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Autor: Prof. Gabriel Lohner Gróf Colaboradores: Prof. Vinícius Albuquerque Profa. Sonia de Deus Rodrigues Bercito Historiografia Geral Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Professor conteudista: Gabriel Lohner Gróf Gabriel Lohner Gróf, natural de São Paulo, é bacharel, licenciado e mestre em História Social pela Universidade de São Paulo – USP. Sua área de especialidade é a História Antiga da Mesopotâmia, com ênfase na invenção da escrita e organização administrativa e burocrática das sociedades do antigo Oriente Médio. Além das pesquisas acadêmicas realizadas na área citada, tem grande preocupação em estabelecer vínculos entre os conhecimentos acadêmicos e o grande público. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) G874h Gróf, Gabriel Lohner. Historiografia geral. / Gabriel Lohner Gróf. – São Paulo: Editora Sol, 2016. 160 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XXII, n. 2-035/16, ISSN 1517-9230. 1. Historiografia. 2. Método historiográfico. 3. História social. I. Título. CDU 93/99 XIX Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Aline Ricciardi Giovanna Oliveira Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Sumário Historiografia Geral APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................7 Unidade I 1 ASPECTOS FUNDAMENTAIS DA CIÊNCIA ............................................................................................... 14 1.1 O método científico ............................................................................................................................. 20 1.2 Ciências nomotéticas e ciências ideográficas ........................................................................... 21 1.3 Explicar ou compreender? ................................................................................................................ 25 1.4 Conceitos ................................................................................................................................................. 43 2 HISTÓRIA E OUTRAS CIÊNCIAS SOCIAIS ................................................................................................ 45 3 HISTÓRIA E MEMÓRIA ................................................................................................................................... 63 3.1 Objetos da memória ............................................................................................................................ 65 3.2 O documento histórico ...................................................................................................................... 74 4 MÉTODO HISTORIOGRÁFICO ....................................................................................................................... 81 4.1 Definição de método historiográfico ........................................................................................... 83 4.2 Historicismo ............................................................................................................................................ 86 4.3 História dos métodos da História .................................................................................................. 91 Unidade II 5 HISTÓRIA ECONÔMICA ................................................................................................................................. 96 5.1 Relações entre Economia e História ............................................................................................. 96 5.2 Antecedentes: materialismo histórico e Annales ..................................................................101 5.2.1 Materialismo histórico ........................................................................................................................104 5.2.2 Exposição dialética ...............................................................................................................................107 5.2.3 Marxismos ................................................................................................................................................109 5.3 Escola dos Annales .............................................................................................................................111 5.3.1 A problematização da História .........................................................................................................111 5.3.2 Níveis de temporalidade propostos por Braudel ...................................................................... 113 5.3.3 O debate sobre o desenvolvimento dos ciclos do capitalismo: Wallerstein e Arrighi ....................................................................................................................................... 114 6 HISTÓRIA SOCIAL ...........................................................................................................................................123 6.1 História das Mentalidades ..............................................................................................................128 6.2 A crítica pós-moderna à História Social e Econômica ........................................................130 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade III 7 HISTÓRIA CULTURAL ....................................................................................................................................142 8 CONCLUSÃO ....................................................................................................................................................147 7 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 APRESENTAÇÃO Este livro-texto destina-se aos alunos da disciplina Historiografia Geral. Nele serão discutidos aspectos importantes relacionados ao desenvolvimento da História enquanto ciência, das relações entre História e memória, o método historiográfico e as características fundamentais da História Econômica e Social e a Nova História. Em vez de apresentar uma mera história da Historiografia, é importante que o aluno conheçaas discussões geradas em torno do status do conhecimento histórico e historiográfico. A finalidade desse texto, portanto, é oferecer subsídios mínimos ao aluno para que ele seja introduzido às questões mencionadas. Ao final da disciplina, o discente deverá estar apto a reconhecer as distintas propostas historiográficas e distinguir um texto historiográfico de outros gêneros textuais que lidam com o resgate do passado. INTRODUÇÃO História: a fascinante ciência que estuda o passado. Eis aí uma frase muito comum, usada por muitos para se referir ao resgate do passado pelos historiadores, um mestre da arte da narrativa de eventos importantes e da vida de grandes personagens. Por mais que essa definição seja familiar a você, é hora de repensá-la sob muitos aspectos, inclusive com a questão fundamental: a História é uma ciência? Se sim, de que tipo? E mais: será que a História é somente o estudo do passado? O que significa reviver o que já passou? Vestígios arqueológicos demonstram que, há muito tempo, o ser humano revisita o passado com propósitos específicos. Entre os assírios, por exemplo, o poder real era justificado tanto pela sua linhagem como pelos seus feitos e, para isso, o passado era sempre invocado. Da mesma forma, os egípcios buscavam traçar as origens de seu império e os faraós, assim como seus vizinhos mesopotâmicos, buscavam traçar as origens de sua dinastia recuando até mesmo milênios no tempo. A Ilíada e a Odisseia, por mais que sejam reconhecidas como obras literárias, não deixam de fazer referências ao passado e eram amplamente usadas na formação do povo grego: todos conheciam os feitos de Aquiles, Odisseu, Agamenon e outros envolvidos na guerra contra Troia. “E como eles conseguiam saber o que tinha acontecido tanto tempo antes deles?” Eles, assim como nós, consultavam documentos ou faziam escavações arqueológicas? Alguns documentos recentes sugerem que os egípcios, por exemplo, realizavam algumas escavações, mas se o propósito era “arqueológico” ainda resta a dúvida. Os povos da Mesopotâmia tinham enormes arquivos de tabletes cuneiformes, mas os documentos não eram usados pelo seu valor histórico e sim administrativo: depois de certo tempo, eram descartados, o que temos disponível para estudo são documentos que perderam seu valor e foram excluídos. A Ilíada e a Odisseia, inicialmente, eram recitadas e o aedo – quem recitava essas poesias – as memorizava e passava adiante por gerações até que foram finalmente escritas no período clássico. Se esses povos revisitavam o passado, mas não o faziam por meio da consulta de documentos, como eles poderiam saber a verdade? A resposta é: que verdade? Será que essas sociedades tinham a necessidade que muitos de nós ainda temos de buscar uma verdade integral na História? Podemos responder aqui, grosso modo, que não. 8 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 No caso dos assírios, há uma velha memória estabelecida em torno deles de que eram um povo militarizado, cruel, responsável por devastar muitos reinos do Oriente Médio e submetê-los a pesadas tributações e deportações. Quem os desobedecesse era severamente punido. E como sabemos disso? Por meio de documentos como anais reais, listas dinásticas e os baixos-relevos nas paredes dos palácios assírios. Para um rei assírio, era absolutamente importante justificar seu poder recorrendo a uma “propaganda” de seus feitos, assim como consolidá-lo se vinculando a uma dinastia de reis poderosos. Mas o que garante que certos reis de fato realizaram tantas conquistas e que eram descendentes de grandes reis do passado? Nada: o que importava, nesse caso, era construir um discurso bem convincente e apresentá-lo à corte e aos seus inimigos políticos, sempre à espreita para tomar o poder. “Então eles mentiam?”, você pode perguntar. A resposta é difícil, pois mentir parece uma atitude deliberada como em “vou mentir”, “vou deliberadamente enganar pessoas”. Não era possível mentir totalmente, pois se alguém dissesse que conquistou o Egito e um viajante assírio fosse passar uma temporada em Tebas e ver que por lá ainda reinava o faraó, ele pensaria: “bom, meu governante é um mentiroso ou louco”. Além do mais, não é possível crer que os documentos que temos disponíveis sejam totalmente neutros. Por isso não é uma questão de verdade ou mentira, mas de construção. Contar a verdade total do passado foi um lema dos historiadores e que tinha sentido em seu tempo, frente à difusão de romances históricos que exaltavam as nacionalidades no século XIX, mas não se importavam tanto com a verossimilhança. A busca pela verdade é ainda mais antiga e remonta aos gregos. Xenofonte, um historiógrafo grego, procurou escrever sobre fatos históricos a partir de relatos de terceiros: Xenofonte (séc. V-IV a. C.) escreveu história ao narrar a vida do rei persa Ciro quase sem referências a evidências? A Ciropedia (A educação de Ciro) não teria sido apenas um texto literário ou biográfico, cujo autor teria tomado um personagem “real” como tema a ser narrado? Xenofonte se propõe a entender como Ciro conseguiu, com sua arte de governar, colocar sob seu domínio uma variedade de povos distantes de seu reino persa, deixando uma lição aos seus leitores de que tal tarefa era possível. Produz uma narrativa em que procura demonstrar elementos que justificariam as conquistas do rei persa: sua origem, sua educação, seu caráter, suas batalhas e outros acontecimentos de sua vida. Uma das poucas marcas explícitas que contribui para associarmos sua obra ao gênero historiográfico se resume a um rápido comentário que incorpora ao prefácio: “Narraremos o que dele ouvimos, e o que pudemos alcançar por investigação própria” (LIMA; CORDÃO, 2010, p. 2). Heródoto, autor da monumental obra História (que também pode ser vista como uma grande descrição etnográfica com passagens que narram o passado) procurou preservar a memória de feitos que ele considerava relevantes, mas de uma forma distinta da dos outros gêneros literários que, vez ou outra, revisitavam o passado. Ele se recusava a seguir o método de Xenofonte, segundo ele, um mero reprodutor de relatos pouco confiáveis. Heródoto considerava importante uma postura ativa diante dos vestígios disponíveis, fossem eles escritos ou orais: Heródoto procurou preservar do esquecimento os feitos que se passaram. Porém, não foram as Musas, as nove divindades filhas de Zeus e Mnémosine, 9 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 personificação da memória, quem lhe informaram o que dizer; ele próprio, Heródoto de Halicarnassos, foi quem promoveu suas investigações cujos resultados foram transformados em escrita. Promove todo um jogo comparativo entre as informações orais de diversos povos a que teve acesso, demonstrando uma preocupação em dizer a verdade, embora a considere inalcançável por conta da existência de uma vasta quantidade de opiniões sobre os atos humanos (LIMA; CORDÃO, 2010, p. 3). De fato, ele se comporta nesse caso como um historiador contemporâneo que deixou há tempos de deixar o documento “falar” por si próprio. Como afirmam Lima e Cordão Heródoto se preocupa em esclarecer que as versões das testemunhas dos feitos sobre os quais historia precisam da confirmação de seu “olho” para serem consideradas mais verossímeis. De um lado, se preocupa apenas em expor o que colheu de suas testemunhas: “Quanto a mim, meu objetivo ao longo de toda a obra é registrar tudo que me foi dito tal como ouvi de cada informante”. De outro, desconfia do que ouve: “em verdade, minha obrigação é expor o que se diz, mas não sou obrigado a acreditar em tudo (essa expressão deve aplicar-se a toda a minha obra)”, comentários que evidenciam sua intenção em construir umamemória dos feitos humanos respaldada numa prática investigativa que lhe poderia conferir um estatuto de verdade (LIMA; CORDÃO, 2010, p. 4). Heródoto, portanto, é um marco para a História e para a Historiografia. Em primeiro lugar, ele recusa os relatos orais sem antes julgá-los através de um criterioso método comparativo, evidenciando – até mesmo através de um termo forte, o de “obrigação” – uma postura completamente ativa frente aos vestígios que mobilizava. Em segundo lugar, ao retirar os grandes acontecimentos do contexto mítico, divino, reconhecia a essência dos acontecimentos que ocorrem em um mundo puramente humano, material: a mudança (LIMA; CORDÃO, 2010, p. 5). Eis aí aspectos fundamentais da História. François Hartog afirma que a raiz da palavra “história” diz muito sobre essa atividade. Assim, quando Heródoto concebe sua atividade como História, ele leva em consideração o exercício do saber mediante comprovação, já que História significa ver. Para si, Heródoto confere o estatuto de quem sabe por que “viu” e não por ter sido inspirado pelas Musas. Assina seu nome no prólogo das Histórias, tomando para si um lugar de saber que passará a ser construído a partir do “método” da investigação: “Daí em diante, para ‘ver’ é preciso arriscar-se (ir ver) e aprender a ver (recolher testemunhos, reunir as diferentes versões, relatá-las, classificá-las em função do que se sabe por outras fontes e também em função do grau de verossimilhança)” (HARTOG, 2001, p. 51). A partir daí, observa-se no discurso que passará a prevalecer entre os historiadores um esforço por se distanciar do estatuto da produção dos poetas. Esforço que pretendia demarcar um 10 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 território próprio, autônomo, peculiar: o território do historiador (LIMA; CORDÃO, 2010, p. 5). Por isso, convencionou-se chamar Heródoto de “o pai da História”. Ele lança as bases sobre as quais se fundamenta o conhecimento histórico produzido sob uma perspectiva metodologicamente constituída, cientificamente elaborada. De fato, o historiador é um sujeito ativo de conhecimento, realiza a crítica das fontes e, por mais que não possa estabelecer a observação empírica do seu objeto (que já não existe mais), a mobilização do vestígio documental promove certa delimitação do texto histórico, que não pode ser aberrativo em relação à fonte trabalhada: se uma fonte material demonstra que em um enterramento de certa civilização apresenta-se uma espada, seria absurdo dizer que essa civilização desconhecia o uso de armas diante de tal evidência. O texto histórico a que fazemos referência é a própria Historiografia, ou a escrita da História. A definição de Historiografia é um tanto complicada porque, ao longo do tempo, estaríamos lidando com textos de natureza absolutamente distinta (até mesmo oposta!) chamando-os de Historiografia. Textos atuais que são mais bem categorizados como crônicas jornalísticas históricas seriam considerados Historiografia se fossem escritos em épocas diferentes. Deliberadamente, simplificando a questão: Historiografia será considerada um gênero textual relacionado à atividade do historiador, metodologicamente orientado e cientificamente constituído (à parte a discussão se História é ou não é ciência). O corte fundamental aqui será o século XIX, quando a História se constituía como ciência, e a Historiografia surgida nessa época colocava-se em nítida oposição a romances históricos, escritos sem embasamento documental e, portanto, sem o espírito científico. A ideia era “contar o que realmente se passou”. Mas, ao longo do tempo, a Historiografia irá passar por profundas transformações. São elas que você verá ao longo desse livro-texto, cuja finalidade é apresentar sinteticamente as problemáticas e questões que envolvem o estatuto científico da História, assim como sua transformação ao longo do tempo. Veremos como ela se associa a outras Ciências Humanas e modifica seus objetos, como concepções distintas de tempo (cíclico ou linear) se desenrolam no discurso historiográfico, a ideia de História como a ciência do presente, as relações entre memória e História, a perda da hegemonia da escrita como fonte documental por excelência etc. São discussões que você, futuro professor de História, talvez não imaginasse que existissem, mas cujo conhecimento é da maior importância para sua formação profissional. 11 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL Unidade I O que é História? Talvez você tenha pensado que se trate do passado, daquilo que ficou para trás, obsoleto. Ou ainda de algo memorável, como costuma dizer a expressão: “ficou na história”. Muitos dirão, quase como uma declaração de amor ao avesso pelas Ciências Exatas: “não gosto de História”. Ou, então, você ouvirá de alguém quando disser que está cursando licenciatura em História: “que interessante! Adoro História!”. Não é difícil encontrar aqueles que julgam a História como uma total perda de tempo ou que seja estudada por pessoas fascinadas pelo passado. Enfim, qualquer que seja a postura frente à História, é praticamente impossível ficar-lhe indiferente. A pergunta feita antes – sobre o que é História –, aparentemente simples de ser respondida, esconde uma complexidade de sentidos que são revelados conforme nosso conhecimento sobre o assunto torna-se mais profundo. “Certo, mas o que é História, afinal?” Você deve estar pensando, impacientemente: eis a questão! Não há uma resposta bem clara e definida. Embora o historiador Edward Carr tenha escrito um livreto muito importante chamado justamente Que é História?, o conteúdo do livro é uma análise realizada sob uma perspectiva acadêmica de matriz anglo-saxã, diferente da tradicional História de matriz francesa ensinada nas nossas escolas e na maior parte das universidades brasileiras. Não é tão confuso quanto parece, mas você precisa ficar atento a alguns detalhes importantes. Vamos nos aprofundar um pouco mais, refletindo sobre o significado de algumas expressões muito corriqueiras que envolvem a História. O que significa dizer que se gosta ou não de História? Podemos pensar que, provavelmente, a pessoa está estabelecendo uma relação positiva ou negativa com duas coisas: em primeiro lugar com o passado em si e sua identificação com os eventos trabalhados; em segundo lugar, pela memória que se tenha das aulas de História, documentários, museus etc. Não é raro encontrarmos um graduando de História que escolheu a carreira por ter tido um grande professor dessa matéria. Os chamados “amantes” da História frequentemente consomem os “mistérios do Egito”, as “batalhas medievais” ou “a face oculta de Hitler” sob uma perspectiva de exotismo muito semelhante ao fascínio surgido em uma viagem a uma cultura bem diferente da própria. De fato, há uma espécie de fascínio ao constatarmos a diversidade da experiência humana através dos séculos ou, como diria o historiador francês Marc Bloch, na aventura “do homem na função tempo” (BLOCH, 1949). Pois bem, aquela pergunta inicial está ficando um pouco mais complexa, mas não menos interessante. Parece absurdo gostar ou não de História porque nós já estamos nela. A mudança é inevitável e nós somos afetados por ela. A natureza do tempo é amplamente discutida, inclusive em recentes teorias da Física que consideram que o tempo e a quarta dimensão e que tem partículas que serão descobertas e descritas mais cedo ou mais tarde. Agora, gostar ou não de História talvez seja algo possível, no entanto esse juízo de valor deve ser questionado e, digo a você, é bem inadequado não gostar de História por confundi-la com uma celebração ao obsoleto e ao ultrapassado, assim como um museu sem uma 12Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I curadoria competente que transforma um prédio em um depósito de coisas velhas, cuja visita seria um programa totalmente (e compreensivelmente) insosso. Da mesma forma, o “gosto” pela História ao estilo “o mistério das pirâmides” pode parecer interessante, e é perfeitamente válido, mas é muito pouco para revelar o dinamismo e a importância da História ao longo dos séculos. Tal importância nos conduz inevitavelmente a uma afirmação que pode soar um pouco estranha, mas bem reveladora do papel que a Historiografia representa no conjunto da produção intelectual de uma sociedade num dado momento: a História não é necessariamente um estudo do passado; é mais um estudo do presente, precisamente de como as pessoas do presente se relacionam com o passado na construção de suas identidades coletiva e individual. Caso você ainda não tenha compreendido como a História pode ser um estudo do presente, então pense nas expressões populares “ficou na história”, ou “este é um acontecimento histórico”, e ainda na expressão “gol de placa”. Cada uma delas pressupõe que determinados eventos são dignos de serem lembrados, enquanto outros serão normalmente esquecidos. Nesse caso em especial, trata-se de fatos que se destacam em meio a uma profusão de acontecimentos banais e, em meio a uma partida de futebol absolutamente sem graça, um jogador parte para o ataque e marca um belíssimo gol, sendo premiado literalmente com uma placa para que sua façanha seja lembrada por anos a fio enquanto a placa não perecer no tempo. Sendo assim, há uma seleção que não é nem um pouco natural dos eventos a serem lembrados e que é realizada por agentes históricos que sabem muito bem o que querem e que têm projetos políticos muito bem definidos. Assim o trabalho do historiador consiste em identificar essas seleções ao longo do tempo, esclarecendo as intenções dessas escolhas e evidenciando o arcabouço ideológico dominante que serviu de sustentação para o trabalho de seleção dos chamados “fatos” históricos e exclusão daquilo que foi considerado supérfluo. Mas não é só isso: o historiador, como um agente histórico e produtor de ideias, também age no seu tempo através de sua produção, geralmente crítica. A palavra “crítica”, embora tenha uma conotação negativa, vem do grego krisis, que significa “ruptura” e, nesse caso, seria como romper com visões preestabelecidas e consensuais e entender os fundamentos de um discurso, retirando-o do altar da sacrossantidade do absoluto e inserindo-o na contingência do histórico, das intenções políticas, do jogo de poder que atravessa os séculos. Essas afirmações podem parecer um tanto desconcertantes, ainda mais para quem a História deveria ser uma celebração dos heróis da pátria e de seus grandes feitos. Talvez você esteja se perguntando: “quer dizer que o que chamamos de fato histórico é algo parcial? Mas a História não seria contar exatamente o que aconteceu no passado?”. A resposta é: não mais. “Contar o que realmente se passou” chegou a ser o lema dos historiadores do século XIX, principalmente alemães, e hoje temos plena consciência de que o que chamamos de verdade pode ser uma construção mental que pode mudar ao longo do tempo. Esse lema fez sentido na época em que foi criado, como veremos mais adiante no texto. Voltemos um instante para a questão das seleções de eventos: mesmo que a exclusão de vestígios materiais – incluindo documentos de arquivo – possa ter acontecido naturalmente devido a vários fatores (incêndios, materiais perecíveis etc.), a seleção e a reunião dos materiais disponíveis ficam a cargo do historiador (ou do cronista) e de todas as suas influências culturais e políticas. Na prática, é impossível que a Historiografia seja totalmente neutra. 13 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL Então do que adianta estudar História se todos os supostos fatos nada mais são do que um conjunto pré-selecionado de dados, totalmente parciais? Se você ainda estiver, como nossos heroicos historiadores do século XIX, buscando a verdade incontestável dos fatos que aconteceram no passado, a resposta certamente seria: “nada”. No entanto, é muito mais interessante admitir a parcialidade do discurso histórico como um elemento intrínseco de análise e, é claro, não confundir Historiografia com qualquer outro texto que tenha como pretexto algum acontecimento no passado, inclusive um livro de ficção: a Historiografia é um texto de análise que tem um método específico, embasado em uma teoria de análise. Um exemplo prático dessa afirmação seria o famoso livro 1808 (GOMES, 2007), por mais interessante que possa ser, ele não pode ser considerado Historiografia no sentido mais estrito do termo. Trata-se mais de uma crônica jornalística sobre eventos consagrados na história do Brasil. E uma obra historiográfica sobre o papel de Simon Bolívar nas independências sul-americanas seria totalmente distinta do livro General em seu Labirinto (MARQUEZ, 1989), que é um romance histórico. É verdade que a diferença entre romance e Historiografia pode parecer um tanto difusa se a última não mais se comprometer com a verdade integral do passado. De fato, isso gerou uma série de importantes discussões nos anos 1960 e 1970, que veremos mais adiante. Apenas para adiantá-las e aguçar sua curiosidade: a História quase desapareceu há mais ou menos 40 anos, quando seu estatuto científico foi seriamente ameaçado. Tanto Gomes (2007) como Garcia Marquez (1989), cada qual partindo de lugares distintos, contribuíram para a formação de algo mais amplo, diferente da História enquanto uma área de conhecimento: trata-se da memória, tanto individual como coletiva. O conceito de memória é muito particular e se refere a uma abordagem não crítica do passado, em que ele surge como um referencial de ideias importantes para a constituição das identidades. Grosso modo, enquanto a história apresenta uma abordagem crítica e metódica também do passado, a memória tende a estabelecer vínculos diretos e afetivos com o passado. A memória retira seu conteúdo de um sem-fim de “matérias-primas”, tais como livros que veiculam uma determinada visão sobre um assunto histórico, monumentos, memórias pessoais sobre um dado evento etc. Nesse ponto, é importante frisar o papel que o ensino escolar de História tem na formação da memória nacional. Mas os historiadores contribuem com a memória? O papel da Historiografia nesse sentido é indireto e bem limitado, e isso ocorre por fatores diversos. O fato é que escrever sobre o passado não é monopólio dos historiadores e sua produção tem uma atuação muito tímida na sociedade em comparação, por exemplo, com a de jornalistas que versam sobre o passado nacional como os conhecidos Laurentino Gomes e Eduardo Bueno. Se assumirmos esse ponto de vista integralmente, nossa profissão não teria sentido, não é mesmo? Por isso é muito importante que os historiadores consolidem sua posição dentro da produção social da memória não apenas por uma questão meramente de ofício, mas por serem produtores de memória diferentes dos outros, com habilidades distintivas e métodos apropriados que os tornam capazes – a despeito de uma série de críticas recebidas nos últimos 40 anos – de produzir um conhecimento sólido e o mais próximo possível do imparcial, ou seja, pensar a História como uma ciência dentro do quadro mais amplo das memórias. 14 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I 1 ASPECTOS FUNDAMENTAIS DA CIÊNCIA A partir daqui, é muito importante estabelecer alguns princípios que nos permitam considerar a História uma ciência,certamente uma ciência especial em relação às demais ciências, sejam elas as da natureza ou as sociais. Ainda mais porque a cientificidade da História foi posta em xeque com indiscutível propriedade e pertinência pelos chamados filósofos pós-estruturalistas, muito populares nos meios acadêmicos nas décadas de 1960 e 1970. Se você já ouviu falar de Michel Foucault, saiba que ele foi responsável por demolir a maior parte dos alicerces sobre os quais a História se havia fundado desde sua criação como ciência no século XIX, estabelecendo novas diretrizes para os estudos históricos (embora não gostasse muito da Historiografia). Desde então, houve esforços em reafirmar a continuidade da existência da História, reforçando seu caráter científico, desde que compreendida como uma ciência distinta das demais. Mas, afinal, que ciência é essa? Permitamo-nos voltar um pouco no tempo (afinal, somos historiadores, não é?) para tratar do contexto e das condições de surgimento desse tipo de conhecimento que chamamos de “científico”. É verdade que os fundamentos da ciência puderam ser traçados na Antiguidade, mas podemos estabelecer que a Revolução Científica foi uma decorrência direta de uma mudança na mentalidade europeia a partir do século XIII, quando surge a corrente filosófica denominada Humanismo. Nesse momento, a Europa passava por grandes transformações advindas da crise geral do feudalismo e do desenvolvimento do comércio, vislumbrando o surgimento de uma nova classe social – a burguesia – responsável por resgatar elementos da cultura clássica e usa- la como um referencial para interpretar o mundo. A partir daí, o monopólio cultural da Igreja é ameaçado e os humanistas reivindicam um conhecimento de natureza investigativa, opondo-se ao esquema simplista do dogma religioso. No século XVI, as consequências diretas desse modo de pensar, ou como se dizia na época, “ler o mundo tal como um livro aberto a ser lido”, levaram a uma definitiva alteração dos paradigmas do conhecimento. Um filósofo da maior importância nesse processo foi René Descartes. Você certamente já ouviu falar dele, ou de alguma expressão que remeta a ele como, por exemplo, “plano cartesiano”. Afinal, por que ele pode ser considerado um dos maiores filósofos da humanidade? O que ele produziu de tão relevante? Descartes viveu a maior parte de sua vida na Holanda, onde encontrou um ambiente propício para suas investigações, afastado da grande pressão exercida pela Igreja Católica. Em razão de seu ofício, o filósofo viajou por lugares distintos, entrando em contato com culturas diversas, e as diferenças culturais entre os povos o marcaram profundamente. Em vez de formular um pensamento que admitisse que as verdades são relativas, culturalmente constituídas – tal como afirmara Protágoras, na Antiguidade – Descartes estava certo de que as distinções culturais percebidas pelos sentidos tratavam-se de enganos, e que era possível estabelecer uma verdade única a despeito das aparentes distinções. 15 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL Figura 1 – René Descartes (1596 – 1650) Após certo tempo de trabalho, Descartes conseguiu um período de alguns anos no qual se retirou para dedicar-se exclusivamente ao trabalho filosófico. René Descartes viveu em uma época de grande efervescência cultural e um dos produtos do pensamento humanista foi o surgimento de um grupo de filósofos que seguia a linha do ceticismo, ou seja, duvidava de absolutamente tudo. O filósofo se inseria parcialmente nessa corrente, mas diferia substancialmente de seus pares na medida em que recusava a ideia de que era impossível chegar a um conhecimento verdadeiro, o que era afirmado pelos céticos. Assim como seus congêneres, Descartes partia da dúvida total, mas a finalidade da dúvida era eliminar qualquer incerteza diante de um objeto de conhecimento. Portanto, o método da dúvida hiperbólica não tinha a finalidade de manter o conhecimento em suspenso: ao contrário, a ideia era levar a um conhecimento absolutamente seguro após todas as dúvidas serem eliminadas. De fato, a primeira certeza a ser comprovada era a da nossa própria existência. Descartes considerava que concluir que existimos mediante uma avaliação superficial realizada pelos sentidos seria insuficiente e imaginava que poderíamos ser enganados por um gênio maligno que nos faz sonhar sobre nossa própria existência. Nossos sentidos nos capacitam apenas para perceber a res extensa – a matéria – e tal percepção é incompleta e grosseira. Um conhecimento verdadeiro deve ser seguro e, nesse caso, apenas com o pensamento é possível chegar a uma conclusão que ultrapasse os sentidos. Para Descartes, a res cogitans – grosso modo definida como a razão – transcende os sentidos e é capaz de produzir um conhecimento afinado às ideias inatas, imutáveis, que transcendem o sujeito e são universais por excelência. A res cogitans não é da mesma natureza da res extensa, não sendo a primeira dependente da segunda. Nesse caso, o mero ato de pensar sobre a própria existência é prova irrefutável de que estamos aqui e que o conhecimento que produzimos é válido – daí o famoso “penso, logo existo”. A dúvida, nesse caso, era algo da natureza do indubitável. Uma vez provada a nossa existência, – e também a de Deus, de onde emanariam todas as ideias perfeitas e a bondade suprema – Descartes busca uma linguagem adequada aos conhecimentos inatos. E diria o filósofo que, mesmo que estivéssemos sonhando, dois mais dois sempre serão quatro e o quadrado sempre terá quatro lados. Você já deve ter adivinhado qual a linguagem escolhida por 16 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I Descartes para representar ideias inatas: a Matemática que, segundo ele, seria uma linguagem simples e ao mesmo tempo rigorosa. Com Descartes, portanto, a Matemática passa a ser utilizada como uma expressão de juízos inatos, o que mais tarde serviria de postulado fundamental das ciências da natureza, ou (usando uma terminologia atual) Ciências Exatas. O plano cartesiano, por exemplo, é a representação gráfica de funções matemáticas e é usado em diversas ciências. O método cartesiano é uma investigação que procura dirimir toda e qualquer dúvida sobre um determinado objeto de estudo. Escrito no consagrado Discurso sobre o Método, de 1637, ele tem quatro operações que sintetizariam a indução e a dedução: a dúvida, na qual deve-se aceitar apenas aquilo que é de fato indubitável; a análise do objeto em tantas partes quanto forem possíveis; a síntese ou a elaboração de generalizações e a enumeração das conclusões para que a verdade sobre o assunto em questão seja garantida. Segundo ele, esse método seria como demolir uma velha casa para que, em seu lugar, fosse construído um edifício seguro. Outro filósofo da maior importância e que viveu na mesma época de Descartes foi Francis Bacon, que se dedicou aos fundamentos do método científico estabelecendo as bases do empiricismo. Suas contribuições no campo da ciência e da filosofia são tão importantes que Bacon é considerado por muitos o verdadeiro pai da ciência moderna. Sua vasta obra abrange distintas áreas do conhecimento, com especial destaque à Filosofia e ao Direito, e antecedeu em vários séculos os postulados atuais de importantes teorias cognitivas e correntes filosóficas dedicadas à investigação da linguagem. Um dos aspectos mais relevantes da obra de Bacon é a análise e desmontagem do que ele denominava “ídolos”, ou seja, distorções presentes na percepção humana e que inevitavelmente conduziriam ao engano. Quatro tipos de ídolos são identificados: ídolos tribais, referentes às generalizações grosseiras da mente humana; ídolos da caverna, que representamos enganos advindos da percepção particular da realidade; ídolos do fórum, relativos ao descompasso entre as palavras e a realidade que elas descrevem; e ídolos teatrais, baseados em falsos julgamentos advindos de cânones literários considerados referenciais em um dado momento histórico. A partir do conhecimento dessas possibilidades de engano, seria necessário encontrar um método seguro para o conhecimento, e daí resultou a formulação de um método baseado na indução já que, segundo ele, a lógica dedutiva aristotélica seria insuficiente, já que não leva em conta uma observação empírica dos fenômenos. Daí a possibilidade de discorrer com aparente propriedade sobre um assunto apenas com a habilidade discursiva, nesse caso, a do retórico. O método indutivo, portanto, partiria da observação de casos particulares e que a experiência direta de um fenômeno – seja ele reproduzido em laboratório, seja uma amostra representativa de um determinado fenômeno social – poderia, sob certas condições, produzir uma generalização na forma de uma teoria. Observação A Revolução Científica foi um movimento decorrente do surgimento do Renascimento Cultural que, por sua vez, foi fruto de grandes transformações ocorridas na Baixa Idade Média. Embora a ideia de revolução pressuponha um rompimento radical com o conhecimento medieval, há diversas continuidades que precisam ser observadas. 17 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL Figura 2 – Francis Bacon pode ser considerado o pai da ciência moderna por ter desenvolvido o método das tábuas, que estipulava relações reais de causa e efeito dos objetos analisados No entanto, devemos considerar que há diferenças fundamentais entre o pensamento de Descartes (que é ligeiramente posterior) e de Bacon, sobretudo com relação ao método empregado para chegar ao conhecimento. Descartes desenvolveu o método dedutivo a partir da observação de generalizações indubitáveis, método que emulou o silogismo aristotélico e é utilizado com mais frequência na Filosofia e na própria Matemática. Bacon, por sua vez, se afasta da dedução aristotélica, e a indução torna-se o método de conhecimento por excelência. Interessante notar que a indução, a observação do particular para propor uma generalização, funciona de maneira peculiar. Muitos lógicos se debruçam sobre a questão da validade do conhecimento indutivo, já que novas experiências podem colocar em xeque afirmações universais advindas da indução. Nesse caso, levando em conta os fundamentos de seu método, há algo de provisório na ciência, mesmo que ela se ocupe de conhecimentos racionais, universais, verdadeiros. Nesse ponto, é possível fazer uma aproximação com o filósofo empiricista David Hume, que discute justamente a questão da regularidade como um pressuposto fundamental do conhecimento científico e do peso de certas variáveis para a validade científica. Hume afirma que um evento que escapa à regularidade gera naturalmente especulações acerca da causa e do efeito relacionados com um determinado objeto. Assim, poderia haver uma rede causal que antecedesse um determinado fenômeno, mas que ainda não estaria revelada, e aí é que residiria o sentido do trabalho do historiador: a investigação. Deve haver uma interpretação que se localiza entre o sujeito que produz conhecimento e a forma com que o objeto se impõe para ser interpretado – que, em sua visão, tem um peso determinante. Com certeza, um dos maiores nomes da Filosofia Moderna é David Hume. Nascido em 1711, de uma família nobre da Escócia, entre os 12 e 14 anos, estudou Literatura e Filosofia na Universidade de Edimburgo, apaixonando-se por essas duas áreas. Preparou-se para trabalhar em profissão [relacionada ao] Direito e até se arriscou como negociante, mas, segundo suas próprias palavras, sentia “uma aversão insuperável a tudo o que não fossem as buscas da Filosofia e do conhecimento em geral”. Mais do que apenas um filósofo, Hume fez muita fama como historiador e ensaísta. Em vida, sua obra que mais fez sucesso – e lhe rendeu uma segurança financeira considerável – foi uma série de livros intitulada “A História da Inglaterra” (1754-62). No entanto, a sua primeira obra foi um dos livros mais importantes da História da 18 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I Filosofia, chamado Tratado da Natureza Humana (1739-40). Entre os anos de 1734 e 1737, cansado de tentar a vida como negociante (tentativa que só durou três meses, diga-se de passagem), resolveu viver de sua herança e foi para o interior da França, tentando a vida no campo por pensar que seria economicamente mais viável. Ele foi residir em La Flèche (sim, cidade onde Descartes estudou no colégio jesuíta). Usando a biblioteca desse colégio, David Hume compôs seu longo tratado. Apenas como uma nota – para dar inveja a qualquer jovem – Hume começou a escrever seu tratado com 23 anos! Sim, com 23 anos ele começou a escrever uma das maiores obras da História da Filosofia, sendo publicada em três livros entre os anos de 1739 e 1740, quando Hume tinha por volta de 28 anos. A ideia de Hume com seu tratado era introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos filosóficos. Isso se caracterizará como uma forte renúncia à metafísica. Contudo, a aceitação do Tratado da Natureza Humana foi péssima. O próprio David Hume, se referindo a essa obra, disse que “jamais uma empreitada literária foi tão desafortunada quanto o meu Tratado”, ele ”já saiu natimorto da impressora”. Parte dos filósofos da época que liam a obra não a compreendiam direito, parte a recusava, e uma parte muito pequena a aceitava. Para solucionar esse problema, Hume publica em 1748 a obra intitulada Investigações sobre o Entendimento Humano, que basicamente era um resumo revisto de seu Tratado. Essa obra, sem sombra de dúvidas, é fantástica! Com uma clareza e objetividade sem igual, Hume apresenta em um livro curto toda sua teoria filosófica. Completamente argumentativo e com riqueza literária, a exposição que Hume faz se tornou um paradigma de escrita clara para todos os filósofos que vieram após ele, até mesmo para os filósofos que não concordavam com sua teoria. Até o final de sua vida, David Hume tem uma coleção de livros e ensaios publicados. No entanto, para apresentar sua teoria, basta nos centrarmos nas Investigações sobre o Entendimento Humano. Hume, tal como Descartes, estava preocupado em entender os fundamentos do conhecimento humano. Todavia, Hume chega a conclusões bem contrárias às de Descartes. Enquanto Descartes se enquadra como um racionalista, Hume foi um empirista. Mas, primeiro, antes de explicarmos isso, vejamos sua teoria. Como funciona nosso processo de entendimento? Essa primeira pergunta nos servirá de condutora para o início dos pensamentos de Hume. De acordo com os termos usados por Hume, nós entendemos o mundo através de duas vias: ideias e impressões. Impressões As impressões seriam nossas percepções mais vívidas e fortes, por exemplo, nossas sensações. Quando eu vejo o notebook na minha frente, eu tenho a impressão em minha mente desse computador. Essa impressão é vívida, pois eu estou em contato direto com aquilo que me cria essa impressão. Eu tenho uma experiência com o objeto da minha impressão. As impressões podem ser caracterizadas como sensações, que são frutos da experiência que tenho dos meus sentidos com objetos externos; ou reflexões, que são frutos da experiência que tenho dos meus sentimentos, ou seja, são objetos internos a nós. 19 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL Ideias As ideias, por sua vez, sãoos objetos que estão em nossa mente sem que tenhamos naquele momento um contato direto com as impressões dela. As ideias seriam impressões menos vívidas, mais tênues. Por exemplo, quando eu penso na bicicleta que eu tinha quando criança, ainda que eu feche os olhos e quase sinta o vento em meus cabelos ao pedalar aquela bicicleta, essa impressão que eu tenho é menos vívida que a do meu notebook, que está agora na minha frente. Os objetos da minha memória (como a bicicleta) não são objetos presentes nas minhas impressões (como o notebook), esses objetos da nossa mente seriam as ideias. Podemos distinguir dois tipos de ideias: as simples e as complexas. As ideias simples são aquelas que são cópias diretas de impressões que tivemos. A da bicicleta, por exemplo, é uma ideia simples, pois eu tive uma impressão com essa bicicleta no passado, mas hoje eu só tenho a ideia dessa bicicleta, que é a memória dela. Fonte: Gracher (2015). Com Isaac Newton, a ciência moderna irá se consolidar. Se Francis Bacon havia estabelecido princípios para chegar a um conhecimento seguro por meio da indução – mesmo que até hoje filósofos, especialmente os lógicos, não tenham chegado a um consenso sobre de que maneira a indução funciona – e René Descartes havia descrito uma forma de chegar a um conhecimento seguro, unindo indução e dedução – com especial atenção ao segundo método –; Newton, através da observação dos fenômenos naturais, concluirá que tais fenômenos podem ser previstos, ou seja, funcionam regularmente. Daí a racionalidade da Física: os fenômenos podem ser previstos, pois funcionam da mesma maneira sempre. Esse será um postulado fundamental da ciência atual: a previsibilidade dos fenômenos que podem ser reproduzidos em laboratório. Figura 3 – Sir Isaac Newton (1642 – 1727) 20 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I As ideias de Immanuel Kant contribuíram diretamente para uma reavaliação das ideias científicas. Para o filósofo alemão, os postulados científicos eram verdadeiros, mas ele buscou os fundamentos da razão e da validade das ideias científicas. Essa é uma concepção muito importante: a ciência, tal como a concebemos, já estava consolidada, mas a investigação, nesse caso, se concentrava em descobrir por que ela funcionava. Portanto, lançou mão do que denominava crítica: uma análise reflexiva dos fundamentos do conhecimento. E instituiu que a razão humana não era absolutamente completa ou ainda ilimitada, o que nos leva a pensar sobre o que é realmente possível conhecer. Para Kant, haveria dois tipos de conhecimento: os conhecimentos a priori e os conhecimentos a posteriori. Conhecimentos a priori se referem a postulados fundamentais que existem por si só e independem da razão. Noções abstratas como tempo, espaço, moral, virtude etc. são, por definição, conceitos que existem por si e que podem ser apenas parcialmente conhecidos pela razão. Sua existência se manifesta no indivíduo a partir de uma intuição que surge diante de fenômenos naturais ou concepções morais. Essa intuição levaria o ser humano a conhecer mais profundamente aquilo que intuiu e, assim, produziria uma série de conhecimentos através da experimentação científica. Portanto, os conhecimentos a posteriori são produzidos pela indução, ao mesmo tempo em que são validados mediante uma análise racional. Assim, o avanço científico pode ser relacionado a uma progressiva iluminação dos conceitos a priori que, no entanto, não podem ser completamente conhecidos pela razão, que apenas os vislumbra. Desse modo, Kant estabelece um fundamento epistemológico importantíssimo: não se trata mais de conhecer as coisas “em si”, mas “como eu conheço as coisas”. A partir daí, a completa objetividade da ciência pôde ser colocada em xeque, e tal afirmação produziu reações distintas: em um primeiro momento, a possibilidade da interferência do sujeito na pesquisa levou a uma série de procedimentos que buscavam evitar tal situação e, posteriormente, verificou-se que era impossível abstrair completamente o sujeito de conhecimento. Kant, portanto, é fundamental para entender os desenvolvimentos teóricos da ciência e, consequentemente, da História entendida como uma ciência. 1.1 O método científico Agora que discutimos rapidamente as ideias de filósofos importantes para a consolidação da ciência, vamos discorrer um pouco sobre o método científico. Vimos que a ciência moderna é uma forma de conhecimento fundamentada na indução de fenômenos e explicação mediante a lógica dedutiva. De fato, por ser um conhecimento investigativo, parte da observação direta de fenômenos logicamente organizados pela razão. Tal método busca uma racionalidade nos fenômenos naturais, expressa por meio de fórmulas, ou seja, o discurso de verdade na ciência se vincula à ideia de que os fenômenos tendem a acontecer sempre. Em qualquer lugar do universo, haverá a atração gravitacional, a luz viajará a 300.000 km/s e dois corpos não podem ocupar um mesmo lugar ao mesmo tempo. É verdade que boa parte desses postulados hoje é bastante discutível, mas deixemos por ora tais questões de lado. Voltaremos a elas em outro momento. De qualquer forma, é importante que nós pensemos sobre o método científico a partir do que vimos anteriormente sobre as ideias que discutimos de Bacon a Kant. O método científico deve sua constituição em grande parte ao método cartesiano, cujo momento principal é o da análise, a saber, a decomposição do objeto em tantas partes quanto forem possíveis. Pensemos em uma análise física do movimento, o objeto em 21 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL questão é o deslocamento de um automóvel. Para medir a variação tudo deve ser levado em consideração: a força aplicada (através das explosões do motor de combustão), o peso do carro, a gravidade, força normal etc. Tudo isso é colocado em uma fórmula e as contas são realizadas. Obviamente, a grande dificuldade é transformar a realidade em uma linguagem matemática em que há operações complexas, mas a existência de uma fórmula pressupõe certa regularidade na relação entre deslocamento e força aplicada. O mais importante é que tais fenômenos possam ser reproduzidos em laboratório. Justamente a partir dessa reprodução – partindo, portanto, de uma observação particular, e essa é a principal característica de uma indução: pode ser elaborada uma teoria que sirva em qualquer espaço e tempo. Se você disser que esse método pode ser pouco seguro para estabelecer verdades universais já que parte de uma observação particular, você não estará de todo errado. De fato, como afirmava David Hume, no século XVII, há certa provisoriedade no discurso da ciência. Após a realização da análise, o cientista procede (como afirmava Descartes) à verificação de sua hipótese. Se comprovada correta, o estudioso precisa expressar sua “descoberta” através de uma linguagem clara e compreensível – ou seja, lógica – para que possa comunicar o público de tal forma que todos possam compreender independentemente de sua cultura ou formação pessoal. Daí se depreende que os conhecimentos científicos são universais e que não estão sujeitos a uma análise parcial, cultural, apaixonada. Ou, pelo menos, tal é o discurso científico. No século XIX, o método científico se consolidou pelo consenso da comunidade acadêmica como a única forma possível de se chegar a um conhecimento verdadeiro, encaixando-se perfeitamente na proposta da modernidade que era a de emancipar o ser humano. Os postulados fundamentais da ciência e os conhecimentos baseados na previsibilidade dos fenômenos pela existência de leis naturais identificadas mediante um conhecimento empírico opuseram, com mais força, a fé e a ciência.O positivismo foi uma decorrência dessa mentalidade, uma corrente filosófica que afirmava que a humanidade estava em constante evolução, cujas etapas seriam percebidas através dos avanços técnicos e científicos. Segundo Augusto Comte, o conhecimento total das leis da natureza por meio da ciência fariam os “padres serem substituídos por cientistas” e levaria o ser humano a uma sábia resignação. Evolução, e não revolução. Progressivamente, as áreas de saber vão se especializando cada vez mais, aprofundando a lógica cartesiana da análise. O método aplicado nas ciências da natureza logo permeou todas as áreas do saber, inclusive para a compreensão das sociedades. Mas seria possível estabelecer leis gerais para prever as tendências sociais? O método das ciências da natureza seria aplicável para explicar a sociedade? Haverá uma oposição de fato entre os tipos distintos de ciência? Explicar ou compreender? Há uma sutil diferença entre esses termos, que vamos pensar agora. 1.2 Ciências nomotéticas e ciências ideográficas Tradicionalmente, podemos encontrar uma oposição fundamental entre dois tipos de ciência: as nomotéticas e as ideográficas. A primeira se ocuparia do estabelecimento de leis gerais e fenômenos previsíveis. São as ciências da natureza, tanto puras como aplicadas, e seus discursos de verdade se constituem a partir da possibilidade de reconstruir fenômenos reproduzíveis em laboratório. Segundo Jean Piaget: 22 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I São disciplinas que procuram estabelecer leis no sentido, por vezes, de relações quantitativas relativamente constantes e exprimíveis sob a forma de funções matemáticas, mas, igualmente, no sentido de fatos gerais ou de relações ordinais, de análises estruturais etc., traduzíveis por meio da linguagem corrente ou de uma linguagem mais ou menos formalizada (PIAGET, 1976, p. 30). A racionalidade advém justamente da repetição e da observação empírica de um fenômeno analisado. Já a segunda teria uma estrutura lógica que prescinde do estabelecimento de generalizações, ou seja, se ocuparia do particular, os fundamentos do discurso de verdade advêm da possibilidade de compreensão. No entanto, uma consideração mais profunda dessa oposição evita que caiamos no simplismo de considerarmos que a História não faz uso de enunciados universais e que as Ciências da Natureza (ou Exatas) dispensam qualquer enunciado particular: Nenhuma conclusão acerca do caráter real de coisas e processos específicos pode ser derivada apenas de enunciados gerais, pois as teorias e a leis têm de complementar-se com condições iniciais (isto é, com enunciados singulares ou particulares) para que essas conjecturas gerais sirvam para explicar ou predizer qualquer ocorrência particular. A conhecida e por vezes útil distinção entre ciências naturais e aplicadas também não diminui a importância desse ponto ao afirmar que as ciências puras (como a Eletrodinâmica ou a Genética) se preocupam apenas com estabelecer enunciados gerais, e que só as ciências aplicadas (como a Engenharia Eletrônica ou a Agronomia) precisam ocupar-se com casos particulares, pois até mesmo as ciências naturais puras só podem afirmar que os seus enunciados têm fundamento empírico com base em provas fatuais concretas e, portanto, só servindo-se de enunciados singulares (NAGEL, 1976, p. 25). Apesar de conhecida, essa oposição precisa ser revista, justamente porque lida com algo fundamental dentro da ciência: o embasamento ou a força do discurso de “verdade”. No senso comum (em que reinam as opiniões e lugares comuns!), quando afirmamos que a ciência é a única capaz de produzir conhecimentos verdadeiros em detrimento de outras maneiras de conhecer, como o mito ou a arte literária, é porque parte-se do princípio que ela estabelece leis gerais a partir da experimentação. No entanto, não devemos confiar cegamente no mito da ciência, nem tanto em relação ao que ela pode explicar de fato, mas em relação à maneira como os conhecimentos são construídos. Além disso, muitos enunciados comumente reconhecidos como leis da Ciência “pura” possuem uma generalidade que é pelo menos geograficamente limitada: por exemplo, a conhecida lei de que um corpo em queda livre, ao nível do mar, em latitudes compreendidas entre 38º a 39º da superfície da Terra, sofre uma aceleração de 980 centímetros por segundo. Se forem excluídas dos tratados teóricos leis deste tipo, que são especificações de leis que não possuem tais restrições, essa exclusão é, quando muito, pura questão de conveniência e não de princípio (NAGEL, 1976, p. 27). 23 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL A ideia de que as ciências nomotéticas, dessa forma, retiram de postulados gerais a força de verdade de seu discurso e que isso as colocam à frente das Ciências Humanas não passa de uma falácia. De fato, as ciências naturais não são total ou exclusivamente nomotéticas. Mesmo assim, as Ciências Sociais não podem prescindir de enunciados considerados gerais. É necessário que você perceba que estamos tentando relativizar uma antiga discussão que por muito tempo opôs desnecessariamente as ciências nomotéticas e ideográficas. Em relação à História, é necessário evitar o risco de cairmos em uma profusão de histórias particulares em excesso. Por mais que o historiador ocupe-se do não repetido e do único, ainda assim, a pesquisa historiográfica deve utilizar conceitos gerais tais como “estruturas”, “sociedades” ou conceitos mais tradicionalistas, como volkgeist etc. Bem como o uso de conceitos, os cientistas sempre buscam as relações encontradas entre os fenômenos estudados, como relações de causa e efeito. Aqueles das ciências nomotéticas expressam relações geralmente a partir de fórmulas que se valem da Matemática como linguagem: as forças que geram uma aceleração e o resultado da aceleração média, por exemplo. Nas ciências ideográficas, essa relação é construída mediante o estabelecimento do que os cientistas chamam de variáveis, um fenômeno descrito que pode ter uma causa – uma variável dependente –; ou ser a causa em si – a variável independente. A História se vale da descrição de certos fenômenos e estabelece relações causais entre eles. O desafio, no caso, é estabelecer tais relações de modo que descrevam adequadamente o objeto estudado, e aí reside um dos maiores problemas para os historiadores: como estabelecer que uma ou outra causa seja determinante para o resultado do fenômeno estudado? O estabelecimento dessas relações não pode ficar apenas no nível intuitivo e deve partir de uma adequada metodologia de estudos. E, embora se trate de um evento particular, é possível imaginar que as relações de causa e efeito entre dois eventos possam encontrar algum paralelo em outro momento histórico e em um espaço distinto. Não se trata de estabelecer leis, mas de encontrar certo padrão de acontecimentos. Você deve estar imaginando então que se as Ciências Sociais e as da Natureza possuem tantas semelhanças, a ideia de que são totalmente opostas é um absurdo sem fundamento. Na verdade, há algumas diferenças importantes sim, sobretudo no que se refere ao resultado dos estudos empreendidos em cada uma dessas ciências. Claro que, dentro das Ciências Sociais, há diferenças importantes, sobre as quais discorreremos a respeito mais tarde. Mas, nesse caso, é importante frisar que a grande diferença entre as Ciências Naturais e a História está na conclusão: enquanto as primeiras buscam construir enunciados gerais, os historiadores não se propõem a formular leis: A diferença entre História e Ciência Teórica é, pois, bastante análoga entre Geologia e Física ou entre Diagnose Médica e Fisiologia.Um geólogo procura determinar, por exemplo, a ordem sucessiva das formações geológicas e o faz, em parte, aplicando várias leis físicas aos seus materiais de estudo, mas não compete ao geólogo, qua geólogo, estabelecer as leis da Mecânica ou da desintegração radioativa utilizadas nas suas pesquisas (NAGEL, 1976, p. 29). Devemos ter em mente que o historiador enriquece suas pesquisas com uma abordagem ampla, interdisciplinar, enfocando, por exemplo, motivações psicológicas mais amplas que impilam a um dado fenômeno. No entanto, não cabe a ele realizar a pesquisa psicológica, aproveitando-se de determinados 24 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I enunciados gerais para enriquecer sua pesquisa. Desse modo, é razoável supor que, mais do que concorrente, os tipos de ciência em questão produzem resultados que podem se complementar para a construção de um conhecimento cada vez mais próximo de uma interpretação adequada dos fenômenos da realidade. Mesmo em relação à História, não significa afirmar em absoluto que ela não possa encontrar em algum momento algum tipo de lei da mudança temporal, ainda se levarmos em conta que durante um bom tempo as repetições – ou ciclo de preços – estiveram na pauta dos historiadores franceses do início do século XX justamente para conferir à História um caráter científico nomotético. De fato, nada impede que as Ciências Sociais assumam tal característica. A Psicologia e a Sociologia são bons exemplos que, embora tratem de casos particulares, nem por isso deixam de realizar análises comparativas e estruturais. Jean Piaget estabeleceu quatro tipos de ciências para a humanidade: as nomotéticas, as históricas, as jurídicas e as filosóficas. Para ele, a especificidade das Ciências Históricas em relação às demais, sobretudo as ciências nomotéticas, está na própria diacronia como elemento fundamental, levando em conta que as próprias ciências nomotéticas se valem de tal princípio. Dito de outra maneira: a História é a própria historicidade – diacronia vem do grego “dois tempos”, no caso passado e presente, na Física, por exemplo, tal diacronia é absolutamente necessária na Dinâmica, Astrofísica etc. Desse modo, a História seria a absoluta contingência, levando em conta a dualidade de tempos como marca fundamental da experiência humana e da própria natureza. Portanto, não é exagero admitir, como já sugerimos: Por estreita que seja a ligação das ciências nomotéticas e ciências históricas, pois cada um desses grupos tem constantemente necessidade do outro, as suas orientações são distintas ainda que complementares, mesmo quando se trata de conteúdos comuns: à abstração necessária das primeiras corresponde à restituição do concreto nas segundas, e essa é uma função tão primordial no conhecimento do homem como a outra, mas uma função distinta do estabelecimento das leis (PIAGET, 1976, p. 34). Um exemplo mais claro disso, ainda segundo Piaget, é o que ocorre na História das Ciências. Segundo ele: A História das Ciências constitui um exemplo e, dentro dela, a História da Matemática ocupa um lugar excepcional pelos caracteres internos da estruturação progressiva que descreve: assim, atinge necessariamente os problemas centrais da psicologia da inteligência, da sociogênese dos conhecimentos e da epistemologia científica (PIAGET, 1976, p. 34). Fica claro que a velha divisão entre Humanas e Exatas, baseada na ideia de que a Matemática e as Ciências da Natureza produzem conhecimentos construídos a partir de leis, enquanto as Ciências Humanas, ideográficas por excelência, se baseiam em conhecimentos singulares que, aos olhos de muitos físicos e químicos, não são conhecimentos confiáveis. Nada mais falso. A partir dos autores aqui abordados, vemos que a relação entre nomotéticas e ideográficas é mais de complementaridade do que de oposição. Você ainda deve estar pensando: “certo, mas ainda creio que existam diferenças fundamentais”. Você não está equivocado, mas para pensar em mais diferenças, precisamos agora passar 25 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL dos conteúdos em si para a maneira como nos aproximamos deles. Em outras palavras, nós explicamos ou compreendemos a História, o significado não é o mesmo. 1.3 Explicar ou compreender? Partimos agora para outra possibilidade: a de pensarmos a especificidade do discurso histórico e de sua abordagem. Em outras palavras, estudaremos o método usado pelo historiador que, ao estudar um dado assunto, organiza seus argumentos. Nesse caso, eles são organizados de modo que possamos explicar ou compreender. O historiador da antiguidade Paul Veyne escreveu um importante livro chamado Como se Escreve a História e nele discorreu exatamente sobre esse problema, fundamental para compreender a natureza do trabalho historiográfico e sua validade como atividade particular e plena de credibilidade de resgate do passado histórico: Uma vez que essa é a quinta-essência da explicação histórica, é preciso convir que ela não merece tantos elogios e que se distingue muito pouco do gênero de explicação que se pratica na vida quotidiana ou em qualquer romance em que se narra esta vida; ela é somente a clareza que emana de uma narração suficientemente documentada; ela se oferece por completo ao historiador na narração e não é uma operação distinta desta, não mais do que é para um romancista. Tudo o que se narra é compreensível, visto que se pode narrá-lo. Podemos reservar comodamente no mundo do vivido, das causas e dos fins, a palavra compreensão, utilizada por Dilthey; essa compreensão é como a prosa de M. Jourdain, nós fazemos isto desde que abrimos os olhos para o mundo e para nossos semelhantes; para praticá-la e ser um verdadeiro historiador, ou quase, basta ser um homem, isto é, deixar-se levar. Dilthey teria desejado ver as Ciências Humanas recorrerem, elas também, à compreensão: mas, sabiamente, estas (ou pelo menos as que, como a teoria econômica pura, não são ciências somente em palavras) recusaram: supunha que, sendo ciências, isto é, sistemas hipotético-dedutivos, queriam explicar exatamente como o fazem as Ciências Físicas. A História não se explica, no sentido de que ela não pode deduzir e prever (só um sistema hipotético-dedutivo pode fazê-lo); essas explicações não são a volta a um princípio que tornaria o acontecimento inteligível, elas são o sentido que o historiador dá à narração. Aparentemente, a explicação parece, às vezes, tirada do mundo das abstrações: a Revolução Francesa explica-se pela subida de uma burguesia capitalista (não vamos examinar se essa burguesia não era antes um grupo de comerciantes e de magistrados); isso significa, simplesmente, que a Revolução Francesa é a subida de uma burguesia, que a narração da revolução mostra como essa classe ou seus representantes tomaram as rédeas do Estado: a explicação da revolução é o resumo desta e nada mais. Quando solicitamos uma explicação para a Revolução Francesa, não desejamos uma teoria da revolução em geral, da qual se deduziria 1789, nem um esclarecimento do conceito de revolução, mas uma análise dos antecedentes responsáveis pela explosão desse conflito; a explicação não é 26 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I outra coisa senão a narração desses antecedentes, que mostra tudo o que a provocou e pode ser ao mesmo tempo chamado de causas: as causas são os diversos episódios da trama (VEYNE, 1982, p. 83). A questão está colocada: o resgate do passado pela Historiografia seria totalmente crível em virtude do caráter científico da História? E, levando em conta suascaracterísticas fundamentais, nós podemos considerar História como ciência? Vamos analisar a questão: no século XIX, a ciência passou por uma reestruturação para tomar a forma como a conhecemos hoje. Cada vez mais, as distintas áreas foram se aprofundando, no entanto, mantendo em comum um determinado tipo de organização de conteúdo. Essa seria uma tendência verificada já no Renascimento, quando os grandes esquemas explicativos medievais – de caráter integral – foram sendo progressivamente abandonados. Por exemplo, já não fazia mais sentido encontrar uma causa primeira para tudo e as diversas ciências tornaram-se sistemas quase fechados. Não foi diferente com as Ciências Humanas, nascidas já em um ambiente de forte segmentação. As Ciências Sociais, à parte o sucesso que as filosofias da História pudessem ter alcançado no século XIX graças, sobretudo, ao trabalho de Hegel, realizam recortes específicos na realidade, ou seja, os pesquisadores elegem um tempo, um espaço e um dado fenômeno, buscando relações entre essas partes, bem como relações de causa e efeito em torno do fenômeno estudado. No caso da História, seu estatuto científico é reforçado quando ela abandona o campo da especulação filosófica, tal como visto na obra de Hegel e sua descrição do despertar do espírito universal por meio dos acontecimentos históricos. Figura 4 – Hegel 27 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 HISTORIOGRAFIA GERAL Observação Hegel criou uma filosofia da História de cunho dialético idealista, criticada anos mais tarde por Marx. Em sua metafísica, reside uma razão para os acontecimentos históricos, vinculados ao progressivo autorreconhecimento do Espírito. A História dos não hegelianos, portanto, é a história científica, que se afasta da especulação metafísica e religiosa de Hegel. Essa crítica de fato sugere uma unidade de método entre as Ciências da Natureza e as Ciências Sociais, afinal o método científico é um só, apesar das diferenças de objeto, era esse o argumento. No entanto, é necessário lembrar que há ainda os que criticam essa unidade de método justamente porque os seres humanos são objetos diferentes dos objetos da natureza, não podem ser tratados como um laboratório e, sendo dotados de razão e vontade, podem escapar à previsibilidade. A questão pode ser colocada ainda da seguinte maneira: se sou um sociólogo ou um historiador, meu objeto é como (ou pode ser como) eu mesmo. Essas questões foram colocadas já no final do século XIX, o século do cientificismo. Aqui nós podemos estabelecer uma diferença importante entre Ciências Sociais e Ciências da Natureza. Embora tenhamos visto que entre as ciências nomotéticas e ideográficas existe de fato uma relação de complementaridade, as ciências ideográficas, em especial as Ciências Sociais como a História, o conhecimento do ser humano sempre parte de uma experiência do sujeito do pesquisador. Ou seja, há um determinado princípio de igualdade entre sujeito e objeto, estabelecendo um contexto de pré-compreensão e compreensão. Assim, as ações humanas podem ser descritas de um ponto de vista externo (tal como as ciências naturais), mas também interno (como finalidade, intenção etc.), algo que os homens do século XIX chamaram de ciências do espírito (geist, “espírito” em alemão). Não confunda com fantasma! A linguagem simbólica, a interpretação, o espírito aventureiro, tudo isso pode ser conhecido a partir do pressuposto de que as pessoas estudadas são como nós, e isso estabelece a possibilidade de compreensão (Geistwissenschaft, a ciência do espírito). O conhecimento da vida interior é possível levando em conta que por sermos todos humanos, nossas paixões, medos e esperanças são os mesmos. Podemos sentir a profunda dor e decepção de Júlio César que, jazendo no chão do senado romano após ser apunhalado, viu dentre seus assassinos muitos de seus antigos aliados. Da mesma forma é possível entender por que Napoleão teria sido derrotado em Waterloo se nós considerarmos verdade a anedota de que ele teria sido acometido por um desarranjo intestinal e, por isso, se equivocado em suas estratégias. Você diria: “é compreensível, afinal deve ter sido muito duro para César saber que foi traído, e que Napoleão tenha perdido a guerra, já que dores intestinais tiram qualquer pessoa do eixo”. Sim, é compreensível, mas vá com calma: tais argumentos não permitem uma explicação correta, mas somente uma explicação. Uma estratégia muito usada é o emprego de analogias do presente para explicar o passado, embora o risco de anacronismo – avaliar o passado com valores do presente – seja alto. Vamos supor que você queira estudar, ao modo do século XIX, o processo de colonização do Mediterrâneo pelos gregos. Você pode estabelecer diversas causas: concentração fundiária, períodos de estiagem, 28 Re vi sã o: A lin e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 8/ 01 /1 6 Unidade I guerra civil, ampliação do comércio e, dentro dessas causas, discorrer sobre a necessidade psicológica do descobrimento, da expansão, de eliminar o desconhecido. Pode também discorrer sobre o espírito aventureiro dos colonos de Siracusa. Repare que por mais fora de moda que estejam tais explicações na academia, nada impede de levarmos em consideração o espírito pioneiro dos colonos gregos. De qualquer maneira, devemos refletir profundamente sobre as causas determinantes de tal empreendimento: haveria colonização do Mediterrâneo se as terras na Hélade fossem suficientes para todos? Apenas o espírito aventureiro pode explicar a colonização? O que seria mais importante, nesse caso? O outro lado da moeda também é verdadeiro: dificilmente um bando de covardes se arriscaria em mar aberto, talvez preferindo viver sob a penúria da escravidão do que perder a própria vida. Repare que temos aqui um elemento interessante para pensarmos o “fascínio” da História entre muitas pessoas, assim como sua utilização para fins políticos e o enaltecimento dos heróis: a identificação possível com os homens do passado. Dessa forma, podemos até considerar que as ciências do espírito são mais completas do que as ciências da natureza já que podem se ocupar de aspectos externos e internos, enquanto as ciências da natureza não podem avaliar senão fenômenos externos. Dificilmente um químico compreenderá as motivações de uma molécula de carbono, e um físico, as da aceleração de um veículo se considerar o motorista e seu universo psíquico. Na antiga Ciência do Espírito (a Geistwissenschaft), a ideia central era compreender e, a partir do exemplo descrito anteriormente, fica explícita a diferença entre compreensão e explicação. As ciências da natureza explicam e as ciências do espírito (podemos aqui fazer uma analogia com as Ciências Humanas de forma geral) compreendem, pois o pesquisador tem algo em comum com seu objeto. Esse argumento, muito difundido na Alemanha do século XIX, é a base da hermenêutica, um antigo método de compreensão de textos bíblicos que posteriormente foi utilizado como um método de interpretação histórica. Deixemos de lado, portanto, a diferença entre nomotéticas e ideográficas e a questão da verdade e sua relação com o estabelecimento de leis e pensemos um pouco mais sob a perspectiva que está sendo apresentada agora. A explicação se refere a uma atitude empiricista, descrevendo a observação de fenômenos externos e a compreensão se relaciona com as ciências do homem, pois procura intenções nos fenômenos humanos. Essas intenções não são somente descritas, mas interpretadas pelo sujeito de conhecimento e, dessa forma, poderíamos dizer que com a hermenêutica, as Ciências Humanas resgataram uma dimensão filosófica que tinha se perdido quando as ciências naturais assumiram um aspecto de descrição e relações
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