, do qual o Iluminismo buscava se distanciar de uma vez por todas. 85 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL Assim, o trabalho científico é fruto da postura iluminista de tomar conhecimento do conjunto de todas as coisas que possam estar ao alcance dos indivíduos. E a garantia de que o conhecimento produzido não seria fruto de uma explicação não racional e teocêntrica está no compromisso com o método. É ele que mostra o passo a passo, o encadeamento de todas as etapas de elaboração do trabalho, vedando qualquer possibilidade de o conhecimento cair em direção ao dogmático, àquilo que não pode ser provado. Método, em poucas palavras, é a garantia de que seu trabalho pode ser verificado pelos seus pares a qualquer momento. Isso para qualquer uma das áreas do saber moderno. Vale lembrar que diferente das Ciências Exatas, nós, das Ciências Humanas, não somos governados por leis como as da Física. Não prevemos coisas, não trabalhamos sobre o futuro. Falamos sobre as estruturas pelas quais, muitas vezes, o presente está assentado, o que é muito diferente. Sobre essa importante questão, vejamos como o grande historiador britânico, Eric Hobsbawm, coloca a tarefa do historiador diante do futuro: Todos os seres humanos e sociedades estão enraizados no passado – o de suas famílias, comunidades, nações ou outros grupos de referência, ou mesmo de memória pessoal – e todos definem sua posição em relação a ele, positiva ou negativamente. [...] As estruturas das sociedades humanas, seus processos e mecanismos de reprodução, mudança e transformação, estão voltados a restringir o número de coisas passíveis de acontecer, determinar algumas das coisas que acontecerão e possibilitar a indicação de probabilidades maiores ou menores para grande parte das restantes. Isso implica certo grau (admitidamente limitado) de previsibilidade – mas, como todos nós sabemos, isso não é, de modo algum, o mesmo que presciência. Além disso, cumpre ter em mente que a imprevisibilidade se afigura maior principalmente porque as discussões sobre previsão tendem a se concentrar, por razões óbvias, nas seções do futuro em que a incerteza parece ser maior, e não naquelas em que ela é menor (HOBSBAWN, 2013, p. 46). [...] O máximo que nós, historiadores, podemos afirmar é que, ao contrário da maioria das ciências sociais, não podemos passar ao largo dos problemas de nossa ignorância. [...] E talvez, também, apenas nós, no campo dos estudos humanos, precisemos pensar em termos e mudança, interação e transformação históricas. A História só fornece orientação, e todo aquele que encarar o futuro sem ela não só é cego, mas perigoso, principalmente na era da alta tecnologia (HOBSBAWN, 2013, p. 61). [...] 86 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I A História, cujo objeto é o passado, não está em condições de ser uma disciplina aplicada nessa acepção, no mínimo porque ainda não se descobriu nenhum modo de alterar o que já aconteceu. No máximo podemos fazer especulações contrafatuais sobre alternativas hipotéticas. Claro que passado, presente e futuro são parte de um continuum, e o que os historiadores têm a dizer, portanto, poderia permitir previsões e recomendações para o futuro. De fato espero que assim seja. As habilidades do historiador não são certamente irrelevantes para tal fim [...]. Em todo caso, muito do que fazemos tem que ficar de fora, especialmente tudo aquilo o que distingue o passado inalterável do futuro teoricamente mutável (HOBSBAWN, 2013, p. 107). [...] O interesse desse tipo de abordagem da dinâmica histórica não reside na possibilidade de verificar suas previsões [...]. O interesse dessas abordagens reside na tentativa de visualizar desenvolvimentos futuros (HOBSBAWN, 2013, p. 119). [...] Entretanto, como historiador, estou sempre preocupado com o futuro – seja o futuro conforme já evoluído a partir de algum passado prévio, seja como é provável que evolua a partir do continuum do passado e do presente (HOBSBAWN, 2013, p. 119). Ou seja, nossa tarefa de apontar tendências é de extrema relevância para a sociedade e é também o limite onde nos encontramos como historiadores. Se pudermos fazer uma analogia, a faremos com o papel do geólogo, que estuda os movimentos das placas tectônicas responsáveis pelos terremotos e maremotos mas que, por obviamente não ter o controle sobre tais placas, não pode prever quando tais fenômenos podem acontecer. Essa é muitas vezes a encruzilhada em que o historiador se encontra: não podemos dizer quando certos acontecimentos sociais podem acontecer, ou mesmo se virão um dia, mas podemos entender as estruturas que estavam por deles, pois conhecíamos as tramas em que os fios puxados no futuro se organizavam no passado. Portanto, a Historiografia é o trabalho do historiador profissional, que se dedica à pesquisa acadêmica, vejamos, assim, o que seria o historicismo. 4.2 Historicismo O historicismo busca no passado um plano fértil para histórias e/ou romances, busca identificação, muitas vezes, afetiva com quem lê e está muito mais voltado para a literatura do que para o trabalho acadêmico. Neste livro-texto, trabalhamos com as possibilidades metodológicas da pesquisa historiográfica. 87 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL Outra grande e importante diferença entre os trabalhos produzidos pela Historiografia e os produzidos pelo historicismo se estende ao manuseio das fontes. No nosso ofício como historiadores, nos dirigimos ao passado não como quem busca modelá-lo a partir de ideias concebidas anteriormente – recorremos ao passado para observar como os fios da realidade sucessivamente se encadearam. Em nossa prática, não procuramos adaptar o passado as nossas convicções de como ele deveria ter sido ou de como imaginamos que ele deveria ter se comportado. Figura 20 – O historiador é como um tecelão que busca o sentido através da criação de uma trama historiográfica É fato que necessitamos fazer o levantamento de hipóteses de trabalho para elaborar nossa investigação, mas jamais podemos coagir nossas fontes, pelo contrário, nosso papel é dar-lhes vazão. Essa dificílima tarefa só poderá ser realizada de forma segura e coerente se o pesquisador em História tiver claro que só deve se dirigir ao passado se for um bom entendedor sobre seu presente, pois a partir do contexto em que está inserido é que o historiador poderá se dirigir ao pretérito de forma coerente. A postura que adotamos no desenvolvimento da pesquisa historiográfica nos exige a capacidade de que, ao observarmos nosso objeto de estudo, sejamos capazes de identificar nele os primeiros sinais de outra História. Ao nos dirigirmos ao passado, precisamos estar aptos a captar os sinais de mudanças,das questões que até então não eram levantadas pelos homens da época, mas que, a partir de certo momento, passaram a ser feitas pela sociedade, que sejamos hábeis em perceber que na formulação de novas leis, contratos e acordos entre os pares, podemos estar diante dos sinais de uma nova fase, diante dos germes das transformações históricas que se encaminharão a um novo arranjo histórico conforme o tempo se desenvolve. 88 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I É parte do nosso ofício captar as mudanças, nos interessar pelas transformações, pelas rupturas e pelas crises. Mas, para isso, precisamos estar atentos às permanências, às constâncias. Por esse exato motivo, não devemos nos lançar sobre as fontes com um fórceps em mãos. Não será na base da confissão e da tortura que elas nos dirão os segredos da História. Figura 21 – Os documentos utilizados pelo historiador são diversos e o estabelecimento do recorte deve estar afinado com a escolha de fontes Nosso trabalho com o manuseio das fontes deve ser preciso e fino. Somos investigadores, e para isso devemos saber fazer-lhes as perguntas corretas, fazer com que elas falem, e não com que repitam aquilo que já esperávamos que fôssemos ouvir delas. Vejamos o que E. P. Thompson, outro notável historiador britânico, tem a dizer: Os historiadores do futuro, que saberão como os fatos se passaram, terão uma ajuda poderosa para compreender não porque eles tinham de se processar da maneira pela qual se processaram, mas porque de fato assim fizeram; isto é, observarão no laboratório dos acontecimentos as evidências de determinação, não vistas como lei governada pela regra, mas no sentido de “fixação de limites” e “exercício de pressões”. E o historiador de hoje se situa exatamente na mesma posição em relação ao passado histórico, que é, simultaneamente, objeto de investigação e seu próprio laboratório experimental. A explicação histórica não pode tratar de absolutos e não pode apresentar causas suficientes, o que irrita muito algumas almas simples 89 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL e impacientes. Elas supõem que, como a explicação histórica não pode ser tudo, é, portanto, nada, apenas uma narração fenomenológica consecutiva. É um engano tolo. A explicação histórica não revela como a História deveria ter se processado, mas porque se processou dessa maneira, e não de outra; que o processo não é arbitrário, mas tem sua própria regularidade e racionalidade; que certos tipos de acontecimentos (políticos, econômicos, culturais) relacionam-se não de qualquer maneira que nos seja agradável, mas de maneiras particulares e dentro de determinados campos de possibilidades; que certas formações sociais não obedecem a uma “lei”, nem são os “efeitos” de um teorema estrutural estático, mas se caracterizam por determinadas relações e por uma lógica particular de processo. E assim por diante. É muito mais. Nosso conhecimento pode satisfazer alguns filósofos, mas é bastante para nos manter ocupados (THOMPSON, 1981, p. 61). Nossa investigação exige de nós a capacidade de observar as mudanças sobre os usos e costumes, que observemos as rupturas nos seus primeiros sinais de uma nova fase, observar os germes das transformações. Dessa perspectiva, diferentemente dos geólogos, não vamos às fontes com picaretas. Dito isso, nosso trabalho não consiste em dar uma fala final à História. Muito pelo contrário, no trabalho com o passado, vasculhamos um período que deve ser resgatado, reaberto, para que ele nos forneça os elementos que elucidem a realidade do seu tempo. É por isso que pesquisamos a História Antiga, ou mesmo períodos anteriores à escrita, pois toda vez que o historiador faz sua viagem às fontes, busca lançar uma nova luz através da formulação de suas questões feitas a partir de onde ele se encontra, ou seja, no tempo presente. Vejamos uma passagem muito conhecida escrita por Walter Benjamin sobre essa nossa tarefa: O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer (BENJAMIN, 2008, p. 224). Mesmo que o nosso material de trabalho seja o passado, nossa justificativa se forma no presente. Assim, observamos o que passou sempre de forma nova, não fornecemos explicações definitivas, mas interpretações contemporâneas sobre o passado. Não quer dizer que determinados acontecimentos históricos não tenham ocorrido conforme nos deslocamos em relação a ele. Somente quer dizer que, diante dos fatos, buscamos compreendê-los com questões que são resultado do acúmulo de perguntas feitas no nosso presente. Observação A ideia de que a História é sempre “história do presente” encontrou certa resistência quando foi formulada na década de 1920. Hoje, temos 90 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I plena consciência de que a Historiografia obedece a demandas atuais e se vincula não somente a projetos políticos, mas ao próprio contexto acadêmico de produção. São muitos os fatores atuais que orientam nosso olhar para o passado. Figura 22 – A pesquisa da História Antiga é sempre ligada a questões do presente Por isso nosso ofício se renova a todo tempo, contrariando a interpretação do senso comum. Nosso trabalho é o de escavar as fontes, de trazê-las à superfície e de não cimentá-las ou enterrá-las de uma vez. De certa forma, damos às vozes esquecidas no passado uma chance de falarem no presente. Walter Benjamim, em sua famosa tese Sobre o Conceito de História traz uma imagem muito interessante sobre os conflitos da nossa atividade: Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, [para o] qual ele vira as costas, enquanto o amontoando de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso (BENJAMIN, 2008, p. 226). 91 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL Figura 23 4.3 História dos métodos da História Durante muitos anos, a escrita da História se confundiu com a criação de memórias oficiais. Sua função era basicamente a legitimação, a justificativa dos grandes grupos e/ou indivíduos, famílias que buscavam perpetuar sua manutenção no status quo. Era uma verdadeira construção da tradição. Será só no século XIX que a escrita da História passará a dar seus passos em direção àquilo que conhecemos hoje. Com Leopold von Ranke e a publicação de História dos Povos Latinos e Germânicos foi introduzido o debate sobre o ofício da Historiografia, da pesquisa histórica baseada em métodos apreciáveis por pares. Quais são os métodos usados no trabalho historiográfico? Na maior parte do tempo, estamos entretidos no levantamento da documentação do nosso objeto pesquisado e na sua interpretação. Podemos dividir em princípio as fontes em duas classes, vejamos a seguir:• Fontes primárias ou diretas: podem ser documentos oficiais escritos, censos demográficos, estatísticas do período, dados aduaneiros (alfandegários), gravações orais e/ou visuais, dentre outros. • Fontes secundárias ou indiretas: podem ser objetos arqueológicos, utensílios domésticos, obras de arte: música, artes, iconografia do período; costumes, códigos sociais, morais e/ou religiosos, dentre outros. Esses dois grupos se entrecruzam, conforme o historiador organiza e verifica sua autenticidade para só então poder desenvolver uma interpretação sobre o ocorrido. Tendo em vista a importância do método para a atividade do historiador, vejamos como a Historiografia se organizou ao longo do tempo em diferentes perspectivas e escolas. 92 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I Duas escolas historiográficas muito relevantes e que serviram de base para as demais posteriormente apresentadas, seja por rupturas ou por continuidades sobre seus pontos de vista, são a escola materialista histórica e a Escola dos Annales, que veremos adiante. Ambas as correntes historiográficas partem do pressuposto de que é necessário ao trabalho historiográfico o compromisso com o método científico, do qual já descrevemos a vital importância para o pensamento que se baseia no uso da razão. Mas, afinal, não é condição de partida trabalhar com o auxílio da razão? Ambas as escolas, segundo o historiador Ciro Flamarion (apud CARDOSO; VAINFAS, 1997), estão em diálogo direto com os desejos e perspectivas do projeto iluminista do uso da razão, conforme já mencionado. Assim tanto a Escola dos Annales quanto o materialismo histórico buscam se afastar por completo de respostas irracionais e ou inverídicas e se aprofundam no uso do método científico voltado para as Ciências Humanas como principal elemento de defesa de suas práticas teóricas, opondo-se simultaneamente a toda História que fosse produzida fora desse paradigma científico, o já então citado historicismo. Agora que compreendemos a que se refere a definição dessas duas escolas como herdeiras do projeto iluminista, podemos compreender o porquê de sobre elas terem recaído as mais diversas críticas dos chamados pós-modernos com relação a suas produções, pois os pós-modernos, dentre outras características, são especialmente críticos ao projeto iluminista. Resumo A ciência é uma atividade de conhecimento específica frente a outras possibilidades de interpretar a realidade. Seus fundamentos, embora retomados dos escritos filosóficos gregos, se estabelecem na chamada Revolução Científica, um desdobramento do Renascimento Cultural, que pôde ser estabelecida no século XV e XVI. Teorias importantes como o heliocentrismo foram concebidas segundo a premissa de que era necessário interpretar a realidade tal como um livro a ser lido. Um dos postulados fundamentais da ciência é que o conhecimento nela produzido se baseia na previsibilidade dos fenômenos. No entanto, a discussão em torno do estatuto dos conhecimentos científicos tem-se tornado complexa e falamos em dois tipos de ciências: as nomotéticas (baseadas em leis) e ideográficas (aquelas que lidam com o particular). Tais ciências demandam distintos processos cognitivos: enquanto as primeiras procuram explicar os fenômenos; as segundas levam em conta a compreensão, sendo o método das Ciências Humanas por excelência. A História, tal como a concebemos, nasceu como ciência, mas, mesmo dentro das Ciências Sociais, ela apresentava suas especificidades. 93 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL Primeiramente, se a História lida com o particular, como ela poderá apresentar leis gerais? Além disso, como encontrar alguma racionalidade na História se ela lida com a transformação e o específico? Tais questões podem ser respondidas de maneiras diversas: há aqueles que negam que a História seja uma ciência (como o historiador Paul Veyne), e outros que afirmam que a História lida, sim, com certas generalidades através dos conceitos, tal como afirma Edward Carr. As discussões em torno das relações entre memória e História têm-se tornado mais complexas nos últimos anos. Tradicionalmente, a História seria um conhecimento do passado e das transformações sociais com caráter científico, enquanto a memória seria uma revisitação do passado mais espontânea, sem método e, por isso, sem a mesma credibilidade de um conhecimento historiográfico. Hoje seria mais correto falar em memória como um conceito mais geral. A História seria uma memória específica, produzida em meios acadêmicos: uma memória científica. Mesmo assim, ainda se faz necessário pontuar algumas diferenças entre a memória espontânea e a memória científica. A memória espontânea tende a ser mais coerente, é reforçada com certa periodicidade, se vale dos monumentos como artefatos que moldam a memória coletiva. Já a História (a memória científica) se vale de documentos para a construção do conhecimento, vestígios do passado analisados criticamente tanto em termos de autenticidade como em relação ao contexto, a intenções do produtor e ao destinatário. Essa documentação é submetida a um rigoroso método: o método historiográfico. O método é nossa garantia de que o resultado de nossas pesquisas pode ser considerado fruto de um trabalho sério e ter sua validade reconhecida socialmente. Ao fundamentarmos nossa pesquisa sobre parâmetros, regras oferecidas pelo método historiográfico pelo qual nos definimos, estamos nos filiando a concepções bem estruturadas às quais estaremos constantemente nos remetendo em nossos textos, garantindo a coerência interna em nossa exposição historiográfica. Vimos então as duas principais escolas historiográficas: o materialismo histórico e a Escola dos Annales. Compreendemos que elas buscam oferecer análises panorâmicas ou, em outras palavras, uma História totalizante. Cada qual adotando referenciais definidos e distintos, por mais que muitas vezes exista o diálogo entre elas. 94 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I Exercícios Questão 1. “O desenvolvimento dos estudos históricos é um dos traços distintivos do movimento intelectual do século XIX. Tal desenvolvimento é a manifestação, na área das ciências morais, do espírito científico ao qual pertence doravante a direção da sociedade moderna“ (MONOD, G. Les études historiques en France. Revue internationale de l’enseignement, XVIII, 1889. p. 587 apud PAYEN, P. A constituição da história como ciência no século XIX e seus modelos antigos: fim de uma ilusão ou futuro de uma herança? História da Historiografia, Ouro Preto, n. 6, mar. 2011. p. 103-122). As ideias anteriores são do historiador francês Gabriel Monod, aluno de Jules Michelet e fundador no século XIX da importante revista de história francesa Revue Historique. Repercutia, em seus trabalhos, a corrente historiográfica então em evidência, a história positiva. Sobre o ambiente intelectual da época que se manifestava também na área da História, não podemos afirmar que: A) A história era definida como “ciência” e, nessa condição, se inseria na herança das Luzes em uma linha de progresso. B) O método científico seria o único a oferecer bases seguras para um conhecimento verdadeiro. C) Ainda que com aspirações a serem consideradas científicas, reconhecia-se que havia peculiaridades relativas às ciências humanas. D) A Física e a Matemática constituíam as principais referências quando se pensava em ciência nessa época. E) Tendo em vista o fato de que a história é apenas uma narrativa de acontecimentos considerados verdadeiros,os historiadores não se ocuparam do século XIX em aproximá-la de parâmetros científicos. Resposta correta: alternativa E. Análise das alternativas A) Alternativa correta. Justificativa: de fato, o entendimento da história como ciência, próprio da constituição dessa disciplina no século XIX, a coloca em linha de continuidade com o racionalismo científico gestado no início da Modernidade. 95 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL B) Alternativa correta. Justificativa: o século XIX, também conhecido como “século da ciência”, consagrou o método científico como único recurso de validação do conhecimento. C) Alternativa correta. Justificativa: sim, reconhecia-se particularidades nas ciências humanas, na História, inclusive, o que levou à busca para estabelecer métodos específicos de análise. D) Alternativa correta. Justificativa: sim, serviam de parâmetros, e aqueles conhecimentos que não se enquadrassem em critérios deduzidos dessas duas áreas eram vistos como de segunda ordem. E) Alternativa incorreta. Justificativa: isso não é verdade, pois houve esforços por parte dos historiadores em aproximar o máximo possível a história de padrões científicos. É o caso da História positivista e dos métodos de crítica histórica então criados. Questão 2. “Muito antiga, a história, narrativa dos acontecimentos, só se iguala às artes e à filosofia; por isso, tem uma musa, Clio. Mas isso significa também que a história, como discurso, é anterior às demais ciências sociais, anterior às universidades... A história como discurso é muito antiga, e passa por transformações (as diferentes formas do fazer historiográfico), nos vários momentos dessa trajetória. Momento decisivo nessa travessia é aquele em que se constituem as Ciências Sociais, desde os meados do século XVIII e ao longo do século XIX; porque, a partir de então, engaja-se inexoravelmente o diálogo entre a história preexistente e as ciências sociais emergentes” (NOVAIS, F. A.; SILVA, R. F. Nova história em perspectiva. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 9). A história com estatuto científico é produto do século XIX e sofreu interação com as áreas de conhecimento então emergentes. Estão, nesse caso, as seguintes disciplinas científicas: A) Geografia, Economia e Numismática. B) Sociologia, Geografia, Antropologia. C) Sociologia, Política, Eugenia. D) Física, Sociologia e Economia. E) Positivismo, Filosofia Clássica e Frenologia. Resolução desta questão na plataforma.